Leibniz |
Para Kant, três argumentos se destacam, na História do Pensamento, sobre a existência de Deus: o argumento ontológico, o cosmológico e o físico-teológico, que tratou como variação do segundo. Kant dirigiu boa parte dos seus esforços a refutar o primeiro argumento. E procurou mostrar, em seguida, que os outros dois são versões modificadas dele, de modo que a refutação da prova ontológica aplica-se também a eles.
Comecemos por examinar, com cuidado, o argumento ontológico. Sua inadequação como prova da existência de Deus foi admitida por vários pensadores, antes e depois de Kant. Não precisamos, pois, necessariamente, ir ao filósofo de Königsberg para encontrar a refutação mais robusta dele. Karl Barth, por exemplo, escreveu sobre o tema uma monografia indispensável, por demonstrar não apenas que o argumento não prova a existência de Deus como que nunca foi objetivo de Santo Anselmo prová-la. Para Barth, o que Anselmo pretendia está claramente indicado nas fórmulas de sua autoria que podem ser utilizadas como critérios de elucidação do clássico argumento: Credo ut intelligam (creio para compreender) e Fides quaerens intellectum (fé que busca compreensão).
Essas fórmulas mostram que Anselmo usava a razão para desenvolver algo dado anteriormente na fé. Buscava provar que o dogma a que chegamos por fé é também racional, vale dizer, que é possível extrair do dogma de que Deus é o ser supremo uma consequência relevante por meios racionais, a saber: que, se Deus não existisse, algo maior do que ele existiria, o que implicaria contradição. Portanto, se não quisermos que a Teologia albergue contradições, teremos de admitir que Deus existe não só no intelecto, mas também objetivamente.
Nas palavras do próprio Barth: "O que Anselmo considera como tendo sido provado [...] é que a coisa descrita como aliqiud quo maius cogitari non valet [Deus] tem existência não somente no intelecto, mas também tem existência objetiva (e até esse ponto genuína). Agora, até onde isso foi provado? Até onde foi mostrado que Deus existe no intelecto do ouvinte quando o Nome de Deus [exatamente o aliqiud quo maius] é proclamado, entendido e ouvido. Mas, ele não pode meramente existir no intelecto do ouvinte, pois um Deus que existe meramente assim permanece em uma contradição impossível com o seu próprio Nome" (BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão - fides quaerens intellectum. 2ª ed., São Paulo: Fonte, 2003. pp. 137-138).
Barth conclui: “Se essa é uma prova, então é a prova de um artigo de fé que ainda continua sendo verdadeiro mesmo à parte de toda prova. A afirmação positiva [a existência de Deus] não pode ter a sua origem examinada, pois ela se origina na revelação" (idem. pp. 138-139).
Isso significa que o argumento ontológico, como Anselmo o concebeu, prova que um item de fé, o Nome de Deus (aliqiud quo maius), implica a existência de Deus, nada além disso. Um item de fé não é um dado da realidade. Só podemos derivar a existência de algo de um dado da realidade. Não é diferente com Deus. Até esse ponto, portanto, a prova ontológica permanece um procedimento analítico que, como tal, não envolve substantificação de ideias.
Mas o argumento foi apropriado, tanto por teólogos como por filósofos, e utilizado de um modo que passou a envolver substantificação. No século XVII, por exemplo, Spinoza adaptou as ideias de Anselmo à sua visão de Universo dominada pela substância única, dotada da maior quantidade possível de atributos. Essa substância é, para Spinoza, o que entendemos por natureza, somente elevada à igualdade com o Ser Supremo. O filósofo percebe que, se retirarmos um atributo (a existência) do vasto conjunto formado pela substância única, ela deixará de possuir a maior quantidade possível de atributos. Por isso, Spinoza atribui-lhe a existência.
O insuperável problema desse modo de racionar é incorrer (outra vez) no vício metafísico da substantificação de conceitos. A ideia de Deus, sua substância e atributos são todos conceitos. Embora refiram-se a algo real, esses conceitos não se confundem com ele. Uma coisa são os conceitos pelos quais representamos a natureza; outra coisa é a própria natureza. Eles são tão diferentes entre si quanto o conceito de gato se distingue de um gato real.
