Ao longo da História Ocidental, o direito natural sempre foi um dos mais importantes fundamentos da ética. Só nos últimos três séculos, as críticas à indeterminação do jus naturale fez surgir o anseio de uma fundamentação imanente do direito, o que, em não poucos casos, levou à negação pura e simples do direito natural e, em outros, à identificação parcial dele com o positivo.
Um dos porta-vozes mais antigos da identificação dos direitos natural e positivo foi Thomas Hobbes, que escreveu, numa obra clássica: “Toda lei pode ser dividida, primeiramente, em função da diversidade de seus autores, em divina e humana. A divina, por sua vez, se bifurca em natural (ou moral) e positiva, segundo os modos pelos quais Deus deu a conhecer sua vontade aos homens” (HOBBES, Thomas. De cive. Cap. 14, 4). Essa é a divisão clássica do direito. Porém, após tê-la estabelecido, Hobbes fez a lei natural coincidir parcialmente com a positiva ao afirmar que “a lei da natureza nos ordena observar todas as leis civis, pois nos obriga a obedecer-lhes antes mesmo de conhecermos o que nos será ordenado [...] Disso se segue que nenhuma lei civil [...] pode ser contrária à lei da natureza” (idem. Cap. 14, 10).
Em Liberdade e direito, publicado em 2000, citei esse texto de Hobbes como um dos primeiros casos de limitação posta pelo direito positivo ao conteúdo da lei natural na História (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 374-375). Mas, se o pioneirismo de Hobbes nesse sentido é inegável, é necessário que nos detenhamos no modo como ele pensou que o direito positivo é capaz de limitar o conteúdo possível do direito natural.
Esse modo está claramente exposto na sua obra: “Embora a lei da natureza proíba o roubo, o adultério etc., se a lei civil nos ordenar invadir algo, a invasão não constituirá roubo, adultério etc.” (HOBBES, Thomas. Ob. cit. Cap. 14, 10). Nosso autor fornece um exemplo histórico claro do que afirma: “Quando as leis dos antigos lacedemônios permitiam que os seus jovens tomassem os bens de outras pessoas, elas na verdade ordenavam que aqueles bens não fossem considerados de outras pessoas, mas dos jovens que os deviam tomar” (idem).
Hobbes não esvazia, nem retira autoridade ao direito natural, apenas fixa, de maneira nova, a autoridade do direito positivo em relação à dele. Nada a admirar, se o objetivo geral de Hobbes era afirmar o poder absoluto do rei. Na doutrina tradicional da Igreja, o conteúdo do direito positivo era fixado (e restringido) em função do direito natural. Hobbes propôs uma modificação. Propôs que as disposições do direito positivo fossem utilizadas não para restringir, mas para esclarecer o sentido do direito natural em situações específicas.
Notem que, em momento nenhum, o consagrado filósofo afirmou que o direito dos lacedemônios ou qualquer outro povo impõe mudanças no direito natural. Este continua a ser o que sempre foi, independentemente de as leis positivas dos povos afirmarem isto ou aquilo. Porém, segundo Hobbes, devemos excluir a possibilidade de conflito entre as condutas impostas por lei e o direito natural.
Em poucas palavras, Hobbes quis sustentar que “o direito civil inteiro é natural”. Foi a conclusão que extraí do De cive em meu livro publicado em 2000 (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 375) e que continuo a extrair ainda hoje, pois não me parece que o teórico do absolutismo tenha pretendido outra coisa. Porém, naquela ocasião, citei Hobbes como ponto de partida para a reflexão que pretendia realizar sobre o conceito de natureza humana. Parecia-me, então, como ainda me parece, que a noção de natureza humana, tantas vezes citada como indeterminável, podia ser estabelecida com base nas emoções. Por isso afirmei que “todos os atos humanos são movidos por emoções. A criação do direito não é exceção. Também ela é causada por emoções. Como as emoções são fenômenos naturais, todo direito é inegavelmente natural” (idem).
A intenção dessas considerações era dupla: por um lado, era admitir que a tendência da filosofia recente a negar a determinação necessária do direito positivo pelo natural podia ser aceita; por outro lado, desejava indicar que a natureza humana (e o direito natural) podia(m) ser concebida(os) com base nas emoções instintivas. Porém, a associação dos atos humanos aos instintos não fornece mais que um acesso parcial ao conteúdo da natureza humana. Se assentasse apenas nas emoções básicas, a natureza do homem seria assimilada à do animal, o que não é obviamente apropriado. O homem não é só instinto. Sua natureza é também racional. Quando afirmamos que o direito positivo deriva do natural, não estamos a propor que ambos emanam do instinto, mas da razão. A pedra de toque do direito não é a irracionalidade, mas o modo racional de dar voz às demandas da natureza humana. O que quis enfatizar, em 2000, e me parece devido reafirmar hoje, é apenas que o conteúdo da nossa natureza, que a razão reivindica, é instintivo.
