É natural que uma carta como Romanos, dirigida aos cristãos da capital do Império durante o primeiro século, se referisse ao poder secular do Estado e suas autoridades, em algum momento. É o que acontece nos versículos 1 a 7 do capítulo 13, nos quais Paulo não recomenda a oposição dos cristãos àquele poder, mas a sua submissão a ele.
A recomendação está permeada do sentimento não faccioso, nem preconceituoso, mas de santidade e separação com o qual a fé cristã veio ao mundo. Na iminência de ser preso, Jesus declarou: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18:36).
Declaração fortíssima de uma separação radical! Mas mesmo nela, está implícita a ausência de conflito entre o reino que é e o que não é deste mundo. Haveria conflito entre esses reinos se ambos fossem deste mundo: então, os cristãos teriam de pelejar com os que detêm o poder, no mundo, a fim de arrebatá-lo à força. Mas não é esse o caso, portanto o conflito secular está afastado.
A declaração de Jesus tampouco exprime uma espécie de conservadorismo político, já que não se traduz em posição política alguma. O que não tem relação com o poder terreno não pode ser conservador ou progressista. É diferente da política mundana, sem lhe ser favorável ou contrário. Por outro lado, a declaração de Jesus não implica que a fé cristã não possa inspirar posições políticas. Sem dúvida pode, mas não como a sua finalidade principal e sim como reflexo de seus princípios celestiais na ordem terrena.
Contudo, se a declaração de Jesus deixa claro que o seu reino é atemporal, quais devem ser as suas relações com a ordem temporal? Essa a pergunta que devia interessar sobremaneira aos cristãos romanos do primeiro século. Paulo não se interessa por respondê-la de modo completo, já que não era esse o objetivo da sua epístola. Mas propõe o que se pode considerar o núcleo de uma resposta ao escrever: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores, porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”.
Se o reino de Cristo e o deste mundo constituem realidades diversas e inconfundíveis, por outro lado, ambos têm relação com Deus, pois foram por ele instituídos. E a origem da autoridade política em Deus, afirmada por Paulo, não implica que apenas ela seja divina, mas também o reino que ela governa. Se a autoridade é ministro do bem (13:4) e governa o mundo, segue-se que o mundo é bom.
O ensinamento cristão sobre o mundo não o apresenta como uma ordem descarada, na qual o mal impera sem limites e explicitamente. Assim como ocorre na igreja (embora em outra medida), as pessoas do mundo querem fazer o bem e não conseguem. Seu fracasso testemunha a vitória do elemento maligno no interior do mundo, mas demonstra ao mesmo tempo a operação de uma força oposta a ele. Essa força é a da lei secular, que atua por meio da autoridade.
Por isso, o mundo jaz no maligno (1 Jo 5:19), na medida em que a lei é sobrepujada pelo pecado. Ele não jaz no maligno sem que uma força benigna se oponha em certa medida a isso. Pelo menos, essa não é a descrição bíblica do mundo. É antes uma caricatura dela. O mundo, como a Bíblia o apresenta, foi criado por Deus e é um terreno no qual se fere a luta mortal entre a lei e o pecado. Enquanto a autoridade secular prevalece e consegue impor-lhe a sua ordem, o mundo permanece bom, pois a autoridade é ministro de Deus para o bem: “Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem” (13:3-4). Contudo, ali onde a autoridade não chega ou onde ela chega, mas não prevalece, o pecado tem a palma.
Paulo refere-se à autoridade que porta a espada. Apresenta-a com uma face severa e até mesmo cruel. A autoridade com a espada é a própria expressão da lei em transe, na sua luta contra o mal. Paulo não discute a justiça dos mandamentos romanos. Toma-a como um dado. Entende o direito romano como algo bom, assim como havia afirmado que a lei de Deus é santa, e o mandamento, santo, justo e bom (7:12). Chega a se referir à luta pela aplicação desse direito como o movimento febril do guerreiro que traz a espada, no campo de combate. Assim como o guerreiro trava uma luta de vida ou morte, a autoridade brande a sua espada, em transe contra as hostes do mal.
