domingo, 29 de março de 2015

Filosofia e Direito (14): Jusnaturalismo Concreto

Não é possível negar que a Filosofia do Direito se tenha inclinado, nos últimos tempos, à negação da doutrina do direito natural. Não por certo a uma negação total, a não ser em casos isolados, mas à negação parcial ou à redução do território sobre o qual essa antiga doutrina jurídica exerceu a sua influência. Tampouco é possível rejeitar que parte considerável das críticas ao direito natural formuladas recentemente seja procedente ou, pelo menos, justificada.
No entanto, o recuo do direito natural imposto por essas tendências não se fez acompanhar pelo avanço proporcional do positivismo jurídico, a não ser durante cerca de um século. Assim, um espaço se abriu, entre os séculos XIX e XX, que veio a ser ocupado por teorias não caracterizadas como jusnaturalistas ou positivistas.  Em sua História da Filosofia do Direito em três volumes, Guido Fassò chamou antiformalistas essas teorias.
Não convém conceber as teorias antiformalistas como uma terceira via ou como uma negação simultânea do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Se esses dois grandes modos de pensar o direito, em seu sentido mais amplo, são metateorias jurídicas, como temos defendido, as escolas antiformalistas aproximam-se necessariamente mais de uma delas. E, se não são casos puros de uma ou de outra metateoria, elas devem ser vistas como concepções mistas em que ora predomina uma, ora outra das metavisões jurídicas.
Era, porém, necessário que a força das concepções predominantes na História do Direito se impusesse, mais cedo ou mais tarde, às tentativas de concentração do pensamento na zona cinzenta entre elas, uma vez que, quanto mais tempo se despende em tal região, mais o sentimento avulta de perda dos referenciais primários do jurídico. Assim, do final da 2ª Guerra até hoje, observamos senão uma nova polarização entre o direito natural e o positivismo, ao menos uma retomada deles.
Tratarei, neste texto, da retomada do direito natural. Curioso é que, em alguns autores, essa retomada foi inspirada em resultados da reflexão juspositivista como a de Kelsen, que concluiu que, ao ser integralmente desenvolvida, a teoria positivista, em vez de eliminar a noção de direito natural, a implica. É o que encontramos no Apêndice à Teoria geral do direito e do Estado publicada por aquele autor:
"A norma fundamental foi aqui descrita como a pressuposição essencial de qualquer cognição jurídica positivista. Caso se deseje considerá-la como elemento de uma doutrina de Direito natural, a despeito de sua renúncia a qualquer elemento de justiça material, pouca objeção se pode fazer; na verdade, tão pouca objeção quanto se pode opor caso se queira chamar metafísicas as categorias da filosofia transcendental de Kant por não serem elas dados da experiência, mas condições da experiência [...] A teoria da norma fundamental pode ser considerada uma doutrina de Direito natural em conformidade com a lógica transcendental de Kant” (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 3ª ed., 2ª tiragem, São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 625).
Sabemos que a teoria da norma fundamental não é só inspirada em Kant, mas também desenvolvida em termos acentuadamente kantianos. Kelsen não o dissimula em momento algum. A passagem acima, por exemplo, o reafirma ao caracterizar a norma fundamental como pressuposição essencial de toda cognição jurídica de cunho positivista. Essa dívida com Kant tem, porém, as suas consequências, visto que o filósofo alemão denominou metafísico o conhecimento de conceitos e juízos a priori. Como neokantiano, Kelsen não nega, antes reconhece tal corolário, o que torna o seu positivismo um direito natural peculiaríssimo e baseado na lógica transcendental de Kant.
Vejamos os passos do raciocínio pelo qual Kelsen caracteriza a teoria da norma fundamental como uma espécie de direito natural. Como Bobbio explica, a norma fundamental ou “norma-base tem no sistema jurídico [...] uma função diferente daquela que tem a norma-base no sistema moral (ou no caso do direito natural). Não se trata da norma de cujo conteúdo todas as outras normas são deduzidas, mas da norma que cria a suprema fonte do direito, isto é, a que autoriza ou legitima o supremo poder existente num dado ordenamento a produzir normas jurídicas” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 201).