Essa concepção de natureza humana simultaneamente racional e instintiva, a que cheguei em Liberdade e direito, permite não alargar a identificação do direito positivo com o natural proposta por Hobbes, a ponto de eliminar a dicotomia entre eles. Se a nossa natureza fosse só instintiva, a identificação entre os direitos natural e humano seria, de fato, total, e a dicotomia restaria eliminada. Porém, ao mesmo tempo em que é instintiva, a natureza do homem é também racional, com a única ressalva de que, no homem, em regra, a razão serve o impulso e não o contrário.
Dirão que derrubo o cânon cristão segundo o qual a razão inclina o homem às coisas espirituais e eternas, não às instintivas e terrenas. Mas só o nego aparentemente. No fundo, não há negação alguma. Apenas tomo a inclinação racional como uma segunda natureza (natura secunda), que coexiste ou pode coexistir com a natureza terrena do homem, a depender da orientação da sua vida. Creio ser esse o sentido do ensinamento cristão de que o homem animal e carnal pode "nascer de novo", o que não a implica a eliminação da sua natureza animal e terrena ou a redução dela a algo menos que uma natureza governante, mas a coexistência da natureza instintiva com a natureza segunda, pela qual o homem passa a distinguir-se ainda mais do animal.
Nem todas essas conclusões foram lançadas em Liberdade e direito, por não caberem numa tese doutoral. Mas, certamente, a investigação da natureza e da ordem ética que empreendi naquela obra permitiu-me concluir que o direito natural e o positivo não podem coincidir totalmente: se “pudéssemos estabelecer o conteúdo do sistema ético de referência de uma sociedade, identificando-o, por exemplo, com a hierarquia de valores adotada pela lei, ainda assim restariam grandes dificuldades teóricas para a doutrina do direito natural. Se o sistema de referência fosse a lei ou os valores da lei, então uma norma seria natural na exata medida em que fosse positiva. Sob este ponto de vista, direito natural e direito positivo coincidiriam completamente” (idem. pp. 379-380).
A linguagem condicional do parágrafo acima indica discordância com a tese da coincidência total dos direitos natural e positivo. Já por isso, a ideia a que cheguei sobre as reivindicações de autonomia radical do direito positivo frente ao natural foi semelhante, mas não idêntica à de Hobbes. Foi a ideia de que os dois coincidem em parte, sem que o direito natural determine necessariamente o conteúdo possível do direito humano.
Essa conclusão cria o problema consistente em estabelecer o sentido que pode ter um direito positivo coincidente, ainda que em parte, com o natural. Entendemos que o direito natural imponha limites à conduta humana. Compreendemos também as demandas que um direito positivo independente do natural coloca. Mas temos dificuldade em entender o porquê, o sentido final, de um direito positivo que coincide com o natural.
Este o dilema em que desemboca toda reflexão sazonada sobre o papel do direito natural num mundo que parece pertencer, cada vez mais completamente, à positividade, ao construído, vale dizer, ao que é posto pelo homem e encontra nas coisas humanas o seu sentido exclusivo. Talvez o melhor caminho para afirmar o papel do direito natural, num mundo reduzido a artefato do homem, seja associar e até derivar o direito natural das instituições. Mas como fazê-lo sem afastar totalmente a possibilidade de as instituições, na historicidade e diversidade que as tipificam, virem a aplicar um direito universal?
Vemos quanto a ideia de um direito universal e anterior ao homem rompe o esquema reducionista consistente em pensar, todo o tempo e de todas as maneiras, que o único sentido real de um mundo cujos sentidos possíveis são tantos é o sentido humano. Mas, para alcançar o direito incoercível de afirmar valores universais, em meio a tanto relativismo e positivismo quanto hoje vigora, é preciso encontrar uma justificação para o direito anterior ao homem e não apenas o professar.
Pareceu-me e ainda me parece que o melhor caminho para isso é partir de um conceito claro de natureza humana como conjunto de impulsos instintivos, cuja satisfação é buscada pela razão. Esse foi o conceito a que cheguei em Liberdade e direito ao reconhecer que “as características mais palpáveis da essência humana são físicas. O homem é um animal com duas pernas, um cérebro, um coração, dois pulmões. Há muito pouco conteúdo ético na essência do humano” (idem. p. 377).
