Rudolf von Ihering |
Por outro lado, desde que os romanos lhe atribuíram
uma organização superior, o Direito sempre foi animado por um sopro de
racionalismo, que se torna visível no fato de ter-se desenvolvido em paralelo à
Filosofia. Esse desenvolvimento ajuda a entender por que as ideias de Kant exerceram no território
jurídico uma influência superior à observada em outras searas.
Isso é verdade tanto no tocante à
doutrina do direito natural quanto ao juspositivismo. Ambas as metavisões foram
profundamente repensadas a partir do kantismo, como observamos nos textos anteriores.
Porém, após a meditação prolongada das propostas das escolas inspiradas em Kant,
disseminou-se entre os juristas e os jusfilósofos um estado de insatisfação, por um lado, com o direito natural com conteúdo variável e, por outro, com o positivismo formalista de inspiração kantiana, o pandectismo e a
jurisprudência dos conceitos desenvolvidos na Alemanha.
O foco dessa insatisfação foram o
formalismo e o conceptualismo exacerbados a que a aplicação da filosofia de
Kant conduz no terreno jurídico. Não se pode negar que o apriorismo explícito das escolas
jusnaturalistas e menos explícito, porém real do juspositivismo contribuíram para a rejeição dessas doutrinas, nos grandes centros de
pensamento jurídico dos séculos XIX e XX. E, para eliminar os excessos do
apriorismo, formaram-se naqueles lugares correntes jusfilosóficas que priorizavam a relação do direito com a realidade social em lugar dos conceitos a priori.
A primeira dessas correntes, que deu
propriamente início à reação ao apriorismo, foi a Escola Histórica do Direito. Embora
tenha influenciado autores de outros países, como o norteamericano Roscoe Pound
e o inglês John Austin, foi na Alemanha que a Escola Histórica lançou raízes mais profundas. Puchta, Savigny e Hugo, além de Lassalle e dos hegelianos que desenvolveram o seu trabalho no campo do Direito costumam ser considerados representantes ou pensadores influenciados pelo historicismo jurídico.
Bobbio considera que a contribuição
por excelência da Escola Histórica para o Direito foi a ruptura que promoveu
com a ideia de uma natureza humana imutável, aceite em praticamente todas as
épocas. Sem negar propriamente essa natureza, a Escola Histórica mostrou o
papel muito mais relevante dos aspectos individuais de cada cultura. Savigny,
por exemplo, sustentou com base em fortes argumentos a inexistência de um direito único, que permanece igual em
todos os lugares e todos os tempos, o que representou um potente golpe no jusnaturalismo de índole iluminista.
Porém, o historicismo jurídico destacou-se
também ao defender o desenvolvimento científico do direito contra as pretensões
do movimento em prol da codificação, que cresceu a ponto de se tornar
dominante, em vários lugares do mundo, no século XIX. A polêmica entre Savigny
e Thibaut sobre esse tema constitui um dos capítulos mais interessantes do
pensamento jurídico contemporâneo. Enquanto Thibaut considerava a legislação
uma técnica muito mais eficiente do que o costume filtrado pelos tribunais para
engendrar um direito uno e acessível a todos, Savigny sustentava que os códigos
tendem a petrificar o direito e que a ciência é mais eficaz do que eles para reduzir a massa de normas jurídicas conflitantes de um país à
unidade. Não é sem interesse que, ao menos na Alemanha, por influência da Escola Histórica e, particularmente, de Savigny, a codificação só tenha vindo a ocorrer no século XX.
Em todos esses pontos, como já
indicado, a novidade visceral do historicismo jurídico foi a derivação do direito
a partir da realidade social e não de conceitos a priori, o que significou uma ruptura, ao mesmo tempo, com o jusnaturalismo e com o juspositivismo
antigo, kantiano e pandectista. Por isso, como acontece com toda novidade
visceral, quando as limitações e os equívocos da Escola Histórica se
evidenciaram, assim como a derivação do direito a partir do Volksgeist (espírito do povo), o ideal básico
dela foi abraçado e reafirmado, de maneiras diversas, por outras correntes.
Surgiram, então, as escolas
sociológicas do direito, baseadas ora em Comte, ora em Durkheim, ora em estudos
históricos diversificados. No Brasil, Pontes de Miranda inspirou-se em Comte, embora
tenha buscado desenvolver a sua obra com base em desenvolvimentos posteriores
da ciência, como nos explica no seguinte trecho de seu clássico Sistema de ciência positiva do Direito:
“Não escondemos, não diminuímos a nossa admiração pela obra de Auguste Comte.
