Atos 2:42 e 46 afirmam que, após a ascensão de Jesus, seus discípulos continuaram a “partir o pão [...] de casa em casa”. Ao que tudo indica, Lucas registrou essa prática com a intenção de sugerir que, por meio dela, os discípulos cumpriram o mandamento de celebrar a Ceia instituída pouco antes da crucificação.
Porém, Atos não esclarece se, ao cumprirem o mandamento, os discípulos consideravam que o pão e o vinho se transformavam no corpo e no sangue de Cristo. O mais longe que Atos chega, a propósito da celebração da Ceia, é tecer afirmações como a de que, “no primeiro dia da semana, tendo-nos reunido a fim de partir o pão [...] Paulo prolongou o seu discurso até a meia-noite” (At 20:7).Muito pouco para permitir qualquer conclusão fundamentada sobre o entendimento dos primeiros cristãos sobre a Ceia.
É lícito perguntar, diante disso, se a convicção de algo tão extraordinário quanto a transformação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo estava sedimentada na igreja, quando Atos foi escrito, provavelmente, na década de 60 do primeiro século. Se estivesse, não era de esperar que, ao narrar a Ceia, Lucas se referisse ao milagre da transfiguração, em vez de manter silêncio sobre ele?
Não é muito diferente nas Epístolas. No texto em que trata mais extensamente da Ceia, Paulo não se refere à presença real de Cristo no pão e no vinho. Dedica-se a outros aspectos da celebração: "Quando vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague. [...] Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. Por semelhante modo, depois de haver ceado, tomou também o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha" (1 Co 11: 20-21, 23-26).
Como Lucas, em Atos, Paulo tampouco esclarece qual era a convicção dos discípulos sobre o sentido das frases "Isto é o meu corpo", "Isto é o meu sangue" e "Fazei isto em memória de mim". Um texto escrito só um pouco mais tarde (o Didaqué, datado de 70 a 120 d. C.) não preenche a lacuna. Nele, encontramos a exortação para que, ao celebrarem a eucaristia, os discípulos dissessem "sobre o cálice: ‘Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da santa vinha do teu servo Davi, que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A ti a glória para sempre’". Sobre o pão partido, diz-nos a Didaqué que os cristãos deviam pronunciar a oração: "‘Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste por meio do teu servo Jesus. A ti a glória para sempre’” (Didaqué. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 353). Novamente, o significado do pão e do cálice não é esclarecido. Porém, o primeiro é tratado como um símbolo da igreja logo em seguida: “Como este pão partido tinha sido semeado sobre as colinas, e depois recolhido para se tornar um, assim também a tua Igreja seja reunida desde os confins da terra no teu reino” (idem).
O primeiro registro de uma interpretação propriamente dita da Ceia, encontramo-lo na Epístola de Inácio aos esmirnenses. Na verdade, deparamos com duas interpretações, no trecho em que lemos que “os docetas abstêm-se da eucaristia e da oração porque não admitem que a eucaristia seja a carne de Jesus Cristo nosso Salvador, que sofreu por nossos pecados, ao qual o divino Pai ressuscitou”. Essas palavras indicam que, no fim do primeiro século e início do segundo, os que não adotavam interpretação semelhante à dos docetistas criam na presença real de Cristo no pão e no vinho. Portanto, a interpretação literal e a simbólica coexistiam.
Em meados do século II, Justino escreveu sobre o culto cristão: "Terminada a ação de graças do presidente e ratificada pelo povo, os chamados diáconos distribuem entre os presentes o pão eucarístico e o vinho com água, que levam depois também aos ausentes. Chamamos este alimento de eucaristia: ninguém pode participar dele a não ser aquele que crê que nossas doutrinas são verdadeiras [...] pois, para nós, não é alimento ordinário, nem bebida comum; pois, assim como, pela palavra de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor fez-se carne e sangue para nossa redenção, assim também o alimento consagrado pela oração da palavra que dele recebemos, através do qual, mediante sua transformação, nossa carne e nosso sangue são alimentados; este alimento é a carne e o sangue de Jesus" (ROMA, Justino de. 1ª Apologia. In Justino de Roma. Sâo Paulo: Paulus, 1995. p. 82).
