O texto a seguir é um diálogo online, sobre uma entrevista em que o sociólogo Zigmunt Bauman explica que as sociedades contemporâneas têm como principal característica a extrema mutabilidade. Como é comum em conversas eletrônicas, a que agora compartilho foi interrompida (durante três dias) e, depois, retomada. Ou, para dizê-lo melhor, tentei retomá-la, sem sucesso. E, como também ocorre com frequência nessa espécie de comunicação, gerou um mal-entendido, imediatamente antes da interrupção. Enfim, essas características do diálogo não deixam de refletir ao seu modo a contínua metamorfose que se tornou o viver, ou seja, o tema da reflexão de Bauman. E o que mais poderia situar o leitor sobre o texto está posto logo na primeira linha.
Lobão: Desde sempre, metáforas foram usadas para explicar a sociedade. Mas, há algum tempo, elas passaram a proliferar como coelho. E não são poetas que as criam para poetizar, mas teóricos para teorizar. Querem explicar para valer o mundo do homem ou, como preferia Dilthey, compreendê-lo, por meio delas. Durkheim viu a sociedade como um organismo, Marx como um encaixe de estruturas (infra e super). Bauman vê o contemporâneo como um líquido. Não se afasta, pois, da tendência. Mas metáforas comunicam teorias?
Renê: Elas tentam ilustrar, tornar palpável, uma teoria. É mais didático do que filosófico. Esse negócio de mutação constante faz sentido pra mim. Uma metáfora tem um poder absurdo de explicar muita coisa, quando desenvolvida. Aquele exemplo das raízes das árvores, que crescem primeiro pra baixo, pra depois desenvolver os troncos é uma metáfora clássica da humildade, muito usada pelos cristãos. Pra mim ela explica muita coisa. O que você quer dizer com a pergunta?
Lobão: Quero dizer que desconfio do poder explicativo das metáforas. Ao menos na Sociologia, que tem pretensões científicas. Os cristãos não são sociólogos (longe disso). E, por falar em mutação constante, acabo de sair de uma audiência de 5 horas. Uma guerra. Isso, sim, é mutação: entra-se pobre e se sai rico. Meu papel é manter tudo como dantes, no quartel de Abrantes.
Renê: Heauhaeuea, não acredito. Justiça do trabalho: fique rico sem trabalhar.
Lobão: Para mim, você tem razão. O cara de hoje acreditava piamente que era empregado. Criou toda uma justificação, um mundo mental em que ele era explorado. Inventou um vínculo empregatício com neurônios. Neurônio com neurônio dá vínculo. Pura mistificação. Mas, como o sujeito que se cria Napoleão e, é claro, reivindicava o poder na França ou um professor que conheci, que entrou no STF e perguntou por Chicão (era o Ministro Francisco Rezek), o reclamante de hoje tinha a maior certeza de que o patrão lhe deve muitas (põe muitas nisso) mil pratas. Pergunto-me onde mora, de fato, a ganância. Tem ela um lugar social? Ou só um lugar psíquico, um ninho aquecido, sem cor, nem bandeira, nem ideologia: o coração humano?
Renê (repete os três últimos períodos): ‘Pergunto-me onde mora, de fato, a ganância. Tem ela um lugar social? Ou só um lugar psíquico, um ninho aquecido, sem cor, nem bandeira, nem ideologia: o coração humano?’
Renê (continua): Definitivamente não sei, mas vou tentar entender isso.
Lobão: Sigamos, então, a tentar entender. É sempre e muito melhor do que achar que entende. Minha funda desconfiança para com certa teoria (não me refiro à do Bauman), entenda-se para com a pretensão universitária ao monopólio da verdade, jorra do sentimento de que tentar entender é melhor do que achar que entende. O dito com que Aristóteles explicou suas divergências de Platão se fez célebre: ‘Amicus Plato, sed magis amica veritas’ (Platão é amigo, mas maior amiga é a verdade). Porém, hoje foi alterado. No frontispício da universidade-espetáculo deveria estar inscrito: “A verdade é amiga, mas maior amiga é a vanglória”. Expressaria melhor as coisas. Só não acho que a vanglória detenha a chave dos mistérios.
