quinta-feira, 19 de março de 2015

Páscoa (2): Debates no Templo

Ao examinarmos o material dos quatro Evangelhos sobre o processo de Cristo com um olhar jurídico, notamos que contém diferentes enfoques dos motivos da crucificação. Um é o modo como os sinóticos explicam esse fato; outra, a maneira de João apresentá-lo. Mateus, Marcos e Lucas não se preocupam em ligar o processo de Cristo a uma orquestração anterior das autoridades; João, ao contrário, mostra que tanto os fariseus como os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos quiseram matar Jesus, desde o início do seu ministério, e tramaram acusá-lo perante o Sinédrio ou o procurador romano.
Os debates de Jesus com os judeus, no Templo, nos dias que antecederam a sua prisão, estão registrados nos sinóticos, mas não em João. Na estrutura dos primeiros Evangelhos, isso indica que os debates não só introduzem a prisão que sucederia alguns dias depois como a anunciam e explicam. Isso porque a arte de narrar fatos verdadeiros envolve não apenas os mencionar, mas também explicar. Na arquitetura dos Evangelhos sinóticos, a prisão e o processo contra Jesus ficariam desprovidos de explicação se não houvesse a entrada triunfal, a expulsão dos vendilhões e os debates no Templo. Esses são os fatos que explicam o processo perante Pilatos, do ponto de vista sinótico. Portanto, mais que apontar para as divergências doutrinárias ou o conteúdo do ensinamento de Jesus, eles descrevem a formação do temporal que se avizinhava. Mostra como foram gestadas as acusações que seriam formuladas contra Jesus e o levariam à morte alguns dias depois.
A primeira questão apresentada a Jesus, no Templo, foi a respeito da autoridade com que ele expulsara os vendilhões na véspera. Se a considerarmos à luz das acusações contra Jesus, compreenderemos que a pergunta tinha por foco a identidade dele como o Cristo, assim como a questão do tributo formulada em seguida preparou a acusação de desobediência a Roma. Era Jesus o Messias? Sua autoridade decorria do fato de ser o libertador de Israel? Os líderes judeus queriam conhecer as respostas a essas indagações.
Quando Jesus foi conduzido ao Sinédrio, na noite em que foi preso, os primeiros questionamentos que lhe foram dirigidos tinham o propósito de investigar esse ponto. Foram, portanto, o prolongamento direto e inquisitorial da questão a respeito da autoridade proposta no Templo. Sabemos que, ao ouvir tal pergunta, Jesus formulou aos arguidores outra indagação, a propósito de João. Perguntou-lhes se o batismo deste era do céu ou da terra, divino ou humano? Como ninguém respondeu tal pergunta, ele declarou que tampouco daria resposta à inquietação dos judeus sobre a sua autoridade. Com isso, como de costume, evitou afirmar publicamente que era o Cristo. Dias mais tarde, ele o evitaria de novo, perante o Sinédrio.
A pergunta sobre a autoridade trai a acusação de messianismo. Mostra que esse ponto particular do libelo contra Jesus já estava preparado e que seus acusadores só aguardavam a ocasião mais adequada para apresentá-lo oficialmente. Era, contudo, uma acusação frágil, pois vários candidatos a Messias tinham surgido e ainda surgiriam, no palco da Judeia, sem que tivessem sido ou viessem a ser acusados de crime religioso. Alguém proclamar-se o Messias ou ser proclamado tal não era considerado crime em Israel. Mesmo assim, o questionamento de Jesus foi aberto com a questão a respeito da autoridade. Isso mostra, a meu ver claramente, que os judeus não tinham uma razão mais forte para acusarem Jesus. Não deixa de evidenciar, também, que, à luz dos sinóticos, o processo contra Jesus foi montado do fim para o começo. Seus acusadores partiram do fim colimado (a morte), para alcançar o qual reuniram elementos escassos e desarticulados que, em alguns casos, sequer conduziam àquele resultado.