No segundo e terceiro séculos, é possível encontrar mais testemunhos das interpretações da eucaristia defendidas pelos cristãos. Ireneu, Hipólito, Tertuliano e Cipriano defenderam a presença real de Cristo no pão e no vinho. Numa famosa epístola, Cipriano escreveu: “Se Jesus Cristo nosso Senhor e Deus, pessoalmente, é o sumo sacerdote de Deus Pai; se, primeiramente, se ofereceu a si mesmo em sacrifício ao Pai, ordenando que seja isso feito em sua memória, com toda certeza o sacerdote, imitando o que Cristo fez, desempenha fielmente o papel de Cristo e oferece ao Pai um sacrifício verdadeiro e completo, toda vez que o oferece na forma como Cristo ofereceu” (CARTAGO, Cipriano de. Epístola LXIII, 14. In BETTENSON. Documentos da igreja cristã. São Paulo: ASTE, 1998. pp. 137-138).
Em notável contraste com os teólogos acima, Orígenes escreveu que “um sinal de nossa gratidão a Deus [é] o pão chamado Eucaristia” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 664). Nesse texto, a palavra sinal não parece empregada como sinônimo de indicação ou outra palavra que pudesse assumir significados distintos em situações diferentes, mas para frisar o caráter específico da eucaristia como símbolo.
Orígenes adotou a interpretação simbólica com um propósito muito distinto dos docetistas, que queriam negar que o Verbo tivesse encarnado. Como sustentava tanto a divindade quanto a humanidade e a mistura da substância divina com a humana em Cristo, ele tinha, simplesmente, o propósito de realçar o que havia de simbólico nas palavras de instituição da Ceia.
No século IV, Gregório de Nissa escreveu que o pão “não se converte no corpo do Verbo por via da alimentação”, ou seja, pelo simples metabolismo, “mas é transformado imediatamente em seu corpo em virtude do Verbo, como o mesmo Verbo disse: ‘Isso é meu corpo’” (NISSA, Gregório de. A grande catequese. São Paulo: Paulus, 2011. p. 378). Essas palavras sugerem que, entre os partidários da presença real, alguns afirmavam que o pão se tornava o corpo, e o vinho, o sangue de Cristo, durante o metabolismo, ao passo que outros defendiam a transformação instantânea, durante a celebração da Ceia.
No século V, lemos interpretação semelhante à de Orígenes, na passagem em que Dionísio
Areopagita recomendou: “Ora para merecer a honra de realizar, à imitação
de Deus, esta divina operação, de consagrar [ele não diz transformar]
os mistérios divinos e de distribuí-los [...] e apresentar aos olhos de
todos os mistérios que acaba de realizar sob as espécies simbolicamente
apresentadas”. As palavras “simbolicamente apresentadas”, no texto do
Areopagita, não deixam dúvida sobre o significado do pão e do cálice
para esse autor.
Num esforço de síntese, podemos afirmar que o número de testemunhos favoráveis à presença real de Cristo é claramente superior ao dos testemunhos da interpretação alegórica, entre os séculos I e V. Porém, a superioridade não é suficiente para induzir a conclusão de que a interpretação simbólica tivesse desaparecido. A verdade parece ser que os dois entendimentos conviveram amplamente, naquele período.
A presença das duas interpretações, nos séculos I a V, se deve à origem de ambas no ato em que Jesus ergueu o pão e o identificou com o seu corpo, tomou o cálice e o identificou com o seu sangue, na celebração original Ceia. Naquela época, a interpretação literal das Escrituras e dos ensinamentos rabínicos era amplamente difundida. Não por acaso o rabi Nicodemos perguntara se o dito “Necessário vos é nascer de novo” significava que ele devia voltar ao ventre de sua mãe e renascer (Jo 3:4). Num contexto como esse, em que a interpretação literal estava tão difundida, é natural que tenha passado pela cabeça dos discípulos que o pão era realmente o corpo, e o vinho, o sangue de Cristo.
