O PENSAMENTO JURÍDICO NA ANTIGUIDADE
O objetivo desta série é
resgatar pensamentos que tenho desenvolvido sobre o direito ao longo de mais de
30 anos, o que pode parecer uma tarefa egocêntrica, mas é, em maior medida, um
movimento de extroversão, de saída de mim mesmo e de dar-me aos leitores. Isso
porque algumas das ideias que me esforço para sacar à memória e expor
ordenadamente cairiam em desuso e no esquecimento, se não me desse ao trabalho
de as evocar e transmitir.
O desuso, aliás, já estava
em parte consumado, pois havia esquecido várias ideias aqui retomadas, outras
tinha guardado, ainda outras ministrado em sala de aula e nunca revisto. Só uma
pequena parte havia sido publicada em forma de textos, por sinal esgotados. Por
isso, se o trabalho de compendiar minhas ideias é em parte centrado em mim
mesmo, por outro lado, ele se traduz num movimento para fora de mim e em
direção ao leitor.
Mas, se me dou a tarefa
de escrever esse vasto compêndio, por que método hei de fazê-lo? Como hei de
amealhar ideias, em geral antigas, numerosas e diversificadas? Como meu esforço
nessa direção poderá tornar-se compreensível e proveitoso ao leitor? Questões
como essas envolvem o problema do método. E não posso deixar de observar que,
para os fins de uma coletânea que se quer depurada das idiossincrasias que a
origem personalíssima tende a depositar na exposição, o método mais adequado me
parece ser o histórico.
Com efeito, argumentar
sem traçar o histórico de uma discussão, resgatar ideias sem as inserir no vasto
diálogo dos séculos, é pedir ao interlocutor que adote certas conclusões sem
conhecer as alternativas oferecidas a ela. É argumentar de maneira ilegítima
e quase trapacear. Inversamente, arrazoar a partir da História é nada
pedir para si, posto que o esforço reflexivo se orienta à apresentação de uma
variedade de teorias sobre as questões discutidas, mais do que a ideias
próprias.
Devohistoriar, de modo
particular, as discussões a respeito da questão axial desta série, que
identifico com a tensão entre as metateorias do jusnaturalismo e do positivismo
jurídico. No entanto, como a composição mais adequada dos argumentos
dessas correntes geralmente atribui peso maior ao direito natural, devo
discutir os textos que, ao longo da História, mais influenciaram a formação e a
evolução dessa grande concepção do direito. É o que pretendo fazer nesta e na
próxima parte da presente série.
Fustel
de Coulanges mostrou que, na Antiguidade, os povos indoeuropeus (arianos)
tinham instituições domésticas semelhantes e instituições políticas, muito dessemelhantes[1]:
Se compararmos as instituições domésticas
desses diversos povos, perceberemos que a família era constituída conforme os
mesmos princípios na Grécia e na Índia. Estes princípios eram, ademais, como já
constatamos previamente, de uma natureza tão singular que não é lícito supor
que essa semelhança fosse o efeito do acaso. Enfim, não só essas instituições
revelam uma manifesta analogia, como também as palavras que as designam são com
frequência idênticas nas diferentes línguas que essa raça falou desde o Ganges
até o Tibre. Disto podemos extrair duas conclusões: a primeira é que o
nascimento das instituições domésticas nessa raça é anterior à época em que
seus diferentes ramos se separaram, a segunda é que, ao contrário, o nascimento
das instituições políticas é posterior.
Não
poucos estudos históricos apresentam o direito em estreita relação com a
política. Contudo, na época a que Colulanges nos remete, ele estava incrustado
nas insti-tuições familiares, não na política dos povos indo-europeus.
Esse
é um primeiro ponto importante, na obra de Coulanges. Porém, o dado mais relevante
que ele transmite sobre os povos indoeuropeus não é a fusão das instituições
familiares com o direito, mas a de ambos com a religião. De acordo com Coulanges,
“no longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma
de sociedade a não ser a família” é que “se produziu a religião doméstica”[2].
Resultado disso é que a ordem doméstica eminentemente sagrada veio a reger-se
por um direito próprio, no qual, por exemplo, o escravo era admitido na família
por meio de um rito sagrado análogo ao da adoção e do casamento[3]:
Um uso curioso, o
qual subsistiu longamente nas casas atenientes, nos mostra como o escravo
entrava na família. Aproximava-se do fogo doméstico; apresentava-se à divindade
doméstica; vertia-se sobre a sua cabeça água lustral e ele partilhava com a
família de alguns bolos e algumas frutas. Esta cerimônia era análoga àquela do
casamento e àquela da adoção. Significava sem dúvida que o recém-chegado,
estranho na véspera, seria doravante um membro da família.
Se
seguirmos a evolução social dos povos indoeuropeus e, em particular, a dos
gregos e romanos, veremos que as suas instituições políticas moldaram-se a
partir da família. “A cidade nasceu da confederação das famílias e das tribos.
Ora, antes do dia em que a cidade se formou, a família já continha em si mesma
a distinção de classes”[4].
Além
do pater e dos escravos, a família era
constituída pelos clientes, que não descendiam do pater, e pelos patrícios, que
pertenciam à árvore genealógica dele. Essas pessoas com direitos bem diferenciados,
formaram a população e as classes sociais primitivas das cidades. Com o
tempo, no topo dessa hierarquia, foi colocado um rei. Assim, o regime da
família ou gens e o da cidade não só coexistiram como o mais recente formou-se
a partir do primeiro.
Porém,
o tempo encarregou-se de produzir aspirações totalmente novas, que
desestabilizaram a pólis, na qual os elementos contraditórios da ordem social
arcaica e recente haviam sido combinados. Coulanges fala de quatro revoluções,
que se repetiram em diferentes povos e foram responsáveis pela formação do que
conhecemos como cidade antiga.
A
primeira das quatro revoluções pôs fim à realeza. Em Roma, isso se deu porque
os reis passaram a favorecer a elevação das classes baixas[5].
Revoltada com essa atitude da realeza, a aristocracia a destituiu e enfeixou em
suas mãos o poder político.
A
segunda revolução consistiu na modificação lenta, porém profunda das
instituições arcaicas. Conforme se tornavam ávidos pelo controle das
magistraturas das cidades, os pater dedicavam
menos energia às famílias. Com isso, a ordem da gens afrouxou-se. Regras que
tinham garantido a coesão da família durante séculos, a exemplo da
primogenitura, desapareceram.
O
enfraquecimento do poder dos pater
levou os clientes a libertaram-se do jugo deles e constituírem uma nova classe,
no interior das cidades, chamada plebe. Foi essa a terceira revolução mencionada
por Coulanges.
Com
o tempo, um antagonismo surgiu entre a plebe e a aristocracia, tanto em matéria
de religião como de direito civil. Apesar dos esforços envidados para contê-lo,
o antagonismo aumentou a ponto de exigir mudanças drásticas. A Lei das Doze
Tábuas, em Roma, e o Código de Sólon, na Grécia, marcaram a solução dos
conflitos de classes, com o reconhecimento dos direitos sociais dos plebeus.
Por
fim, a quarta revolução consistiu na implantação da democracia em diversas
cidades[6]:
A nova aristocracia foi atacada como fora
a antiga. Os pobres quiseram ser cidadãos e se esforçaram para penetrar, por
sua vez, no corpo político. É impossível abordar os detalhes desta nova luta. A
história das cidades, à medida que se distancia da origem, se diversifica cada
vez mais. As cidades passam por uma sequência idêntica de revoluções, mas estas
se apresentam sob as formas mais variadas.
Ao
descrever as quatro revoluções que plasmaram a cidade antiga, Coulanges mostra
o que já apontamos, a saber: que o direito foi crescentemente associado à
religião e à família, não à política. Mas o mais importante não é a constatação
de que isso se deu. É antes o motivo por que se deu.
O
relacionamento do direito à religião e à família, nos povos indoeuropeus,
sugere que a sociabilidade humana repousa na combinação desses elementos mais
do que na política. Não estou a afirmar que a ordem social arcaica deva ser
considerada expressão perfeita da sociabilidade humana. O fato de aspectos
inteiros dela (como a primogenitura e o poder absoluto do pater) terem sido extirpados
mostra que nunca foram essenciais à convivência. Porém, é provável que algo
verdadeiramente essencial estivesse posto na simplicidade do arranjo da
religião, do direito e da família, antes do aparecimento das cidades.
Se
tiver sido assim, o pensamento remoto, juridico inclusive, há de ser concebido
como uma consciência das normas a serem obedecidas para que a sociabilidade
humana transforme-se de aspiração em fato. Ele deve ser visto como o conjunto
das normas que estabelecem como as pessoas podem unir-se em famílias.
E,
se a sociabilidade era vista como um dado da natureza humana pelos antigos, não
podia ser diferente com o direito. Em De
legibus, considerada a primeira obra de Filosofia do Direito da História[7],
Cícero definiu a lei como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que
se deve fazer e proíbe o contrário”[8].
Essa não era apenas a opinião de Cícero. Era a expressão lapidar do modo grego
e romano de conceber o direito.
A
reta razão a que Cícero alude não é um dado psicológico, mas divino[9].
Ele a explica mais detalhadamente em outra obra[10]:
Essa lei verdadeira, razão reta e conforme
a natureza, está presente em todos, invariável, eterna, capaz de guiar-nos com
os seus preceitos para o dever e de dissuadir-nos com as suas proibições de
fazer o mal [...] O valor dessa lei não lhe pode ser subtraído, nem pode ela
ser derrogada, muito menos abrogada. Não podemos ser dispensados da obediência
a ela por ato do Senado ou do povo [...] Ela não é distinta em Roma ou Atenas,
agora ou no futuro. Todos os povos, em todas as épocas, são regidos por essa
única lei eterna e imutável. E o mestre não menos único dos seus preceitos, por
assim dizer, é Deus.
Deus,
para Cícero, não era o que é para um cristão. Correspondia mais proximamente ao
conceito estoico de natureza suprema ou razão. Mas, independentemente da
definição que o termo possa merecer, é admirável que a ideia de direito de um
dos homens mais cultos e versados em leis do povo que mais cultivou o Direito,
na Antiguidade, tenha sido essencialmente religiosa. Direito, para Cícero, não
era o costume ou as leis. Era a reta razão divina, que o costume e as leis
procuram exprimir, às vezes sem muito sucesso.
Essa
ideia de direito, os romanos a compartilharam com os gregos, por muito tempo.
Num discurso ao júri ateniense, Demóstenes sustentou, no século IV a. C., que
as leis devem ser obedecidas, porque foram prescritas “por Deus” e também
“porque são deduções de um código moral eterno e imutável”[11].
As
discussões da justiça incluídas nos dois primeiros livros de A república, de Platão, e no
Livro V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, refinam e aprofundam as
noções de direito apresentadas até aqui, sem conflitar com ela. No Livro
II de seu diálogo, Platão debate extensamente a relação da virtude com Deus[12].
E Aristóteles é ainda mais conclusivo, ao afirmar expressamente que[13]
a felicidade, mesmo que não seja considerada dom de Deus, mas
resultado da virtude ou de um processo de aprendizado e treinamento, está entre
as coisas mais semelhantes às que chamamos divinas, já que a recompensa da
virtude [a felicidade] deve ser considerada a melhor coisa do mundo, portanto
divina e abençoada.
Para
os gregos como para os romanos, porém, a religião era algo mais imanente do que
transcendente. Ainda que os deuses habitassem no Olimpo, os relatos sobre os
seus feitos, que constituíam a religião antiga e estavam contidos nos mitos, os
representavam sempre na Terra. Por isso, a religião grecorromana era imanente.
Era parte da natureza: a parte mais elevada e, por isso difícil de compreender,
mas ao mesmo tempo a mais racional. A religião era a própria ordem da natureza.
Por
isso, quando a primogenitura e o poder absoluto do pater desapareceram, embora estivesse
entrelaçada com eles, a religião não declinou. Pelo contrário, manteve-se tão
forte quanto antes ou se fortaleceu ainda mais.
O
ponto em relevo, aqui, não é o valor da religião como relação do indivíduo com
Deus. Esse valor lhe foi sempre atribuído, mas não constitui o ponto a ser
enfatizado para os fins da presente série.
Quero priorizar o papel da religião para a
sociabilidade humana. A fé em Deus ou nos deuses não é só um dos elementos
básicos da convivência, ao lado da família e do direito. Entre esses elementos,
ela é o principal. Por isso, deve ter sempre a primazia. Não é outro o motivo
de a religião não ter sido abolida em lugar algum. É preciso afirmar até mesmo
que ela nunca foi sequer enfraquecida, do ponto de vista social, o que
justifica perguntar se poderá ser um dia.
Agamben
propôs uma explicação do valor perene da religião. De acordo com ele, as
crenças religiosas são tão essenciais, porque as suas raízes estão cravadas na
instituição mais básica de toda a cultura: o juramento[14].
Para subverter a religião, é preciso eliminar o juramento, o que os antigos
jamais se dispuseram a fazer. A dessacralização parcial da socedade observada
nos últimos séculos enfraqueceu o juramento e as instituições que dependem dele,
porém é duvidoso que ela venha a se completar.
Seja
qual for o motivo de a religião desempenhar papel tão essencial para a
sociabilidade humana, o fato é que esse papel lhe parece designado.
Se não há sociedade sem direito e família, como Coulanges mostrou, a convivência
tampouco é possível sem religião. Mais do que isso, vemos os três elementos
entrelaçarem-se, desde o primeiro momento em que os surpreendemos.
A experiência grega tem uma novidade
importante, como visto. A promulgação da lei e sua revogação nada têm de
divino; são assuntos humanos [...] O direito já não precisa ser revelado
divinamente para valer e nem é preciso invocar a vontade dos deuses para
deliberar sobre as leis. Nestes termos é que se pode dizer que o direito se
laiciza[15].
Pergunto-me
se não há um exagero nessas palavras. O fato de os gregos não conceberem a
promulgação da lei como a entrega por parte de um deus é uma nuança que em nada
diminui a relação visceral do direito com a religião. Os títulos divinos dos
agentes humanos pelos quais a lei era dada mostram-no exemplarmente.
Em
suma, se a ideia essencial de direito interessa mais ao jusfilósofo do que as
particularidades das instituições jurídicas, não resta dúvida de que os antigos
tinham daquela ideia uma concepção religiosa. A relação entre direito e
religião era a mais essencial para a sociedade, o que se coloca em notável contraste
com o tempo atual, em que a aspiração profunda dos povos parece ser à separação
radical dos dois elementos.
Tão
chocante é o contraste que ao jusfilósofo não deve escapar a pergunta sobre o
seu significado. Se Cícero fundou a Filosofia do Direito ao sustentar, no De
legibus e em De
republica, que a lei é a razão divina que permeia todas as coisas, a
dessacralização do direito há de constituir o tema central da disciplina no
nosso tempo. É a dessacralização uma aberração, bravata perpetrada contra a lei
“invariável, eterna, capaz de guiar-nos com os seus preceitos para o dever e de
dissuadir-nos com as suas proibições de fazer o mal”? É ela um atentado contra
o que “não pode ser derrogado, muito menos abrogado” por não poder
apresentar-se de modo distinto “em Roma ou Atenas, agora ou no futuro”? Ou é a
feliz superação de um modo de sociabilidade que funcionou por milênios, mas se
tornou profundamente insatisfatório?
