As pessoas que, por motivos religiosos, aceitam os relatos bíblicos como verdadeiros explicam a presença do povo de Israel em Canaã pelas conquistas lideradas por Josué. Foram elas que permitiram a Israel apossar-se da terra que Deus prometera a Abraão, Isaque e Jacó. Porém, em oposição a esse ponto de vista tradicional, os historiadores críticos costumam negar que Israel tenha tomado posse de Canaã pela força. Afirmam, ao contrário, que penetrou ali pacificamente e passou a coabitar com os povos locais.
Essa diferença de posições sobre um ponto fundamental da História dos Judeus coloca-nos um grave dilema. Quem, afinal, está com a razão: os que creem no relato bíblico das conquistas do modo como está redigido ou os que postulam a penetração pacífica, com base em evidências arqueológicas?
A verdade sobre esse assunto parece envolver a combinação das posições tradicional e crítica. Por um lado, dispomos de abundantes confirmações das conquistas narradas na Bíblia; por outro, há evidências não menos significativas de que os israelitas penetraram, gradativamente, nos lugares que não puderam conquistar. Georg Föhrer escreveu sobre esse último processo: “Um exame das mais tardias localizações das tribos israelitas demonstra que eles frequentemente se estabeleceram naquelas regiões da Palestina que eram então desabitadas ou apenas escassamente povoadas. Naqueles lugares reivindicados e que não estavam ainda demarcados e, portanto, sem dono, seu estabelecimento foi essencialmente pacífico” (FÖHRER, Georg. História da religião de Israel. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2008. p. 76).
Föhrer está a sugerir que os israelitas fizeram seu lar nas terras fáceis de ocupar e, nas demais, penetraram lenta e pacificamente. As primeiras eram as regiões montanhosas e remotas; as últimas correspondiam às planícies e pequenas elevações. É importante lembrar que Föhrer admite as conquistas, porém, do relato acima, extraímos que, na sua concepção, elas foram mais exceções do que a regra no processo de ocupação de Canaã.
A questão a ser enfrentada é até que ponto esse entendimento de que as conquistas foram acontecimentos isolados, meros pontos na linha do tempo de Israel, pode ser prestigiado como verdadeiro. A penetração pacífica foi o método precípuo, pelo qual Israel obteve a posse da terra? Esse entendimento não colide com as informações do Livro de Josué, que descreve as conquistas de numerosas cidades e, em seguida, a partilha da Terra de Canaã entre as Doze Tribos?
A interpretação literal de Josué levou os estudiosos, ao longo dos séculos, a entender que os israelitas não só passaram a morar em Canaã, mas a controlá-la a partir das conquistas narradas na Bíblia. E ela não está errada, já que o controle hebreu é sugerido em Josué. Porém, uma leitura atenta dos livros históricos das Escrituras mostra que o testemunho bíblico não é exatamente esse. Juízes, por exemplo, afirma que os israelitas dominaram somente “as montanhas”, pois não lograram desalojar os cananeus de outros lugares, devido à superioridade militar destes: “Então disseram os filhos de José [...] todos os cananeus que habitam na terra do vale têm carros de ferro”; “Judá despovoou as montanhas; porém não expulsou os moradores do vale, porquanto tinham carros de ferro”; “Jabim tinha novecentos carros de ferro e, por vinte anos, oprimia duramente os filhos de Israel” (Js 17:16; Jz 1: 19; 4:3).
Por muito tempo, os intérpretes literais passaram por cima do verso que diz que Israel “não expulsou os moradores do vale” não, obviamente, por julgarem que contém uma informação falsa, mas um dado menor. Em conjunto e no todo, para aqueles intérpretes, Israel tomou conta de toda a Palestina, na época de Josué.
Porém, não é raro a Bíblia nos transmitir a verdade histórica a respeito de um fato em poucos versículos e reservar o grande número de linhas à apresentação da verdade religiosa, vale dizer, da grandiosidade do poder de Iahweh ao conceder ao seu povo bênçãos que aquela história contém. Nisso verificamos que não há, propriamente, conflito entre a verdade religiosa e a histórica, mas que esta é transmitida num número muito menor de versículos do que aquela.
Por todo o Período dos Juízes, os israelitas não dominaram ou não puderam realizar a fundição do ferro, como 1º de Samuel 13:19-20 atesta: “Em toda a terra de Israel nem um ferreiro se achava, porque os filisteus tinham dito: Para que os hebreus não façam espada nem lança. Pelo que todo o Israel tinha de descer aos filisteus para amolar a relha do seu arado, e a sua enxada, e o seu machado, e a sua foice.”
Mais uma vez, a inferioridade técnica dos israelitas aos filisteus (e, sem dúvida, também aos cananeus) não é, de maneira alguma, escondida ou dissimulada. Pelo contrário, ela é afirmada abertamente, mas em poucas linhas. E é claro que a inferioridade técnica implicava o poderio militar menor dos israelitas. Se não possuía carros, nem armas de ferro, quando entrou em Canaã, Israel era inferior aos moradores locais, do ponto de vista militar. Por isso, durante muito tempo, não os pôde desalojar pela força. Só na época de Davi isso começou a mudar.
A consciência do limite das conquistas implícita em todos esses versículos não foi conservada somente pelos autores bíblicos. Pelo contrário, ela parece ter sido bastante disseminada entre os hebreus. Só isso explica o limite reaparecer no Livro de Judite, composto no século II a. C. Diz esse texto incluído na Bíblia católica que os israelitas “expulsaram todos os habitantes do deserto, estabeleceram-se na terra dos amorreus e exterminaram vigorosamente todos os habitantes de Hesebon. Atravessaram o Jordão, tomaram toda a montanha [...] e habitaram ali por muitos dias” (Jd 5:14-16). “Tomaram toda a montanha”, não toda a terra. É o que nos diz o texto, pois a verdade histórica é a posse limitada de Canaã pelos israelitas que ali entraram vindos do Egito.