Renê: Aí voltamos à matéria sobre o Bauman. Talvez a vanglória traga aquela felicidade instantânea, daí uma opção. Ela tem o poder de transformar mais o homem em lenda. Quem não quer ser uma lenda? Ser lenda é uma tentação? Mas esse papo todo já foi falado há uns 2.000 anos, no deserto. Demonstrar as coisas é tarefa muito difícil pra um só homem, quando o terreno é a Filosofia. A verdade é amiga, mas por favor, ela é amiga de todos, não só de algumas pessoas. Aqui vou trazer aquela opinião (apesar de não gostar dela): acho que, no campo da Filosofia, tudo o que já foi produzido tem sua dose de verdade.
Lobão: Acho que sim, em termos. A conclusão de que, em Filosofia, tudo carrega uma dose de verdade é essencialmente intuitiva. É quase um julgamento da razão comum sobre a razão filosófica. Ocorre que pensar e analisar são coisas tão corriqueiras, para o homem, que ele tende a considerar que o pensamento comum lhe basta ou que pode julgar a reflexão mais metódica. Na verdade, pode muito pouco. A Filosofia não deixa de ser um método ou de ter um; a ciência idem. E, quanto mais desenvolvemos o uso desses métodos, mais percebemos que afastam a igualdade entre as teorias ou entre as filosofias. Não é diferente com a questão da verdade e da vanglória. Buscar uma ou outra, uma e outra, mais uma do que a outra ou mais a outra do que a primeira pode parecer decisão essencialmente relativa. Qualquer posição, sobre o tema, pode parecer igualmente justificada. Ou ao menos sempre pode aparecer alguém disposto a provar essa relatividade. Mas a observação atenta da vida e o pensamento metódico levam a concluir que as posições não têm o mesmo valor. A vanglória é, em geral, muito mais disfuncional para o homem e para a sociedade do que a verdade. É também, com frequência, mais uma traição da verdade do que a busca dela. E, como não se pode achar sem buscar, fica difícil concluir que o abandono da busca da verdade em favor da vanglória produza o que foi abandonado. Você acha que um desses corifeus da vanglória dará com o caminho que conduz às verdades ocultas, que tantas e tão grandes mentes buscaram sem jamais encontrar?
Lobão (propondo suspenderem o diálogo): Linda criança, os jovens devem ter a última palavra, e os velhos, a última audição. Vou ouvir o que escreveu.
Renê: Acabei de mudar de opinião.”
Três dias depois:
“Lobão: Renê, vou arriscar-me a continuar este diálogo. Você não entendeu bem minha última palavra acima. Quis dizer exatamente o que escrevi. E é claro: acredito no que escrevi. Precisamos ouvir muito os jovens, porque eles têm as (melhores e piores) paixões afiadas na pedra. Nos de mais idade, as paixões, muitas vezes, perderam o gume. Mas a vida ensina muito e, se somos capazes de aprender algo, deve ser antes de tudo a ouvir. Particularmente os mais velhos têm o dever de ser professores em ouvir, o que inclui ouvir muito bem os jovens. Deixar a faca deles cortar, quem sabe afiar a sua própria, se a encontrarem cega. Foi o que quis dizer. A ironia que você encontrou não estava contida no que escrevi.
Ainda sobre a metáfora de Bauman, quando um sociólogo se pronuncia, especialmente um imenso como ele, esperamos teoria. Mas não sei se há teoria nesse assunto do líquido. Teoria não é metáfora, e metáfora não é teoria. Claro: como você bem disse, a metáfora pode ilustrar uma teoria, mas é preciso lê-la com esse discernimento. Trata-se de uma ilustração. E é preciso catar a teoria para que a metáfora aponta, não muito diferentemente do modo como os discípulos e outros ouvintes se descabelavam para entender os ensinos que Jesus transmitia pelas parábolas. É o velho e tantas vezes renovado encontro entre o símbolo e o ensinamento.
