segunda-feira, 30 de março de 2015

Filosofia e Direito (4): A Hipótese de Darwin


O fundamental e o característico tanto da Modernidade quanto da Pós-Modernidade é a superação e confirmação simultâneas de ideias religiosas, não a simples eliminação delas. Se por um lado questiona e elimina um número de ideias religiosas, por outro a Modernidade confirma doutrinas religiosas fundamentais. Esse é o método específico pelo qual a Modernidade se constroi.
Nos nossos tempos, vemos instituições e ideais tão antigos quanto a família, a religião, a autoridade paterna, e valores como a benevolência e a feminidade serem transformados de mil maneiras, sem jamais deixarem de existir e de se revigorar. Somos autorizados por esses fatos a propor a abolição de ideias tradicionais como Deus? Não me parece que seja o caso.
É possível citar fatos do nosso tempo, que exemplificam a hibridação de elementos antigos e atuais na contemporaneidade. Um deles é a influência da religião na política norteamericana. Outro é a pressão exercida pelo movimento criacionista, que se desenvolveu nos Estados Unidos, onde também assumiu formas novas, como o design inteligente. Nomes como os de Henri Morris, Duane Gish e Michael Behe estão associados às principais etapas desse movimento. No Brasil, figuras como os ex-Governadores Anthony e Rosinha Garotinho e a ex-Ministra e candidata presidencial Marina Silva professaram adesão ao movimento; na Holanda, há poucos anos, a Ministra Maria van der Hoeven defendeu o ensino do design nas escolas. Enfim, o movimento está em ascensão, no mundo todo. Entre os muçulmanos, há um grande grupo antievolucionista liderado por Adnam Otkar. A Torah Science Foundation judaica tem a mesma finalidade. Trata-se de um estado de espírito extremamente relevante, que cresceu a partir do epicentro das sociedades desenvolvidas e se espalhou por todo o mundo civilizado.
A esquerda rançosa insiste em empacotar isso e o mais que não compreende ou de que discorda num só volume ao qual não hesita em assentar o rótulo conveniente de conservadorismo. Pode de fato existir algo nefasto nesse conservadorismo.
Quero esclarecer que me identifico com muitas ideias denominadas progressistas. Na verdade, identifico-me com tantas delas e tenho tal anelo pelo triunfo de concepções progressistas do mundo que escrevo para encontrar um caminho que permita transformar o hiperurânio cosmo progressista num mundo factível e histórico.
Nesse ponto é que a ideia de conservação se imiscui. Se for despojada do ranço contrário à “revolução permanente” da esquerda, que acaba no giro de 360 graus, a ideia de conservação, em vez de impedir, poderá ser útil à implantação de uma revolução cultural orientada por ideias progressistas, uma vez que está animada de algo essencial à viabilidade de qualquer transformação histórica.
A incapacidade de dialogar com o passado na intensidade exigida pelo processo histórico inviabiliza qualquer revolução. Nietzsche anunciou a falência, o estado de putrefação do fundamento teológico-metafísico da cultura ocidental por meio de uma expressão morte de Deus (NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. pp. 135, 147-148, 233-234), que se fez abjeta a muitas pessoas.
Creio não me equivocar quando considero que Deus, na filosofia da morte de Deus, não é apenas um ser real ou hipotético, mas o amplo fundamento filosófico e teológico de toda a cultura ocidental. Deus é a base das crenças, valores e do próprio funcionamento das instituições cristãs e seculares ocidentais. Nietzsche anunciou o esgotamento definitivo do modelo civilizatório calcado nessa ampla base filosófica e teológica.
O que me levou a investigar em profundidade a Teoria da Evolução foi a percepção de que o dogma da criação especial encontra-se no cerne da base filosófico-teológica da cultura ocidental abalada pelo movimento da morte de Deus. Do ponto de vista filosófico, a novidade máxima da visão monoteísta do mundo não é o Deus supremo. É a criação do mundo por Deus, vale dizer, não um processo criador qualquer, mas um especial, vale dizer, um ato originador intencional e movido por um poder que não conhece limites.
Embora a revolta contra Deus (quero dizer contra o mundo erguido sobre essa palavra) não tenha cessado de se desenvolver durante séculos, enquanto a ideia da criação especial não foi abalada, nas décadas que se seguiram à publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, a concepção teológico-metafísica à base do mundo ocidental manteve a sua hegemonia. A obra de Darwin deu os motivos para que o terremoto final se desencadeasse.
Curioso é que o terremoto ocorreu contra a vontade do autor da teoria que o desencadeou. Darwin nunca propôs a remoção total da ideia de criação especial herdada da tradição judaico-cristã. Ele não via “qualquer bom motivo para os pontos de vista apresentados neste volume [A origem das espécies] chocarem os sentimentos religiosos de alguém" (DARWIN, Charles Robert. The origin of species. New York: Penguin, 1958. p. 452). Mais do que isso, Darwin pode ser apontado como precursor da doutrina da Evolução Teísta, ao propor que a primeira ou as primeiras formas de vida foram criadas por Deus, tendo a evolução se desenvolvido a partir daí.