Porém, isso não significa que eles tenham concluído, com certeza, que o alimento elevado era, literalmente, a cabeça, os pés, as pernas, as mãos, os braços e todas as outras partes do corpo de Cristo ou que o vinho era o sangue de seu Senhor. Pelo contrário, eles devem ter rejeitado essas ideias quando sentiram o gosto do pão e do vinho, uma vez que os evangelistas não deixaram a menor indicação de que o sabor do pão fosse de carne, e o do vinho, de sangue. E devem ter pensado, contraditoriamente à primeira impressão que haviam tido, que as palavras de Jesus podiam ter uma espécie de significado simbólico.
Se o sentido literal foi cogitado pelos discípulos tão-logo ouviram as palavras pelas quais Jesus instituiu a Ceia, por outro lado não era incomum o Mestre proferir parábolas e usar figuras de linguagem ao pregar e ensinar. Além disso, o método alegórico de
interpretação das Escrituras tinha-se difundido de sinagoga em sinagoga,
desde que Fílon de Alexandria o desenvolvera, na época de Jesus. De
sorte que os discípulos tinham tão boas razões para pensar que as palavras
da Ceia eram literais quanto para considerar que podiam ser interpretadas em sentido
alegórico.
E, assim como eles, também nós podemos interpretar a Ceia das duas maneiras. A meu ver, os textos dos Evangelhos induzem tanto à interpretação literal quanto à simbólica. Vou além: quando Jesus ordenou aos discípulos “Fazei isto em memória de mim”, a palavra isto devia incluir não só os atos de partir e comer o pão e tomar do cálice, mas também as interpretações variadas que os discípulos fizeram das palavras de instituição da Ceia. Isso porque, ao ouvi-las, eles devem ter pensado naquelas palavras tanto no sentido literal quanto no figurado.
Se dispunham de maneiras diversas de entender as palavras da Ceia, que foram ambas sugeridas pelas palavras de Jesus, naquele ato, podemos pensar que as duas interpretações ocorreram de fato aos discípulos, na celebração original. E podemos concluir que, quando Jesus ordenou que fizessem “isto”, ou seja, que celebrassem a Ceia em sua memória, ele não se referiu somente aos atos mecânicos de partir o pão etc., mas também ao sentido dos atos e às interpretações cogitadas pelos discípulos. “Fazei isto em memória de mim” deve significar não só a repetição dos atos, mas também o cultivo das diferentes interpretações da Ceia ventiladas no Cenáculo, em busca da única interpretação perfeita, que é a de Cristo. Se não estiver errado, esse é um sentido importante do sacramento do pão e do vinho. A Ceia instituída por Jesus foi entendida de modos distintos pelos convivas. Quando Jesus ordenou “Fazei isto”, ele se referiu também a essa pluralidade de interpretações. É como se tivesse dito: “Entendam este ato de todas as maneiras razoáveis que forem possíveis, conversem sobre as suas interpretações uns com os outros, mas acima de tudo mantenham a harmonia e o amor entre vocês, pois só assim poderão continuar a fazer isto em memória de mim”.
Assim, o pensar dos discípulos a respeito da Ceia é parte integrante da própria Ceia. Guardemos este dado e o utilizemos como princípio interpretativo dos textos sobre a grande celebração. Marcos 14:22-25 e Mateus 26:26-29 são dois desses textos. Lucas 22:14-20 e 1ª aos Coríntios 11:23-25 são outros. Gosto de agrupar desse modo os textos a respeito da Ceia, pois o duplo emparelhamento permite perceber que Marcos e Mateus dizem quase a mesma coisa, ao passo que Lucas e Paulo acrescentam um novo matiz à Ceia.
Concordo com Lutero quando afirmou que os textos de Marcos e Mateus sugerem a interpretação literal mais que a simbólica. Porém Lucas e Paulo acrescentaram a ideia de que a Ceia é um memorial. Nem Mateus, nem Marcos tinham usado as palavras “Fazei isto em memória de mim”. Paulo foi o primeiro a empregá-las em 1ª aos Coríntios 11:24-25. Lucas depois fez o mesmo (Lc 22:19). Portanto, sem eles, não saberíamos sequer que devemos repetir a celebração em memória de Cristo.
