sábado, 14 de março de 2015

Filosofia e Direito (13): As Escolas Antiformalistas

Rudolf von Ihering
Muitas reviravoltas já foram propostas no conhecimento filosófico, porém poucas foram levadas a efeito com sucesso no campo da Teoria do Conhecimento. Por ter ocorrido nessa seara e pela dimensão dos desafios que teve de enfrentar para alcançar sucesso, a revolução kantiana pode ser considerada, sem favor, a maior da História da Gnoseologia, de Aristóteles até os nossos dias.
Por outro lado, desde que os romanos lhe atribuíram uma organização superior, o Direito sempre foi animado por um sopro de racionalismo, que se torna visível no fato de ter-se desenvolvido em paralelo à Filosofia. Esse desenvolvimento ajuda a entender por que as ideias de Kant exerceram no território jurídico uma influência superior à observada em outras searas.
Isso é verdade tanto no tocante à doutrina do direito natural quanto ao juspositivismo. Ambas as metavisões foram profundamente repensadas a partir do kantismo, como observamos nos textos anteriores. Porém, após a meditação prolongada das propostas das escolas inspiradas em Kant, disseminou-se entre os juristas e os jusfilósofos um estado de insatisfação, por um lado, com o direito natural com conteúdo variável e, por outro, com o positivismo formalista de inspiração kantiana, o pandectismo e a jurisprudência dos conceitos desenvolvidos na Alemanha.
O foco dessa insatisfação foram o formalismo e o conceptualismo exacerbados a que a aplicação da filosofia de Kant conduz no terreno jurídico. Não se pode negar que o apriorismo explícito das escolas jusnaturalistas e menos explícito, porém real do juspositivismo contribuíram para a rejeição dessas doutrinas, nos grandes centros de pensamento jurídico dos séculos XIX e XX. E, para eliminar os excessos do apriorismo, formaram-se naqueles lugares correntes jusfilosóficas que priorizavam a relação do direito com a realidade social em lugar dos conceitos a priori.
A primeira dessas correntes, que deu propriamente início à reação ao apriorismo, foi a Escola Histórica do Direito. Embora tenha influenciado autores de outros países, como o norteamericano Roscoe Pound e o inglês John Austin, foi na Alemanha que a Escola Histórica lançou raízes mais profundas. Puchta, Savigny e Hugo, além de Lassalle e dos hegelianos que desenvolveram o seu trabalho no campo do Direito costumam ser considerados representantes ou pensadores influenciados pelo historicismo jurídico.
Bobbio considera que a contribuição por excelência da Escola Histórica para o Direito foi a ruptura que promoveu com a ideia de uma natureza humana imutável, aceite em praticamente todas as épocas. Sem negar propriamente essa natureza, a Escola Histórica mostrou o papel muito mais relevante dos aspectos individuais de cada cultura. Savigny, por exemplo, sustentou com base em fortes argumentos a inexistência de um direito único, que permanece igual em todos os lugares e todos os tempos, o que representou um potente golpe no jusnaturalismo de índole iluminista. 
Porém, o historicismo jurídico destacou-se também ao defender o desenvolvimento científico do direito contra as pretensões do movimento em prol da codificação, que cresceu a ponto de se tornar dominante, em vários lugares do mundo, no século XIX. A polêmica entre Savigny e Thibaut sobre esse tema constitui um dos capítulos mais interessantes do pensamento jurídico contemporâneo. Enquanto Thibaut considerava a legislação uma técnica muito mais eficiente do que o costume filtrado pelos tribunais para engendrar um direito uno e acessível a todos, Savigny sustentava que os códigos tendem a petrificar o direito e que a ciência é mais eficaz do que eles para reduzir a massa de normas jurídicas conflitantes de um país à unidade. Não é sem interesse que, ao menos na Alemanha, por influência da Escola Histórica e, particularmente, de Savigny, a codificação só tenha vindo a ocorrer no século XX.
Em todos esses pontos, como já indicado, a novidade visceral do historicismo jurídico foi a derivação do direito a partir da realidade social e não de conceitos a priori, o que significou uma ruptura, ao mesmo tempo, com o jusnaturalismo e com o juspositivismo antigo, kantiano e pandectista. Por isso, como acontece com toda novidade visceral, quando as limitações e os equívocos da Escola Histórica se evidenciaram, assim como a derivação do direito a partir do Volksgeist (espírito do povo), o ideal básico dela foi abraçado e reafirmado, de maneiras diversas, por outras correntes.