Observada por certo ângulo, a luta da autoridade poderia ser descrita como um esforço contra os que querem arrebatar-lhe o poder, o cetro, a coroa.Poderia ser descrita como pura e simples luta pelo poder e de fato o é. Mas Paulo vê nela algo mais. Vê na espada que se move por ordem do magistrado um sentido moral transcendente, uma relação com a ordem divina do mundo. A autoridade pune o mal, vinga a injustiça e, ao fazê-lo, se porta como ministro de Deus. Portanto, Deus é quem pune e vinga no seu lugar: “Se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal” (13:4).
Alguém duvida de que os atos da longa lista que Paulo apresenta em 1:31 são maus? Alguém pensa que ele não considera tais atos passíveis de punição pelas autoridades romanas? E não devemos extrair disso que ele vê o castigo imposto pelas autoridades aos praticantes daqueles atos como manifestação da ira de Deus? Se Deus vinga e castiga, não é isso, afinal, a sua ira?
Paulo parece pressupor algo assim, ao ordenar: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores” (13:1); e ao acrescentar: “É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência” (13:5). Se a consciência recomenda a submissão à autoridade, é porque ela é boa, não má.
Já se propôs que, por ser ministro de Deus, a autoridade deve ser obedecida em todas as situações: quando acerta e também quando erra. Essa conclusão é fruto de uma leitura desastrada de textos como Romanos 13:1-7. Há dois ensinamentos implícitos nesses versículos. O primeiro afirma que a autoridade é constituída por Deus. O outro informa que a autoridade constituída se faz ministro de Deus, quando pratica o bem e pune o mal. Não podemos operar a confusão dessas duas coisas. O fato de a autoridade ser dada de cima não a faz, imediatamente, ministro de Deus. É necessário algo mais que o poder para que a autoridade se torne um representante de Deus na Terra. Esse algo é a conformidade dela com a vontade divina: é o fato de praticar o bem e punir o mal.
Os versículos 1 a 7 foram escritos muito mais para nos mostrar o que é ser ministro de Deus do que para descrever a autoridade. A função de ministro depende da prática do bem e do combate ao mal. Alguém imagina Paulo a afirmar que a autoridade “é ministro de Deus, vingador, para castigar quem pratica o bem”? De modo nenhum, pois isso se opõe à intenção manifesta do texto, que é retratar a transformação da autoridade em ministro de Deus ao praticar o bem e punir o mal.
À autoridade que pratica o mal não se aplica Romanos 13:1-7. Aplica-se Oseias 8:4: “Estabeleceram reis, mas não da minha parte; constituíram príncipes, mas eu não o soube”. Se a situação mencionada nesse versículo está afirmada nas Escrituras, deve corresponder a uma real possibilidade. E notem que ela não se refere a um caso raro ou isolado. Não se refere sequer a um caso, mas a muitos, pois diz no plural: “estabeleceram reis”. E repete: “Constituíram príncipes”. Em outras palavras, o versículo mostra que não se levantaram um ou dois reis, nem um ou dois príncipes, mas toda uma sequência de reis e príncipes, sem que Deus tivesse a menor relação com eles. Isso nos leva a crer que a autoridade iníqua é, em princípio, tão possível quanto a boa autoridade.
Por que Pedro afirmou aos líderes judeus, que lhe ordenaram não falar de Jesus Cristo, “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5:29)? Não foi porque eles não representavam Deus? E por que Paulo escreveu que “nada podemos contra a verdade, senão a favor da própria verdade” (2 Co 13:8), a não ser porque a autoridade não se baseia no poder que alguém enfeixa nas mãos, mas na sujeição desse poder à vontade de Deus?
A autoridade ser ministro de Deus significa que Deus age por meio dela. Mas, se ela continua a ser ministro quando faz o mal, temos de concluir que Deus faz o mal por meio dela, já que o ministro é sempre um canal. Esse é, porém, o absurdo elevado à suprema perfeição! Deus jamais faz o mal. E, por uma razão tão simples quanto essa, o líder não representa Deus quando pratica o mal. Uma coisa é ser autoridade, outra é a autoridade ser ministro de Deus.