À
pergunta sobre o que é o direito deve seguir-se a que indaga o sentido da sua
dessacralização. Nada mais premente, nem mais esquecido no nosso tempo.
O PENSAMENTO JURÍDICO SOB O CRISTIANISMO
No seu livro sobre as formas elementares
da vida religiosa, Émile Durkheim discutiu amplamente o totemismo australiano,
que tomou como paradigma da religião primitiva. Porém, antes de ingressar nos
detalhes do sistema totêmico, o sociólogo francês dedicou o primeiro capítulo
da obra à discussão do que é religião, elementar ou não. Após desenvolver esse
tema, Durkheim concluiu que[16]
todas
as crenças religiosas conhecidas, sejam simples ou complexas, apresentam um mesmo
caráter comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais que os
homens concebem, em duas classes, em dois gêneros opostos, designados
geralmente por dois termos distintos que as palavras profano e sagrado traduzem
bastante bem.
Para Durkheim, sagrado e
profano são categorias mais definidas e estanques do que bem e mal[17]:
A oposição tradicional entre o bem e o mal não é nada
ao lado desta; pois o bem e o mal são duas espécies contrárias de um mesmo
gênero, a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos diferentes
de uma mesma ordem de fatos, a vida, ao passo que o sagrado e o profano foram
sempre e em toda parte concebidos pelo espírito humano como gêneros separados,
como dois mundos entre os quais nada existe em comum [...] Conforme as
religiões, essa oposição foi concebida de maneiras diferentes. Numa, para
separar esses dois tipos de coisas, pareceu suficiente localizá-las em regiões
distintas do universo físico; noutra, algumas delas são lançadas num meio ideal
e transcendente, enquanto o mundo material é entregue às outras em plena propriedade.
Mas, se as formas do contraste são variáveis, o fato mesmo do contraste é
universal.
Mas, se a religião
consiste na delimitação mais ou menos rigorosa do sagrado em relação ao
profano, em qual dos dois territórios deve ser situada a vida social, que
constitui o foco do nosso interesse? É a vida social sagrada ou profana? Nos
povos grego e romano, não há dúvida de que a ordem social primitiva (familiar)
sempre foi situada na esfera sagrada. Vimos, porém, que essa ordem passou por
transformações, como o fim da primogenitura e a diminuição do poder do pater. É lícito perguntar se
essas transformações reduziram-lhe o caráter sagrado e se um processo análogo
teve lugar na pólis.
Parece que as
transformações por que a família e a pólis passaram mitigaram o caráter religioso
delas. Exemplos disso podem ser retirados do direito. Moreira Alves mostrou
que, nas fases iniciais do direito romano pré-clássico[18],
o ius civile (constituído apenas de normas costumeiras
e de alguns raros preceitos legais aplicáveis aos cidadãos romanos) se desenvolveu,
em regra, pela atuação dos jurisconsultos (a princípio, os pontífices; depois,
com a laicização da jurisprudência, os juristas leigos).
Nessas palavras, a
evolução geral do direito romano depreende-se com relativa clareza: num
primeiro momento, a aplicação do direito foi controlada pelos pontífices; mais
tarde, passou à esfera laica. Com isso, se não perdeu o caráter sagrado,
teve-o, no mínimo, abrandado.
A
mesma linha geral observa-se entre os gregos. Roscoe Pound mostrou que[19]
no primeiro estágio do direito grego, os reis decidiam as causas
por inspiração divina. No segundo estágio, o curso costumeiro da decisão se
tornou tradicional sob o controle de uma oligarguia. Mais tarde, demandas populares
por maior publicidade resultaram na criação de um corpo de leis.
A
dessacralização parcial do direito e outros aspectos da vida social desenvolveu-se
mais nas sociedades cosmopolitas, como a grega e a romana, cuja localização geográfica
e vocação espiritual permitiram que se desenvolvessem voltadas para os povos de
além-mar. E, como o sentido religioso das práticas sociais diversifica-se muito
de cultura para cultura, quando os povos cosmopolitas entraram em contato com
vários outros, a referência ao sentido religioso das instituições tornou-se um
entrave para a convivência semelhante à barreira representada pelos idiomas. Desse
modo, na Grécia e em Roma, surgiu a necessidade de transferir o significado
religioso das suas instituições do primeiro plano para o pano de fundo da
convivência social.
A relação entre
cosmopolitismo e dessacralização observou-se também entre os judeus. Poucos
povos da Antiguidade foram tão cosmopolitas quanto Israel, cujas Diásporas,
anteriores e posteriores à destruição do Templo em 70 d. C., os colocaram em
contato com nações sensivelmente distintas umas das outras. E, apesar de os
judeus associarem a sua existência histórica à religião, o contato com outros
povos forçou-os a transferir o caráter sagrado das suas instituições e costumes
para a retaguarda do intercâmbio social.
O Livro de Eclesiastes
é, às vezes, citado como voz dissonante no interior da Bíblia hebraica, por
referir-se ao mundo natural e social em termos que neutralizam parcialmente a sua
relação com o sagrado. Todavia, além do dissenso sobre a vida material, não há
motivo para sustentarmos a dissonância de Eclesiastes com a cultura judaica
como o Antigo Testamento a exprime, posto concordarem em todos os outros
pontos.
Nem na teologia, nem no
tocante à vida cotidiana, Eclesiastes diverge do ensino dos outros textos da
coleção sagrada dos judeus. Pelo contrário, o que temos, naquele livro, é
apenas uma exposição detalhada e profunda dos fatos cotidianos e da avaliação
que o homem judeu fazia deles[20]:
Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de
vaidades. Tudo é vaidade. Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho com
que se afadiga debaixo do sol? Geração vai e geração vem; mas a terra permanece
para sempre. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e
revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos. Todos os rios correm
para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá
tornam eles a correr.
O dado primeiro dessa
dissertação é que, se a natureza e a vida social são vaidade, segue-se que não são
sagradas. Deus é o autor de ambas. Ele criou as coisas para funcionarem por meio
de ciclos que se repetem[21]:
Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada
se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens
temam diante dele. O que é já foi, e o que há de ser também já foi; Deus fará renovar-se
o que se passou.
Não é diferente na ordem
humana: “Então, passei a considerar a sabedoria, e a loucura, e a estultícia.
Que fará o homem que seguir ao rei? O mesmo que outros já fizeram”[22]. A
repetição e a sujeição férrea aos ciclos da existência encontram-se tanto na
natureza quanto na vida humana. Podemos considerar que decorrem da ordem da
criação divina.
Porém, na época em que
Eclesiastes provavelmente foi escrito (século III a. C.), os judeus já
associavam a criação à queda do homem. Por isso, o livro canônico não se limita
a apresentar a ordem cíclica da natureza e das gerações humanas: ele julga-a vã,
em razão da queda. Chama vaidade a corrupção da ordem cíclica, em consequência
da queda. Por ter-se tornado vã, essa ordem deixou de ser sagrada.
Em Israel, não
diferentemente do que sucedeu na Grécia e em Roma, a dessacralização se impôs.
É apropriado afirmar inclusive que o fez em intensidade maior do que nas
culturas europeias clássicas. “Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em
muitas astúcias”[23].
O desvio da retidão à astúcia, como a passagem da criação à vaidade, apagou o
caráter sagrado da vida humana. O pecado tornou a ordem do mundo profana. Esse é
um ponto extremamente importante para entendermos o sentido da vida humana e da
sociedade, na tradição judaica e na doutrina cristã, que surgiu como autêntico
rebento dela.
Vaidade não é um termo
evocativo do sagrado. Ao contrário, o sentido teológico do termo é negativo,
embora o mundo reduzido à vaidade descenda do que foi criado por Deus. Se
considerarmos essas ideias com a seriedade que elas demandam, concluiremos que
a dessacralização da vida social não se iniciou nos últimos 200 anos, nem
proveio de forças profanas, mas religiosas. Concluiremos, outrossim, que o
impulso mais vigoroso me favor dela não veio da Grécia ou de Roma, mas de
Israel.
Pouca dúvida há de que a doutrina da queda tem
como consequência a dessacralização do Universo e da sociedade. Esse o decreto do
livro de Eclesiastes, que só não foi levado às últimas consequências, porque as
sociedades em que as crenças judaicocristãs estabeleceram-se se consideraram
exceções à dessacralização decorrente da queda. Sem negar que o mundo fosse
profano, elas sempre se julgaram sagradas.
Devemos
manter em mente, porém, que, embora o sagrado se oponha absolutamente ao
profano, a transferência de coisas da esfera sagrada para a profana, como o Cristianismo
a representa, está sujeita a limitações. Por isso, embora a vida dos povos
adâmicos tenha sido revolucionada pela queda, permanecem neles reflexos da
criação de Deus. A cultura pagã é um exemplo claro. Em obras como A cidade de Deus, Santo Agostinho
cita Virgílio e Cícero incontáveis vezes. Isso não aconteceria, se o
teólogo não reconhecesse reflexos da criação divina, na cultura pagã. Não
aconteceria se ele considerasse que a queda eliminou totalmente aqueles
elementos.
O
mesmo se verifica no campo do direito. Agostinho abraça a doutrina estoica da
lei natural como recta ratio
e a cristianiza. Não vacila em apresentar tal lei como algo eterno e inerente à
razão de Deus. Mas afirma simultaneamente que, ao projetar-se no mundo, a lei eterna
se faz temporal[24].
Essa
lei temporal, humana e terrena distingue-se da eterna, que é “aquela em virtude
da qual é justo que todas as coisas estejam perfeitamente ordenadas”[25].
A lei eterna não somente institui a ordem do mundo como lhe comunica o atributo
da justiça.
Em
vez de renegar o enunciado da lei natural de Ulpiano, Agostinho o aceita. Estende,
assim, o direito natural a todo o reino animal. E considera que a queda levou à
dessacralização de aspectos da ordem terrena, porém não de toda ela. A norma da
lei natural permaneceu inscrita no coração do homem, de onde se projetou nas
leis dos diversos povos. Esse reflexo da lei natural nos decretos da autoridade
política é, aliás, o critério que permite a Agostinho (e, depois dele, a Tomás)
rejeitar o caráter de lei aos decretos injustos e desconformes à lei eterna.
Ao
ligar o débil direito humano ao Criador do homem e de toda a natureza,
Agostinho incrementa o teor divino do direito. Alceu Amoroso Lima dá a esse
incremento o nome de “espiritualização do direito natural dos juristas estoicos
pelos teólogos e juristas cristãos[26].
Assim,
por um lado, o Cristianismo aprofunda a dessacralização social, mediante a
doutrina da queda. Afirma que parte importante da vida foi dessacralizada a
partir do pecado de Adão. Porém, proclama que o que permaneceu no território do
sagrado foi ainda mais fortemente relacionado a Deus, visto que a História não
terminou na queda, mas se estendeu à salvação realizada por Jesus Cristo.
Por
razões como essas, é justo e adequado entender que, do modo como Platão e
Aristóteles refinaram o trato dos antigos filósofos com o direito, os pensadores
Cristãos fizeram o mesmo com o pensamento recebido da Antiguidade. Não só
Agostinho, mas Graciano e Tomás de Aquino, entre outros, merecem ser citados
como os maiores responsáveis por essa realização.
Uma
diferença de perfeição pode ser percebida entre as sínteses de direito romano e
cristão de Graciano e Tomás. Por exemplo, o primeiro estendeu o direito natural
somente à espécie humana, com o que se apartou da doutrina das Institutas
de Justiniano. Coube a Tomás, nas pegadas de Santo Agostinho, reintroduzir a
concepção pagã do direito natural e readaptá-la ao cristianismo. Assim, restituiu-nos
a síntese considerada mais fiel às melhores fontes romanas e cristãs
disponíveis.
O
fortalecimento do conteúdo divino da lei natural é tão bem percebido no
pensamento de Tomás quanto no de Agostinho. Porém, vemos explicitar-se naquele
uma tendência que não se manifesta no santo de Hipona. Refiro-me à rígida
vinculação do direito natural à razão. Diz-nos Tomás: “A força de uma lei
depende da extensão da sua justiça. Ora, nos assuntos humanos, uma coisa é
considerada justa por ser concorde com a regra da razão”[27].
Agostinho
não nega essa proposição, mas não a isenta tão extensamente de nuanças quanto
Tomás. Para este, o justo é o racional. O autor do Tratado das leis não deixa a mínima margem para incompreensão do
que pretende transmitir com tal identificação: “À lei das nações [jus gentium]
pertence tudo aquilo que é derivado da lei da natureza como conclusões a partir
de premissas. Por exemplo, compras e vendas justas”[28].
Conclusões
que se seguem a premissas não são outra coisa que consequências lógicas. Desse
modo estritamente lógico, o caráter divino do direito é esclarecido. Deus é
razão, e as normas emanadas dele refletem limpidamente esse fato.
Claro
que podemos concordar ou não com Tomás, assim como podemos abraçar ou não sua
doutrina. O que não é cabível, o que fica afastado são dúvidas de tipo
kelseniano sobre o conteúdo da justiça em Tomás. A derivação de consequências a
partir de premissas da lei natural não ocorre uma vez ou duas vezes, mas
milhares de vezes. Nesse processo, as notas inerentes às premissas diluem-se em
proposições híbridas de direito natural e positivo. Porém, a força do liame da
consequência garante que a diluição
não elimine o teor de direito natural que permanece nas leis humanas.
Princípios
de direito natural diluídos no direito humano não deixam de ser princípios de
direito natural e de compor a estrutura lógica do direito humano, assim como o
açúcar diluído em água não deixa de ser açúcar ou de ser doce. É o que pensa
Tomás. É também o ponto no qual convergem todos os grandes teólogos e
jurisconsultos cristãos.
Que
sentido há em duvidar do papel do direito natural por desconhecermos a
concentração exata dele nas diferentes misturas históricas entre ele e o
direito humano? Quanto um direito é natural? Quanto outro o é? A incompreensibilidade
das respostas a essas questões não elimina o fato de que o direito é uma
mistura de premissas naturais e consequências positivas.
Roscoe
Pound lembra que os filósofos gregos relacionaram a justiça à preservação do status quo social. Essa não é uma invenção cristã.
Pound observa com absoluta precisão que, quando o apóstolo Paulo recomenda a
aceitação dos deveres de classe por escravos e senhores e dos papeis domésticos
pelas mulheres, maridos e filhos, não faz outra coisa que refletir o grau de
helenização a que o pensamento judeu (inclusive o palestinense) da época da Diáspora
fora sujeito[29].
A fonte principal das cobranças de conformidade ao status quo, naquele tempo, não era a lei natural, mas os costumes
romanos.
Isso
reduz muito o campo de divergências possíveis sobre a moral e o direito
natural. E, ao reduzi-lo, mostra que a dúvida kelseniana sobre o conteúdo
do direito natural após a combinação com o direito positivo não é mais que kelseniana.
A dúvida perde o sentido ao ser estendida à Antiguidade ou à Idade Média, pois,
nesses períodos, a ligação da ordem social com a justiça era consequência dos
regimes escravista e feudal, não do direito natural. Menos ainda era possível
questionara existência do direito natural por permanecer misturado a exigências
daqueles regimes.
