Após a queda do Império Romano Ocidental, em 476 d. C., o direito romano continuou a ser cultivado e não raro a vigorar, sob a forma de codificações influentes, como o Corpus juris civilis de Justiniano, ou de fontes esparsas e complementares do direito local.
Um dos casos conspícuos de combinação do direito romano com outras fontes jurídicas, na Idade Média, foi o Direito Canônico. É comum os historiadores atribuírem a primeira codificação desse direito de cunho eminentemente eclesiástico a Graciano, cujo Decreto produzido no século XII serviu a extensão ordenada e mais ou menos enérgica do poder papal a quase todo o mundo ocidental.
Considerado em si mesmo, o direito canônico é de natureza eminentemente metafísica. Não se confunde com o direito comum, porém o inclua. Mais do que isso, para a Igreja como para Tomás, a lei é toda uma só: a de elaboração humana, chamada por ele às vezes também positiva, contém-se na lei natural, e esta, na lei eterna.
Ora, se a lei positiva, com suas nuanças tão numerosas quanto as situações e os contextos que a vida apresenta, está compreendida na lei natural, e a lei natural é uma participação na lei eterna, como Tomás não cansa de enfatizar, não há, no Universo, a não ser uma lei. E a diversidade das normas, de que nossos olhos estão repletos, outra coisa não é que ilusão.
Mas, se a lei é uma só e se funda nos pensamentos pelos quais Deus governa todas as coisas, segue-se que o direito é de índole metafísica, e o que dele afirmamos e as aplicações às vezes contraditórias que lhe damos não podem alterar a sua natureza intrínseca. Quando muito, o que fazem é recobrir e ocultar aquela natureza metafísica.
Consequência sumamente interessante do que acabo de expor são os efeitos do tempo no mundo jurídico. Se a lei humana é parte da lei natural que, por sua vez, integra a lei eterna, toda lei é, no fundo, eterna. Não se cria, nem se revoga, mas permanece imutável em Deus. Assim, o ato de promulgação não constitui propriamente a lei. Limita-se a transportá-la da consciência divina, onde remanesce, às consciências humanas. Semelhantemente, ao ser revogada, a lei não se desconstitui: apenas deixa de ser obrigatória.
Nesse quadro, a crítica às concepções do direito natural que afirmam a existência de normas não imperativas não se justifica, pois os teóricos do direito natural cristão jamais afirmaram que a lei pode ser meramente assertiva. Assertiva é a lei científica, que assevera ou descreve o modo como o Universo físico se comporta. A lei natural no sentido cristão é posta por um ser livre (Deus) a outros que, ao menos de raro em raro, podem deixar de observá-la. Como tal, ela é dotada de algum grau de imperatividade.
A crítica mencionada é procedente, portanto, apenas no concernente às formulações específicas do direito natural que o confundem com o princípio do comportamento animal, como a encontrada nas Institutas de Justiniano (JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23). De acordo com Tomás, a lei eterna sujeita-se a duas consagrações: a do hábito e a da razão. A primeira, típica dos animais, consiste na conformação involuntária da conduta à lei. Por não envolver consciência, ela não implica que os animais obedeçam à lei natural. E, se eles não a obedecem, tal lei não é imperativa para eles. Por isso não é correto afirmar que a conformação do comportamento animal à lei eterna envolva a sua sujeição à lei natural.
Tudo considerado, portanto, a promulgação não inaugura a lei, só aumenta a sua imperatividade, a fim de reger as vontades fracas que tendem a se apartar das condutas desejadas pelo legislador. Tomás enfatiza, porém, que a lei promulgada pode embotar-se nas consciências. Quando isso ocorre, ela perde imperatividade e regride ao estado anterior à promulgação.
Por assemelhar-se ao hábito animal, o costume dos povos não é fonte de direito, a não ser quando confirmado por um ato de autoridade. No Brasil, essa confirmação se dá por regras como a do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que prevê a aplicação do costume em casos de lacuna da lei. No Código de Direito Canônico, por sua vez, a elevação do costume à condição de lei está prevista no cânon 23. O cânon 24 acrescenta que ela só ocorre se o costume não contrariar o direito divino, entendido como a parte da lei eterna que não é promulgada por autoridade humana (Código de Direito Canônico. Cânon 1.059). Em suma, o tempo não cria, nem extingue leis, só aumenta ou diminui a sua imperatividade. Esse efeito não se observa apenas no tocante à lei, mas também aos direitos subjetivos que, no direito canônico ou no comum, se sujeitam à prescrição. À diferença do direito comum, porém, no canônico, a prescrição só corre quando as pessoas beneficiadas por ela conduzem-se com boa fé (Código de Direito Canônico. Cânon 198).
Prescrição é a perda de um direito ou de faculdades inerentes a ele pelo decurso do tempo. Os especialistas discutem a diferença entre prescrição e decadência. No Brasil, a matéria foi razoavelmente pacificada pela formação de um amplo consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a prescrição é a perda da pretensão condenatória que nasce da violação de um direito. Prescrito o direito, não pode o seu titular requerer ao juiz a condenação de quem o tiver violado, após transcorrido o prazo prescricional previsto em lei. Decadência, diversamente, é a perda da pretensão de constituir ou desconstituir relações jurídicas como as emanadas do contrato ou da sentença judicial.