É, a meu ver, duvidoso o ensino propagado por Watchman Nee de que a submissão à autoridade é devida mesmo quando ela erra. Em Autoridade espiritual, lemos: "E se a autoridade estiver errada? A resposta é: Se Deus teve coragem de confiar sua autoridade aos homens, então precisamos de coragem para obedecer. Se a pessoa com autoridade está certa ou errada, não nos diz respeito, uma vez que é diretamente responsável para com Deus. Os obedientes só precisam obedecer; o Senhor não nos considerará responsáveis por qualquer erro devido à obediência" (NEE, Watchman. Autoridade espiritual. 3ª impressão, São Paulo: Vida, 1987. p. 85).
Nesse trecho, Nee sustenta que a autoridade (espiritual e secular) deve ser obedecida mesmo quando erra. Mas, em outros lugares, dá um passo atrás e reconhece que, quando o erro avulta além de certa medida, a obediência pode ou mesmo tem de ser dispensada. Porém, nesses casos extremos, a suspensão da obediência não autoriza a da submissão. Mesmo sem obedecer, deve-se continuar a ser submisso à autoridade. É o que Nee ensina.
Admito que a submissão possa ser concebida sem a obediência. Porém, o fato de podermos concebê-las separadamente no pensamento não quer dizer que seja fácil separá-las na vida prática, sem incorrer em incoerência. Qual é o sentido prático de uma submissão que não resulta em obediência? Ela só manterá a sua coerência, se a pessoa submissa não se furtar às consequências da insubordinação, ou seja, se não tentar escapar ao castigo dos desobedientes.
Devemos, porém, perguntar se a Bíblia nos ensina tal espécie de submissão. Se nos admoesta a aceitar as consequências da insubordinação à autoridade, quando ela nos tortura ou nos faz outra espécie de mal. Não encontro esse ensino nas Escrituras. Davi desobedeceu a Saul e passou a fugir dele. Os cristãos de Jerusalém desobedeceram às autoridades, ao continuarem a pregar o evangelho, e se dispersaram, quando perseguidos. Em nenhum desses casos, a entrega seguiu-se à desobediência. E no caso de Jesus? Vimos que ele se entregou, porém não desobedeceu às autoridades. Portanto, ou as Escrituras mostram que a desobediência esvazia a submissão, ou que a submissão importa a obediência.
Disso se conclui que a submissão às autoridades, ordenada em 13:1-7, não deixa qualquer espaço para a desobediência. Paulo está a ordenar submissão e obediência, não uma sem a outra, o que nos leva a concluir que, quando a autoridade se faz injusta, e a desobediência se torna a única opção, a submissão se esvazia. Quando se desalinha em relação à vontade de Deus, a autoridade deixa de ser seu ministro. E, quando deixa de ser ministro, ela perde o direito de reivindicar tanto obediência quanto submissão.
Por isso, o mandamento original e primeiro à autoridade é: “Quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus [...] Isto fará para que o seu coração não se eleve contra os seus irmãos, e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda” (Dt 17:18-20).
Que deve fazer o rei? Deve ler o livro da lei, fonte de toda justiça. E onde deve encontrar esse livro? Com os levitas sacerdotes. Portanto, a regra consistente em governar com base no livro da lei se aplica não só ao rei, mas também ao sacerdote. Enfim, a toda e qualquer autoridade. Esse é o princípio da liderança. Esta, a verdade contra a qual não temos poder algum.
Por que a submissão é devida à autoridade? Ela é devida por causa da verdade e na medida em que a verdade se faz presente. Quando a verdade ocorre, quando ela se manifesta e se faz habitual, numa autoridade, então a submissão se torna a mais doce de todas as experiências. Isso porque a verdade deixa de estar num livro ou numa pregação e se encarna numa pessoa. Perde a consistência de palavras e ganha a de atos. Torna-se, assim, exemplo e permite que “o reino de Deus consista não em palavras, mas em poder” (1 Co 4:10).
Alguém perguntará: e se uma pessoa possuir a verdade, mas não a autoridade? Pergunto se isso é realmente possível. Os que afirmam que o é pensam no caso de alguém que obteve o depósito da palavra de Deus sem ter sido investido no seu ministério por um órgão ou poder central. Pensam nos casos de Jesus Cristo e de Paulo: não na ausência da autoridade, mas apenas do seu invólucro.