Em
suma, sob o Cristianismo, a dessacralização da vida social atingiu o grau
máximo, porém foi mantida em limites impostos pelo caráter sagrado da sociedade
cristã. Só quando o Ocidente deixou de se conceber como povo particularmente vocacionado
à santidade, foi possível levar às últimas consequências a dessacralização claramente
afirmada nos textos bíblicos. Isso se deu a partir do momento em que o
Iluminismo conferiu à razão a autonomia necessária para questionar e revisar
preconceitos religiosos.
As sociedades cristãs só
desenvolveram o processo de dessacralização hoje em marcha, porque a sua base
religiosa as inclinava a isso. Os povos muçulmanos e orientais não passaram
pelo processo, ao mesmo tempo ou do mesmo modo que o Ocidente, por lhes faltar aquela
base. Porém, os latinoamericanos, como cristãos, o experimentaram em boa medida.
Não cabe afirmar que os
muçulmanos conhecem a doutrina da queda, pois, no Alcorão, essa doutrina é profundamente
mitigada. Deus disse a Adão[30]:
Ó Adão, habita o Paraíso com tua esposa e desfrutai
dele com a abundância que vos aprouver; porém, não vos aproximeis desta árvore,
porque vos contareis entre os iníquos. Todavia, Satã os seduziu, fazendo com
que saíssem do estado [de felicidade] em que se encontravam. Então dissemos:
Descei! Sereis inimigos uns dos outros, e, na terra, tereis residência e gozo
transitórios. Adão aprendeu de seu Senhor algumas palavras [como preces] e Ele
o perdoou.
Na religião muçulmana, o
pecado do Paraíso foi perdoado a Adão imediatamente. Não teve as consequências
que lhe são associadas na tradição judaicocristã. Por isso, na religião
muçulmana, Adão é tão positivo quanto Jesus, como observamos na passagem que julga
“o exemplo de Jesus, ante Deus, idêntico ao de Adão, a quem Ele criou da terra”[31]. Essa a doutrina do Alcorão sobre a queda.
E a da Reforma
Protestante, qual é? Alceu Amoroso Lima descreveu as consequências jurídicas da
teologia protestante do pecado natural nos seguintes termos:
Na concepção católica do Direito, representava
a liberdade humana um papel essencial pois “a justiça é um estado de equilíbrio
entre a vontade divina e o livre arbítrio do homem”[32]. [Na
doutrina católica], o pecado destruiu no homem apenas a harmonia e a hierarquia
de suas faculdades, mas “não diminuiu a própria natureza”[33]. Ora,
na concepção protestante, ao contrário, o pecado reduziu a própria natureza
humana, destruindo-lhe completamente a integridade. O pecado original, segundo
Lutero, Calvino ou Zwingle, foi uma depravação que viciou radicalmente a
natureza humana. Sendo assim, não poderá esta desempenhar nenhum papel
importante na ordem moral.
A análise de Amoroso
Lima é exata até o último período. A Reforma é, de fato, inseparável da
doutrina do pecado original como Santo Agostinho e depois Lutero, Calvino e
Zuínglio a interpretaram. Para ela, o pecado realmente viciou a natureza
humana, no sentido claro e prático de que corrompeu todas e não algumas
faculdades humanas. Mas daí não decorre que a natureza e a razão humanas
tenham-se tornado irrelevantes na ordem moral. Não é assim em Lutero,
Melanchton, Calvino ou qualquer outro grande teólogo da primeira geração
protestante.
A Reforma traçou uma
linha divisória vertical no Universo. A razão continua a reger todo o imenso
território que se estende dessa linha mediana para baixo. O mesmo deve ser
afirmado do livre arbítrio, que nele vigora sem atenuações. É o que vemos, por
exemplo, em Lutero[34]:
O julgamento a respeito da
restituição deve ser o seguinte: se o devedor é pobre e não pode devolver, e o
outro não é indigente, deves dar livre curso à lei do amor e perdoar o devedor.
Pois, conforme a lei do amor, também o outro está obrigado a perdoar e ainda a
restituir mais, se for necessário. Se, porém, o devedor não é pobre, obriga-o a
devolver o quanto puder, seja o total, a metade, a terça ou a quarta parte,
deixando-lhe, não obstante, o suficiente para a moradia, alimentação e
vestuário para ele próprio, sua mulher e filhos [...] Pois a natureza ensina o
mesmo que também ensina o amor: que devo fazer o que quero que me façam. Por
isso não posso explorar a ninguém dessa maneira, ainda que tenha todo o
direito, pois eu não gostaria de ser explorado dessa maneira
Façamos uma breve pausa
para indagar, com o necessário cuidado, o que Lutero está a propor. Ele diz,
claramente, que a lei natural continua em vigor debaixo do sol, para usar a
expressão de Eclesiastes, isto é, do meridiano protestante abaixo. Mais do que
isso, ele afirma que essa lei foi esclarecida pela lei do amor, que em nada
conflita com ela, pelo contrário: é a sua explicação máxima.
Quando diz que “a
natureza ensina o mesmo que também ensina o amor”, por natureza devemos
entender nada menos que a razão. O sentido é, portanto, que o amor concorda com
a razão. Continuemos a seguir o texto[35]:
Se, porém, não observares a lei do amor e da natureza,
jamais agirás de maneira que agrades a Deus, mesmo que tenhas devorado todas as
obras jurídicas e todos os juristas; pelo contrário, esses apenas te confundirão
tanto mais quanto mais refletes sobre eles. Uma sentença verdadeiramente boa
não pode ser tirada de livros; deve provir de uma reflexão livre, como se não
existisse livro algum. Essas sentenças livres emanam do amor e do direito natural,
do que toda a razão está cheia.
Aqui Lutero explicita o
que entende por natureza (racional) e razão. Separa-as nitidamente dos “livros
dos juristas” não com o objetivo de torná-las desarrazoadas, pois a sua
intenção é manifestamente definir o conteúdo nuclear da razão.
Notemos que, ao
distinguir o conteúdo básico da razão das obras dos juristas, Lutero não o
aliena da lógica[36],
mas das complicações e das filigranas dos juristas. Desfaz, nesse mesmo passo,
a meu ver com toda clareza, os equívocos correntes sobre a posição da Reforma a
respeito das faculdades humanas depois da queda. De fato, a razão foi
corrompida em razão do pecado, porém não completamente.
O critério regulador da
corrupção da razão é o meridiano protestante. Por ter-se corrompido, a razão
tornou-se imprestável para conhecer as coisas situadas acima do meridiano, isto
é, as coisas de Deus, mas continua apta a reger as coisas do homem.
É verdade que Lutero
reduz o poder da razão de reger os assuntos terrenos a um mínimo, que se mantém
ativo em todos os homens e ao qual eles podem ou não se conformar. Esse é o
motivo de o reformador sustentar que a razão opera independentemente dos
livros. Contudo, se percorrermos mais amplamente a obra do reformador e o
próprio texto citado, veremos perfeitamente que livros não são todas as obras
escritas, mas a maioria delas (a maioria dos livros jurídicos em especial),
nada mais do que isso.
Lutero sempre ressalva
um corpus literário ao criticar a
razão decaída e as obras criadas por ela. A Filosofia e as artes, em
particular, permanecem úteis e recomendáveis, não certamente à compreensão das
coisas celestiais, mas das terrenas.
Exemplo lapidar de
aplicação prática do direito natural como Lutero o concebe é dado na seguinte
passagem[37]:
Um nobre[38] prendeu
seu inimigo. Veio então a mulher do prisioneiro para libertá-lo. O nobre
prometeu libertar o marido caso ela se deitasse com ele. A mulher era honesta;
não obstante queria libertar o marido. Ela foi falar com o marido e lhe perguntou
se o deveria fazer para conseguir sua liberdade. O homem queria a liberdade e
salvar sua vida, e deu permissão à mulher. Depois de haver mantido relações com
a mulher, o nobre mandou decapitar o marido e entregou-o morto à mulher. Ela
denunciou tudo ao duque Carlos. Este citou o nobre e ordenou-lhe casar-se com a
mulher. Quando terminaram as bodas, mandou decapitar o homem e pôs a mulher
sobre seus bens [...] Vê, semelhante sentença nenhum papa, nenhum jurista e
nenhum livro lhe poderia ter dado; pelo contrário, ela surgiu da livre razão,
superior a todos os livros.
Não é preciso apontar
que a dessacralização social sai por todos os poros dessa passagem. A razão
pela qual o nobre Carlos resolve o litígio é a razão natural aplicada às coisas
terrenas e nada mais. O meridiano protestante define claramente o território
dela. Por isso, as máximas do direito natural nada têm de sagrado: tudo possuem
de humano. Essa lição básica não se altera, absolutamente, quando passamos de
Lutero a Melanchton ou deste a Calvino.
O fato de o Judaísmo e o
Cristianismo favorecerem a dessacralização social não tem de contraditório, se
toda religião, como Durkheim mostrou, constitui um regime de coisas sagradas e
profanas. Nenhuma divisão do sagrado e do profano é mais religiosa que outra.
Nenhuma tem mais direitos do que outra. A divisão judaicocristã, ao alargar o
território profano, por meio da queda, é tão legítima quanto a de qualquer
outra religião. Sua única diferença consiste em favorecer a dessacralização da
vida social verificada nos povos ocidentais e latinoamericanos.
Assim, se os gregos e os
romanos formaram do direito a ideia de algo divino, em conformidade com a sua
religião, a dessacralização do direito, na cultura judaicocristã, não teve
relação menor com a religião. Na verdade, a relação foi tão intensa
quanto no caso dos gregos e dos romanos, o que sugere que o ritmo e os limites
do processo de dessacralização não dependem só de fatores mundanos, como é
usual conceber, mas também da sua relação com a religião.
Embora de modos opostos,
a religião determinou o sentido do direito na Grécia, em Roma e nos povos
cristãos, até os nossos dias. Na Antiguidade, por influência dela, o direito
foi assimilado ao divino. Parece-me que, nos últimos 200 anos, em razão da
mesma influência, ele foi dessacralizado. À Filosofia do Direito cabe ocupar-se
dos dois processos, explicá-los e interpretá-los, por estranhos que possam
parecer à mentalidade contemporânea.
Se o objeto da Filosofia
do Direito é a ideia essencial de direito, podemos identificar dois grandes
modos de concebê-la. O primeiro vigorou na Antiguidade; o outro, na
Modernidade. Um consistiu em divinizá-la mais do que em dessacralizá-la; o
outro, em dessacralizá-la mais do que em divinizá-la. Porém, em ambos,
divinização e dessacralização coexistem. A relação entre elas põe constitui o
mistério da Filosofia do Direito. Se as disciplinas jurídicas particulares
dedicam-se à norma e sua utilidade, à Filosofia resta, de fato, indagar o
mistério do direito.
CAPÍTULO 10: A RENOVAÇÃO DA FILOSOFIA
Desde René Descartes, a Filosofia tem passado por um
processo de renovação que parece longe de reverter-se. Embora contínuo, o
processo tem-se desenvolvido em direções variadas. O que unifica os esforços
despendidos nessas direções é o propósito comum de superação da mundivisão
medieval, embora não necessariamente da base metafísica dela.
Descartes, Kant e Marx estão
entre os pensadores que apresentaram as propostas de renovação mais consistentes
e de maior alcance, do início do período de renovação até hoje. Os dois
primeiros são às vezes colocados numa linha de continuidade, como propugnadores
de um mesmo e novo tipo de racionalismo.
Goffredo Telles Júnior
escreveu: “O Cogito, ergo sum [Penso, logo existo] de
Descartes constitui a proclamação da autonomia do espírito, e se encontra, por
consequência, na base de todos os racionalismos”[39].
A afirmação é exata. Dentre os novos racionalismos, uns atribuem importância
maior, outros, menor ao sujeito, porém todos lhe reservam um lugar de destaque.
Nesse sentido, os racionalismos modernos reportam-se e permanecem tributários do
Cogito cartesiano.
Não é diferente com Kant, cuja dívida com Descartes
é inegável. Nas pegadas do filósofo francês, Kant atribui muito mais ao sujeito
do que outros representantes do racionalismo moderno. Com isso, coloca-se em
certa relação de continuidade com Descartes. Segundo Goffredo, o Cogito
supera “o velho princípio aristotélico de que nada existe no intelecto que não
haja passado pelos sentidos”[40].
Há no sujeito algo que, antes, não esteve nos sentidos. Mas quem leva essa
conclusão o apogeu não é Descartes: é Kant.
Seja com Descartes, seja com Kant, porém, o
fato é que a superação do primado do objeto constitui a renovação que instaura
a modernidade na Filosofia. Renovação que se constitui numa das mais profundas
da História.
Giorgio del Vecchio resumiu a realização de
Kant, no campo da Teoria do Conhecimento, nos seguintes termos[41]:
Distingue Kant as formas (subjetivas) da matéria do conhecimento. Entre as
formas distingue aquelas que tornam possíveis as percepções
dos sentidos (formas da intuição) e aquelas que tornam possíveis as operações lógicas
(formas do intelecto). As formas que tornam possível a intuição sensível são o espaço e
o tempo [...] As formas do intelecto são as categorias. Kant elaborou uma tábua dessas
categorias, reduzindo-as a quatro espécies
(quantidade, qualidade, modo e relação); cada
espécie abrange três categorias.
Pode parecer que, ao instaurar a oposição
entre forma e matéria do conhecimento, Kant retomou o velho par de conceitos de
Aristóteles. Mas a verdade é bem outra. Nem matéria, nem forma, para Kant, são
o que são para Aristóteles. Na filosofia kantiana, forma da intuição ou do
intelecto é um conhecimento prévio utilizado para tornar os objetos cognoscíveis.
Para Kant, o tempo e o espaço são o que torna possível a formação de objetos
sensíveis, e as categorias, o que viabiliza a criação dos conceitos das coisas.
Por serem imanentes ao sujeito, mas não ao
real, as formas não põem o conhecimento em conformidade com as coisas como elas
são em si. E, visto que só podemos conhecer o que as formas do conhecimento nos
facultam, “não há ciência das coisas em si, mas apenas dos fenômenos [coisas
percebidas]”[42].
Vemos que a revolução kantiana não aprofunda
a obra de Descartes apenas por colocar o sujeito no centro da reflexão filosófica, mas
também ao dividir o conhecimento numa espécie que produz objetos e outra que não os produz. Goffredo
esclarece que, para Kant[43],
os conceitos em geral não são formas, mas sim
produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese operada pela espontaneidade do espírito. Esta
síntese é que se realiza por meio de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias.
As formas são produtoras de outros
conhecimentos. Outro tanto não pode ser afirmado dos produtos delas (percepções e conceitos). Dessa
explicação extraímos que as percepções e os conceitos são produzidos pelo sujeito, por meio das formas. O
resultado é a criação de objetos antes desconhecidos e, de outro modo, incognoscíveis. Com isso, Kant
diferencia a sua fundamentação do conhecimento da de Aristóteles, para quem o objeto transporta-se do
mundo exterior ao sujeito. Para Aristóteles, o que está no mundo e o que está no sujeito são fundamentalmente
o mesmo. Para Kant, não. Como Goffredo o explica, o conceito é criado pelo sujeito, que “produz o
objeto, pois produção significa [...] fazer cognoscível a massa informe dos dados sensíveis”[44].