De algum modo, Föhrer atentou para as curtas, mas cruciais informações bíblicas sobre os limites da ocupação de Canaã por Israel. Werner Keller também, pois escreveu: “Quando penetrou na terra [...] Israel deve ter sido obrigado a contentar-se com as montanhas, pois não pôde derrotar os que habitavam no vale, porque estes tinham muitas carroças falcadas (Juízes 1-19)” (KELLER, Werner. E a Bíblia tinha razão – pesquisas arqueológicas demonstram a verdade histórica dos Livros Sagrados. 3ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958. p. 146-147). Porém, a maioria dos intérpretes atribuiu àquelas informações um significado menor, no quadro geral das conquistas que, para eles, garantiram aos israelitas a posse imediata de todo o país.
Não são esses, porém, os únicos sinais que o Livro de Josué nos transmite sobre o método de ocupação de Canaã utilizado pelos filhos de Israel. Após a derrota sofrida, na primeira tentativa de conquistar a cidadela de Ai, Josué descobriu que Acã cometera um grave pecado e concluiu que Israel fracassara por esse motivo. Organizou-se, então, a sessão de julgamento do sacrilégio, no Vale de Acor: “Josué e todo Israel com ele tomaram a Acã, filho de Zera, e a prata, e a capa, e a barra de ouro, e a seus filhos, e a suas filhas, e a seus bois, e a seus jumentos, e a suas ovelhas [...] E todo Israel o apedrejou” (Js 7:24-25).
A posse de bois, jumentos e ovelhas por uma família, citada nessa passagem, não pode ter sido possível, durante a peregrinação no deserto, pois nela os israelitas não possuíam casas, apriscos, estábulos e outras instalações apropriadas à posse de pequenos rebanhos. Naquela época, os animais deviam constituir propriedade coletiva. A história de Acã indica, portanto, que a fixação dos israelitas na terra, caracterizada pela posse de rebanhos particulares, começou antes da partilha da terra e de quase todas as conquistas.
Podemos concluir desses versos que a penetração pacífica começou ao mesmo tempo que as conquistas. Talvez os filhos de Israel só tenham utilizado o método da guerra quando a ocupação gradual e pacífica se revelou impossível. Nos lugares não conquistados, ocorreu a coexistência pacífica de israelitas e cananeus, sob a preponderância destes.
Assim, ao terremoto das guerras e das conquistas seguiu-se a normalidade, e ao dilúvio, a bonança. Se as lutas corresponderam à vontade de Deus, a coexistência pacífica não teve outro significado. O homem pego a cortar lenha no sábado foi apedrejado por ordem de Moisés, porém os discípulos surpreendidos a colher espigas no dia santo não o foram. Sob a lei, os adúlteros deviam ser mortos, mas a mulher de João 8 não o foi. Por que não considerar que o fluir do tempo e a mudança do contexto histórico justificaram o abrandamento da lei? E por que não pensar que o reflexo disso, na ocupação da Palestina, foi a passagem das guerras à coexistência com outros povos?
Deus é justo ou amoroso? Sua justiça é arbitrária ou criteriosa? Que é justiça no Antigo Testamento? Acaso é extermínio e morte? Digam o que disserem sobre esse ponto, o que realmente importa é a consciência que os que viveram as conquistas possuíam. Vemos essa consciência ricamente retratada, no episódio de Acã. Por que ele teve de ser morto? Para satisfazer o gosto de Deus por exterminar? Não, mas para evitar o extermínio: “Aos vossos inimigos não podereis resistir enquanto não eliminardes do vosso meio as coisas condenadas” (Js 7:13), isto é, a "capa babilônica, e duzentos ciclos de prata, e uma barra de ouro do peso de cinquenta ciclos" (Js 7:21). Na Antiguidade, a prata e o ouro eram frequentemente usados para forjar ídolos e outros objetos sagrados. A condenação de Acã pode ter ocorrido por esse motivo implícito. De qualquer modo, o episódio retrata a importância de Israel combater os desvios individuais para evitar os coletivos.
O que se costuma apresentar, em forma de libelo, como injustiça de Deus, no Antigo Testamento, é de fato a transição da justiça coletiva à justiça exercida exclusivamente sobre o culpado. Se o preferirem, é o transe que essa passagem implica. Nas suas partes cruentas, o Antigo Testamento discorre sobre essa transição e esse transe. Os filhos de Israel tinham experimentado as consequências coletivas do seu erro em Ai. Deus os tinha abandonado ao inimigo. Deviam permitir que as consequências inevitáveis dos seus pecados desabassem sobre todos ou fazê-las recair sobre um só? A resposta que Josué oferece é que eles deviam fazê-la recair sobre um, isto é, sobre o culpado.
É verdade que foram necessários todos os outros livros, entre Josué e João, para que, finalmente, o Deus que é justiça se revelasse também como amor. Para que, no único momento em que a Jesus foi solicitado exercer o papel de juiz, e ele aquiesceu, finalmente se ouvisse: “Quem nunca pecou atire a primeira pedra”! Esses acréscimos foram necessários, porém a justiça do Deus que é amor já estava, desde o princípio, posta de maneira clara nos termos da fé de Israel.