No entanto, a admissão do caráter jusnaturalista da norma fundamental por Kelsen leva-nos muito além desse ponto. Chega a constituir uma autêntica confissão da consistência e da quase inevitabilidade da doutrina do direito natural, por um dos maiores positivistas. Como a confissão se deve à racionalidade da teoria da norma fundamental, do ponto de vista da Lógica Transcendental, o mesmo critério pode ser usado para fundamentar o caráter lógico do ordenamento jurídico como um todo. Se a norma fundamental é perfeitamente racional, do ponto de vista de sua correlação com as fontes do ordenamento, pelo mesmo motivo devemos concluir que as relações entre ela e os princípios e regras é racional. E se Kelsen reconhece que a teoria da norma fundamental é jusnaturalista, a que conclusão devemos chegar a respeito do ordenamento construído com base na mesma Lógica?
Essas considerações conduzem-nos à conclusão de que o ordenamento jurídico inteiro e não apenas uma parte dele pode ser visto como um sistema de direito natural, uma vez que as relações de seus elementos constituintes (princípios e regras) com a norma fundamental se estabelece de acordo com a Lógica Transcendental.
Em outras palavras, se a norma fundamental determina a configuração do sistema e é um conceito de direito natural, o sistema como um todo também o é. É como se a norma fundamental comunicasse algo do seu caráter ao sistema. Essa é a conclusão mais consequente que se pode extrair da admissão de Kelsen. Com ela, a discussão das relações entre o direito natural e o positivo se estabiliza de maneira extraordinária, uma vez que o último passa a ser visto como uma modalidade do primeiro. Assim, a afirmação de Bobbio de que não há direito (em sentido próprio) a não ser positivo se resolve nesta outra: não há direito a não ser natural. 
Por outro lado, se o positivismo jurídico, como Kelsen e Bobbio o compreendem, “estuda o direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo” (idem. p. 136), sua pretensão torna-se impossível na medida em que o direito real se torna objeto de disputas, ao mesmo tempo em que permanece sujeito a uma lógica bem determinada. Nesse caso, a solução de conflitos não pode ser alcançada com a mesma objetividade com que estabelecemos se a Cordilheira do Himalaia está ou não localizada na América do Sul. O tanto de subjetividade que o pensamento jurídico comporta basta, pois, para que ele inclua, sempre e ao mesmo tempo, juízos de fato e de valor.
Diante disso, não é melhor admitirmos que o direito natural continua vivo e capaz de cumprir seu papel de noção fundante do pensamento jurídico? O próprio argumento da irrelevância fundado no caráter abstrato do direito natural perde sentido, na medida em que reconhecemos que as decisões dos casos jurídicos concretos pautam-se inevitavelmente nos parâmetros abstratos da ratio scripta e não se constituiriam sem eles. Perde sentido também ao nos darmos conta de que o direito positivo inteiro pode ser visto como uma espécie de direito natural.
Quando um teórico tão proeminente quanto Ronald Dworkin sugere um retorno aos princípios de cada precedente judicial e de cada lei, no fundo ele propõe uma explicitação lógica mais perfeita das normas gerais a que as particulares se prendem. Os princípios são gêneros aos quais as normas particulares se reportam enquanto espécies, pois, como Bobbio explica, “de um conjunto de regras que disciplinam uma certa matéria, o jurista abstrai indutivamente uma norma geral não formulada pelo legislador, mas da qual as normas singulares expressamente estabelecidas são apenas aplicações particulares: tal norma geral é precisamente aquilo que chamamos de um princípio do ordenamento jurídico” (idem. p. 220).