O problema é que desconfio de que não haja teoria alguma, por trás do assunto do líquido. Bauman é considerado o teórico do mal-estar pós-moderno. Esse é, pois, o tema principal para que ele aponta, por meio da metáfora. Para dizê-lo rapidamente (se for possível): Freud referiu-se ao mal-estar na civilização, na sociedade considerada em todas as suas épocas. Para Bauman, porém, o pós-moderno não foi ou foi muito pouco observado por Freud. Mais do que isso, ele é diferente da sociedade que o antecede. O mal-estar civilizatório é o preço que a ordem cobra à alma humana; o da pós-modernidade é a insegurança que a busca irrefreável e irrefreada da liberdade traz. É, enfim, o fato de tudo ter de mudar tão velozmente.
Mas de duas uma: dizer que tudo muda é uma obviedade ou é filosofar. Filósofos nem sempre teorizam. O mais comum é não teorizarem. Não raro, apenas enrolam. Especialmente os filósofos de hoje. Se quiser constatá-lo, é só ir à Saraiva, à Cultura ou a outra livraria bem provida de obras filosóficas, fazer um "crediário pós-moderno" para comprar livros de Filosofia atuais e lê-los para valer. Você logo verificará que, a cada 100 páginas, ficarão poucas de conteúdo real. Isso não é teorizar.
Mas há grandes filósofos, inclusive sociais, que não caem nessa. Alçam de fato altos voos. Não chegam às alturas da arte imortal, é verdade, mas voam muito alto. Tão alto que passam do céu da teoria. E, ao passarem, riscam o ar e fraturam as teorias que encontram no caminho. Lembra o que Marx disse? “Tudo o que é sólido desfaz-se no ar”. É o caso das teorias situadas no céu que esses grandes filósofos cruzam. São sólidas: por isso são destruídas pelo voo vigoroso de homens alados.
Mas o destino do voo deles não é o céu teórico. É outro mais elevado. Por isso, riscam e destroem as teorias, sem se preocupar em reconstruí-las ou em criar outras com os restos delas. E assim, os caras continuam a voar para cima, para as alturas da crítica. Ali, sabedores de que as teorias se partem por serem sólidas, tampouco procuram teorizar. Não criam novas teorias, nem fazem ciência. Fazem crítica de teorias e da ciência. Acho que o Bauman faz isso, ao escrever e falar sobre a sociedade líquida.
Criticar é também desmontar, desfazer. Podem pensar que isso é fácil e até trivial, portanto sem valor. Mas não é o caso. Criticar não é destruir. O bom crítico não é um destruidor. Não destroi obras humanas, nem seus autores. O que é sólido tem a propriedade de se desfazer, destruir-se no ar ao só passarem perto dele. O que ninguém diz é que a máxima de Marx implica que o que não é sólido não se desfaz. Não é sólido o espírito. Por isso se desconstroi e reconstroi, o tempo todo, sem se destruir. Por isso também, o filósofo, que é desconstrutor e não destruidor, reconstroi ao desconstruir. Só que a sua arte se exerce muito lentamente. É o oposto da sociedade vertiginosa do nosso tempo. O trabalho filosófico não se conclui do dia para a noite. Às vezes demora anos, às vezes décadas. E às vezes não se conclui de maneira alguma.
Talvez o Bauman faça isso, com ajuda da metáfora do líquido. Mas exatamente por auxiliar, a metáfora não é o centro da sua construção filosófica. Remete-nos ao centro dela, que é o especial dinamismo da sociedade atual. Bauman parece procurar a intuição que nos coloque na pista, aí sim, de uma nova teoria da sociedade. Será a intuição de Heráclito, que refletiu altamente sobre a mudança? Não o creio. Será a dos filósofos de Eleia, que negaram toda mudança? Por certo não. A de Aristóteles? Tampouco me parece. Talvez Bauman não tenha, simplesmente, encontrado a intuição filosófica que nos forneça a chave de uma nova teoria da sociedade. O que nem de longe diminui o valor da sua reflexão. Nas alturas em que ele voa, achar ou não achar uma intuição não é questão de mérito. Intuições não se inventam; descobrem-se repentinamente. Só podem ser buscadas no sentido de que é preciso manter o voo para encontrá-las. Mas não se pode voar nessa ou naquela direção, a fim de encontrá-las. Topa-se simplesmente com elas. E talvez ele não tenha topado ainda. Como já disse, as descobertas dos filósofos não se sujeitam ao tempo.”