A ideia de um conhecimento que produz o seu objeto
é introduzida na Filosofia por Kant. Ela foi criada e justificada por ele, na Crítica da razão pura.
Essa fundamentação inteiramente nova do conhecimento humano, com base nas formas da sensibilidade e do
intelecto, pelas quais o sujeito cria o objeto, faz nascer um novo racionalismo, distinto do anterior estribado em
Aristóteles.
A Crítica da razão pura é fundamental para a Filosofia não apenas por
assentar que o sujeito é quem cria o objeto. Uma realização ainda
mais significativa dela consistiu em demonstrar como isso ocorre, em geral e no caso particular dos
juízos sintéticos a priori.
Tantas vezes no conhecimento o como se torna mais importantes que o quê. Principalmente quando se trata de renovar o conhecimento e
introduzir ideias novas, mostrar como as coisas funcionam, sob a nova concepção, é de importância mais crítica do
que apresentar, simplesmente, a concepção. Kant fez isso tão bem ou, ao menos, tão exaustivamente quanto
possível. E foi da exaustividade, a meu ver mais que do sucesso da demonstração, que a sua teoria hauriu a
autoridade.
O caráter exaustivo da demonstração do
funcionamento do conhecimento por Kant funcionou como um penhor senão da
validez definitiva da sua Lógica Transcendental, ao menos do quilate
intelectual dela. Do modo como Aristóteles lançou os cânones da Lógica Geral,
ao enunciar as leis pelas quais o objeto é elaborado pelo sujeito, sem deixar
de possuir as características fundamentais que apresenta no mundo, Kant fundou
a Lógica Transcendental, a fim de descrever como o objeto é criado pode ser e é
criado pelo sujeito sem relação necessária com o modo como ele é em si mesmo. E
o instrumento por excelência dessa demonstração foram as formas a priori
da sensibilidade e do entendimento.
A importância do trabalho de Kant para o pensamento humano investe-nos da
alta responsabilidade de julgar o valor dele, tarefa bastante difícil em
razão da complexidade e do nível de detalhamento a que o filósofo alemão desceu
ao apresentar sua Lógica Transcendental. Porém, se soubermos identificar a
chave que permite ingressar no sistema de Kant, é possível aproximarmo-nos de
tal resultado.
Penso que a chave da Crítica da razão pura é, precisamente, o modo como
o sujeito cria o objeto, por meio dos sentidos e do intelecto. Já tive ocasião
de afirmar que as ferramentas de que ele se vale, nesse mister, são as formas
da sensibilidade (o tempo e o espaço) e do intelecto (as categorias). Vejamos
como o sujeito se vale desses instrumentos.
Admitamos, para isso, que a divisão do conhecimento numa esfera da
sensibilidade e outra do entendimento seja consistente. Na verdade, ela é
inevitável, pois uma coisa é conhecer por meio dos sentidos (por exemplo, ver),
e outra, conhecer intelectualmente (formular, por exemplo, os conceitos de
ponto ou de reta). Ninguém sustentará que a visão de um animal é
estruturalmente idêntica ao conceito de ponto.
Porém, o passo seguinte de Kant, no processo de demonstração da sua Lógica,
vale dizer, a determinação das formas de que o sujeito se serve ao produzir os
objetos envolve problemas diversos. Kant afirma que as formas da sensibilidade
são o tempo e o espaço e que as categorias do entendimento são doze: três de
quantidade (unidade, pluralidade e totalidade), três de qualidade (realidade,
negação e limitação) três de relação (substância, causalidade e reciprocidade)
e três de modalidade (possibilidade-impossibilidade, existência-inexistência,
necessidade-contingência).
Essas 12 categorias, Kant as deriva das 12 modalidades de juízo da Lógica
Formal, pois, para ele, pensar é julgar. Por esse motivo básico, há tantos
conceitos básicos (categorias) quantas são as maneiras de julgar (tipos de
juízos).
Vemos que, até esse ponto, Kant procede de maneira fundamentada, uma vez que a
classificação dos juízos em 12 espécies constitui uma construção pouco
desafiada da Lógica. O que nem sempre é claro é o modo como a derivação das
categorias dos diferentes juízos ocorre. Uma coisa é Kant extrair a negação dos
juízos negativos. O raciocínio que conduz a essa dedução é claro, posto que o
juízo negativo produz uma negação. A dedução da unidade a partir dos juízos
universais também pode ser aprovada, pois o juízo universal reduz uma grande
massa de dados à unidade.
Mas e a dedução da substância a partir dos juízos categóricos, a da causalidade
a partir dos hipotéticos e a da reciprocidade dos juízos disjuntivos? São elas
procedimentos tão consistentes quanto os anteriores? Um juízo categórico
enuncia, necessariamente, uma substância? Um hipotético afirma sempre uma
relação causal, e um disjuntivo, uma recíproca? Indagações semelhantes podem
ser formuladas também da dedução da possibilidade e da impossibilidade a partir
dos juízos problemáticos, da existência e da inexistência, dos assertivos e da
necessidade-contingência, dos apodíticos.
Em todos esses casos, as categorias serão outras, se o balanço da operação
realizada em cada juízo variar em relação ao de Kant. Não temos de consentir
que povos tão diversos quanto um selvagem, outro bárbaro e um terceiro
civilizado ou um civilizado antigo, outro moderno e outro contemporâneo, jamais
possam conceber operações categóricas em termos não substanciais, operações
hipotéticas que não envolvam causa e efeito e juízos disjuntivos que não
impliquem reciprocidade. Não temos de concluir que aqueles povos precisam
inevitavelmente dominar a noção de verdade apodítica para conceberem a
necessidade e a contingência ou devem por força considerar a possibilidade e a
impossibilidade mais assertivas do que a existência e a inexistência. Nada
disso parece tão universal quanto Kant admite.
Isso implica que a Lógica Transcendental não tem de ser idêntica em todos os
povos e para absolutamente todas as pessoas. O caráter universal que Kant lhe
atribuiu é, no mínimo, duvidoso. Aliás, a dedução das categorias não é o único
pilar dessa Lógica sujeito a dúvidas. A dedução das formas da sensibilidade me
parece ainda mais arbitrária.
Não que o tempo e o espaço não intervenham na formação do nosso conhecimento
dos objetos sensíveis. Percebemos os objetos externos localizados no tempo e no
espaço. Mas não os percebemos, também, dotados de qualidades e em determinadas
quantidades? Não os percebemos como substâncias e portadores de propriedades
acidentais?
Os kantianos dirão que o espaço e o tempo são mais fundamentais do que as
categorias citadas acima para a percepção. Dirão que o espaço não envolve
medidas de extensão e o tempo, de duração, ao passo que a unidade, a
pluralidade, a totalidade e as várias espécies de qualidade implicam
delimitação e medida. Seja. Mas perceber não é já contar e qualificar? Não é
perceber um, dois ou mais objetos, com essas ou aquelas qualidades? Por que o
ato de perceber tem de ser reduzido à disposição de objetos num espaço e num
tempo abstraídos de toda modulação?
Esses fundamentos da Lógica Transcendental são muito mais sugeridos por Kant do
que comprovados. Em tantos pontos e em tantos momentos, o sistema que o
filósofo alemão erige impõe-se mais pela exaustividade do que pela demonstração
de suas assertivas. De sorte que um exame crítico e meticuloso do seu conteúdo
nos desobriga a admitir o rol específico de formas da sensibilidade e do
entendimento que Kant propõe.
Por outro lado, o exame crítico a que me refiro parece confirmar o acerto do
ponto de partida da Lógica Transcendental. Refiro-me à afirmação de que o
sujeito utiliza certos conceitos (as formas) para moldar objetos. Portanto, que
as coisas ou suas formas (em sentido aristotélico) não se transportam do mundo
ao interior do sujeito, como Aristóteles e os escolásticos sustentavam.
Podemos concluir, com base em fortes razões, portanto, que há, de fato,
formas a priori do conhecimento, que se distinguem como
criadoras de objetos. Nem todo conhecimento tem o condão de criar objetos, mas
alguns certamente o possuem. A esses deu Kant o nome de formas.
Flexibilizemos, pois, o rol taxativo e
rígido das categorias enunciadas por Kant, afrouxemos os cordões das próprias
formas a priori da sensibilidade, admitindo que tanto umas como outras
existem, mas podem ser concebidas variadamente, por povos e pessoas também
variados. Admitamos que algumas categorias, como a unidade, a pluralidade, a existência
e a inexistência têm aplicabilidade mais ampla que outras. Mas não nos
afastemos da noção basilar de que categoria gnoseológica é aquilo e somente
aquilo que engendra um objeto. Essa é, de fato, uma lição perene da filosofia
de Kant.
Façamos, outrossim, a justa comparação da
crítica a que o rol das categorias de Kant faz jus com a que a lista de
Aristóteles merece. É verdade que Kant arrolou as categorias do conhecimento, e
Aristóteles, as do ser, mas, tanto num como no outro caso, imputações de
escolha excessivamente rígidas podem ser formuladas. Tanto a lista das
categorias do ser de Aristóteles quanto a das categorias do entendimento de
Kant poderia ser contesta ou aceita sob interpretações variadas em diferentes
povos e culturas.
Isso é lá verdadeiro. E a conclusão que
decorre de semelhantes constatações é que não só a filosofia de Kant é
vulnerável à corrosão crítica, mas também à de Aristóteles. Aiás, as duas são
particularmente sensíveis à crítica no capítulo sobre as categorias.
Afinal, as categorias do ser e do entendimento são ou não consistentes? E as
formas a priori da sensibilidade? Temos ou não verdadeiras categorias?
Pensamos ou não de acordo com elas? Retornarei ao tema, na parte desta obra
dedicada à Gnoseologia Jurídica.
Mostrarei, outrossim, nos textos consecutivos, que a aplicação da ideia de
forma a priori ao direito foi extremamente tumultuada, quando
não inconsistente. Uma das consequências disso foi a tendência dos jusfilósofos
influenciados por Kant de anunciar a descoberta das formas do pensamento
jurídico. Escolas de pensamento inteiras se assinalaram por essa pretensão, o
que demonstra que a influência de Kant desbordou os limites da Teoria do
Conhecimento para atingir o âmago da Filosofia Social e do Direito.
Contudo, por ora, é suficiente mostrar o tratamento que Kant deu ao tema do
conhecimento e a situação em que o deixou. Afinal, apropriar-se do pensamento
dos autores é, sempre, o trabalho primeiro, sem o qual a crítica perde toda
consistência. Sobretudo a crítica a uma das maiores realizações da História da
Filosofia, como é o caso da obra de Kant. Não foi por outro motivo que del
Vecchio considerou o pensador de Königsberg o maior de todos os filósofos.
A RENOVAÇÃO DO DIREITO
NATURAL
Ao examinarmos as obras dos
jusfilósofos, nos últimos dois séculos, notamos que o papel do sujeito na definição
dos conceitos jurídicos passou a ser cada vez mais discutido. Esse estado de
coisas, porém, não se seguiu, imediatamente a Kant. Foi, antes, precedido por
interlúdio de mais de meio século, no qual as ideias de Kant foram
encobertas em parte pela discussão das teses do historicismo filosófico e
jurídico.
O hiato se explica pela
situação política dos países europeus. Depois da Revolução Francesa e das Guerras
Napoleônicas, a Europa foi varrida pela tendência de restauração do Antigo
Regime. Nesse tempo, o kantismo, por se ancorar na justificação da ciência e na
liberdade, não pareceu servir tão bem os interesses da monarquia quanto o
historicismo de Hegel. De sorte que os problemas filosóficos semeados pelo
filósofo de Königsberg tiveram de aguardar a passagem da onda da Restauração
para receberem atenção total e o merecido desenvolvimento.
Em meados do século XIX, isso começou a ocorrer
intensamente, na Alemanha, com a formação das Escolas neokantianas de Marburgo
e de Baden. A partir desses centros e de outros que rivalizaram com eles, os
problemas colocados por Kant passaram a dominar o panorama da Filosofia do
Direito.
Um dos pontos mais discutidos desse período
foi o papel dos conceitos e formas a priori no conhecimento
jurídico. Rudolph Stammler, cuja obra foi constituiu um dos mais notáveis frutos
da retomada do kantismo, teve o mérito de desenvolver o exame mais amplo desse
problema, no panorama recente da Filosofia do Direito.
Em Economia y derecho, Stammler escreveu[45]:
Todos os
sistemas de Filosofia do Direito até agora conhecidos coincidem em tomar o
conceito de direito como ponto de partida e em ver nele a unidade suprema para
as discussões nesse campo [...] Sob a unidade desse conceito superior de
direito, é possível formar-se toda uma disciplina científica, que não se
reduzirá a informar-nos de um conteúdo de direito limitado ou a expor uma ordem
jurídica determinada, antes oferecerá um sistema das condições necessárias de
todo conhecimento jurídico possível.
Essas declarações assinalam o objetivo principal
da obra de Stammler. Para pô-lo em poucas palavras, o que o jusfilósofo alemão
pretende é estabelecer as “condições de possibilidade” do conhecimento jurídico,
no sentido que a expressão tem em Kant. Temos visto que essas condições estão
relacionadas ao modo como o sujeito produz objetos jurídicos[46]:
Quando a
doutrina jurídica tenta estabelecer dentro de que círculos e grupos humanos e
por meio de que atos nasce o direito na História, propondo-se a desentranhar
uma lei de evolução de alcance geral pela justaposição das formações de normas
jurídicas acumuladas, ela tem de partir de um conceito qualquer de direito.
Não
podem, os estudiosos, encontrar certo objeto na História, se não sabem o que
procurar. Analogamente, o homem comum não pode entender o direito, se não
possuir, de antemão, a ideia geral dele. Por isso, o conceito de direito
antecede o pensamento juridico e é a priori.
Desse conceito a
priori, Stammler deduz o que chama conceitos jurídicos fundamentais, que
servem para articular logicamente a massa desordenada dos fenômenos jurídicos.
Os conceitos ou categorias jurídicas fundamentais, em número de oito, podem ser
combinados, de modo a formar conceitos fundamentais derivados. Tanto o conceito
geral de direito quanto as categorias e os conceitos derivados delas são puros,
por resultarem de dedução a priori.
Ao lado desse conceito
de direito e do rol de outros conceitos que descendem dele, Stammler coloca o
que chama ideia de direito e a identifica com a justiça. Como o direito, a
justiça também é formal, não possui conteúdo determinado, mas variável. Justiça
é o conjunto de condições em que a liberdade de um pode ser coordenada com a de
outro, em sociedade.
Del
Vecchio saudou a teorização do direito de Stammler[47] e
tratou de ecoá-la, em sua obra, ao afirmar que a noção de direito[48]
é meramente formal: não é uma norma, nem
uma proposição jurídica, pois em tal caso teria conteúdo particular e careceria
de universalidade [...] Em vez disto, é, porém, um elemento que em todas as
proposições jurídicas entra uniformemente, caracterizando-as do mesmo modo,
qualquer que seja o conteúdo delas. Em relação a este, permanece indiferente,
adiáforo. Por outras palavras: a forma lógica não nos diz aquilo que é justo ou
injusto, mas diz-nos só qual é o sentido de qualquer afirmação sobre o justo ou
o injusto. É, em suma, a marca da juridicidade.
