sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Filosofia e Direito (12): Legalismo e Positivismo

Hans Kelsen
É comum os estudiosos reduzirem a multiplicidade de opiniões sobre os grandes temas da História a certo número de correntes que expressam pontos de convergência entre os pensadores. Embora essa redução facilite a compreensão das discussões ocorridas, ainda assim, o número de escolas permanece elevado, o que impede que a perplexidade do observador ante tanta variação e divergência se dissipe. 
Para sanar esse problema de cognição, é possível agrupar as próprias correntes de opinião em um número ainda mais reduzido de posições básicas, que tenho denominado metavisões do real. Metavisões são pontos nos quais convergem não apenas os pensadores individualmente considerados, mas também as escolas de pensamento. É possível propor que, no tocante à ideia básica de direito, as escolas de pensamento e opinião congregam-se nos campos fundamentais do direito natural e do positivismo.
Norberto Bobbio
Norberto Bobbio expressou convicção análoga, muito antes de mim, em seu livro O positivismo jurídico, em que lemos que “toda a tradição do pensamento jurídico ocidental é dominada pela distinção entre ‘direito positivo’ e ’direito natural’, distinção que, quanto ao conteúdo conceitual, já se encontra no pensamento grego e latino; o uso da expressão ‘direito positivo’ é, entretanto, relativamente recente, de vez que se encontra apenas nos textos latinos medievais” (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1999. p. 15). 
O mesmo se pode afirmar de Alexy, para quem "o problema central no debate acerca do conceito de direito é a relação entre lei e moral. Em que pese a discussão sobre esses temas estender-se por mais de dois milênios, continuam a existir só duas posições básicas e concorrentes sobre eles: a posição positivista e a não positivista" (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. New York: Oxford, 2002. p. 3).
Devo advertir, no entanto, que nem sempre essas duas posições filosóficas foram claramente formuladas ou gozaram de prestígio comparável. Na Antiguidade e na Idade Média, os jurisconsultos e filósofos do direito de maior nomeada entenderam o direito pelo ângulo da lei natural mais frequentemente do que sob o ponto de vista de qualquer das suas fontes históricas. É o que encontramos nos filósofos estoicos, em Cícero, nos jurisconsultos romanos, em filósofos patrísticos como Lactâncio e Santo Agostinho e num extenso rol de autores medievais. Nenhum desses pensadores que, juntos, lançaram as bases de compreensão do direito antigo e medieval identificou o direito definitivamente com a palavra do rei, a lei, o costume ou qualquer outra fonte particular de normas. Preferiram, ao contrário, fazê-lo coincidir com algo presente na lei, no costume e nas outras fontes, mas que não se reduz a elas. E, a esse objeto essencial do direito, os pensadores citados atribuíram nomes como justo por natureza e recta ratio.
Pode parecer que Aristóteles colocou as duas concepções no mesmo patamar, ao reconhecer tanto o justo por natureza como aquele que se estabelece por convenção. Porém, sua explanação da justiça permite entender que não as situava no mesmo plano, antes propunha que o justo por natureza é mais determinante para a configuração geral do direito que o que se constitui por convenção. Na Ética a Nicômaco, lemos:
"Uma parte da justiça política é natural, e outra parte, legal. Natural é a parte da justiça que tem a mesma força em todo lugar e que não existe em razão de as pessoas pensarem isso ou aquilo; legal é aquela que, originalmente, é considerada indiferente, mas, uma vez promulgada, deixa de o ser, por exemplo o resgate de um prisioneiro por uma mina ou a oferta de um bode e não de duas ovelhas em sacrifício” (ARISTÓTELES. Nicomachean Ethics. Book V, Chapter 7. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, p. 382).