Conhecemo-la, e não há menosprezá-la quando se conhece tão sensata, tão sólida e
tão fecunda construção sistemática. Sobretudo, a parte metodológica. Se
quiséssemos classificar a própria filosofia que há nesta obra, não seria
possível deixar de reputá-la positivista, porém neopositivista: apenas
incorporamos o Direito ao conjunto das Ciências, o que, na época em que escreveu,
não podia fazê-lo o filósofo francês. Somos positivistas, como o foi Ernst
Mach, porque o positivismo independe de Auguste Comte; e, se não nos aferramos
a tudo que afirmou no tocante às ciências, é porque, posteriormente, o método
positivo conseguiu o que não tinha conseguido ao tempo em que escreveu. Teorias,
como a das geometrias não euclidianas e multidimensionais, em vez de
contradizerem, confirmam o fundamento empírico da matemática, tão
excelentemente exposto em Auguste Comte [...] Enormes foram os progredimentos
da Física e da Química depois de Auguste Comte. E as aplicações hodiernas do
cálculo das probabilidades à Física surpreenderam” (MIRANDA, Pontes de. Sistema de ciência positiva do direito.
2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005. Vol. 2. pp. 19-20).
A fundamentação em Durkheim foi realizada por León Duguit, que nos revela como a obteve numa passagem esclarecedora: “Foi
Durkheim", diz-nos Duguit, "no seu belo livro Division du
Travail social (1893), que pela primeira vez determinou a natureza íntima
da solidariedade social e soube revelar-lhe as duas formas essenciais: a
solidariedade por similitude e a solidariedade por divisão do trabalho; chama
também à primeira solidariedade mecânica, e à segunda solidariedade orgânica.
Durkheim esgotou o assunto; e, se podem criticar-se alguns pontos de pormenor
no seu livro, as suas conclusões gerais desafiam toda espécie de contestação”
(DUGUIT, León. Fundamentos do direito.
Campinas: LZN, 2003. p. 17).
Para Durkheim e Duguit, quanto mais
a sociedade se torna complexa, “os homens tornam-se cada vez mais diferentes
uns dos outros, diferentes pelas suas aptidões, necessidades, aspirações; por
conseguinte, as trocas de serviços tornam-se mais frequentes e mais complexas,
e por isso os laços de solidariedade social se tornam mais fortes” (idem). Essa
solidariedade faz surgir costumes sociais, que não são "um modo de criação do direito, mas um meio de verificação. Não se deve ver
[nos costumes], como a escola de Savigny e de Puchta, uma criação da consciência do povo
[...] mas, no fim de contas, uma criação da consciência individual [...] O
costume verifica-se se várias maneiras. Nas relações privadas, aparece
sobretudo nas convenções das partes, principalmente nas cláusulas contratuais
chamadas de estilo, e também nas decisões jurisprudenciais que, certamente, não
criam direito, mas constituem o meio de verificação mais exato e mais preciso
que existe para o costume” (idem. pp. 55-56).
Ihering, por outro lado, em A finalidade do direito, utilizou a erudição
histórica que o caracteriza para superar a jurisprudência dos conceitos, da
qual tinha sido um dos luminares, e explicar a sua adesão à
Interessenjurisprudenz, baseada na
ideia muito mais concreta de interesse jurídico. Numa passagem inspirada de
A luta pelo direito, esse autor explicou como o interesse dirige a formação do direito, por meio da luta e não pelo processo lento e gradual que a Escola
Histórica havia afirmado:
“O sentimento provocado pela ofensa
ao direito do indivíduo acha-se impregnado dum motivo egoístico, mas aquele
outro sentimento, provocado, pela violação de qualquer direito, tem sua origem
exclusivamente na ascendência moral que a ideia do direito exerce sobre a mente
humana [...] A verdade sempre é a verdade, mesmo que o sujeito do direito
a encare e defenda apenas sob o ângulo estreito do seu interesse pessoal. É o
ódio e a vingança que levam Shylock [personagem de O mercador de Veneza, de
Shakespeare] a ingressar em juízo com o objetivo de cortar do corpo de Antônio
a libra de carne que lhe pertence; mas, as palavras que o poeta lhe põe na
boca [...] são a linguagem da convicção firme e inabalável de que o direito
sempre há de ser direito; é a linguagem impetuosa e patética do homem
consciente de que a causa que defende envolve não apenas sua pessoa, mas a
própria lei. Segundo as palavras que Shakespeare o faz proferir, ‘a libra de
carne que ora exijo/ Foi comprada a bom preço/ E por isso eu a quero/ Que
vossa lei se cubra de vergonha/ se ma recusardes!/ Pois então a lei de Veneza
nenhuma força terá” (IHERING, Rudolf von. A
luta pelo direito. 4ª ed., Rio de Janeiro: Rio, 1983. p. 73,77-78).