Stammler
e del Vecchio recorreram a essas noções claramente derivadas de Kant com o
mesmo propósito de relançar o direito natural, ou seja, de apresentar essa
antiga doutrina de uma maneira inteiramente nova. Tiveram muitos seguidores,
mas o sucesso de sua empreitada foi colocado em xeque em muitos.
Entre
nós, Goffredo Telles Júnior foi quem melhor tratou dos problemas do direito
natural de conteúdo variável de Stammler e Del Vecchio.Com sua sólida formação
tomista e a predileção que o marcava pela teoria das quatro causas de
Aristóteles, o mestre das Arcadas declarou[49]:
Causa espécie, na teoria do Formalismo
Jurídico [de Stammler e del Vecchio], a afirmação de que a noção do direito há
de ser exclusivamente formal. Pois é evidente que esta asserção acarreta, por
força, a amputação de uma parte essencial do conceito do direito, porque, como
é obvio, o perfeito conhecimento de uma essência inclui, além do conhecimento
de sua causa formal, o de suas outras causas, quais sejam, a eficiente, a final
e, principalmente, a material.
O
conceito de forma, em Kant, não coincide com o de Aristóteles. Pode parecer que
Goffredo desliza ao considerá-los o mesmo objeto. Mas ele próprio esclarece,
algumas páginas adiante: “Bem sei que a Escola do Direito Formal de conteúdo
variável emprega o termo forma, não no sentido clássico, mas no sentido
kantiano”[50].
O
problema da teorização de Stammler e del Vecchio, como Goffredo a avalia, não é
confundir os conceitos de forma de Aristóteles e de Kant, mas desgarrar-se, ao
mesmo tempo, de ambos. Aristóteles chamou forma ou causa formal aquilo que nos
permite identificar uma matéria como certo objeto. Assim, o mármore de uma
estátua é a sua matéria, que recebe a forma de Sócrates das mãos do escultor. Como
Aristóteles, Kant opõe a forma à matéria, mas o faz de modo diferente, com
vistas a descrever o conhecimento humano. Para ele, a matéria do conhecimento
são os dados dos sentidos; forma é o instrumento de que o sujeito se vale para
criar objetos com aquela matéria.
Goffredo
percebeu com argúcia que a forma invariável do direito, a que Stammler e del
Vecchio aludem, não corresponde ao conceito aristotélico, pois “em todas as
coisas (portanto, também no direito), o único elemento variável é exatamente a
forma, e nunca a matéria”[51].
O
professor das Arcadas dá o exemplo do “ouro do anel e o ouro da moeda”, que
“constituem sempre a mesma invariável matéria; mas, como forma, o mesmo ouro
pode assumir a disposição de anel, ou a disposição de moeda, ou a de qualquer
outra coisa”[52].
E arremata[53]:
Ou nosso conceito de
direito se refere sempre à mesma invariável matéria, seja qual for sua forma
(forma de direito civil, ou de direito penal; ou do Código de Hamurabi, ou do Corpus Juris ou da Constituição brasileira
etc.), ou não sabemos a que nos referimos.
Mas,
se não corresponde ao uso que Aristóteles atribuiu ao termo, a forma de direito
de Stammler e del Vecchio tampouco se ajusta ao conceito kantiano. Lembremos o
que Goffredo tem a ensinar sobre isso[54]:
Como lembra Poggi, o conceito do direito
não pode ser considerado, propriamente, uma forma no sentido com que Kant
empregou esta palavra. Pois, para Kant, como verificamos, os conceitos em geral
não são formas, mas sim produtos do entendimento, isto é, produtos da síntese
operada pela espontaneidade do espírito. Esta síntese é que se realiza por meio
de formas puras, a que Kant conferiu o nome de categorias.
Forma a
priori, em Kant, é, de fato, o instrumento utilizado pelo sujeito para
reduzir uma multiplicidade de dados à unidade de uma percepção ou conceito. Por
isso, a forma sempre supõe algo indistinto (uma multiplicidade de informações) do
que produz o que é distinto (a percepção ou o conceito). E, ao fazê-lo, ela
sempre cria objetos no sentido de torná-los cognoscíveis. O direito não é
forma, porque não é usado para tornar cognoscível o que não o é.
A
conclusão de que a filosofia de Kant inspirou as mais significativas renovações
da doutrina do direito natural, no nosso tempo, pode ser exemplificada, também,
pela obra de Miguel Reale. Ele lembra que[55]
criticistas, positivistas, pragmatistas
etc. surgiram e surgem no mundo jurídico, coincidindo no reconhecimento de que
não nos é dado conhecer senão o direito que se revela na História e indagar de
suas condições de possibilidade. Para os adeptos de uma solução inspirada em
Kant, tais condições são de caráter lógico-transcendental, como formas a
priori que tornam a experiência jurídica possível [...] Todos
[criticistas, positivistas, pragmatistas etc.] repelem, no entanto, a ideia de
um Direito Natural transcendente, anterior à positividade jurídica e superior a
ela, lógica e ontologicamente bastante a si mesma, embora possa ser aceita por
alguns – como é o caso dos neocriticistas e dos neorrealistas – a ideia de um
Direito Natural transcendental.
Para
melhor esclarecer o sentido do direito natural transcendental, a que se referiu
brevemente na passagem acima, Reale escreveu sua obra Direito Natural/
direito positivo[56]:
O Direito Natural é o grande envolvente
ou o horizonte histórico-cultural da experiência [jurídica], na medida em que
esta é pensada no seu todo e no seu fundamento. Note-se que não digo na medida
em que é conceituada, porque o conceito, como ponto culminante de um juízo
verificado ou verificável, não se coaduna com a ideia do Direito Natural,
empregando eu, neste passo, a distinção essencial de Kant entre conceito e
ideia.
Reale
ensina que o direito natural não é transcendente ou divino, mas transcendental,
no sentido que Kant atribuiu a essa palavra. Direito natural é uma ideia, não a
um conceito verificado ou verificável. Como ideia, ele não traduz algo real; é
um objeto ideal: o território da experiência jurídica possível.
Essa
ideia de direito natural será uma forma? A resposta haverá de ser sim, pois,
além das formas da sensibilidade (o espaço e o tempo) e das do intelecto (as
categorias), Kant se referiu às formas da razão (Deus, o mundo e a alma)
entendida como o intelecto nos momentos em que vai além da experiência possível[57].
Como
Stammler e del Vecchio atribuem ao conceito de direito e a outros conceitos a
função de formas a priori, Reale faz o mesmo com o direito natural,
que considera uma ideia ou forma da razão quando tende aos limites da
experiência jurídica possível. Contudo, acrítica de Goffredo alcança a sua
doutrina do modo como se estende às dos autores europeus. Como ele lembra, se o
conceito de direito não é uma forma, mas um produto das formas do intelecto, a
ideia de direito natural tampouco é uma forma da razão, mas um produto do
intelecto. Não é, por isso, possível conceber o direito natural como forma da
razão.
No
entanto, o próprio Kelsen parece entender o direito natural dessa maneira.
Veremos que, no Apêndiee à Teoria geral
do direito e do Estado, ele reconheceu que a ideia de direito natural é
inescapável ao aprofundamento do pensar jurídico. Todavia, isso não implica uma
concessão decisiva a favor do direito natural, visto que Kelsen, como neokantiano,
pensou o direito natural de modo gnoseológico-transcendental e não
metafísico-transcendente. Concebeu-o, por isso, como uma forma da razão ou, o
que é o mesmo, como uma ideia viciosa. Por esse motivo, nem mesmo Kelsen pode
ser isentado de utilização duvidosa da doutrina kantiana das formas do
pensamento.
Goffredo
sugere que conceitos como os que cita e que são insistentemente assimilados a formas a priori, na
verdade, indicam a matéria das representações jurídicas. Nesse passo, ele
emprega a palavra matéria no sentido aristotélico de substância ou relações
substanciais. Conclui que, se os conceitos de direito e direito natural não são
formas, devem indicar relações substanciais invariáveis num número enorme de
representações jurídicas: planos inteiros daquelas relações.
O
velho conceito aristotélico de matéria é aqui retomado para permitir o insight das
relações mencionadas. Goffredo considera o seu uso mais adequado que o da noção
kantiana de forma. Isso cria um problema ulterior e tão difícil de resolver
quanto o uso da forma pelos neokantianos. O que não prejudica a desconstrução
que Goffredo realiza desse último uso.
Desconstruir
é sempre mais fácil que construir conceitos, o que de modo nenhum desvaloriza
as desconstruções. A de Goffredo, que apresentei, é bastante valiosa. Tanto
mais quanto a voga do kantismo no meio jurídico foi vigorosa. A crítica de
Goffredo impede incidir em ilusões, ao mesmo tempo em que gera perguntas que
permanecem por responder.
CAPÍTULO 12: LEGALISMO E POSITIVISMO
É comum os estudiosos
reduzirem a multiplicidade de opiniões sobre os grandes temas da História a certo
número de correntes que incluem pontos de convergência entre os
pensadores. Embora essa redução facilite a compreensão das discussões
ocorridas, ainda assim, o número de escolas permanece elevado, o que não impede
que a perplexidade do observador ante tantas divergências se dissipe.
Para sanar esse
problema, é possível agrupar as próprias correntes de opinião em um número
ainda mais reduzido de posições básicas, que tenho denominado metavisões do
real. Metavisões são pontos nos quais convergem não apenas os pensadores
individualmente considerados, mas também as escolas de pensamento. É possível
propor que, no tocante à ideia básica de direito, as escolas de pensamento e
opinião congregam-se nos campos opostos do direito natural e do positivismo.
Norberto Bobbio
expressou convicção análoga a essa, muito antes de mim, no seu livro O
positivismo jurídico, em que lemos que[58]
toda
a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre
‘direito positivo’ e ’direito natural’, distinção que, quanto ao conteúdo
conceitual, já se encontra no pensamento grego e latino; o uso da expressão
‘direito positivo’ é, entretanto, relativamente recente, de vez que se encontra
apenas nos textos latinos medievais.
Porém, nem sempre as
duas posições filosóficas foram claramente formuladas ou gozaram de prestígio comparável.
Na Antiguidade e na Idade Média, os jurisconsultos e filósofos de maior nomeada
entenderam o direito pelo ângulo da lei natural mais frequentemente do que sob
o de qualquer das suas fontes históricas.
É o que encontramos nos
filósofos estoicos, em Cícero, nos jurisconsultos romanos, em filósofos patrísticos
como Lactâncio e Santo Agostinho e num extenso rol de autores medievais. Nenhum
desses pensadores que, juntos, lançaram as bases de compreensão do direito
antigo e medievo identificou o direito definitivamente com a palavra do rei, a
lei, o costume ou qualquer outra fonte particular de normas. Preferiram, ao contrário,
fazê-lo coincidir com algo presente na lei, no costume e nas outras fontes, mas
que não se reduz a elas. E, a esse objeto essencial do direito, os pensadores
citados atribuíram nomes como justo por natureza e recta ratio.
Pode parecer que
Aristóteles situou as duas concepções no mesmo patamar, ao reconhecer tanto o
justo por natureza como aquele que se estabelece por convenção. Contudo, a sua fundamentação
da justiça permite entender que considerava o justo por natureza mais
determinante para a configuração geral do direito do que aquele que se estabelece
por convenção. Na Ética a Nicômaco, lemos[59]:
Uma parte da justiça política é natural, e outra
parte, legal. Natural é a parte da justiça que tem a mesma força em todo lugar
e que não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal é aquela
que, originalmente, é considerada indiferente, mas, uma vez promulgada, deixa
de o ser, por exemplo o resgate de um prisioneiro por uma mina ou a oferta de
um bode e não de duas ovelhas em sacrifício.
Bobbio exagera, de certa
forma, a importância relativa do direito natural e do positivo, na Antiguidade,
no trecho em que afirma que[60]
na
época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de
fato o direito natural era concebido como ‘direito comum’ (koinós nómos conforme
o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma
dada civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito
particular prevalece sobre o geral (‘lex specialis derogat generali’), o
direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um
conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo – o
decreto de Creonte – prevalece sobre o direito natural – o ‘direito não
escrito’ posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela”.
Tenho dúvidas sobre esse
ponto da reflexão de Bobbio. Cícero não recolheu incorretamente o pensamento
grego, nem o modificou, ao definir o direito como “razão suprema, ínsita na
natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário”[61]. Sua
definição permite entender que o direito, nos autores gregos e romanos, não
coincide com suas fontes tomadas na integralidade delas, posto que não se pode
voltar contra a essência racional que as permeia. No caso de Antígona, o
decreto de Creonte citado por Bobbio não podia ser invocado contra o preceito
que manda prestar honra aos mortos, que informava todo o direito grego.
Portanto, ainda que reconhecessem dois sentidos básicos ao direito (natural e
positivo), os antigos não lhes atribuíam o mesmo peso.
Lex
specialis derogat generalis,
escreveu Bobbio, a fim de justificar a preponderância do direito positivo na
Antiguidade Clássica. Mas não há evidência de que o brocardo latino tenha
sido formulado ou o seu conteúdo, reconhecido, na época de Sófocles ou de
Aristóteles. Tampouco o conflito de Antígona ecoa a concepção
defendida por Bobbio de que o direito positivo prevalece sobre o natural,
quando entre eles se estabelece um conflito.
Nem mesmo em questões
políticas, está plenamente claro que os gregos simplificassem as coisas a esse
ponto. Por isso, o conteúdo do adágio citado por Bobbio só podia ser
nebulosamente concebido, em tempos tão recuados. Alexandre Correia e Gaetano
Sciascia esclarecem que, na fase áurea do Direito Romano, a palavra Lex indicava
“uma deliberação de vontade com efeitos obrigatórios. Falava-se neste sentido
em leges privatae, como cláusula de um contrato (lex
venditionis, lex comissória) e o estatuto de uma sociedade (lex collegii)”[62].
Corolário desse sentido
estrito de lex, que vigorou por tanto
tempo, era a virtual impossibilidade de idenficar uma lex generalis. Essa modalidade de lex só surgiu mais tarde. Portanto, nem para os romanos, o
afastamento da lei geral pela especial foi, durante a maior parte da sua História,
um epifenômeno do encontro de uma lei geral e outra especial.
Mesmo assim, a dicotomia
direito natural – direito positivo existiu, tanto entre os antigos gregos como entre
os romanos. Isso confirma que os dois modos de conceber o direito surgiram bastante
cedo e influenciaram a formação do pensamento jurídico.
Porém, se as menções do
direito natural são explícitas, na Antiguidade, o mesmo não se pode afirmar do
positivismo. A palavra positivismo não existiu naquele tempo. A própria
expressão lei positiva só se tornou usual a partir do século XII d. C. Por
isso, na Antiguidade, a adesão ao modo positivista de conceber o direito deve
ser encontrada sob outra roupagem verbal.
Penso que ela se
assinala pela identificação rígida e preferencial do direito com uma (ou mais)
de suas fontes empíricas. Isso ocorreu sempre que a palavra do rei, o costume,
a lei ou outra fonte histórica do direito foi considerada superior às demais.
Exemplos desse modo de
conceber o direito e seus fenômenos, na Antiguidade, são os regimes tirânicos,
nos quais os decretos dos reis revestiam-se de força absoluta, e os legalistas,
como o implantado em questões religiosas, em Israel, entre os séculos II a. C.
e I d. C. É possível apontar o farisaísmo como modelo do antigo legalismo
judaico.
