sábado, 17 de maio de 2014

História Hipotética da Igreja (4): Tertuliano e o Pensamento Radical

As obras de Tertuliano de Cartago revelam um homem dotado de convicções fortíssimas, inabalável fé na redenção de Cristo e dotes intelectuais insuspeitos.
Porém, como escritor, é que a familiaridade que possuía com o foro e o Direito Romano garantem a Tertuliano algo mais do que a proficiência: fazem-no um dos maiores argumentadores da Literatura Antiga. Em todo o Período Patrístico, o Apologético talvez seja o maior exemplar de literatura teológica e, ao mesmo tempo, forense, por um lado cristã, por outro lado embebida no pensamento clássico. Deparamos nela não só a eloquência, mas o uso do argumento como instrumento de poder e até como arma. Isso porque, ao defender os cristãos naquela obra, Tertuliano o faz por meio de ataques contínuos às injustiças, à contradição e à impiedade das autoridades romanas que os perseguiam. Tudo sem o menor traço de medo ou subterfúgio, dirigindo-se sempre diretamente às autoridades do Império.
O Apologético pertence ao que se costuma reconhecer como período católico de Tertuliano, em oposição à parte de sua existência que ele dedicou ao movimento montanista. Porém, a característica tanto da sua vida como do seu pensamento que pretendo destacar, neste texto, expressa-se mais na etapa montanista em que, pela primeira vez na História, alguém batizou e cristianizou o pensamento radical: exatamente Tertuliano, o tribuno.
O montanismo a que nosso autor aderiu foi um movimento iniciado, na Frígia, por volta de 165 d. C. Propunha a retomada da esperança no fim desta era, mediante o retorno de Cristo. Como preparação para esse grande acontecimento, o montanismo pregava o aumento da disciplina e um maior rigor nos costumes. Jejuns prolongados e abstinência sexual que, em alguns casos, chegava ao extremo da proibição do casamento eram enfatizados como modos de promover a santificação e preparar as pessoas para o retorno de Cristo.
Com o tempo, o montanismo se tornou cada vez mais separatista, o que lhe rendeu condenações por heresia. Porém, no princípio, isto é, na época de Montano, seu fundador, e de Tertuliano, foi reconhecido mais como um movimento em prol da disciplina do que como fonte de desvios doutrinários. É o que vemos confirmado nos escritos da fase montanista de Tertuliano, entre os quais se destaca A pudicícia.
Mesmo assim, Tertuliano permanece o mais eminente exemplo dos efeitos do pensamento radical na teologia dos pais. Foi ele quem introduziu esse pensamento na patrística, já que, até então, a teologia tinha somente ressaibos de radicalismo. De fato, em Paulo e nos mártires dos dois primeiros séculos, encontramos coerência de fé e conduta, não aquele grau de inflexibilidade e exclusivismo ou o estreitamento de vistas que constituem marcas características do pensamento radical. Coube, pois, a Tertuliano, mais que a qualquer outro líder cristão, realizar a transmutação doutrinária que instalou o radicalismo no seio da patrística.
Todavia, a propensão ao radicalismo estava presente, desde o princípio, na igreja primitiva. No texto sobre as divisões em Corinto, vimos que o conservadorismo já pairava ali. A radicalidade foi o sopro de vida necessário para que ele se exteriorizasse e se fizesse dominante na igreja. Sem ela, as instituições e os valores romanos tradicionais nunca teriam alcançado o prestígio que alcançaram e que lhes permitiu se impor a uma igreja perseguida e marginalizada pelo poder político.
Como a propensão ao radicalismo manifestou-se na igreja, ao longo dos primeiros séculos? O Tertuliano da etapa católica nos ajuda a responder tal pergunta. Sua proximidade do radicalismo já se percebe no Apologético. Ela se manifesta, antes de tudo, sob a forma da adesão inflexível e peculiar de Tertuliano ao princípio de não contradição. O radicalismo e o dogmatismo em que esse princípio irá traduzir-se, após a união da Igreja e do Império, são às vezes apresentados como contrassensos, mas isso é exatamente o que eles não são. Tanto um como o outro são frutos de uma lógica inflexível, não de uma ausência de lógica.
Daí o gosto particular de Tertuliano pela denúncia das contradições dos seus adversários. Algumas passagens do Apologético bastarão para percebermos isso, a começar pelas de cunho judicial: “Trajano [o Imperador] escreveu que os cristãos não deviam ser perseguidos, mas, se fossem conduzidos à sua presença, deviam ser punidos. Miserável livramento este que se subordinava à necessidade de um caso particular: uma contradição!” (TERTULIANO, Apologético. Cap. 2). E de novo: “Vós agis contra as formas legais, contra a natureza da justiça pública e até contra as próprias leis” (idem).