Surgiram, então, as escolas sociológicas do direito, baseadas ora em Comte, ora em Durkheim, ora em estudos históricos diversificados. No Brasil, Pontes de Miranda inspirou-se em Comte, embora tenha buscado desenvolver a sua obra com base em desenvolvimentos posteriores da ciência, como nos explica no seguinte trecho de seu clássico Sistema de ciência positiva do Direito: “Não escondemos, não diminuímos a nossa admiração pela obra de Auguste Comte. Conhecemo-la, e não há menosprezá-la quando se conhece tão sensata, tão sólida e tão fecunda construção sistemática. Sobretudo, a parte metodológica. Se quiséssemos classificar a própria filosofia que há nesta obra, não seria possível deixar de reputá-la positivista, porém neopositivista: apenas incorporamos o Direito ao conjunto das Ciências, o que, na época em que escreveu, não podia fazê-lo o filósofo francês. Somos positivistas, como o foi Ernst Mach, porque o positivismo independe de Auguste Comte; e, se não nos aferramos a tudo que afirmou no tocante às ciências, é porque, posteriormente, o método positivo conseguiu o que não tinha conseguido ao tempo em que escreveu. Teorias, como a das geometrias não euclidianas e multidimensionais, em vez de contradizerem, confirmam o fundamento empírico da matemática, tão excelentemente exposto em Auguste Comte [...] Enormes foram os progredimentos da Física e da Química depois de Auguste Comte. E as aplicações hodiernas do cálculo das probabilidades à Física surpreenderam” (MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005. Vol. 2. pp. 19-20).
A fundamentação em Durkheim foi realizada por León Duguit, que nos revela como a obteve numa passagem esclarecedora: “Foi Durkheim", diz-nos Duguit, "no seu belo livro Division du Travail social (1893), que pela primeira vez determinou a natureza íntima da solidariedade social e soube revelar-lhe as duas formas essenciais: a solidariedade por similitude e a solidariedade por divisão do trabalho; chama também à primeira solidariedade mecânica, e à segunda solidariedade orgânica. Durkheim esgotou o assunto; e, se podem criticar-se alguns pontos de pormenor no seu livro, as suas conclusões gerais desafiam toda espécie de contestação” (DUGUIT, León. Fundamentos do direito. Campinas: LZN, 2003. p. 17).
Para Durkheim e Duguit, quanto mais a sociedade se torna complexa, “os homens tornam-se cada vez mais diferentes uns dos outros, diferentes pelas suas aptidões, necessidades, aspirações; por conseguinte, as trocas de serviços tornam-se mais frequentes e mais complexas, e por isso os laços de solidariedade social se tornam mais fortes” (idem). Essa solidariedade faz surgir costumes sociais, que não são "um modo de criação do direito, mas um meio de verificação. Não se deve ver [nos costumes], como a escola de Savigny e de Puchta, uma criação da consciência do povo [...] mas, no fim de contas, uma criação da consciência individual [...] O costume verifica-se se várias maneiras. Nas relações privadas, aparece sobretudo nas convenções das partes, principalmente nas cláusulas contratuais chamadas de estilo, e também nas decisões jurisprudenciais que, certamente, não criam direito, mas constituem o meio de verificação mais exato e mais preciso que existe para o costume” (idem. pp. 55-56).
Ihering, por outro lado, em A finalidade do direito, utilizou a erudição histórica que o caracteriza para superar a jurisprudência dos conceitos, da qual tinha sido um dos luminares, e explicar a sua adesão à Interessenjurisprudenz, baseada na ideia muito mais concreta de interesse jurídico. Numa passagem inspirada de A luta pelo direito, esse autor explicou como o interesse dirige a formação do direito, por meio da luta e não pelo processo lento e gradual que a Escola Histórica havia afirmado: 
“O sentimento provocado pela ofensa ao direito do indivíduo acha-se impregnado dum motivo egoístico, mas aquele outro sentimento, provocado, pela violação de qualquer direito, tem sua origem exclusivamente na ascendência moral que a ideia do direito exerce sobre a mente humana [...] A verdade sempre é a verdade, mesmo que o sujeito do direito a encare e defenda apenas sob o ângulo estreito do seu interesse pessoal. É o ódio e a vingança que levam Shylock [personagem de O mercador de Veneza, de Shakespeare] a ingressar em juízo com o objetivo de cortar do corpo de Antônio a libra de carne que lhe pertence; mas, as palavras que o poeta lhe põe na boca [...] são a linguagem da convicção firme e inabalável de que o direito sempre há de ser direito; é a linguagem impetuosa e patética do homem consciente de que a causa que defende envolve não apenas sua pessoa, mas a própria lei. Segundo as palavras que Shakespeare o faz proferir, ‘a libra de carne que ora exijo/ Foi comprada a bom preço/ E por isso eu a quero/ Que vossa lei se cubra de vergonha/ se ma recusardes!/ Pois então a lei de Veneza nenhuma força terá” (IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. 4ª ed., Rio de Janeiro: Rio, 1983. p. 73,77-78).