É inevitável que, assim concebido, o argumento ontológico incorra no vício lógico da substantificação. Anselmo tinha-o evitado, ao usar o argumento para demonstrar as consequências de um dogma de fé. Spinoza nada fez de semelhante. Pelo contrário, retirou do argumento sua referência à fé revelada, que neutralizava o poder substantificador, e o estendeu ao absurdo. O mesmo fizeram vários pensadores, tanto antes como depois dele.
Esse é o argumento ontológico, na sua formulação clássica, que Kant e vários outros pensadores dissecaram. Uns o abraçaram, após o terem analisado; outros o rejeitaram. É o caso de Aquino, Kant e Barth, entre outros. Todavia, nem na versão de Anselmo, nem na de Aquino, muito menos na de Spinoza, o argumento ontológico prova a existência objetiva de Deus, pelo motivo básico, mas fatal de que a existência não pode ser derivada de um conceito, qualquer que ele seja.
Curiosamente, os críticos do argumento citado adotaram posições diversas, após o terem refutado. Aquino desenvolveu outras vias, igualmente ontológicas, de argumentação para provar a existência de Deus. Kant procurou aplicar os princípios da refutação do argumento ontológico às outras provas clássicas, a fim de refutá-las também. Seguirei a trilha de Tomás, antes de tentar entender aonde a de Kant nos leva.
O ponto de partida das cinco vias pelas quais Tomás mostrou a existência de Deus é a sua concepção de ser. Embora tenha partido, substancialmente, da metafísica de Aristóteles, Tomás também a superou ao propor divisões do ser cujo sentido ultrapassa muito as categorias daquele filósofo. Com efeito, Aristóteles tinha mostrado que não é necessário supor uma base unívoca do ser para assegurar a unidade interna do mundo. Em lugar de tal base, era possível colocar outra, que chamarei plurívoca por permitir entender que o ser tem diferentes significados sem perder a sua unidade básica e se converter num caos. Esses significados tornam o ser um conceito intrinsecamente análogo.
Mas o filósofo foi além desse ponto. Mostrou que a evidência dos sentidos decide a pendência que pode existir entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última, já que o real se decompõe em tantos seres que não é possível reduzi-los a um conceito global, ainda que ele seja o do ser. O máximo a que chegamos, na observação do que existe, é às categorias do ser. Tudo o que é, é uma substância localizada no tempo e no espaço, tem relação com outras substâncias, existe em certa quantidade, apresenta qualidades, age e sofre a ação de outros, tem posição e situação. Porém, o tempo em que existe não é o espaço, a quantidade é diferente da qualidade, a ação, da paixão, a posição, da situação, e uma substância não é a outra.
A evidência empírica decide, pois, a pendência teoricamente indecidível entre as concepções unívoca e análoga do ser em favor da última. Sabemos que o ser é análogo, porque sempre se apresenta a nós como intrinsecamente diverso. A diversidade não é uma ilusão de ótica. É um fato do qual podemos partir como de uma base segura, a fim de extrair consequências.
A evidência empírica dessa diversidade é tão torrencial que podemos suspender, sem risco, o juízo crítico até que evidências contrárias venham a infirmá-la. Podemos tomá-la como pressuposto: é o que fazemos, aliás, o tempo todo, ao pensar. Não retornamos ao problema da univocidade ou plurivocidade do ser, ao pensar e agir cada dia. Nem os filósofos e cientistas, nem o homem comum o fazem, pois todos aceitam a plurivocidade básica do real, ao realizar seu trabalho intelectual.
Tomás mostra, na Suma, que a existência de Deus pode ser extraída das evidências sobre o caráter análogo do ser. Se as categorias não são as únicas diferenciações fundamentais do ser, se além delas há outras, mais mediatas, mas não menos certas, como o possível e o necessário, o temporal e o eterno, o finito e o infinito, o efeito causado e o não causado, o composto e o simples, pode-se propor que a divisão do ser nas categorias aristotélicas não exprime mais que os pressupostos de uma visão de mundo comum na Grécia, ao passo que a de Tomás exprime a visão de mundo medieval. A concepção grega, como Aristóteles a codifica, constitui a metafísica clássica; a de Aquino a cristianiza e alarga.