Às contradições dos pagãos, que duvidavam, em alguns casos, da existência dos deuses e continuavam a lhes prestar culto, Tertuliano opõe a coerência dos cristãos, que não creem nos deuses e, por isso, não os adoram: “Não adoramos os vossos deuses, pois sabemos que tais seres não existem” (idem. Cap. 10). Não é mais tolerante com as incongruências relacionadas aos efeitos práticos da piedade: “Quando as nuvens de verão não dão suas chuvas e o tempo se torna objeto de ansiedade, cheios de festas e jamais satisfeitos com vossos banquetes, banhos, tabernas e bordeis, ofereceis sacrifícios para que Júpiter vos conceda chuvas [...] enquanto nós secamos em jejuns, mantemos cativas nossas paixões, abstemo-nos tanto quanto possível dos prazeres ordinários da vida, vestimo-nos de saco e de cinzas, tomamos de assalto os céus com as nossas súplicas, tocamos o coração de Deus. E, quando a esse preço despertamos a compaixão divina, vós atribuis a Júpiter toda a honra!” (idem. Cap. 40).
Porém, a passagem em que expõe as contradições da religião romana com maior eloquência é a mais conhecida de todas as que saíram de sua pena: “Quanto mais somos ceifados por vós, mais aumenta o nosso número. O sangue dos cristãos é semente. Quantos dos vossos escritores exortaram a arrostar com bravura a dor e a morte, assim como Cícero nas suas Disputas, Sêneca em Fortuna, Diógenes, Pirro e Calínico! Contudo, as suas palavras não encontraram tantos discípulos quanto os atos dos cristãos” (idem. Cap. 50). Os romanos tinham o discurso sobre a coragem; os cristãos, o exemplo.
O tribuno tampouco perdoa as oposições que percebe entre as escolas filosóficas: “A partir de uma revelação simples de Deus, os filósofos põem-se a discutir não como ele lhes foi revelado, mas quais são as suas propriedades, sua natureza e morada. Alguns (os platônicos) dizem que ele é incorpóreo, outros (estoicos) que possui um corpo. Uns o pensam formado por átomos, outros por números: são as opiniões de Epicuro e Pitágoras. Ainda outros o consideram o fogo (Heráclito e sua escola). Os platônicos declaram que Deus administra os acontecimentos do mundo, os epicuristas afirmam, ao contrário, que é inerte e inativo. Os estoicos o representam fora do mundo, os platônicos, dentro dele” (idem. Cap. 47). Esse desfile de contradições está à base da rejeição pura e simples da Filosofia por Tertuliano.
Vemos que nosso autor tem horror entranhado à contradição. Denuncia-a continuamente, repudia-a, faz dela motivo de graves acusações, evita-a a todo custo. Mas esse horror o impede de entender a contradição como parte da conduta humana. Impede-o ainda mais de admiti-la como dado legítimo do pensamento que não abala o princípio de não contradição, mas apenas o torna uma regra sujeita a exceções como todas as outras.
Contudo, o trato da contradição é apenas o antecedente lógico do radicalismo. Não é ainda ele próprio. O terreno em que Tertuliano planta as sementes da radicalização não é o da lógica, mas o da moral. Insatisfeito com as contradições que encontra no meio cristão, entre as quais avulta o contraste entre a pregação do fervor e a frieza prática, nosso autor adere à pregação montanista. Toma-a como instrumento da transformação que julga necessária na doutrina e na prática dos cristãos. E elege a moral sexual como ponto de partida da sua empreitada.
Para entender essa guinada de posição, outra obra de Tertuliano (A pudicícia) é-nos de grande ajuda. Ela parece ter sido escrita com o propósito de denunciar o decreto pelo qual Agripino (218-222), bispo de Cartago, perdoou os pecados de adultério e fornicação de todos os que se haviam arrependido deles. Contra esse perdão e a ambiguidade consistente em concedê-lo e não perdoar o homicídio e a idolatria, é que Tertuliano se insurge.
No episódio do perdão dos pecados sexuais, a aversão de Tertuliano ao ambíguo chega à consumação. Ele delimita perfeitamente o objeto da sua indignação: o fato de o sentimento de pudor (pudicícia) ter-se tornado “não a renúncia, mas a moderação dos prazeres sexuais” (TERTULIANO. A pudicícia. Madrid, Ciudad Nueva, 2011. p. 165). Na prática, acrescenta ele, essa mitigação se revela como “permissão para casar quantas vezes quiser, a fim de não sucumbir ao adultério e à fornicação, tudo sob pretexto de que mais vale casar-se do que abrasar-se” (idem. p. 173).