É provável que os sacerdotes e os outros líderes que formularam a primeira questão fossem fariseus e saduceus. Tudo aponta para essa conclusão. Não foi diferente no tocante ao segundo questionamento a que Jesus foi submetido naquele dia. Em estrita concordância com Marcos, Mateus afirma que esse questionamento foi articulado por fariseus e herodianos. Sabemos que o último termo designa, basicamente, os saduceus alinhados a Roma. Apenas enfatiza a ligação mais direta dessa seita com Herodes do que com César. Portanto, também dessa vez, vemos os fariseus e os saduceus se aliarem, a fim de questionar Jesus.
Repelidos no ponto atinente à autoridade, esses grupos retornaram à carga com a questão do tributo. Perguntaram se era ou não correto pagar tributo a César. De novo, a resposta que Jesus lhes ofereceu não traduz uma escolha tão nítida quanto entre o preto e o branco. Após ter pedido um denário, perguntado de quem era a efígie na face daquela moeda e ouvido que era de César, Jesus mandou darem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nem só preto, nem apenas branco, mas preto e branco. A resposta deixou os futuros acusadores admirados com o futuro acusado.
Não é difícil entender o que significava dar a César o que é de César, no contexto daquela pergunta. Significava pagar tributos. Mas e dar a Deus o que é de Deus? Nada tinha sido indagado a Jesus a esse respeito. Mesmo assim, a intenção implícita da resposta pode ser inferida, a partir da pergunta anterior, que permanecera aberta, pois não tinha sido respondida. Se Jesus era o Cristo, dar a Deus o que é de Deus provavelmente significava reconhecer que ele não viera por si ou em seu próprio nome, mas fora enviado por Deus. Dar a Deus o que é de Deus, nesse contexto, era reconhecer a missão messiânica de Jesus.
No entanto, ao responder a segunda questão, tanto quanto ao dar resposta à primeira, Jesus não declarou ser o Cristo. E, ainda que o tivesse afirmado, ele não poderia ser acusado de crime, pois o messianismo não era propriamente ilegal. Vemos que, todo o tempo, Jesus se manteve dentro de uma margem de segurança, em relação às afirmações que poderiam ser usadas para imputar-lhe crimes.
Não foi diferente com o mandamento de dar a César o que é de César. Também nesse ponto, a resposta de Jesus repeliu a pretensão dos questionadores de virem a acusá-lo de desobediência política. Nem os fariseus nacionalistas, nem os herodianos pró-Roma podiam encontrar em tal resposta o mais leve motivo para processarem Jesus.
Até aquele momento, os fariseus e os saduceus tinham formulado questões em conluio. A intenção subjacente a essa estratégia era levar Jesus a desagradar fortemente um dos dois partidos e, com isso, minar a possibilidade de ele vir a protegê-lo do complô que se armava. Como o Sinédrio era composto por membros das duas seitas (At 23:6), a falta dos votos de uma delas podia ter as mais sérias consequências. Porém, a atitude de Jesus ante a intenção dos dois grupos mostrou que a sua única preocupação era realizar o propósito de se entregar, a fim de cumprir as profecias segundo as quais o Messias seria perseguido e morto. Para isso, em vez de se opor, ele usou o propósito dos grupos de se colocarem em choque com ele, oferecendo respostas que afrontavam diretamente as doutrinas dos saduceus e proferindo, em seguida, os famosos ais contra os escribas e os fariseus. Isso deixa claro que Jesus serviu-se do propósito de seus questionadores de se colocarem em confronto com ele para levar o litígio a um ponto em que não houvesse retorno, e o processo se tornasse o único caminho possível. 
Mesmo assim, as respostas às duas primeiras questões foram suficientes para que os fariseus e saduceus, que até então tinham agido juntos, mudassem de estratégia e passassem a questionar Jesus separadamente. É o que percebemos na terceira e na quarta perguntas, nas quais os saduceus questionaram Jesus a respeito da ressurreição, e os fariseus, sobre o maior mandamento. 