O encaixe das diferenciações metafísicas que chamarei segundas, apresentadas por São Tomás, na doutrina clássica do ser foi a grande realização dos filósofos medievais. Assim eles expandiram o caráter análogo do ser para além dos limites que Aristóteles lhe tinha fixado. E extraíram dessa expansão consequências bem claras para a doutrina da existência de Deus, que expressaram nos seguintes termos: para haver o possível, deve existir o necessário, para o transitório ser, o eterno tem de existir, para o finito ser real, é preciso que o infinito também o seja e para se produzir a cadeia de efeitos é necessário o não causado. Em outras palavras, o imperfeito requer um princípio ou fundamento, que os filósofos medievais identificaram com o perfeito.
Os sentidos nos mostram não só muitos seres possíveis, contingentes, mas que alguns deles são causa dos outros. Podemos admitir que um possível, durante a sua existência, origine outro, que por sua vez origine ainda outro e assim sucessivamente. A formação do Universo pode ser explicada por esse processo, mas a explicação é prosaica demais para ser posta como fundamento das complexidades e maravilhas do cosmo. E o pior é que a origem de um ser possível a partir de outro nos leva a possíveis eternos e não causados, o que desloca o fundamento do efêmero e do causado para dentro dele mesmo.
Claro que os céticos podem fazer o necessário, o não causado etc. retroceder para trás da sequência de possíveis transitórios, mas isso equivale a reconhecer a sua transcendência. No máximo, atrasa o recurso à dimensão absoluta, cuja existência se quer provar ou refutar. A diferença entre essa explicação e a de cunho teísta é que a primeira adia o recurso ao divino, ao passo que a outra o faz concentrar-se logo na figura fortíssima do Ser Supremo e Criador.
O problema das provas sutis da existência de Deus desenvolvidas por São Tomás foi apontado por Kant: consiste em não serem menos ontológicas que a prova de Anselmo. Embora partam da observação do que existe, os cinco caminhos dependem de uma concepção (análoga) do ser e funcionam de modo inteiramente a priori. São, como tais, verdadeiras lições ontológicas, rivais da prova de Anselmo, mas que padecem dos mesmos problemas dela.
Esse o caminho argumentativo seguido por São Tomás, após ter firmado a insuficiência da prova ontológica. A pretensão de Kant, ao chegar a esse mesmo ponto, foi diferente da de Aquino. Em vez de construir outro argumento ontológico para substituir o que invalidou, Kant aplicou a refutação alcançada às outras provas clássicas da existência de Deus. Vale a pena entender como o fez.
“Se algo existe”, escreve a respeito da prova cosmológica, "um ser absolutamente necessário deve também existir. Como eu, pelo menos, existo, segue-se que um ser absolutamente necessário também existe. E posto que o objeto de toda experiência possível é o mundo, este argumento é denominado cosmológico [...] Nota-se que ele começa da experiência e não é totalmente a priori, como o ontológico. Nota-se também que não faz referência a qualquer propriedade dos objetos sensíveis [...] E, sob esse aspecto, ele se diferencia da prova físico-teológica baseada na consideração da peculiar constituição do nosso mundo sensível”(KANT, Emmanuel. Critique of pure reason. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 39, pp. 182-183).
A versão do argumento cosmológico a que Kant se refere é a de Leibniz. De acordo com ele, se o mundo existe (Leibniz supôs evidente que também se move), Deus existe, pois só algo imutável pode tê-lo posto em movimento. Verdade é que, se algo imutável no próprio mundo tiver dado início ao movimento, Deus pode não ser causa dele. Mas, nesse caso, o mundo ou algo nele seria causa de si mesmo, o que é por concepção impossível.
Assim formulado, o argumento de Leibniz parece indestrutível, pois de uma só pitada de experiência (a premissa de que o mundo muda) extrai sua conclusão por necessidade e sem incorrer no erro substancialista. Porém, Kant encontra, nesse argumento, o ontológico, posto que, nele, “a experiência meramente auxilia a razão a extrair a conclusão de que um ser necessário existe” (idem. p. 183). Como “as propriedades desse ser não podem ser aprendidas da experiência, a razão a abandona por completo e passa a procurá-lo na esfera dos conceitos puros [...] em que ela indaga qual, dentre todas as coisas possíveis, contém o requisito da absoluta necessidade” (idem). Não é preciso dizer que, para Kant, a razão acha em Deus (no conceito deste) a resposta que procura.