Merece menção ainda a escola conhecida que se tornou conhecida pelo nome de realismo jurídico. Ela se desenvolveu principalmente nos Estados Unidos, com Karl Llewellyn e Jerome Frank, e na Escandinávia, com Axel Hägetström, Vilhelm Lunstedt, Karl Olivecrona e Alf Ross. Bobbio separou o realismo do positivismo jurídico por uma característica primordial: “O positivismo jurídico, definindo o direito como um conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o elemento da validade, considerando portanto como normas jurídicas todas as normas emanadas num determinado modo estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico, prescindindo do fato de estas normas serem ou não efetivamente aplicadas" ( ). Por outro lado, para a escola [realista], "o direito é uma realidade social, uma realidade de fato, e sua função é ser aplicado: logo, uma norma que não seja aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é, consequentemente, direito [...] Qual é o verdadeiro ordenamento jurídico? O do legislador, embora não aplicado pelos juízes, ou o dos juízes, embora não seja conforme às normas postas pelo legislador? Para os realistas, deve-se responder afirmativamente à segunda alternativa: é direito verdadeiro somente aquele que é aplicado pelos juízes” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. pp. 142-144).
O realismo não funda sua concepção do direito no costume, como fazem a Escola Histórica e, por vezes, as sociológicas. Alf Ross, por exemplo, considera o costume a regra de vida dos povos primitivos. Para ele, “o direito se desenvolve a partir de costumes da tribo até ser gradualmente estabelecido por meio da prática dos tribunais e a legislação. O direito criado dessa [última] maneira é chamado de direito positivo” (ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro, 2000. pp. 124-125).
Por derivar o seu modo de conceber o direito não do costume, mas da aplicação efetiva do direito, o realismo circunscreve-se ao trabalho dos tribunais. É, por isso, uma espécie de positivismo menos conceptual e não baseado na lei, mas na jurisprudência. Mesmo assim, é, de todo modo, um positivismo.
Cumpre mencionar, por fim, que a doutrina conhecida como institucionalismo jurídico também se funda na realidade social, embora deposite a sua ênfase na “organização social objetiva que realiza em seu interior a mais elevada situação de direito, vale dizer, a que possui ao mesmo tempo a soberania do poder e a organização constitucional do poder, com estatuto e autonomia própria” (HAURIOU, Maurice. Princípios de Direito Público. 2ª ed., Paris, 1916. p. 111).
“A primeira ideia básica de Hauriou”, escreve Goffredo, “é a de que o fundamento da lei moral não se acha nem na consciência do indivíduo, nem na sociedade [...] A lei moral e o direito, segundo Hauriou, não podem fundar-se no que é falível (como a consciência dos indivíduos) nem no que é instável (como as formas da sociedade). Ela há de ter um fundamento permanente e universal. Que fundamento é esse? Hauriou responde: a espécie humana” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. II, p. 443).
Da definição de espécie humana decorrem as normas do direito natural, que não é o direito das sociedades, mas da espécie. “Hauriou observa que, se o direito natural não fosse mais do que uma coleção de preceitos de justiça, não seria nem sequer concebido, porque o conceito do direito natural não se distinguiria do próprio conceito de justiça. Logo, o direito natural, não sendo uma simples coleção de preceitos de justiça, há de ser um corpo de direito, compreendendo uma certa ordem social.  Que ordem será esta? Para achar a resposta desta pergunta, Hauriou recomenda que se considere a crença no direito natural como um fato histórico. Em que épocas essa crença existiu? A concepção de um direito natural apareceu, na filosofia grega, pouco antes da conquista romana; passou para a jurisprudência romana, onde reinou até o fim do segundo século de nossa era. Durante esses séculos, a civilização antiga apresentou um duplo caráter: por um lado, todas as nações do mundo greco-romano estavam em democracia; de outro lado, as relações do comércio jurídico tornaram possível o sincretismo de um direito comum das nações. Tal período, pois, foi uma época de democracia igualitária e de jus gentium. Essas circunstâncias, que caracterizam a referida era histórica, acham-se novamente reunidas quando a concepção do direito natural, depois de haver adormecido durante a Idade Média, retornou a ser viva no décimo-sétimo e no décimo-oitavo século” (idem. pp. 454-455).
E arremata: “Assim concebido, o direito natural já se acha, em parte, realizado. Dele existem dois esboços muito trabalhados: o direito clássico romano, que foi qualificado de razão escrita e o direito comum contemporâneo. As instituições jurídicas que se encontrarem em ambos esses esboços terão as maiores probabilidades de conterem muito de direito natural” (idem. p. 456).
Vemos que o institucionalismo de Hauriou conduz à reafirmação do direito natural pela via histórica e sociológica. Estranho projeto comum o que liga, de modo tão tênue, o grupo de escolas antiformalistas que, da negação do direito natural pelo historicismo jurídico, a ele é reconduzido pelas mãos do institucionalismo. Veremos, no próximo texto, que a análise de Hauriou é confirmada pela adesão cada vez mais frequente e bem fundamentada ao jusnaturalismo, no tempo atual.