Bobbio parece exagerar a importância relativa do direito natural e do positivo, na Antiguidade, no trecho em que afirma que “na época clássica o direito natural não era considerado superior ao positivo: de fato o direito natural era concebido como ‘direito comum’ (koinós nómos conforme o designa Aristóteles) e o positivo como direito especial ou particular de uma dada civitas; assim, baseando-se no princípio pelo qual o direito particular prevalece sobre o geral (‘lex specialis derogat generali’), o direito positivo prevalecia sobre o natural sempre que entre ambos ocorresse um conflito (basta lembrar o caso da Antígona, em que o direito positivo – o decreto de Creonte – prevalece sobre o direito natural – o ‘direito não escrito’ posto pelos próprios deuses, a quem a protagonista da tragédia apela” (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 25).
Tenho dúvidas sobre esse ponto da reflexão de Bobbio. Cícero não recolheu incorretamente o pensamento grego, nem o modificou, ao definir o direito como “razão suprema, ínsita na natureza, que manda o que se deve fazer e proíbe o contrário” (CÍCERO, Marco Túlio. De legibus. I, 16-17). Sua definição permite ver que o direito, nos autores gregos e romanos, não coincide com suas fontes na sua integralidade, posto que não se pode voltar contra a essência racional que as permeia. No caso de Antígona, o decreto de Creonte citado por Bobbio não se podia voltar contra o preceito que manda prestar honra aos mortos, pois esse princípio informava todo o direito grego. Portanto, ainda que reconhecessem os dois sentidos básicos do direito (natural e positivo), os antigos não lhes atribuíam o mesmo peso.
Lex specialis derogat generalis, acrescenta Bobbio, a fim de justificar a preponderância do direito positivo. Mas não há evidência de que o brocardo latino tenha sido formulado ou o seu conteúdo, reconhecido na época de Sófocles ou de Aristóteles. Tampouco o conflito de Antígona ecoa a concepção defendida por Bobbio de que o direito positivo prevalece sobre o natural, quando entre eles se estabelece um conflito. Nem mesmo em questões políticas, está claro que os gregos simplificassem as coisas a esse ponto. Por isso, o conteúdo do adágio romano citado por Bobbio só podia ser nebulosamente concebido, em tempos tão recuados. Mesmo na fase áurea do Direito Romano, a palavra lex indicava “uma deliberação de vontade com efeitos obrigatórios. Fala-se neste sentido em leges privatae, como cláusula de um contrato (lex venditionis, lex comissória), o estatuto de uma sociedade (lex collegii)” (CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1961. Vol. I, p. 23). Nem para os próprios romanos, portanto, a derrogação da lei geral pela especial era, na maior parte das vezes, um epifenômeno do encontro entre o que chamamos leis, mas do encontro de cláusulas.
Mesmo assim, a dicotomia direito natural – direito positivo há de ser reconhecida como fato, tanto entre os gregos como entre os romanos. O que confirma que os dois modos de conceber o direito surgiram muito cedo e influenciaram toda a formação do pensamento jurídico.
É possível fornecer uma explicação sucinta das duas concepções básicas do direito. O ponto essencial da recta ratio (reta razão) consiste em não se confundir com as fontes históricas por meio das quais o direito se manifesta, mas as anteceder. A concepção positivista, por sua vez, identifica o direito inteiramente com suas fontes ou, ao menos, com uma delas. Sob essa concepção, uma ou mais fontes do direito (a palavra do rei, o costume, a lei etc.) são consideradas irrestritamente jurídicas. Por isso, não podem ser afastadas por outras fontes ou por métodos lógicos.
Assim, o positivismo é identificado não apenas com as suas versões modernas, mas também com a tendência muito mais antiga de emprestar validade rígida ou absoluta a uma ou mais fontes do direito e a conceber a própria justiça a partir delas. Exemplos dessa concepção jurídica, na Antiguidade, são os regimes tirânicos, nos quais os decretos dos reis tinham força absoluta, e os legalistas, como aquele implantado em Israel entre os séculos II a. C. e I d. C., no tocante às questões religiosas. É possível apontar como modelo do legalismo judaico antigo o indivíduo fariseu.