Em direito canônico, se o devedor se evadir do credor para não pagar a dívida, ela não prescreverá. Por isso, poderá ser cobrada a qualquer momento. No direito comum, ao contrário, a prescrição ocorrerá independentemente da boa fé ou má fé do devedor. Portanto, a dívida não poderá ser cobrada.
Esse trato da prescrição pelo direito comum pode parecer equivocado. Não se trata, porém, de equívoco, mas de opção. É que o direito comum diferencia a prescrição aquisitiva da extintiva não só por acrescer o patrimônio de seu titular de novo direito, mas também pela boa fé, que é exigida na primeira e não na última. O direito canônico, ao contrário, não cuida da prescrição aquisitiva, embora reconheça os seus efeitos civis.
Assim, em direito comum, a prescrição aquisitiva confere à pessoa um direito pelo decurso de um prazo. A usucapião é o exemplo clássico: por ela, a pessoa conquista a propriedade de um bem por exercer sua posse durante certo tempo. Nem toda posse, porém, dá direito à prescrição aquisitiva. Para que esta se consume, é preciso que a posse seja qualificada por certas características, uma das quais é a boa fé. A propriedade não se adquire, se o exercente da posse não agir de boa fé.
Essa qualidade do ato de posse (a boa fé) não é exigível na prescrição extintiva do direito comum, pois o legislador entende que o credor pode evitar que o devedor de boa ou má fé se beneficie da prescrição, cobrando a ação em juízo. No Brasil, a citação válida do devedor, na ação promovida pelo credor, interrompe a prescrição, que não volta a correr até o trânsito em julgado. Por isso, o legislador não considerou necessário cercar o direito do credor da garantia adicional da imprescritibilidade.
O que o direito canônico tutela, portanto, com a exigência da boa fé para que se opere a prescrição extintiva, não é só o direito do credor, mas a própria boa fé, com o selo da imprescritibilidade. Assim, não só o credor é posto numa posição mais cômoda como a má fé não é coroada com a abolição das dívidas de quem a adota.
Não podemos deixar de observar que, no direito canônico, a lei natural tem sentido mais amplo do que nas obras de Cícero e Santo Agostinho. Se quisermos delimitar perfeitamente o conteúdo do conceito num e noutro caso, teremos de admitir que, para Cícero e Agostinho, o direito natural inclui somente as normas derivadas da lei eterna em situações concretas de vida, enquanto, na filosofia tomista, inclui toda a cadeia de derivação de normas a partir dos primeiros princípios, o que torna o direito natural muito mais metafísico.
Como advogado e jurisconsulto, Cícero não situava a ratio legis nas regiões hiperurânias, mas no interior das instituições do direito romano. Agostinho seguiu-o nesse particular. Assim como Cícero, ele entendeu a lei natural como o feixe limitado de consequências dos primeiros princípios a que se chega mediante contato com as necessidades da vida e as instituições jurídicas.
Por ser racional, o direito não pode passar ao largo dessas consequências. Deve, ao contrário, haurir delas o seu conteúdo essencial. No entanto, a tentativa de ir além desse ponto para atribuir caráter jurídico a toda a cadeia de consequências que vai dos primeiros princípios à ratio particular das instituições faz surgir um peso jurídico inútil. O peso das nebulosidades, do impenetrável e do jamais cogitado pelo homem comum.
Não é o direito a disciplina da própria vida? Se o é, por que nos caberia sobrecarregá-lo com abstrações que o homem comum nunca realiza e que não são necessárias à preservação da ordem social? Nos costumes e nas instituições sociais encontramos o tanto de pensamento e de abstração que o direito há de incorporar. Não é preciso ir além dele. Ao contrário, é preciso resistir à tentação de estender a razão jurídica além dessa fronteira em si já bastante remota. A incapacidade de realizar suficientemente essa tarefa transformou-se no problema específico e mais assinalado do pensamento medieval. É ainda hoje a tentação dos que concebem o direito canônico do ponto de vista estrito da escolástica.
é a tentação mais comum no nosso tempo. O ordinário, hoje, é o inverso daquela tentação: não o excesso de metafísica, mas o excesso de rejeição dela. Tentação que os monumentos jurídicos do nosso dia tratam de rechaçar. Por que as Constituições contemporâneas não cuidam de abstrações metafísicas, mas de instituições sociais e jurídicas? Não é porque o constituinte se sinta investido da missão de rejeitar algo (a metafísica), mas porque ele sabe da dívida do nosso tempo com a mais estreita adesão à ordem institucional. O constituinte sabe que o seu dever não é rejeitar ou excluir, mas abraçar e incluir. Por isso, ele tudo inclui sob o pálio da Constituição. Da mais insignificante minoria à prática social mais limítrofe do crime, tudo recebe o matiz liberal da permissão constitucional. Por que conceber que a lógica essencial ao direito estaria excluída? Por que conceber que a modernização dos costumes se dá em prejuízo da racionalidade comum a todas as épocas? Por puro medo da palavra metafísica?