Após ter apresentado o evangelho de Cristo, nos capítulos 1 a 11, Paulo se volta repentinamente, mas não de modo surpreendente, ao tema das virtudes. Tão claro e vigoroso é esse giro que somos levados a entender que as virtudes constituem o espelho em que a obra de Cristo se reflete. Cristo morreu por causa das nossas transgressões e ressuscitou para a nossa justificação (4:25): o resultado prático dessa obra eterna e extraordinária é, para Paulo, o reflexo da graça de Cristo no comportamento humano.
Ao tratar da condenação universal, da imputação da justiça por meio da fé e da situação de judeus e gentios, após a obra redentora de Cristo, nos capítulos anteriores, Paulo segue uma ordem e um método de exposição. Fala primeiro do negativo, depois do positivo. Ao final de cada seção, apresenta um balanço ou conclusão do tema tratado. E, em cada um desses passos, prova as suas afirmações por citações abundantes das Escrituras. Esse é o modo de proceder do apóstolo. Porém, Paulo estende a tal ponto o tratamento de cada assunto, por meio de exemplos (como os de Abraão e Adão) e séries de citações do Antigo Testamento que chega a dificultar a compreensão do leitor.Essas características do texto paulino se tornam ainda mais saliente, quando ele passa a considerar as virtudes. Vai tão longe, nesse ponto, que escreve quatro capítulos, nos quais mistura o tratamento de virtudes diversas, como o amor (12:9-10), o bem, o zelo, o fervor (12:11), a alegria, a paciência, a perseverança (12:12), a generosidade, a hospitalidade (12:13), a bênção aos inimigos (12:14), a assistência devida a eles (12:20), a solidariedade com os que se alegram e com os que choram (12:15), a unanimidade, a humildade (12:16), a não retribuição do mal, a honestidade (12:17) e a paz (12:18). Trata, ao mesmo tempo, do oposto dessas virtudes, que compendia no mal (12:10,21). Tudo isso é desenvolvido, em poucos capítulos, o que causa a impressão de mistura de temas e cria a necessidade de esclarecimento das linhas principais do pensamento do apóstolo.
Um dos pontos a serem esclarecidos é o da hierarquia das virtudes, que o Papa Francisco reafirmou na Exortação Evangelii gaudium publicada recentemente. Hierarquia significa que as virtudes cristãs têm diferentes graus de importância. No entanto, ao lado da hierarquia, devemos reconhecer que as virtudes se dispõem também numa ordem de urgência. Isso porque, sem serem maiores ou mais importantes, certas virtudes podem ser mais urgentes que outras.
A hierarquia das virtudes é absoluta. Aplica-se a todos os casos, sem modificação. A urgência delas é relativa. Decorre das circunstâncias que as tornam mais ou menos necessárias, em determinado momento histórico ou em determinada situação de vida. De acordo com tais circunstâncias, é que as virtudes são menos ou mais urgentes.
Tanto a hierarquia como a ordem de urgência se evidenciam no tratamento que Paulo dispensa às virtudes. Por exemplo, em 1ª aos Coríntios 13:13, ele afirma que o amor é maior do que a fé e a esperança. Isso indica que há uma hierarquia entre as três virtudes. Do mesmo modo, em Romanos 12 e 13, embora trate de tantas virtudes, Paulo retorna com maior frequência ao amor (12:9-10; 13:8-10), em atenção à sua prioridade hierárquica.
Porém, outras vezes, Paulo enfatiza uma virtude, não por causa da sua superioridade em relação a outras, mas devido à situação histórica peculiar em que os romanos se encontravam. É o caso da submissão às autoridades civis (13:1-7). Paulo a encarece de modo peculiar, não porque fosse superior a outras virtudes, mas porque Roma era a sede do Império. Semelhantemente, a tolerância e a receptividade para com pessoas de diferentes convicções também são enfatizadas, nos capítulos 14 e 15, devido à igreja de Roma ser composta por judeus e gentios, pessoas cultas e bárbaras, enfim por indivíduos dessemelhantes no concernente à religião e à cultura.