No século de Laplace, Darwin não encontrou fundamento científico para afirmar que a matéria viva se autoorganizou a partir da matéria inanimada. Ao contrário de Laplace, o grande cientista inglês demonstrou precisar da hipótese teísta. Não se pode negar que A origem das espécies admite que a evolução se seguiu a um ato ou a uns poucos atos de criação especial de formas de vida por Deus. Nas palavras do próprio Darwin, "há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir" (DARWIN, Charles. The origin of species. In Great books of the western world. Nova York: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 49. p. 243).
Em outra passagem de sua mais famosa obra, Darwin defendeu os pontos de vista dos homens de ciência que admitiam a criação especial de uma ou de umas poucas formas de vida, opondo-os às idéias dos cientistas que defendiam a criação especial de todas as espécies. Ao expor o embate entre esses dois grupos de cientistas, Darwin especificou o que pretendia dizer com as poucas formas de vida, a partir das quais a evolução teria ocorrido. Mostrou que alguns cientistas afirmavam a criação especial de quase todas as espécies sem responder uma série de indagações fundamentais como: "A cada ato de criação foi produzido um único ou muitos indivíduos? O número infinito de tipos de animais e de plantas que já existiram foi criado em forma de ovos e sementes ou em forma adulta? Os mamíferos foram criados com as marcas enganosas da amamentação materna? Sem dúvida, algumas dessas perguntas não podem ser respondidas pelos que acreditam no aparecimento ou criação de umas poucas ou de uma única forma de vida. Alguns autores sustentam que é tão fácil crer na criação de um milhão como de um único ser. Mas o axioma filosófico da menor ação, enunciado por Maupércio convida à adesão à última tese" (idem. p. 240-241).
Por isso o mestre da demonstração científica conclui: "Não posso colocar em dúvida que a teoria da descendência com modificação compreende todos os membros de uma mesma grande classe ou reino. Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior" ((idem. p. 241).
Esse texto sugere que as quatro ou cinco formas primígenas de animais foram criadas por Deus, assim como poucas outras formas de plantas. Essa parece ter sido a posição pessoal de Darwin sobre a origem dos ancestrais remotos dos seres vivos. Não há grande divergência, se existir alguma, entre a posição que defendo sobre a evolução e a que Darwin expôs em sua clássica obra.
Não foi sem razão que Darwin exigiu para si o título de teísta: “Quando medito dessa maneira, sinto-me atraído a observar a Primeira Causa como tendo uma mente inteligente em algum grau análoga a essa dos homens; e mereço ser chamado Teísta" (Citado em MILLER, R. Finding Darwin’s God. Nova York: Harper Collins, 1999. p. 287).
Embora aceitasse a designação de agnóstico recém-cunhada por Thomas Huxley (COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus – um cientista apresenta evidências de que Ele existe. São Paulo, Gente, 2007. p. 105), Darwin considerava esse termo em sentido diferente do que ele assumiu mais tarde. Tomava-o, com toda probabilidade, num sentido compatível com a admissão de algum grau de intervenção divina na história natural. No mínimo, podemos admitir que o agnosticismo de Darwin era especial o bastante para comportar alguns atos de intervenção transcendente.
Quanta diferença em relação ao pensamento pandirecional que alguns denominam pós-moderno! Darwin move-se em quatro ou até em oito direções. É o que um ser humano pode fazer sem se perder: mover-se para o norte, para o sul, para o leste, para o oeste ou ainda para o nordeste, o sudeste, o sudoeste ou o noroeste, com ajuda de uma boa bússola.
A renúncia a mover-se em todas as direções é fundamental para o homem. Infelizmente, os pós-modernos, pós-capitalistas, pós-teológicos, pós-jurídicos, enfim os pós-tudo querem revolucionar tudo ao mesmo tempo, o que implica mover-se em todas as direções: terminam por descrever o giro de 360 graus que caracteriza o seu pensamento.
Lembro essas coisas com o objetivo de tornar nítidas as linhas mestras da propedêutica filosófica em que tenho balizado o meu pensamento. Não tenho a intenção de provar qualquer coisa sobre criação ou evolução, Deus ou o ateísmo, em espaço tão mínimo quanto o deste artigo. Publiquei A hipótese de Darwin e outros livros exatamente para fornecer tal demonstração, nos limites da minha capacidade.
A demonstração parte da hipótese da criação afirmada por Darwin ao desenvolver cientificamente a Teoria da Evolução. Não só parte como é a demonstração daquela hipótese de Darwin. Deixa claro, com isso, que Darwin é, ao mesmo tempo, patrono da criação e da evolução ou, como disse Teilhard de Chardin, da Evolução Teísta.
É preciso não recebermos o preço da pós-modernidade em notas de três dólares. Pós-modernidade nunca foi, não é e não poderá ser, no futuro, um mundo sem Deus ou sem Teologia. Seu preço é pago em notas de um dólar. Dá trabalho contá-las, mas a opção envolve vantagem tão fundamental que não é necessário alardeá-la.