Merece menção ainda a escola conhecida
que se tornou conhecida pelo nome de realismo jurídico. Ela se desenvolveu principalmente nos Estados
Unidos, com Karl Llewellyn e Jerome Frank, e na Escandinávia, com Axel Hägetström,
Vilhelm Lunstedt, Karl Olivecrona e Alf Ross. Bobbio separou o realismo do
positivismo jurídico por uma característica primordial: “O positivismo jurídico, definindo
o direito como um conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na
definição o elemento da validade, considerando portanto como normas jurídicas
todas as normas emanadas num determinado modo estabelecido pelo próprio
ordenamento jurídico, prescindindo do fato de estas normas serem ou não
efetivamente aplicadas" ( ). Por outro lado, para a escola [realista], "o direito é uma
realidade social, uma realidade de fato, e sua função é ser aplicado: logo, uma
norma que não seja aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é,
consequentemente, direito [...] Qual é o verdadeiro ordenamento jurídico? O do
legislador, embora não aplicado pelos juízes, ou o dos juízes, embora não seja
conforme às normas postas pelo legislador? Para os realistas, deve-se responder
afirmativamente à segunda alternativa: é direito verdadeiro somente aquele que
é aplicado pelos juízes” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo:
Ícone, 1995. pp. 142-144).
O realismo não funda sua
concepção do direito no costume, como fazem a Escola
Histórica e, por vezes, as sociológicas. Alf Ross, por exemplo, considera o
costume a regra de vida dos povos primitivos. Para ele, “o direito se
desenvolve a partir de costumes da tribo até ser gradualmente estabelecido por
meio da prática dos tribunais e a legislação. O direito criado dessa [última]
maneira é chamado de direito positivo” (ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro, 2000. pp. 124-125).
Por derivar o seu modo
de conceber o direito não do costume, mas da aplicação efetiva do direito, o realismo circunscreve-se
ao trabalho dos tribunais. É, por isso, uma espécie de positivismo menos
conceptual e não baseado na lei, mas na jurisprudência. Mesmo assim, é, de todo modo,
um positivismo.
Cumpre mencionar, por fim, que a doutrina conhecida como institucionalismo jurídico também se funda na
realidade social, embora deposite a sua ênfase na “organização social
objetiva que realiza em seu interior a mais elevada situação de direito, vale
dizer, a que possui ao mesmo tempo a soberania do poder e a organização
constitucional do poder, com estatuto e autonomia própria” (HAURIOU, Maurice. Princípios de Direito Público. 2ª ed., Paris,
1916. p. 111).
“A primeira ideia básica de Hauriou”,
escreve Goffredo, “é a de que o fundamento da lei moral não se acha nem na
consciência do indivíduo, nem na sociedade [...] A lei moral e o direito,
segundo Hauriou, não podem fundar-se no que é falível (como a consciência dos
indivíduos) nem no que é instável (como as formas da sociedade). Ela há de ter
um fundamento permanente e universal. Que fundamento é esse? Hauriou responde:
a espécie humana” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. II, p. 443).
Da definição de espécie humana decorrem
as normas do direito natural, que não é o direito das sociedades, mas da espécie. “Hauriou
observa que, se o direito natural não fosse mais do que uma coleção de
preceitos de justiça, não seria nem sequer concebido, porque o conceito do
direito natural não se distinguiria do próprio conceito de justiça. Logo, o
direito natural, não sendo uma simples coleção de preceitos de justiça, há de
ser um corpo de direito, compreendendo uma certa ordem social. Que ordem será esta? Para achar a resposta
desta pergunta, Hauriou recomenda que se considere a crença no direito natural
como um fato histórico. Em que épocas essa crença existiu? A concepção de um
direito natural apareceu, na filosofia grega, pouco antes da conquista romana;
passou para a jurisprudência romana, onde reinou até o fim do segundo século de
nossa era. Durante esses séculos, a civilização antiga apresentou um duplo
caráter: por um lado, todas as nações do mundo greco-romano estavam em
democracia; de outro lado, as relações do comércio jurídico tornaram possível o
sincretismo de um direito comum das nações. Tal período, pois, foi uma época de
democracia igualitária e de jus gentium.
Essas circunstâncias, que caracterizam a referida era histórica, acham-se
novamente reunidas quando a concepção do direito natural, depois de haver
adormecido durante a Idade Média, retornou a ser viva no décimo-sétimo e no
décimo-oitavo século”
(idem. pp. 454-455).
E arremata: “Assim concebido, o
direito natural já se acha, em parte, realizado. Dele existem dois esboços muito
trabalhados: o direito clássico romano, que foi qualificado de razão escrita e
o direito comum contemporâneo. As instituições jurídicas que se encontrarem em
ambos esses esboços terão as maiores probabilidades de conterem muito de
direito natural” (idem. p. 456).
Vemos que o institucionalismo de
Hauriou conduz à reafirmação do direito natural pela via histórica e sociológica.
Estranho projeto comum o que liga, de modo tão tênue, o grupo de escolas antiformalistas que, da negação do direito natural
pelo historicismo jurídico, a ele é reconduzido pelas mãos do institucionalismo.
Veremos, no próximo texto, que a análise de Hauriou é confirmada pela adesão cada vez mais
frequente e bem fundamentada ao jusnaturalismo, no tempo atual.