Em síntese, embora seja
usual localizar a origem do positivismo jurídico entre os séculos XVIII e XIX,
a espécie de filosofia abrangida nessa identificação é tão-só a moderna, que
pressupõe o aparecimento da ciência positiva. Se alargarmos a concepção de
positivismo, de modo a abranger a metavisão que se distingue pelo
reconhecimento de validade rígida a uma ou mais fontes empíricas do direito,
seremos capazes de identificá-lo todas as vezes em que, na Antiguidade, um
regime tirânico ou legalista implantou-se. Nesse sentido alargado é que o
positivismo jurídico opõe-se ao jusnaturalismo como metavisão do direito.
À diferença do moderno,
o juspositivismo da Antiguidade não se colocava em oposição absoluta, mas apenas
relativa com o direito natural. Assim, todas as vezes em que uma fonte do
direito adquiriu enorme prestígio num povo culto, a tendência positivista se
fortaleceu, sem que a ideia de direito natural fosse afastada.
Só nos tempos modernos,
a concepção positivista radicalizou-se a ponto de exclulir o jusnaturalismo. Assim
concebido, o juspositivismo tornou-se[63]
uma
concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’
não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo
passa a ser considerado como direito em sentido próprio [...] A partir deste
momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo
mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é
aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo.
Essa pretensão não está
presente apenas nos autores continentais, como Bobbio e Kelsen, ou nos
positivistas ingleses, de Austin a Raz. Ela é compartilhada pela virtual
totalidade dos representantes atuais dessa corrente e é, por isso mesmo, a
novidade específica do positivismo moderno, aquilo que o diferencia das
modalidades anteriores dessa metavisão.
Geralmente, a pretensão
é fundada em motivos lógicos, como a crítica de David Hume à derivação de proposições
do dever-ser a partir do conhecimento do ser. De acordo com Hume, esses dois
conhecimentos são estruturalmente distintos, o que impede a derivação de um a
partir do outro.
A denúncia de Hume deu
origem à noção de “falácia naturalista”, à qual Bobbio se refere como o procedimento
consistente em “extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo
de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)”[64]. Todavia,
embora a acusação de falácia contenha uma ressalva importante, o direito
natural concebido como expressão da recta
ratio não se coloca no plano da natureza, mas no da razão. Por isso, não é
atingido pela denúncia de Hume, como procurarei demonstrar no texto sobre a
falácia naturalista.
O fato de as normas do direito
natural derivarem de juízos de fato é corolário das condições de possibilidade
da razão prática. Por isso, aplica-se tanto ao jusnaturalismo quanto ao
positivismo. Todas as normas básicas de ordenamentos jurídicos são concebidas a
partir da observação do que é. Esse é um dado incoercível. Aplica-se tanto a
ordenamentos concebidos do ponto de vista do direito natural quanto a
ordenamentos interpretados de modo positivista.
Aliás, é possível
inverter a acusação de falácia e imputar vícios lógicos ao menos ao positivismo
de inspiração kelseniana. Vimos que, assim como o jusnaturalismo foi fecundado
pela filosofia de Kant, o mesmo ocorreu com Kelsen e seus seguidores. Goffedo lembrou
que a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, repousa num equívoco lógico[65]:
[Para Kelsen], o dever-ser constitui uma categoria
formal para o conhecimento do material jurídico. Kelsen o declara com precisão,
quando afirma que essa categoria é gnosiológico-transcendental, no sentido kantiano,e
não metafísico-transcendente [...] Ora, para a Teoria Pura, o direito é, antes
de tudo, a regulamentação do próprio direito: o direito só é direito em virtude
de haver sido criado de acordo com a forma estabelecida pelo próprio direito.
Por exemplo: uma sentença é direito porque “contém uma norma individual, cuja
validade se funda numa lei, cuja validade, por sua vez, assenta na Constituição”.
Nosso autor prossegue:
A norma fundamental exerce, no sistema jurídico da
Escola de Viena [a que Kelsen pertenceu], papel análogo ao exercido pelas condições
transcendentes ou formas puras [especialmente as categorias], na filosofia de
Kant [...] Em que se fundou a Escola de Viena para atribuir à norma a qualidade
de categoria? A resposta é imediata: fundou-se na conclusão kantiana de que a
categoria produz o conhecimento. Para a referida Escola, a norma é o elemento
que confere significação jurídica aos fatos, e exerce, relativamente ao
conhecimento do direito, a função que as categorias kantianas exercem
relativamente ao conhecimento em geral.
"Não creio",
continua Goffredo[66],
que
a concessão de tal título à norma de direito exprima rigorosa fidelidade aos
princípios kantianos. A norma [fundamental] jamais poderia ser considerada uma
categoria, e isto pelo simples fato de que não constitui uma forma a
priori do entendimento, pois [...] só pode ser estabelecida a
posteriori, isto é, depois da verificação de um fato.
E exemplifica:
Se um jurista quiser fundamentar a validade de um
sistema normativo republicano, não escolherá uma norma fundamental como a
seguinte: ‘deves obedecer ao rei’. Esta proposição não tem nenhum valor para a
consecução do fim almejado. A hipótese originária [norma fundamental] que se há
de escolher, não depende, portanto, da livre vontade do jurista, uma vez que
tal hipótese só pode ser formulada em consideração ao conteúdo do sistema
normativo.
O que só pode ser
estabelecido após consulta ao conteúdo do sistema normativo não pode ser a
priori. Exatamente esse é o caso da norma fundamental de Kelsen. Abre-se,
assim, uma fratura que, afinal, imporá a condenação do inteiro edifício de uma
das mais prestigiosas correntes jusfilosóficas contemporâneas. E o fará sob a
pecha de absoluta falta de sustentação lógica.
Bobbio
funda o seu próprio positivismo em dados distintos daqueles de Kelsen. Funda-o
na superação da sociedade medieval pela moderna e, mais especificamente, em
exigências do fenômeno contemporâneo da estatização do direito. Esse fenômeno
assume forma visível sob o primado da lei, que teve lugar por toda parte,
até mesmo em países, como a Inglaterra, que adotam a tradição do common
Law. O próprio Bobbio registrou[1][67]:
Nem todos os países formularam a
codificação (resultado último e conclusivo da legislação), mas em todos os
países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes de direito. Isto
aconteceu também na Inglaterra.
A estatização do
direito é um corolário da complexificação da vida social. O advento das sociedades
de massas, associado à industrialização, ao êxodo rural e à hipertrofia urbana,
gerou crescimento demográfico e novas modalidades de relações produtivas e
comerciais, que precisaram ser disciplinadas por meio de normas jurídicas.
Para que essa disciplina não se desse de modo espontâneo, o que implicaria
dizer caótico, o Estado passou a concentrar o poder de criar e
sistematizar as normas jurídicas. Um dos mecanismos mais importantes pelos
quais ele o fez foi a codificação. Bobbio afirmou que o juspositivismo
contemporâneo ou positivismo jurídico propriamente dito foi a filosofia
que presidiu o manejo do direito nesse novo contexto social.
Cabe à ciência, e
somente a ela, explicar o direito produzido pelo Estado. Como a ciência
lida com objetos definidos, não é mais possível conceber o direito como
uma ratio subjacente às normas, que
cada um entende ou pode entender ao seu modo. Daí o reconhecimento do
direito positivo como único direito e a redução do direito natural à
condição de direito em sentido impróprio.
O positivismo moderno deixou um legado
benéfico, sob a forma da teoria do ordenamento jurídico desenvolvida pelos seus
teóricos, e uma herança egativa, consistente na crítica, às vezes imerecida,
porque extrema, ao direito natural. Essa crítica expôs os seus próprios
limites, ao propor a eliminação pura e simples do direito natural, em vez de se
combinar com ele, como o positivismo anterior havia feito.
Confiando eliminar um
erro, o positivismo excluiu a doutrina historicamente mais utilizada para
explicar o sentido do direito. E, para dizer o mínimo, nunca tornou claro por
que extirpar tal doutrina há de constituir o caminho mais indicado para levar
adiante a reflexão jusfilosófica.
Embora tenha
reinado quase inconteste, em certos foros, no século XX, o ideal de superação de
um pensamento tradicional por outro de índole científica, que o positivismo
jurídico conduziu à culminância, encontra-se em via de ser superado, após
o desentranhamento de suas tendências reducionistas.
Feliz ou infelizmente,
reducionismos como o juspositivista são comuns, durante as revoluções do
conhecimento. Kelsen é, às vezes, citado como o maior jurista do século XX.
Reconheço-lhe títulos e obras suficientes para isso. Kelsen foi, para o
Direito, o que foi Kant para a Filosofia. Mas o dito de Aristóteles ainda
ressoa: Amicus Plato... Platão é
amigo, mas maior amiga é a verdade. Não valerá, ainda, o dito, em tempos, como
o atual, em que a vanglória desafia tanto a amizade quanto a verdade?
AS ESCOLAS ANTIFORMALISTAS
Muitas
reviravoltas foram propostas na Filosofia. Poucas foram levadas a efeito com
sucesso, no território da Teoria do Conhecimento. Por ter ocorrido precisamente
nessa seara e pela dimensão dos desafios que arrostou para alcançar o justo sucesso
de que se cobriu, a revolução kantiana pode ser considerada, sem favor,
a maior da História da Gnoseologia, de Aristóteles aos nossos dias.
Claro que chamamos
revoluções apenas as que foram sólidas o bastante para resistir ao tempo. Ainda
que tenham sido revoluções sonhadas, como a de Kant, que se assemelha à
descoberta de um teorema e ao anúncio complexo de todos os seus corolários
lógicos.
Ao referir-me a
revoluções sonhadas, não é meu propósito apoucá-las, mas ressaltar que o que as
aludidas fermentações propuseram de realmente novo não incidiu, nem pode
incidir, decisivamente, no plano da História, mas apenas no das formulações
teóricas e cerebrinas. Foi esse o caso da Lógica Transcendental de Kant, cuja
aplicabilidade é tão menor que a da Lógica Formal de Aristóteles quanto requer
pressupostos especulativos dos quais a outra prescinde e, por prescindir, pode
ser tão suavemente aplicada no dia-a-dia. Mesmo assim, a revolução de Kant teve
tão monumentais implicações no Direito.
É que, desde que os
romanos lhe atribuíram a organização superior que até hoje o caracteriza, o
Direito sempre foi animado por um sopro de racionalismo, que se manifesta com
tanta clareza no desenvolvimento paralelo à Filosofia. Esse desenvolvimento
ajuda a entender por que as ideias de Kant exerceram, no território jurídico,
influência superior à observada em outras searas.
Isso é tão verdadeiro em
relação à doutrina do direito natural quanto no que concerne ao juspositivismo.
Ambas as metavisões foram fecundadas e repensadas em profundidadea partir do
kantismo, como tive oportunidade de observar nos capítulos anteriores.
Porém, após a prolongada
meditação das propostas das escolas inspiradas em Kant, disseminou-se entre os
juristas e os jusfilósofos um estado de profunda insatisfação tanto com o
direito natural com conteúdo variável quanto com o positivismo formalista de
inspiração kantiana, o pandectismo e a jurisprudência dos conceitos
desenvolvidos na Alemanha.
O foco dessa
insatisfação foram o formalismo e o conceptualismo exacerbados a que a
aplicação da filosofia de Kant conduz no terreno jurídico. Não é possível negar
que o apriorismo explícito das escolas jusnaturalistas e menos explícito, conquanto
real, do juspositivismo contribuíram para a rejeição dessas doutrinas, nos
centros de pensamento jurídico dos séculos XIX e XX. E que, para eliminar os
excessos tanto do apriorismo explícito quanto do implícito, formaram-se
naqueles centros, correntes que passaram a priorizar a relação do direito com a
realidade social em vez de conceitos a
priori.
A primeira dessas
correntes, a que iniciou propriamente a reação ao apriorismo, foi a Escola
Histórica do Direito. Embora tenha influenciado autores de outros países, como
o norteamericano Roscoe Pound e o inglês John Austin, foi na Alemanha que a
Escola Histórica lançou raízes mais profundas. Puchta, Savigny e Hugo,
além de Lassalle e dos hegelianos que desenvolveram trabalhos no campo do
Direito costumam ser considerados representantes ou pensadores influenciados
pelo historicismo jurídico.
Bobbio considera que a maior
contribuição da Escola Histórica para o Direito foi a ruptura com a ideia de
uma natureza humana imutável, aceite em praticamente todas as épocas. Sem negar
propriamente aquela natureza, a Escola Histórica mostrou o papel muito mais
relevante dos aspectos particulares de cada cultura para o direito. Savigny,
por exemplo, sustentou a inexistência de um direito único, que permanece igual
em todos os lugares e todos os tempos e o fez com base em fortes argumentos, o
que representou um golpe no jusnaturalismo de índole iluminista.
Porém, a querela
histórica entre o positivismo e o jusnaturalismo não foi o único território no
qual as doutrinas da Escola Histórica repercutiram. Sua influência foi
percebida com ainda maior intensidade na defesa do desenvolvimento científico
do direito contra as pretensões do movimento em prol da codificação, que
cresceu a ponto de se tornar dominante, em vários países, no século XIX.
A polêmica entre Savigny
e Thibaut sobre a codificação constitui um dos capítulos mais interessantes do
pensamento jurídico contemporâneo sobre esse ponto. Thibaut considerava a
legislação uma técnica mais eficiente para engendrar um direito uno e acessível
a todos do que o costume filtrado pelos tribunais. Savigny, por seu turno,
sustentava que os códigos tendem a petrificar o direito e que a ciência é mais
eficaz do que eles para reduzir a massa de normas jurídicas conflitantes à
unidade. Não é sem interesse que, ao menos na Alemanha, por influência da
Escola Histórica e, particularmente, de Savigny, a codificação só tenha vindo a
ocorrer no século XX.
Como já foi indicado, a
novidade visceral do historicismo jurídico foi a derivação do direito a partir
da realidade social e não de conceitos a
priori, o que significou umaruptura, ao mesmo tempo, com o jusnaturalismo e
com o juspositivismo kantiano e pandectista. Por isso também, como ocorre com
toda novidade visceral, quando as limitações e os equívocos da Escola Histórica
a exemplo da derivação do di-reito a partir do Volksgeist (espírito do povo) evidenciaram-se, sua
superação não se deu sem que o ideal básico dela fosse abraçado e reafirmado,
de maneiras diversas, por outras correntes.