Todo memorial é impregnado de sentido simbólico. Ainda mais uma celebração instituída no dia da Páscoa. Sabemos que a Páscoa judaica era profundamente simbólica. O cordeiro, as ervas amargas e todos os outros itens incluídos na sua comemoração tinham profundo significado alegórico: como negar que a Ceia instituída sobre essa base não é, ela própria, simbólica?
Vemos que, sem negar os ditos de Marcos e Mateus, Lucas e Paulo enfatizaram o significado simbólico da Ceia. Deve ter-lhes parecido que o fato de um objeto ser o corpo e outro o sangue indicava que o corpo e o sangue de Cristo seriam separados, portanto que ele sofreria uma morte violenta. Tudo isso deve ter causado impressão profunda e sugerido, a Paulo e a Lucas, o significado simbólico da Ceia.
É verdade que 1ª aos Coríntios 10:16 estende a interpretação literal a todas as celebrações da Ceia, em todas as épocas: "Porventura o cálice da bênção, que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?". Parece que Paulo pensa que, em todas as celebrações, o pão se transforma em corpo, e o vinho, em sangue. Porém, o verso seguinte esclarece que não é esse o pensamento do apóstolo: "Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão". A palavra porque, nesse verso, indica que o que é dito depois constitui a explicação e o fundamento do que é afirmado antes. Portanto, que a comunhão do corpo de Cristo se dá por sermos um único corpo místico: exatamente o de Cristo. Claro que, como o corpo com o qual temos comunhão na Ceia é místico, o sangue também o é.
Mas, se os sentidos literal e simbólico coexistem, precisamos indicar como eles podem ser afirmados ao mesmo tempo, sem contradição. As palavras de Marcos e Mateus nos asseguram que o corpo e o sangue de Cristo estiveram no pão e no vinho da celebração original no Cenáculo. Isso é transmitido, de maneira inequívoca, em Mateus 26:26: "Tomais, comei; isto é o meu corpo".
Não há como interpretar a palavra tomar, nesse período, a não ser como um tomar literal. Semelhantemente, não é possível compreender o verbo comer, senão como um comer literal. E, combinando essas duas palavras com as outras, não é crível que, num momento tão decisivo quanto a instituição da Santa Ceia, Cristo tenha dito, no mesmo período, para os discípulos tomarem literalmente e comerem literalmente um corpo não literal. Portanto, parece inequívoco que, na Ceia original, Jesus operou um milagre.
É melhor e mais simples explicar esse milagre à maneira de Lutero do que da Escolástica, o que significa que não houve transfiguração, vale dizer, a substância do pão não se transformou no corpo, e a do vinho, no sangue. Lutero explicou o milagre da Ceia mediante o paralelo com a vinda do Espírito em forma de pomba, no momento do batismo de Jesus. Assim como o Espírito uniu-se à pomba, mas apenas ela foi vista, o corpo e o sangue uniram-se ao pão e ao vinho, mas só estes foram observados, cheirados, saboreados (LUTERO, Martinho. Da Ceia de Cristo – Confissão. São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1993, Vol. 4, pp. 323-324).
Este é um dos sentidos da Ceia: o sentido literal, que se aplica apenas à celebração original ocorrida no Cenáculo. Mas o milagre da união do corpo e do sangue de Cristo ao pão e ao vinho não se repete cada vez que celebramos a Ceia. Esta tem para nós, portanto, um sentido simbólico e não literal. Não porque Deus não possa repetir o milagre tantas vezes quantas queira, mas porque Marcos e Mateus se calaram sobre as repetições futuras do ato, ao passo que Lucas e Paulo fizeram delas memoriais em que o corpo e o sangue são representados pelo pão e pelo cálice, sem estarem presentes.
É da essência da Ceia ter vários sentidos, que estão ao mesmo tempo encerrados nas palavras que a instituíram, como filhos que habitam o mesmo ventre. Mas, ao contrário de Esaú e Jacó, as interpretações diferentes da Ceia não concorrem uma com a outra, antes coexistem harmonicamente. Esse é o milagre maior: não o do pão que se faz carne ou o do vinho que se converte em sangue, mas o da palavra grávida de interpretações diversas, que juntas saem do ventre verbal que as carrega para ingressar em corações de carne.