A primeira dessas indagações foi proposta a partir da instituição judaica conhecida como levirato, de acordo com a qual, se um homem falecesse, deixando mulher e irmãos, o mais velho deveria desposá-la. Se esse irmão morresse também, o seguinte deveria tomá-la por esposa e assim sucessivamente, até o último irmão. Os saduceus vislumbraram nessa implicação bizarra, mas inevitável e legítima do levirato uma refutação da doutrina farisaica da ressurreição: se Deus havia ordenado o matrimônio com a cunhada e mortes sucessivas de irmãos podiam ocorrer, como era possível pensar em ressurreição? A implicação era que, se os mortos ressuscitassem, a mulher pertenceria a todos os irmãos, na vida futura, o que era proibido pela Lei de Moisés.
Os saduceus formularam a questão sobre essa implicação do levirato com uma clareza e uma força argumentativa nunca vistas nos integrantes do seu partido, ao menos nos quatro Evangelhos. Sugeriram que a ressurreição era uma contradição em termos, quando formulada à luz do Pentateuco. Ou o Pentateuco era a palavra de Deus, ou havia ressurreição. As duas coisas não podiam ser verdadeiras ao mesmo tempo.
Jesus discordou deles. E o fez com base num método argumentativo semelhante ao que os fariseus adotavam. Como os saduceus só consideravam sagrada a Torá (Pentateuco), Jesus utilizou uma informação externa a esses cinco livros para fundamentar sua resposta. Afirmou que, na ressurreição, não há homem e mulher, marido e esposa, pois as pessoas se tornam semelhantes aos anjos. Em nenhuma passagem do Pentateuco essa informação havia sido fornecida. Portanto, Jesus procedia como os fariseus, que inovavam, em certos limites, não só a doutrina da Torá, mas também a dos Profetas, a fim de adaptá-las ao tempo.
Invocou ainda a passagem da Torá em que o Senhor diz ser o “Deus de Abraão, Isaque e Jacó”. Acrescentou que ele não é Deus de mortos, mas de vivos. O que significa não só que Abraão, Isaque e Jacó estavam vivos como que haviam ressuscitado. Portanto, o conceito de ressurreição que Jesus utilizou foi um tanto elástico, como elástico era aquele defendido pelos fariseus. Jesus não se referiu, simplesmente, à ressurreição do último dia. Deixou, ao contrário, implícito que, se Deus não o era dos mortos e sim de vivos, Abraão, Isaque e Jacó tinham ressuscitado.
Assim, do cerne da questão política (o pagamento de tributos a César), Jesus e seus indagadores retornaram a um ponto eminentemente doutrinário. Diria que eles retornaram ao próprio cerne desse ponto que, mais que a ressurreição, envolvia as interpretações variantes da Lei por parte dos saduceus e dos fariseus. 
A questão por trás de compreensões tão diversas da Lei era saber onde estava a verdade em matéria de fé. A verdade era o Pentateuco ou os 22 livros das Escrituras? Devia a Torá ser interpretada à risca? Nesse caso, o processo contra Jesus havia de ser conduzido do modo previsto em Deuteronômio 17:2-13. Veremos que os saduceus não agiram de maneira distinta, no processo contra Jesus. Eles se pautaram nas instruções da passagem de Deuteronômio ao examinar, sucessivamente, as acusações de messianismo e blasfêmia formuladas contra Jesus. Ao final, inclinaram-se à condenação, mas não conseguiram votos suficientes para aprovar esse veredito, provavelmente em razão de divergências por parte dos fariseus.
Assim, a brecha entre os dois partidos, no tocante ao rabi galileu, abriu-se durante os debates no Templo. É o que a formulação das duas últimas perguntas separadamente, pelos partidos, sugere. Ela haveria de alargar-se, até o ponto da divergência a respeito da acusação de blasfêmia, que pode não ter prosperado por falta de acordo entre os dois partidos.
As divergências doutrinárias entre as duas seitas emanavam de os fariseus verem a palavra de Deus de modo distinto dos saduceus. Eles a consideravam algo mais flexível e, por assim dizer, relativo a cada época. Pensavam que, em cada momento histórico, as palavras das Escrituras diziam algo um pouco diferente. Esse modo de ver a Bíblia levava os fariseus a se absterem de condenar pessoas acusadas de proferir profecias, fossem elas verdadeiras ou falsas, embora Saulo de Tarso adotasse outro comportamento (At 9:1; 26:10). 