É verdade que, com essas palavras, Bobbio se refere aos princípios gerais do direito que o legislador determina devem ser utilizados para preencher as lacunas de normas particulares. Verdade é também que os usos dos princípios a que Bobbio e Dworkin se referem são diferentes. O primeiro pretende que eles sejam utilizados para suprir lacunas do ordenamento. O outro quer que eles sejam empregados para esse e outros fins. No entanto, para ambos, os princípios jurídicos são aproximadamente o mesmo. São normas gerais inferidas a partir de outras particulares.
Dworkin refere-se aos princípios como direitos anteriores à própria legislação, portanto como algo semelhante, embora não idêntico ao direito natural: "A teoria dominante [positivista e utilitarista] é falha porque rejeita a ideia de que os indivíduos podem ter direitos contra o Estado, anteriores aos direitos criados através da legislação" (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. XIII). E provê um exemplo desses direitos anteriores por meio da "derivação de direitos particulares do direito abstrato à consideração e ao respeito, considerados como fundamentais e axiomáticos" (idem. p. XX). 
Embora Dworkin não seja um jusnaturalista típico, sua afirmação de direitos anteriores à legislação o aproxima do marco do direito natural. Não que aqueles direitos sejam entendidos como universais e imutáveis. Dworkin não os vê dessa maneira. Mas tampouco me parece necessário que todo direito natural seja universal e imutável. Ao contrário, parece-me necessário que isso não se dê. 
De qualquer modo, se as regras do ordenamento se prendem a princípios e não apenas umas às outras, é possível entender perfeitamente que, por meio deles, é que as normas se articulam em sistema. Pode ocorrer de o sistema apresentar antinomias, colisões entre normas, mas nem por isso ele deixa de ser um sistema, posto que as antinomias tendem a ser resolvidas a partir do conhecimento dos princípios. E tão consistente afigura-se a concepção do ordenamento assentado em princípios que o caráter natural destes, como expressões da ratio do sistema, comunica-se às regras que se fundam neles.
Não foi por outro motivo que sistemas jurídicos inteiros, como o direito romano, o canônico e o ordenamento fundado pelo Código de Napoleão, chegaram a ser concebidos como direito natural. Para os romanos, por exemplo, suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu) e neminem laedere (a ninguém lesar) eram princípios gerais que serviam de base para uma multiplicidade de outras normas. Claro que muitos outros princípios eram reconhecidos ao lado desses, de maneira que o direito romano pode ser concebido como um complexo de princípios e regras. O mesmo pode ser afirmado dos direitos canônico e napoleônico. Como o direito romano, o canônico e o napoleônico foram sistemas concretos e não são abstratos, devemos concluir que nem todo direito natural é abstrato. Há um direito natural concreto.
Wilson Batalha escreveu que o “Direito natural com conteúdo concreto, nada mais é do que aspiração, tendência à reforma ou justificação conservadora do Direito existente, elevando-se à categoria de absoluto, universal, supra-empírico o que é contingente, relativo, histórico, cultural, empírico” (BATALHA, Wilson de Souza Campos. Nova Introdução ao Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 234). Não me refiro a essa espécie de direito natural concreto.  Se o direito romano, o canônico e o napoleônico foram todos contingentes, a atribuição do caráter de direito natural a eles não os faz universais. Pelo contrário, implicou apenas o reconhecimento de que certas realidades contingentes podem ser naturais, porque consistentes com princípios adotados pelas instituições sociais de uma época e reconhecidos espontaneamente pela maioria das pessoas.
No fundo, a polêmica acerca da sobrevivência do direito natural como categoria jurídica tem por contexto a multiplicação exponencial das leis, nas sociedades emergentes da Revolução Industrial. Essa multiplicação tornou indispensável a sistematização do direito para que o ordenamento jurídico não se convertesse numa barafunda impenetrável e ininteligível.