Característica da concepção positivista da Antiguidade era não se colocar em oposição absoluta, mas apenas relativa com o direito natural. Praticamente todas as vezes em que uma fonte do direito adquiriu enorme prestígio num povo culto, a tendência positivista se fortaleceu, sem que a ideia de direito natural fosse afastada.
Só nos tempos modernos, a concepção positivista radicalizou-se a ponto de elidir o jusnaturalismo. Bobbio observa que “o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando ‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio [...] A partir deste momento o acréscimo do adjetivo ‘positivo’ ao termo ‘direito’ torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 26).
Essa pretensão não está presente apenas em autores continentais, como Bobbio e Kelsen, e nos positivistas ingleses, de Austin a Raz. Ela é, portanto, a novidade específica do positivismo atual, aquilo que o diferencia das outras modalidades dessa metavisão. Geralmente se funda em motivos lógicos, como a crítica de David Hume à derivação de proposições do dever-ser a partir do conhecimento do ser. De acordo com Hume, esses dois conhecimentos são estruturalmente distintos, o que impede a derivação de um a partir do outro.
A denúncia de Hume deu origem à noção de "falácia naturalista", à qual Bobbio se refere como o procedimento consistente em "extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica num juízo de valor)" (idem. p. 177). Todavia, embora a acusação de falácia contenha uma ressalva importante, fico a considerar se não é, ela própria, falaciosa, uma vez que a recta ratio em que o direito natural se funda não o situa no plano da natureza, mas no da razão. O fato de as normas desse direito serem derivadas de juízos de fato nada mais é do que corolário de uma lei necessária que rege o funcionamento da razão humana e, portanto, se aplica tanto ao jusnaturalismo como ao positivismo. Ou as normas básicas do ordenamento jurídico não são concebidas e postas a partir da observação do que é?
Não só isso. É possível inverter a situação e tecer restrições lógicas à parte do positivismo contemporâneo que adota a doutrina de Kelsen. Vimos que, assim como o jusnaturalismo foi fecundado pela filosofia de Kant, o mesmo aconteceu com Kelsen e seus seguidores. Porém, Goffedo afirmou que a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, parece repousar num equívoco lógico apontado nos seguintes termos:
“[Para Kelsen], o dever-ser constitui uma categoria formal para o conhecimento do material jurídico. Kelsen o declara com precisão, quando afirma que essa categoria é gnosiológico-transcendental, no sentido kantiano, e não metafísico-transcendente [...] Ora, para a Teoria Pura, o direito é, antes de tudo, a regulamentação do próprio direito: o direito só é direito em virtude de haver sido criado de acordo com a forma estabelecida pelo próprio direito. Por exemplo: uma sentença é direito porque ‘contém uma norma individual, cuja validade se funda numa lei, cuja validade, por sua vez, assenta na Constituição’” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito. São Paulo, 1954. pp. 214, 216).
Nosso autor prossegue: “A norma fundamental exerce, no sistema jurídico da Escola de Viena [a que Kelsen pertenceu], papel análogo ao exercido pelas condições transcendentes ou formas puras [especialmente as categorias], na filosofia de Kant". “Em que se fundou a Escola de Viena para atribuir à norma a qualidade de categoria? A resposta é imediata: fundou-se na conclusão kantiana de que a categoria produz o conhecimento. Para a referida Escola, a norma é o elemento que confere significação jurídica aos fatos, e exerce, relativamente ao conhecimento do direito, a função que as categorias kantianas exercem relativamente ao conhecimento em geral"
"Não creio", continua Goffredo, "que a concessão de tal título à norma de direito exprima rigorosa fidelidade aos princípios kantianos. A norma [fundamental] jamais poderia ser considerada uma categoria, e isto pelo simples fato de que não constitui uma forma a priori do entendimento, pois [...] só pode ser estabelecida a posteriori, isto é, depois da verificação de um fato” (idem. p. 230). E exemplifica: “Se um jurista quiser fundamentar a validade de um sistema normativo republicano, não escolherá uma norma fundamental como a seguinte: ‘deves obedecer ao rei’. Esta proposição não tem nenhum valor para a consecução do fim almejado. A hipótese originária [norma fundamental] que se há de escolher, não depende, portanto, da livre vontade do jurista, uma vez que tal hipótese só pode ser formulada em consideração ao conteúdo do sistema normativo”.