Devo admitir que, ao escrever tais palavras, em 2000, eu tinha em vista uma concepção clara e distinta de natureza humana, mas não vislumbrava como ela podia regular a aplicação de normas tão numerosas e às vezes contraditórias quanto as que constituem os ordenamentos jurídicos do nosso tempo. Permanecia, ao contrário, cético quanto à possibilidade de uma regulação tão ampla da aplicação das normas com base no conceito de natureza humana. Parecia-me que tal pretensão era mais uma das ilusões com que nos divertimos ou assustamos.
Nesse estado de consciência, publiquei A função social do lucro (MORAIS, Luís Fernando Lobão. São Paulo: Themis, 2008), em que expus minhas dúvidas sobre a eficácia não só do conceito de natureza humana, mas também dos princípios e regras que dele dimanam e com ele formam o conjunto amplíssimo de normas que denominamos ordenamento jurídico. Na verdade, eu levava tão longe a prerrogativa de duvidar que duvidava até mesmo da possibilidade de as normas do ordenamento formarem um sistema. E a razão principal do duvidar, que eu entretinha naquele tempo, não eram as oposições de princípios jurídicos, nem os conflitos, às vezes inconciliáveis, de regras com que nos deparamos ao trabalhar com o direito, mas a desconexão ainda mais fundamental que me parecia subsistir entre o conceito de natureza humana e a aplicação das normas do ordenamento.
A meditação contínua sobre a justiça levou-me, porém, a mudar de opinião. O objetivo destes textos sobre Filosofia e Direito é exatamente mostrar em que sentido se deu a mudança. É mostrar que a falta de “conteúdo ético na essência do humano” a que me referi, em 2000, é suprida pelas instituições (ou pelo costume, nas sociedades em que as instituições não se desenvolveram suficientemente), de acordo com as exigências cambiáveis de cada época, com vistas à satisfação da natureza física do ser humano. E o instrumento por excelência que permite suprir tal falta é a razão.
Sei que, a alguns, esse conceito de natureza humana ao mesmo tempo racional e instintiva parecerá pequeno e acanhado demais. Talvez realmente o seja, mas a pedra de toque da questão do direito, para mim, não é ser pequeno ou grandioso. É funcionar. Esse é o ponto de honra, o alvo a ser atingido em toda discussão jurídica. A missão do direito é pacificar as relações sociais e resolver os conflitos entre as pessoas, não ser grandioso.
Por tudo isso, o fato de sermos capazes de construir um conceito funcional de natureza humana é significativo, pois dele podemos passar a uma concepção de direito natural que nada tem de sonhada. É tal concepção utópica? Talvez, se por utopia entendermos algo que não existe (total ou parcialmente), mas pode vir a existir e até dirigir a construção do que não existe. Nesse sentido, a utopia distingue-se da ideologia, que se orienta pelo que não existe, nem pode vir a existir.
Constituímos, assim, uma concepção universal da justiça: aquela segundo a qual é justo e conveniente, para o homem, satisfazer as suas emoções básicas. Essa concepção nos fornece o sentido geral do direito. Todo o direito, não só parte dele, tem tal sentido. Todo o direito visa a favorecer e a otimizar a satisfação das necessidades instintivas do ser humano, em situações dotadas de diversidade tal que chegam a encobrir o sentido geral das normas que as regulam.
Claro que a multiplicidade das situações e dos desafios que a vida coloca faz surgirem outras ideias e ideais axiológicos ao lado daquele posto pela natureza humana. Ideias e ideais que constituem sentidos novos e particulares de justiça. Porém, nem as ideias, nem os ideais ou os sentidos de justiça que eles engendram revogam a noção universal que queremos apresentar.
Os sentidos da justiça podem ser acomodados em duas grandes categorias. De um lado, ficam os sentidos utópicos e ideológicos; de outro, os sentidos concretos dela. As constelações de valores incapazes de satisfazer, de maneira estável, as emoções básicas do ser humano chamam-se utópicas ou ideológicas. Os valores capazes de satisfazê-las são, ao contrário, concretos.
Em toda sociedade, existem tanto concepções abstratas (utópicas e ideológicas) quanto concretas da justiça. Arriscaria afirmar, até mesmo, que as concepções ideológicas podem tornar-se concretas ao se transformarem e evoluírem. Nenhuma doutrina está vaticinada a ser, para sempre, ideológica, assim como nenhuma está livre do risco de perder a condição concreta após tê-la adquirido. É que essas condições são essencialmente cambiáveis. É que elas são tão provisórias quanto todas as outras coisas humanas.
Houve um tempo em que a religião chegou a ser considerada quase sinônimo de ideologia, e a política, de atividade libertária. Não nos podemos furtar a declarar quanto essa apresentação é indigna dos fatos, quanto a História da Religião é pródiga em exemplos de doutrinas ideológicas que geraram concepções concretas e quanto a História Política fornece casos de concepções concretas que se fizeram utópicas ou se perderam em indecifrável ideologia!