Qual o fundamento de Tertuliano para entender tal atitude como atentatória à revelação divina? Seu fundamento são os mandamentos bíblicos, a lei de Deus ou, se preferirem, “aquele fundo dela que Cristo não aboliu, mas consumou” (idem. p. 201). O teólogo se agarra aos 10 Mandamentos. Mostra que a forma negativa ou de proibição que eles assumem os torna uma declaração dos pecados capitais. Como o adultério se encontra entre esses 10 pecados, Tertuliano abomina a prática de perdoá-lo e não perdoar outros pecados da mesma lista, como a idolatria e o homicídio. Vê nisso uma aberração.
O enquadramento de um ato como pecado capital tem significado especial para Tertuliano. Todo pecado capital é mortal, afiança-nos. Por isso, é irremissível. Não pode ser perdoado. Tal posição envolve, porém, uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem consiste em dar a devida ênfase aos textos bíblicos que se referem a pecados imperdoáveis. A desvantagem, em inserir uma quantidade demasiada de condutas no molde genérico desses pecados.
1ª de João 5:16 nos diz: “Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não para a morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para morte. Há pecado para morte e por esse não digo que rogue”. O verso não poderia ser mais claro: “há pecado para a morte”. Por ele, Tertuliano entende um pecado imperdoável. E que pecado pode ser imperdoável, a não ser o que se caracteriza como capital? Se Deus outorgou 10 mandamentos negativos como declaração do que lhe repugna, ninguém está autorizado a escolher alguns dentre eles como mortais e concluir que os demais não o são. Todos os 10 pecados proibidos pelas tábuas da lei são mortais. São “pecados para a morte”, como nos diz 1ª de João, portanto são erros irremissíveis.
Falta, porém, em Tertuliano, uma prova robusta do conteúdo dos pecados ditos irremissíveis. A identificação com os 10 Mandamentos, que ele realiza, não é suficientemente clara. Em qual desses preceitos a blasfêmia contra o Espírito Santo, que Jesus declarou imperdoável (Mt 12:31-32), se enquadra? No primeiro, que diz “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3; Dt 5:7)? Blasfemar não é o mesmo que cultuar outro deus. Tampouco equivale a construir um ídolo (Êx 20:4-5, 7). Pode-se indagar se é o mesmo que usar o nome de Deus em vão (Dt 5:8-9, 11). Mas, se o for, esse mandamento terá o sentido mais amplo (e vago) possível. Qual a aplicabilidade prática de um mandamento tão amplo e tão vago?
Vemos que os 10 Mandamentos não são condutas inteiramente definidas. Não temos uma lista dos comportamentos que se enquadram neles e não somos admitidos a escrevê-la por nossa própria conta. Os mandamentos devem, pois, ser tomados como linhas de comportamento, como orientações para a conduta, mais do que como condutas muito definidas. Seu sentido está sujeito a interpretações e variações, de acordo com as circunstâncias variáveis.
Mas, se dúvidas tão ponderáveis cercam a interpretação dos 10 Mandamentos e dos pecados irremissíveis, por que Deus se referiu a eles? Que mensagem quis transmitir-nos por meio deles? Tertuliano não hesita em afirmar que a mensagem é um rol muito bem definido de condutas abomináveis e imperdoáveis.
Para escapar a essa conclusão, falta-lhe o reconhecimento do antitético e do ambivalente, no interior da palavra de Deus. Para ser a palavra de Deus terão os 10 Mandamentos de excluir o antitético, o ambíguo, o duvidoso, todos eles inseparáveis da vida humana? Não permanecerão a palavra de Deus com aqueles elementos? Não o serão ainda mais por contê-los? Palavra não é comunicação? Pode alguém se comunicar sem dizer algo relativo à condição de quem o ouve? E os homens: não são ambíguos e contraditórios?
Grupos cristãos continuam a isolar-se de outros, até mesmo de todos os outros, em pleno século XXI. Não o fazem por motivo distinto do radicalismo e da obsessão pelo rigor isento de toda contradição. O radicalismo cristão de hoje se liga ao de ontem. São um só em princípio, mas nem por isso são justificados. No fundo, o radicalismo age como se o homem não fosse a oposição entre o pó da terra e o sopro divino. Como se ele não fosse a constante tensão entre essas duas naturezas. E como se a tensão não se tivesse complicado pela queda. Enfim, como se o homem não fosse exatamente aquilo que é. Seu problema é, enfim, coar as contradições menores e deixar passar a maior.