O que só pode ser estabelecido após consulta ao conteúdo do sistema normativo não pode ser a priori. É o caso da norma fundamental de Kelsen. Sofre, assim, fraturas o edifício de uma das mais prestigiosas correntes positivistas contemporâneas, e o faz por falta de sustentação lógica.
Bobbio funda o seu próprio positivismo em outros dados. Funda-o na superação da sociedade medieval pela moderna e, mais especificamente, no fenômeno tipicamente contemporâneo da estatização do direito. Esse fenômeno torna-se visível sob a forma do primado da lei, que teve lugar até mesmo em países, como a Inglaterra, que adotam a tradição do common law: "Nem todos os países formularam a codificação (resultado último e conclusivo da legislação), mas em todos os países ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes de direito. Isto aconteceu também na Inglaterra" (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 120). 
A estatização do direito pode ser entendida como corolário da complexificação da vida social. O advento das sociedades de massas, associado à industrialização e à hipertrofia urbana, aumentou o volume e fez surgir novas modalidades de relações sociais, que tiveram de ser disciplinadas por meio de normas jurídicas. Para que essa disciplina não se desse de modo espontâneo, o que significaria dizer caótico, o Estado passou a concentrar o poder de criar e sistematizar as normas jurídicas. Um dos mecanismos mais importantes pelos quais ele o fez foi a codificação. Bobbio sugere que o juspositivismo contemporâneo ou positivismo jurídico propriamente dito é a filosofia que preside o manejo do direito nesse novo contexto social.  
Cabe à ciência, e somente a ela, explicar o direito produzido pelo Estado. Como a ciência lida com objetos definidos e invariáveis de sujeito para sujeito, não é mais possível conceber o direito como uma ratio subjacente às normas, que cada um entende algo diferentemente. Daí o reconhecimento do direito positivo como único direito e a redução do direito natural à condição de direito em sentido impróprio.
O ideal de superação de um pensamento tradicional por outro científico, que o positivismo jurídico conduziu à culminância, na seara do Direito, põe-se, ele próprio, em via de ser superado. Longo e quase inconteste foi o reinado dessa espécie de positivismo durante o século XX. Nas academias de Direito, ele chegou a ser a corrente dominante, até ser amplamente contestado e, em vários lugares, deposto nas últimas décadas. 
Mesmo assim, o normativismo deixou um legado positivo, sob a forma da teoria do ordenamento jurídico desenvolvida pelos seus teóricos, e uma herança negativa, consistente na crítica do direito natural. Essa crítica revelou os seus próprios limites, ao propor a eliminação pura e simples do direito natural, em vez de se combinar com ele, como tinha ocorrido com o antijusnaturalismo anterior. Confiando eliminar um erro, o positivismo excluiu, simplesmente, a doutrina mais utilizada da História para explicar o sentido do direito. E, para dizer o mínimo, nunca tornou claro por que podá-lo pode constituir o caminho mais indicado para levar adiante a reflexão jusfilosófica.
Infelizmente, erros como esses são tão comuns, nos momentos de revolução no conhecimento, quanto pouco reconhecidos. Kelsen é, às vezes, citado como o maior jurista do século XX. Reconheço que tem títulos e obra para isso. Foi, talvez, tão grande para o Direito quanto Kant para a Filosofia. Mas o dito de Aristóteles ainda ressoa: Amicus Plato... Platão é amigo, mas maior amiga é a verdade. Não valerá, ainda, o dito, em tempos, como o atual, em que a vanglória desafiou a verdade?