Kant invalida o argumento de Leibniz, sob acusação de procurar a agulha no palheiro errado. De procurá-la entre os conceitos da razão pura, quando deveria buscá-la na experiência ou, ao menos, no campo da experiência possível. Para Kant, tudo o que existe está nesse palheiro. Não pode ser diferente com o fundamento necessário dos movimentos do mundo (Deus). Implícito fica, pois, que, se Leibniz tivesse encontrado a agulha no palheiro da experiência, teria evitado o retorno vicioso ao conceitual, que retira valor probatório ao seu argumento.
Assim, a discussão kantiana dos argumentos históricos a favor da existência de Deus termina com a conclusão de que não há prova especulativa possível de um Ser Supremo. Proporá, alhures, um argumento não ontológico, nem cosmológico e sim moral em prol da existência de Deus, mas a desconstrução dos argumentos clássicos é, a meu ver, a conclusão mais importante da sua obra, sobre o tema. Conclusão, aliás, convergente com a demonstração de que o argumento ontológico fracassa sempre que usado para provar a existência de Deus e que muitas versões dos outros argumentos estão impregnadas do procedimento ontológico.
A exceção me parece ser o argumento de Leibniz. Não era desconhecido desse filósofo e matemático que os movimentos do mundo podem ser explicados por uma ou mais causas imutáveis, nem todas identificáveis com Deus: a Primeira Causa cristã e as múltiplas causas imutáveis do Universo eterno dos gregos. Se optou por explicá-los por meio de um Criador, foi por considerar evidente que a outra alternativa (a das causas imutáveis imanentes) está sujeita a um sério problema.
Ao reconhecer o problema com as causas eternas e imanentes, Leibniz nada mais fez que manter-se em conformidade com a ciência de sua época que, em fatos empíricos reiterados e invariáveis, reconhecia a atuação de uma lei universal e, com base nela, previa o que haveria de suceder em condições idênticas. A gravidade fora submetida a esse tratamento, no tempo de Leibniz. Embora a maior parte do cosmo não tivesse sido jamais observada (longe disso), os cientistas tinham concluído que a interação gravitacional, como hoje a denominamos, se manifesta em toda parte, o que equivalia a afirmar que tudo sofre mudanças gravitacionais.
Leibniz não divergiu desse entendimento, antes o adotou. E, do modo como os cientistas tinham generalizado os dados da sua observação, de modo a estabelecer a lei da gravidade, ele próprio tratou de generalizar a mudança a toda a natureza física. Assim, afastou-se da opinião dos antigos gregos a respeito das causas imutáveis do mundo.
No contexto do século XVIII, em que viveu, é improvável que Leibniz tenha compartilhado a opinião dos antigos gregos sobre corpos imutáveis imanentes em detrimento da ciência moderna. Pelo contrário, ele abraçou a refutação daquela antiga opinião, que Galileu, Newton e outros tinham realizado. Adotou tal refutação como razão suficiente para eliminar a possibilidade de que as mudanças do mundo proviessem de seres celestes físicos, mas imutáveis, ou de qualquer outra parte no interior do Universo.
Como o firmamento já havia sido vasculhado com ajuda de telescópios, que evidenciaram a ubiquidade da mudança, Leibniz julgou justificado introduzir o pressuposto a priori de que a mudança é inerente a todas as partes do mundo físico. Não incidiu, com isso, em qualquer despropósito, antes realizou algo semelhante ao que tinham realizado os filósofos, que concluíram que o ser é análogo, após verificarem as divisões e subdivisões a que se sujeita, e os cientistas, ao postularem a lei da gravidade. Como explicar é designar uma causa ou princípio externo ao objeto explicado, só se pode fundamentar o movimento em algo imóvel. Por isso, Leibniz concluiu que a causa imóvel do movimento tem de ser Deus.