Surgiram assim as
escolas sociológicas do direito, baseadas algumas em Comte, outras em Durkheim,
ainda outras em estudos históricos diversificados. No Brasil, Pontes de Miranda
inspirou-se em maior medida na obra de Comte, embora tenha desenvolvido sua
obra com base em desenvolvimentos científicos posteriores a esse filósofo, como
nos explica no seguinte trecho do seu Sistema de ciência positiva do Direito[68]:
Não escondemos, não diminuímos a nossa admiração pela
obra de Auguste Comte. Conhecemo-la, e não há menosprezá-la quando se conhece
tão sensata, tão sólida e tão fecunda construção sistemática. Sobretudo, a
parte metodológica. Se quiséssemos classificar a própria filosofia que há nesta
obra, não seria possível deixar de reputá-la positivista, porém neopositivista:
apenas incorporamos o Direito ao conjunto das ciências, o que, na época em que
escreveu, não podia fazê-lo o filósofo francês. Somos positivistas, como o foi
Ernst Mach, porque o positivismo independe de Auguste Comte; e, se não nos
aferramos a tudo que afirmou no tocante às ciências, é porque, posteriormente,
o método positivo conseguiu o que não tinha conseguido ao tempo em que
escreveu. Teorias, como a das geometrias não euclidianas e multidimensionais,
em vez de contradizerem, confirmam o fundamento empírico da matemática, tão
excelentemente exposto em Auguste Comte [...] Enormes foram os progredimentos
da Física e da Química depois de Auguste Comte. E as aplicações hodiernas do
cálculo das probabilidades à Física surpreenderam.
A fundamentação em
Durkheim foi realizada, entre outros, por León Duguit, que nos revelou o modo como
a obteve em esclarecedora passagem[69]:
Foi Durkheim, no seu belo livro Division du Travail
social (1893), que pela
primeira vez determinou a natureza íntima da solidariedade social e soube
revelar-lhe as duas formas essenciais: a solidariedade por similitude e a
solidariedade por divisão do trabalho; chama também à primeira solidariedade
mecânica, e à segunda solidariedade orgânica. Durkheim esgotou o assunto; e, se
podem criticar-se alguns pontos de pormenor no seu livro, as suas conclusões
gerais desafiam toda espécie de contestação.
Para Durkheim e Duguit,
quanto mais a sociedade se torna complexa[70],
os
homens tornam-se cada vez mais diferentes uns dos outros, diferentes pelas suas
aptidões, necessidades, aspirações; por conseguinte, as trocas de serviços
tornam-se mais frequentes e mais complexas, e por isso os laços de
solidariedade social se tornam mais fortes. Essa solidariedade faz surgir
costumes sociais, que não são um modo de criação do direito, mas um meio de
verificação. Não se deve ver [nos costumes], como a escola de Savigny e de
Puchta, uma criação da consciência do povo [...] mas, no fim de contas, uma
criação da consciência individual [...] O costume verifica-se se várias
maneiras. Nas relações privadas, aparece sobretudo nas convenções das partes,
principalmente nas cláusulas contratuais chamadas de estilo, e também nas
decisões jurisprudenciais que, certamente, não criam direito, mas constituem o
meio de verificação mais exato e mais preciso que existe para o costume.
Ihering, por outra senda,
utilizou a erudição histórica que o caracteriza para superar a jurisprudência
dos conceitos, da qual tinha sido um dos luminares, e explicar a sua adesão à Interessenjurisprudenz,
baseada na ideia muito mais concreta de interesse jurídico. Essa mudança de
orientação foi explicada e justificada, por Ihering, em A finalidade do
direito[71].
Em A luta pelo direito, o mesmo
autor explicou como o interesse dirige a formação do direito, por meio da
luta e não mediante o processo lento e gradual que a Escola Histórica havia
afirmado[72]:
O sentimento provocado pela ofensa ao direito do
indivíduo acha-se impregnado dum motivo egoístico, mas aquele outro sentimento,
provocado, pela violação de qualquer direito, tem sua origem exclusivamente na
ascendência moral que a ideia do direito exerce sobre a mente humana [...]
A verdade sempre é a verdade, mesmo que o sujeito do direito a encare e defenda
apenas sob o ângulo estreito do seu interesse pessoal. É o ódio e a vingança
que levam Shylock [personagem de O
mercador de Veneza, de Shakespeare] a ingressar em juízo com o objetivo de
cortar do corpo de Antônio a libra de carne que lhe pertence; mas, as palavras
que o poeta lhe põe na boca [...] são a linguagem da convicção firme e
inabalável de que o direito sempre há de ser direito; é a linguagem impetuosa e
patética do homem consciente de que a causa que defende envolve não apenas sua
pessoa, mas a própria lei. Segundo as palavras que Shakespeare o faz proferir,
‘a libra de carne que ora exijo/ Foi comprada a bom preço/ E por isso eu a
quero/ Que vossa lei se cubra de vergonha/ se ma recusardes!/ Pois então a lei
de Veneza nenhuma força terá.
Merece menção, ainda, a
escola que se tornou conhecida pelo nome de realismo jurídico. Essa escolas e
desenvolveu principalmente nos Estados Unidos, com Karl Llewellyn e Jerome
Frank, e na Escandinávia, com Axel Hägetström, Vilhelm Lunstedt, Karl
Olivecrona e Alf Ross. Bobbio separou o realismo do positivismo jurídico por
uma característica primordial[73]:
O positivismo jurídico, definindo o direito como um
conjunto de comandos emanados pelo soberano, introduz na definição o elemento
da validade, considerando portanto como normas jurídicas todas as normas
emanadas num determinado modo estabelecido pelo próprio ordenamento jurídico,
prescindindo do fato de estas normas serem ou não efetivamente aplicadas [...]
Por outro lado, para a escola [realista], "o direito é uma realidade
social, uma realidade de fato, e sua função é ser aplicado: logo, uma norma que
não seja aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é, consequentemente,
direito [...] Qual é o verdadeiro ordenamento jurídico? O do legislador, embora
não aplicado pelos juízes, ou o dos juízes, embora não seja conforme às normas
postas pelo legislador? Para os realistas, deve-se responder afirmativamente à
segunda alternativa: é direito verdadeiro somente aquele que é aplicado pelos
juízes.
O realismo não funda a sua
concepção de direito no costume, como fazem a Escola Histórica e, às vezes, as
sociológicas. Alf Ross, por exemplo, considera o costume a regra de vida dos
povos primitivos. Para ele, “o direito se desenvolve a partir de costumes da
tribo até ser gradualmente estabelecido por meio da prática dos tribunais e a
legislação. O direito criado dessa [última] maneira é chamado de direito
positivo”[74].
Por derivar o seu modo
de conceber o direito não do costume, mas da aplicação efetiva do direito, o
realismo circunscreve-se ao trabalho dos tribunais. É, por isso, um positivismo
menos conceptual, não baseado na lei e sim na jurisprudência. Mesmo assim, é, em
linhas gerais, um positivismo.
Cumpre mencionar, por
fim, a doutrina conhecida como institucionalismo jurídico, que também se funda
na realidade social, embora deposite a sua ênfase na
organização
social objetiva que realiza em seu interior a mais elevada situação de direito,
vale dizer, a que possui ao mesmo tempo a soberania do poder e a organização
constitucional do poder, com estatuto e autonomia própria[75].
“A primeira ideia básica
do direito”, para Hauriou, autor das palavras acima[76],
é a de
que o fundamento da lei moral não se acha nem na consciência do indivíduo, nem
na sociedade [...] A lei moral e o direito, segundo Hauriou, não podem
fundar-se no que é falível (como a consciência dos indivíduos) nem no que é
instável (como as formas da sociedade). Ela há de ter um fundamento permanente
e universal. Que fundamento é esse? Hauriou responde: a espécie humana.
Da definição de espécie
humana decorrem as normas do direito natural, que não é um direito de
sociedades, mas o da espécie[77]:
Hauriou observa que, se o direito natural não fosse
mais do que uma coleção de preceitos de justiça, não seria nem sequer concebido,
porque o conceito do direito natural não se distinguiria do próprio conceito de
justiça. Logo, o direito natural, não sendo uma simples coleção de preceitos de
justiça, há de ser um corpo de direito, compreendendo uma certa ordem
social. Que ordem será esta? Para achar a resposta desta pergunta,
Hauriou recomenda que se considere a crença no direito natural como um fato
histórico. Em que épocas essa crença existiu? A concepção de um direito natural
apareceu, na filosofia grega, pouco antes da conquista romana; passou para a
jurisprudência romana, onde reinou até o fim do segundo século de nossa era.
Durante esses séculos, a civilização antiga apresentou um duplo caráter: por um
lado, todas as nações do mundo grecorromano estavam em democracia; de outro lado,
as relações do comércio jurídico tornaram possível o sincretismo de um direito
comum das nações. Tal período, pois, foi uma época de democracia igualitária e
de jus gentium. Essas
circunstâncias, que caracterizama referida era histórica, acham-se novamente reunidas
quando a concepção do direito natural, depois de haver adormecido durante a
Idade Média, re-tornou a ser viva no décimo-sétimo e no décimo-oitavo século.
Dessas premissas
Goffredo extrai que[78]
o
direito natural já se acha, em parte, realizado. Dele existem dois esboços
muito trabalhados: o direito clássico romano, que foi qualificado de razão escrita,
e o direito comum contemporâneo. As instituições jurídicas que se encontrarem
em ambos esses esboços terão as maiores probabilidades de conterem muito de
direito natural.
Vemos que o
institucionalismo de Hauriou conduz à reafirmação do direito natural pela via
histórica e sociológica. Estranho projeto comum o que liga as escolas
antiformalistas que, da negação do direito natural pelo historicismo, é a ele
reconduzido pelas mãos do institucionalismo jurídico. Veremos, no próximo capítulo,
que a análise de Hauriou é confirmada pela adesão cada vez mais frequente e bem
fundamentada ao jusnaturalismo, no tempo atual.
JUSNATURALISMO CONCRETO
Não é possível negar que
a Filosofia do Direito se tenha inclinado, nos últimos tempos, à negação da
doutrina do direito natural. Às vezes à negação total dela, outras vezes à
negação parcial ou à redução do território sobre o qual o direito natural exerceu
a sua influência. Tampouco é possível rejeitar que parte considerável das
críticas ao direito natural formuladas em tempos recentes seja procedente ou, ao
menos, justificada.
No entanto, o recuo do
direito natural imposto por essas tendências não se fez acompanhar do
avanço proporcional do positivismo jurídico, a não ser durante cerca de um
século. Assim, um espaço se abriu, entre os séculos XIX e XX, que veio a ser
ocupado por teorias não caracterizadas como jusnaturalistas ou
positivistas. Em sua História
da Filosofia do Direito, Guido Fassò denominou antiformalistas essas
teorias.
Não convém conceber as
teorias antiformalistas como uma terceira via ou como uma negação simultânea do
jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Se esses modos fundamentais de conceber
o direito, em seu sentido mais amplo, constituem metateorias jurídicas, como
temos defendido, as escolas antiformalistas aproximam-se necessariamente mais de
uma delas. E, se não são casos puros de uma ou de outra metateoria, elas devem
ser vistas como concepções mistas em que ora predomina uma, ora outra das
metavisões jurídicas.
Era, porém, necessário
que a força das concepções predominantes na História do Direito se impusesse,
mais cedo ou mais tarde, às tentativas de concentração do pensamento na zona
cinzenta entre elas, uma vez que, quanto mais tempo se despende em tal região,
mais o sentimento avulta de perda dos referenciais primários do jurídico.
Assim, do final da Segunda Guerra até hoje, observamos senão uma nova
polarização entre o direito natural e o positivismo, ao menos uma retomada
deles.
Tratarei, neste capítulo, da
retomada do direito natural, realizada ou inspirada em autores como Robert
Alexy. Ao menos em parte, ela foi consequência dos resultados a que a reflexão
juspositivista conduziu. Kelsen, por exemplo, concluiu que, ao ser
integralmente desenvolvida, a teoria positivista do direito, em vez de eliminar
a noção de direito natural, a implica. É o que encontramos no Apêndice à Teoria
geral do direito e do Estado publicada por aquele autor[79]:
A norma fundamental foi aqui
descrita como a pressuposição essencial de qualquer cognição jurídica
positivista. Caso se deseje considerá-la como elemento de uma doutrina de
Direito natural, a despeito de sua renúncia a qualquer elemento de justiça
material, pouca objeção se pode fazer; na verdade, tão pouca objeção quanto se
pode opor caso se queira chamar metafísicas as categorias da filosofia
transcendental de Kant por não serem elas dados da experiência, mas condições
da experiência [...] A teoria da norma fundamental pode ser considerada uma
doutrina de Direito natural em conformidade com a lógica transcendental de
Kant.
Sabemos que a teoria da
norma fundamental não é só inspirada em Kant, mas também desenvolvida em termos
kantianos. Kelsen não o dissimula absolutamente. A passagem acima o reafirma ao
caracterizar a norma fundamental como pressuposição essencial de toda cognição jurídica
de cunho positivista. Essa dívida com Kant tem, porém, as suas consequências,
visto que o filósofo alemão denominou metafísico o conhecimento de conceitos e
juízos a priori. Como
neokantiano, Kelsen não nega, antes reconhece tal corolário, o que torna o seu
positivismo um direito natural peculiar e baseado na lógica transcendental de
Kant.
Vejamos os passos do
raciocínio pelo qual Kelsen caracteriza a teoria da norma fundamental como uma
espécie de direito natural. Como Bobbio explica[80], a
norma fundamental ou
norma-base
tem no sistema jurídico [...] uma função diferente daquela que tem a norma-base
no sistema moral (ou no caso do direito natural). Não se trata da norma de cujo
conteúdo todas as outras normas são deduzidas, mas da norma que cria a suprema
fonte do direito, isto é, a que autoriza ou legitima o supremo poder existente
num dado ordenamento a produzir normas jurídicas.
No entanto, a admissão do caráter jusnaturalista da norma fundamental por Kelsen leva-nos muito além desse ponto. Chega a constituir uma autêntica confissão da consistência do direito natural enquanto conceito transcendental. Como a confissão se deve à racionalidade da teoria da norma fundamental, do ponto de vista da Lógica Transcendental, o mesmo critério pode ser usado para fundamentar o caráter lógico do ordenamento jurídico como um todo.
Se a norma fundamental é
racional, do ponto de vista da sua correlação com as fontes do ordenamento,
pelo mesmo motivo devemos concluir que as relações entre ela e os princípios e
regras do ordenamento é racional. E se Kelsen reconhece que a teoria da norma
fundamental é jus-naturalista, a que conclusão haveremos de chegar a respeito
do ordenamento construído com base na mesma Lógica?
Isso conduz à conclusão
de que o ordenamento jurídico pode ser visto como um sistema de direito
natural, visto que as relações de seus elementos constituintes (princípios e
regras) com a norma fundamental se estabelece de acordo com a Lógica
Transcendental.
Em
outras palavras, se a norma
fundamental determina a configuração do sistema e é, ela própria, um conceito
de direito natural, o sistema como um todo o é. Essa é a conclusão mais
consequente que se pode extrair da admissão de Kelsen. Com ela, a discussão das
relações entre o direito natural e o positivo se estabiliza de modo extraordinário,
uma vez que o direito positivo passa a ser visto como um direito natural. Nesse
sentido, a afirmação de Bobbio de que não há direito (em sentido próprio) a não
ser positivo se resolve nesta outra: não há direito a não ser natural.
Por outro lado, se o
positivismo jurídico, como Kelsen e Bobbio o compreendem, “estuda o direito
real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele
natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo”[81], sua
pretensão torna-se impossível na medida em que o direito real se torna objeto
de disputas, ao mesmo tempo em que permanece sujeito a uma lógica bem
determinada. Nesse caso, a solução de conflitos não pode ser alcançada com a
mesma objetividade com que estabelecemos se o Monte Everest está localizado no
Nepal. De sorte que a subjetividade que o pensamento jurídico comporta bastará
para que ele inclua, sempre e ao mesmo tempo, juízos de fato e de valor.