A alguns estudiosos do fenômeno da sistematização pareceu que ela se deve a um procedimento formal, já que umas normas, consideradas superiores, são utilizadas como instrumento de controle de outras, tidas como inferiores. Sob esse ponto de vista, as normas formam um sistema porque, quando colidem, as que foram criadas por um poder subalterno são afastadas pelas que se originaram de um poder superior, independentemente do conteúdo delas. Assim, por exemplo, o conflito entre uma norma constitucional e outra ordinária é resolvido a favor da constitucional, porque o poder constituinte é tido como superior ao legislativo. Por basear-se em razões formais e não relacionadas ao conteúdo das normas, a valorização do critério hierárquico de sistematização parece fornecer um forte argumento em prol do positivismo jurídico.

Porém, a consciência do papel dos princípios acabou por arrastar os juristas a uma conclusão diversa da que é sugerida pelo critério hierárquico, já que os princípios, diferentemente de regras, quase nunca são criados por um sujeito determinado, como a Assembleia Constituinte ou o Legislativo, mas decorrem ao mesmo tempo do trabalho desses corpos e de outros agentes. Por serem produzidos de modo descentralizado por múltiplos sujeitos, sob influências mutáveis, os princípios são expressões privilegiadas da ratio do ordenamento, portanto elementos constituintes do conteúdo dele. Assim é que Bobbio e Dworkin os concebem.
Se por um lado o caráter sistemático do ordenamento advém do modo como as normas são criadas, por outro lado ele é assegurado por princípios inerentes ao sistema. E se o modo de criação das normas permite conceber o sistema sem recorrer à ideia de direito natural, por outro lado, a imanência dos princípios exige que ele seja pensado em termos jusnaturalistas ou, pelo menos, de modo consistente com o marco do direito natural. Mais do que isso, a consistência e a solidariedade entre as partes do sistema sugerem que ele todo e não apenas seu núcleo abstrato constitui expressão do direito natural.
Resta tratar de um último ponto da concepção renovada do direito natural a que me refiro. Trata-se de um ponto de importância incomensurável. O direito natural como ratio legis é tão coinato com o pensamento jurídico elaborado que não parece possível modificar a sua estrutura essencial. Assim como o direito é o direito, da Antiguidade aos nossos tempos, o mesmo sucede com o direito natural, categoria por demais fundamental para ser revolucionada.
Por isso, quando as correntes jurídicas que partem de Kant e, depois dele, de Stammler e del Vecchio propõem uma nova fundamentação lógica para o direito natural, que passa a repousar na razão pura e não na ratio das instituições jurídicas, o resultado só pode ser um desencaminhamento em relação ao que o direito natural sempre foi e – gostaríamos de enfatizar – não pode deixar de ser. Não é possível revolucionar a estrutura conceitual do jus naturale, que tem de continuar a ser hoje o que sempre foi ou ser abandonado como erro, se uma falha naquela estrutura tiver sido ou puder ser detectada.
Apesar da extensão das críticas dirigidas ao direito natural, nos últimos 150 anos, não me parece que uma falha com essas características tenha sido jamais encontrada. O direito natural como ratio de todo inconfundível com os primeiros princípios da razão prática, permanece tão válido hoje quanto sempre foi. É o que pretendemos mostrar nesta obra.
Contudo, embora o núcleo da concepção de direito natural não tenha sido alterado, não é possível negar que os desafios contemporâneos exigem que o uso do conceito seja bastante flexibilizado. A ratio legis tem algo de universal e imutável que os teóricos do direito natural de todos os séculos sempre ressaltaram com razão. Porém, esse núcleo do conceito de que tratamos. O uso dele não precisa, nem deve ser tão universal quanto seu núcleo. Pelo contrário, deve ser tão alterado e particularizado quanto as circunstâncias mutáveis do tempo o exijam.
A adaptação do direito natural à necessidade dos tempos faz-se, sem dúvida, pela flexibilização dos princípios que o exprimem, mas também pelas regras mediante as quais ele é aplicado. Seja-me permitido denominar concreta essa modalidade de direito natural cuja forma usual é a do sistema de princípios flexíveis e regras mutáveis conforme a necessidade dos tempos e as incertezas da interpretação.