Kant rejeitou esse argumento, ao cobrar de seus adeptos provas de “que as coisas são incapazes de produzir por si mesmas a harmonia e a ordem” (idem. p. 189). Mas que vem a ser isso? Ainda que o filósofo se recuse a fechar o argumento em si mesmo com a melhor de todas as chaves (a do conceito de causa ou princípio, que exige a fundamentação de um ser em outro e não em si mesmo), a prova que podemos buscar no cosmo há de ser necessariamente negativa. Há de ser prova de que algo não acontece, e isso em contexto tão vasto quanto o Universo. Para chegar a tal prova, porém, é preciso supor senão a investigação de cada milímetro e de cada partícula do cosmo, ao menos a de partes substanciais dele. O rastreamento cabal do espaço nem a Hércules pode ser cometido. Portanto, a prova possível há de consistir na observação de um grande número de mudanças, sem exceções ou lacunas que permitam afirmar a não mudança.
Para ser conclusiva, uma prova deve ser consistente e clara. Na época de Kant, a prova da ubiquidade da mudança estava sujeita a dúvidas. Mas talvez não seja esse o caso hoje. Após séculos da mais competente varredura do Universo em busca de algo físico que não esteja sujeito a algum tipo de mudança, é preciso admitir que a situação do argumento de Leibniz não é a mesma do século XVIII.
Nada achamos de imutável, no mundo material, após a imensa varredura levada a cabo pela ciência. O átomo, as partículas em que se decompõe, os vários tipos de ondas, todos desfazem-se, em condições determinadas. Sofrem, portanto, mudanças. Tudo é causado, precedido, por algo que constitui seu princípio. A alternativa é negar totalmente a existência de um princípio para o mundo. Mas a alternativa escamoteia a simples imolação do pensamento. Se chegamos até aqui pensando, negar um princípio ao mundo não é só colocar o arbítrio acima da razão, é aniquilar a um tempo os dois.
Temos, pois, suficiente respaldo para concluir que não há objetos materiais não mutáveis, no imenso concerto do Universo, pois a evidência maciça da mudança acumulada pela ciência operou uma modificação no panorama do argumento de Leibniz. Eliminou o remanescente daquela complexidade que turvava o argumento para Kant. Acrescentou-lhe clareza e o tornou não direi totalmente conclusivo, mas o mais claro argumento já construído sobre a existência de Deus.
O princípio da razão suficiente demanda que uma coisa seja explicada por outra, nunca por ela própria. O temporal não pode ser explicado pelo temporal, o finito pelo finito, o movimento pelo movimento, o causado pelo causado ou o contigente pelo contingente. Já o sabia Aristóteles. Num ponto, porém, as coisas mudaram daquela época ao tempo atual. A ciência mostrou, por meio de provas robustas, que o imóvel não está presente no mundo físico.
Não me adiantarei a afirmar que a existência de Deus está dada ou provada dessa maneira. A falibilidade de todo conhecimento impede a comprovação, em sentido último, de qualquer enunciado. Como a todas as outras construções da mente humana, a dúvida adere também a essa. Mas ela não tem, hoje, mais a compleição da época de Kant. É antes um fio de dúvida.
Não estamos mais em tempos, como os de Fílon, em que tudo o que se podia invocar como apresentação do argumento cosmológico eram “os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois, o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas” (ALEXANDRIA, Fílon de. As leis especiais. I, 32-35. Citado em REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 2001. Vol. IV, p. 239). Tivemos de esperar o desenvolvimento de uma ciência suficientemente exaustiva para tornar o argumento mais conclusivo. Penso ser essa a situação dele hoje, após as revoluções científicas que nos revelaram o infinitamente grande, de Galileu a Einstein, e o infinitamente pequeno, da Física Quântica à Biologia Molecular. É significativo demais que o rastreamento dessas duas dimensões do real não tenha revelado uma só substância imutável. Que ele tenha, pois, revelado de certo modo, a agulha de Deus no palheiro da experiência.
Das dúvidas que a humanidade cultivou e que a Filosofia ajudou a ressaltar e a apresentar, esta é, sem dúvida, a maior. Tão grande é o tema da existência de Deus que, se o argumento de Leibniz continuar a ser afiado na pedra fria dos fatos, talvez venha a ser possível afirmar, um dia, que a Metafísica existe para mostrar-nos Deus. Por ora, porém, a questão permanece envolta na névoa do grande Himalaia que o sherma filosófico ajuda a escalar.