Diante disso, não é
melhor admitirmos que o direito natural continua vivo e capaz de cumprir seu
papel de noção fundante do pensamento jurídico? O próprio argumento da
irrelevância fundado no caráter abstrato do direito natural perde sentido, na medida
em que reconhecemos que as decisões dos casos jurídicos concretos pautam-se
inevita-velmente nos parâmetros abstratos da ratio
scripta e não se
constituiriam sem eles. Enfim, o direito concreto e prático pode colocar-se em
consonância ou em dissonância com a ratio scripta, mas é sempre relativo
a ela.
Quando um teórico tão
proeminente quanto Ronald Dworkin sugere um retorno aos princípios de cada
precedente judicial e de cada lei, no fundo ele propõe uma explicitação lógica
mais perfeita das normas gerais a que as particulares se prendem. Os princípios
são gêneros aos quais as normas particulares se reportam enquanto
espécies, pois, como Bobbio explica[82],
de um
conjunto de regras que disciplinam uma certa matéria, o jurista abstrai
indutivamente uma norma geral não formulada pelo legislador, mas da qual as
normas singulares expressamente estabelecidas são apenas aplicações
particulares: tal norma geral é precisamente aquilo que chamamos de um
princípio do ordenamento jurídico.
É verdade que, com essas
palavras, Bobbio se refere aos princípios gerais do direito que o legislador
determina devem ser utilizados para preencher as lacunas de normas
particulares. Verdade é também que os usos dos princípios a que Bobbio e
Dworkin se referem são diferentes. O primeiro pretende que eles sejam
utilizados para suprir lacunas do ordenamento. O outro quer que eles sejam
empregados nesse e também em outros casos. No entanto, para ambos, os
princípios jurídicos são aproximadamente o mesmo. São normas gerais inferidas a
partir de outras particulares.
Dworkin refere-se aos princípios como direitos anteriores à própria legislação,portanto como algo semelhante, embora não idêntico ao direito natural: "A teoria dominante [positivista e utilitarista] é falha porque rejeita a ideia de que os indivíduos podem ter direitos contra o Estado, anteriores aos direitos criados através da legislação"[1][83]. E provê um exemplo desses direitos anteriores, por meio da “derivação de direitos particulares do direito abstrato à consideração e ao respeito, considerados como fundamentais e axiomáticos”[2][84].
Embora Dworkin não seja um
jusnaturalista, sua afirmação de direitos anteriores à legislação o aproxima,
de certo modo, do marco do direito natural. Não que aqueles direitos sejam entendidos
como universais e imutáveis. Dworkin não os vê dessa maneira. Mas tampouco é
necessário que todo direito natural seja consideado universal e imutável.
Portanto, se as regras
do ordenamento se prendem a princípios e não apenas umas às outras, é possível entender
perfeitamente que é, por meio desses princípios, que as normas se articulam em
sistema. Pode ocorrer de o sistema apresentar antinomias, colisões entre
normas, mas nem por isso ele deixa de ser sistema, uma vez que as antinomias tendem
a ser resolvidas a partir do conhecimento dos princípios jurídicos. E tão
consistente afigura-se a concepção do ordenamento assentado em princípios que o
caráter natural destes, como expressões da ratio do sistema, comunica-se às regras que
se fundam neles.
Não foi por outro motivo
que sistemas jurídicos inteiros, como o direito romano, o canônico e o
ordenamento fundado pelo Código de Napoleão, chegaram a ser concebidos como
direito natural. Para os romanos, por exemplo, suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) e neminem
laedere (a ninguém lesar)
eram princípios gerais que serviam de base para uma multiplicidade de outras
normas. Claro que muitos outros princípios eram reconhecidos ao lado desses, de
maneira que o direito romano pode ser concebido como um complexo de princípios
e regras. O mesmo pode ser afirmado dos direitos canônico e napoleônico.
Digno de realce é que,
em suas respectivas épocas, esses sistemas foram reconhecidos como expressões
do direito natural por constituírem aplicações da recta ratio. Como sistemas
objetivos não são abstratos e sim concretos, devemos concluir que nem todo
direito natural é abstrato. Há um direito natural concreto.
Wilson Batalha escreveu
que[85]
o
Direito natural com conteúdo concreto, nada mais é do que aspiração, tendência
à reforma ou justificação conservadora do Direito existente, elevando-se à
categoria de absoluto, universal, supraempírico o que é contingente, relativo,
histórico, cultural, empírico.
Não me refiro a essa
espécie de direito natural concreto. Se o direito romano, o canônico e o
napoleônico foram todos contingentes, a atribuição do caráter de direito
natural a eles não os faz universais. Pelo contrário, implica apenas o
reconhecimento de que certas realidades contingentes podem ser naturais, porque
consistentes com princípios adotados pelas instituições sociais de uma época e
reconhecidos espontaneamente pela maioria das pessoas.
No fundo, a polêmica
acerca da sobrevivência do direito natural como categoria jurídica tem por
contexto a multiplicação exponencial das leis, nas sociedades emergentes da
Revolução Industrial. Essa multiplicação tornou indispensável a sistematização
do direito para que o ordenamento jurídico não se convertesse numa barafunda
impenetrável e ininteligível.
A alguns estudiosos do
fenômeno da sistematização pareceu que ela se deve a um procedimento formal, já
que umas normas, consideradas superiores, são usadas como instrumento de
controle de outras, tidas como inferiores. Sob esse ponto de vista, as normas
formam um sistema porque, quando colidem, as que foram criadas por um poder
subalterno são afastadas pelas que se originaram de um poder superior, independentemente
do conteúdo delas. Assim, por exemplo, o conflito entre uma norma
constitucional e outra ordinária é resolvido a favor da constitucional, porque
o poder constituinte é tido como superior ao legislativo. Por basear-se em
razões formais e não relacionadas ao conteúdo das normas, a valorização do
critério hierárquico de sistematização pareceu constituir um forte argumento em
prol do positivismo jurídico.
Porém, a consciência do
papel dos princípios acabou por arrastar os juristas a uma conclusão diversa da
que é sugerida pelo critério hierárquico, visto que os princípios,
diferentemente das regras, quase nunca são criados por um sujeito determinado,
como a Assembleia Constituinte ou o Legislativo, mas decorrem ao mesmo tempo do
trabalho desses corpos e de outros agentes. Por serem produzidos de modo
descentralizado por múltiplos sujeitos, sob influências mutáveis, os princípios
são expressões privilegiadas da ratio do ordenamento, portanto elementos
constituintes do conteúdo dele.
Assim, se por um lado o
caráter sistemático do ordenamento advém do modo como as normas são criadas,
por outro lado ele é assegurado por princípios inerentes ao sistema. E se o
modo de criação das normas permite conceber o sistema sem recorrer à ideia de
direito natural, por outro lado, a imanência dos princípios exige que ele seja
pensado em termos jusnaturalistas. Mais do que isso, a consistência e a
solidariedade entre as partes do sistema sugerem que ele todo e não apenas seu
núcleo abstrato constitui expressão do direito natural.
Embora
emergente dos debates históricos, essa concepção dilatada do direito
natural não corresponde a qualquer das versões do direito natural que
triunfaram na História, as quais se distinguem pelas características da
universalidade e da imutabilidade. O direito natural aqui defendido não é nem
universal, nem imutável. Tampouco é a forma com conteúdo variável de Stammler e
del Vecchio, a qual é no fundo invariável. Trata-se de um direito mutável e
particular, por isso concreto, mas também amplo, por incluir princípios e
regras. Seja-me permitido denominar integral essa modalidade de direito
natural, uma vez que sua forma normal é a do sistema de princípios e regras
mutáveis, porquanto sujeitos às disputas das causas e às incertezas da
interpretação.
[1]COULANGES, Fustel de. A
cidade antiga – estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e
de Roma. São Paulo: Edipro, 1998. p. 96.
[2]
Idem.
[3]
Idem. p. 97.
[4]
Idem. p. 196.
[5]
Idem. p. 215.
[6]
Idem. p. 266.
[7]FASSÒ, Guido. História
da Filosofia do Direito. Madri: Pirâmide, 1978. Vol. 1. p. 96.
[8]CÍCERO, Marco Túlio. De
legibus. I, 16-17.
[9]
Idem. p. II, 4, 10.
[10]CÍCERO, Marco Túlio. De
republica. III, 22, 33.
[12]PLATÃO.A república. In Great books of the western world. 2ª
ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia Britannica. Vol. 6, p. 310-324.
[13]ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Book I, 9. In Great books of the western world. 2ª ed., 4ª impressão, Chicago:
Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 345.
[14]AGAMBEN, Giorgio. O
sacramento da linguagem – Arqueologia do juramento. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
[15] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na História – lições
introdutórias. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 39-40.
[16]
DURKHEIM, Émile. As formas
elementares da vida religiosa. 3ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
p. 19.
[17] Idem. p. 22.
[18]
ALVES, José Carlos Moreira. Direito
Romano. 13ª ed., 6ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 69.
[19]POUND, Roscoe. Philosophy of law. Michigan:
Yale University Press, 1982. p. 4.
[20]Ec
1:2-7.
[21]Ec
3: 14-15.
[22]Ec
2:12.
[23]Ec
7:29.
[24]HIPONA, Agostinho de. O
livre-arbítrio. I, 6. São Paulo: Paulus, 1995. p. 39.
[25]Idem. p. 41
[26]LIMA, Alceu Amoroso de. Introdução
ao direito moderno. 3ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1978. p. 81.
[27]AQUINO, Tomás de. Suma teológica. I, XCV, 2. In Great books of the western world.
2ª ed., 4ª impressão, Chicago: Encyclopaedia
Britannica. Vol. 18, p. 227-228.
[28]
Idem. I, XCV, 4. p. 229.
[29]POUND, Roscoe. Justiça
conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. p. 5.
[30]Alcorão
, II, 35-37.
[31]
Idem. III, 59.
[32]Apud LAGARDE, G. de. Rechercehs sur l’esprit politique de la
Réforme. p. 151-157.
[33]Apud AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Parte II, Cap. II,
Quest. 85, Art. 2.
[34]
LUTERO, Martinho. Da autoridade secular,
até que ponto se lhe deve obediência. In
Martinho Lutero – obras selecionadas.
São Leopoldo: Sinodal/Concórdia, 1996. Vol. 6. p. 113.
[35]
Idem.
[36]
Boa parte da discussão sobre o desprezo de Lutero pela Lógica é pouco
justificada. O que Lutero condena, repetidamente, é a confiança na razão decaída
e, portanto, no poder da Lógica em que ela se estriba. Porém, a importância da
Lógica nunca é negada por ele, como verificamos no célebre debate com outros
reformadores sobre a eucaristia: "Eu não sabia que Ecolampádio [reformador
suíço, companheiro de Zuínglio] é um lógico ou dialético tão miseravelmente
pobre, a ponto de trocar a substância pela qualidade e de fazer conclusões do
acidente para a substância. No caso de Zuínglio, isso não admira, pois ele é um
doutor autodidata; esses costumam dar nisso. Em verdade, quem quer debater e
não conhece os elementos rudimentares da lógica, que pode conseguir ele de bom?
Ecolampádio me irrita tanto com isso que doravante não espero nenhuma prova de
inteligência dele. Pois, ainda que não seja necessário que conheça as sutilezas
e sofismas inúteis dos sofistas [os escolásticos tardios, na linguagem peculiar
de Lutero], deveria conhecer pelo menos os rudimentos, isso é, a dialética
simples, como as regas da dedução, as formas dos silogismos, as espécies de argumentação,
etc." (LUTERO, Martinho. Da ceia de
Cristo – Confissão. In Obras selecionadas. São Leopoldo:
Sinodal/Concórdia, 1993. Vol. 4, p. 303)
[37]
Idem. p. 113-114.
[38]
Lutero refere-se a Carlos, o Negro, duque da Borgonha de 1467 a 1477. A
história que conta, portanto, realmente ocorreu, embora nem todos os pormenores
narrativos precisem ser aceitos.
[39]TELLES JÚNIOR, Goffredo. A
criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 237.
[40]
Idem.
[41]DEL VECCHIO, Giorgio. Lições
de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. p. 107-108.
[42]
Idem. p. 109.
[43]TELLES
JÚNIOR, Goffredo. Ob. cit. Vol. I, p. 208.
[44]
Idem. p. 219.
[45]STAMMLER, Rudolph. Economia
y derecho. Madri: Editorial Reus, 1929. p. 6-7.
[46]
Idem. p. 8.
[47] DEL VECCHIO, Giorgio. Lições
de Filosofia do Direito. 2ª ed., Coimbra: Arménio Amado, 1951. p. 195-196.
[48]
Idem. p. 234.
[49] TELLES JÚNIOR, Goffredo. A
criação do direito. São Paulo, 1954. Vol. I, p. 202.
[50]
Idem. p. 206.
[51]
Idem. p. 203.
[52]
Idem. p. 204.
[53]
Idem.
[54]
Idem. p. 208.
[55]REALE, Miguel. Filosofia
do direito. 14ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991. p. 170-171.
[56]REALE, Miguel. Direito
Natural/ direito positivo. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 9
[57]REALE, Giovanni e ANTISERI,
Dario. História da Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1990. Vol.
2, p. 898.
[58]
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1999.
p. 15.
[59]
ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Book V, Chapter 7. 2ª ed.,
Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 382.
[60]
BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 25.
[61] CÍCERO, Marco Túlio. De legibus.
I, 16-17.
[62]
CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano.
4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1961. Vol. I, p. 23.
[63]BOBBIO,
Norberto. Ob. cit. p. 26.
[64]Idem. p. 177.
[65]TELLES
JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. p. 214,
216.
[66]
Idem. p. 230.
[67]BOBBIO,
Norberto. Ob. cit. p. 120.
[68]MIRANDA,
Pontes de. Sistema de ciência
positiva do direito. 2ª ed., Campinas: Bookseller, 2005. Vol. 2. p. 19-20.
[69]
DUGUIT, León. Fundamentos do
direito. Campinas: LZN, 2003. p. 17.
[70]
Idem. p. 55-56.
[71]IHERING,
Rudolf von. A finalidade do direito. Campinas: Bookseller, 2002. 2 tomos.
[72]
IHERING, Rudolf von. A luta
pelo direito. 4ª ed., Rio de Janeiro: Rio,1983. p. 73,77-78.
[73]BOBBIO,
Norberto. O positivismo
jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 142-144.
[74]ROSS,
Alf. Direito e justiça.
São Paulo: Edipro, 2000. p. 124-125.
[75]HAURIOU,
Maurice. Princípios de Direito
Público. 2ª ed., Paris, 1916. p. 111.
[76]TELLES
JÚNIOR, Goffredo. A criação do
direito. São Paulo, 1954. Vol. II, p. 443.
[77]
Idem. p. 454-455.
[78]
Idem. p. 456.
[79]
KELSEN, Hans. Teoria geral do
direito e do Estado. 3ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2000.
p. 625.
[80]
BOBBIO, Norberto. O
positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
1995. p. 201.
[81]Idem. p. 136.
[82]
Idem. p. 220.
[83]DWORKIN, Ronald. Levando
os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. XIII.
[84]
Idem. p. XX.
[85]
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova
Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 234.