À pergunta sobre a ressurreição seguiu-se o questionamento final, movido pelos fariseus, que perguntaram a Jesus qual é o maior mandamento da Lei. Jesus respondeu-lhes: "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22:37-39).
Como de costume, Jesus não apenas respondeu o que lhe perguntaram, mas formulou, ele próprio, uma pergunta conexa à dos seus indagadores. Ele disse: “Que pensais vós do Cristo? De quem é filho? Responderam eles: de Davi. Replicou-lhes Jesus: Como, pois, Davi, pelo Espírito, chama-lhe Senhor, dizendo: Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés? Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?” (Mt 22:42-45).
Com essas palavras, Jesus tornou evidente que, em matéria de perguntas, não menos do que de respostas, ele estava à frente de seus opositores. Estes tinham o objetivo manifesto de o questionar, mas coube a Jesus, não a eles, formular a pergunta final, que permaneceria em todos os corações. Uma vez feito isso, os questionadores não mais retornaram. Ao menos, não o fizeram com novas perguntas. Do questionamento no campo das ideias, eles preferiram passar ao processo.
Assim, a grande pergunta da mais refinada teologia que o mundo conhecera até então não era sobre a ressurreição ou o maior mandamento. À luz das Escrituras, a pergunta das gerações era a respeito do Cristo. Quem é o Cristo? É ele filho ou Senhor de Davi? Jesus não respondeu tal pergunta, como não tinha oferecido resposta à outra a respeito da autoridade. Somente mostrou aos intérpretes criativos, aos fariseus que lhe questionaram, que se tratava de uma pergunta legítima, de uma pergunta que não emanava do texto do Pentateuco, mas de um Salmo em que eles também criam. Portanto, era obrigação dos fariseus formular tal questão.
Quantas coisas estão envolvidas na pergunta final do debate! O Cristo é filho de Davi? A questão pressupõe o conhecimento de quem foi Davi. Sabiam-no os fariseus? A resposta pode parecer óbvia a nós, dois milênios depois. Não era tão óbvia no primeiro século, posto que os fariseus criam numa revelação continuada, que se iniciara com Moisés e prosseguira com os profetas. Eles acreditavam na lei escrita, mas também na oral. Criam na lei, escrita e oral, tanto quanto nos Profetas. Na Lei e nos Profetas, assim como nas glosas da Tradição. Isso tornava a palavra de Deus menos rígida e mais flexível para eles.
Se hoje ainda se ouve a pergunta sobre o que Jesus fez e o que ele falou, os fariseus, no seu tempo, tinham razões para indagar o que Davi fez e falou. Para eles, isso só estava estabelecido em parte. E, se o Cristo era ao mesmo tempo filho e Senhor de Davi, as coisas se embaralhavam ainda mais. Para empregar a expressão de Paulo, esses mistérios permaneciam ocultos dos séculos e das gerações. O véu continuava sobre o rosto dos fariseus, quando liam Moisés e ouviam os Profetas.
As facções em que Israel estava dividido não eram, em si mesmas, fruto de um erro, porém erraram ao considerar os pontos debatidos no Templo. Foi o que Jesus procurou mostrar-lhes, em Mateus 21-22, Marcos 11-12 e Lucas 20. Porém, a favor dos partidos judeus, pode ser afirmado que erraram ao tentar acertar. Erraram ao julgar, não por terem julgado. Isso nunca constituiu um erro. Buscar a verdade com o rigor de um processo não pode ser equiparado a erro. É antes um grande acerto. Talvez o maior de todos os acertos que uma cultura é capaz de produzir. O equívoco lamentável, o irremediável tropeço, consistiu em terem condenado Jesus, o que, do ponto de vista dos Evangelhos sinóticos, não foi mais do que consequência de terem escolhido respostas erradas aos exatos questionamentos ouvidos no Templo.