Quando compreendemos que Paulo apresenta as virtudes cristãs, sob a ótica da hierarquia absoluta e da urgência relativa delas, o tratamento aparentemente confuso que ele lhes dispensa se desfaz, ao menos em parte. Paulo não é confuso. Pelo contrário, ele trata de várias virtudes ao mesmo tempo, sem definir e sem dizer de que modo cada uma deve ser posta em prática, porque entende que isso só é possível nas circunstâncias concretas de vida.
É temerário pensar que, na mente de Paulo, as virtudes estivessem dispostas de maneira caótica. Um homem com formação farisaica, como ele, era um fenômeno do pensamento ético, não um ignorante dessa disciplina da conduta humana. Por isso, o fato de Paulo tratar das virtudes ao mesmo tempo, sem as definir e sem esclarecer como as pôr em prática, nas diferentes situações de vida, não é um sinal de confusão ou vagueza, mas de uma orientação bem determinada em matéria de comportamento.
Coloquemo-nos na pele de Paulo, por um instante. Ele escrevia a cristãos da capital do Império. Portanto, a pessoas mergulhadas numa atmosfera política densa e em costumes pagãos. Poderia exigir que elas praticassem a humildade ou o amor de determinada maneira, enfim que adotassem comportamentos muito bem definidos, mas se contenta com recomendar a prática dos valores morais. Poderíamos dizer: a recomendá-la em abstrato.
Como já disse, a decisão de recomendar as virtudes em abstrato e não em concreto, assim como a opção por não as definir de maneira exata, não é casual. É um sinal fortíssimo de que as virtudes cristãs não se definem absolutamente em abstrato, mas em concreto. E se não podem ser definidas em abstrato, menos ainda podem ser praticadas. Portanto, para usar a linguagem dos jogos, Paulo deposita todas as suas fichas na abordagem abstrata dos valores.
Afirma que o amor, o bem, o zelo, o fervor, a alegria, a paciência, a perseverança, a generosidade, a hospitalidade etc. devem ser buscados. Negá-los é um grave erro. Por outro lado, os vícios que se opõem àquelas virtudes devem ser evitados. Notemos, porém, que, ao ensinar o que é propriamente o amor, em 1ª aos Coríntios 13, Paulo não tenta expressá-lo numa fórmula sintética. Não procura capturar a virtude do amor e prendê-la numa definição aristotélica. Pelo contrário, ele mostra o que o amor é, por meio do que ele faz. Devemos pensar o mesmo, em relação a todas as outras virtudes.
As virtudes só se definem em situações concretas. Fora delas, não sabemos o que elas são, nem o que é seu oposto: o pecado. Em abstrato, as virtudes são símbolos do coração de Deus. O amor, o bem etc. são sentimentos de Deus. Representam, portanto, Deus. Deus é amor, Deus é o bem. No entanto, em termos de atitudes humanas, só podemos definir o amor, o bem e todos as outros valores cristãos em situações específicas.
Claro que esse modo de ver as virtudes tem muitas consequências. A primeira delas é ampliar, extraordinariamente, o papel da dúvida no interior da Ética. Que é certo? Que é errado? Que Deus ordenou fazer? Que ordenou não fazer? Não podemos responder tais perguntas, no plano abstrato em que estão formuladas. Mais do que isso: as perguntas não têm respostas possíveis. E sabemos bem que perguntas sem respostas possíveis são absurdos.
A Ética como disciplina abstrata do comportamento comporta amplo espaço para a dúvida. É o que a história do patriarca Jó exprime. Depois que os sete filhos e as sete filhas dele se reuniam para banquetear, Jó “levantava-se de madrugada e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles”. Não o fazia, porém, baseado em certeza, mas na dúvida: “Dizia: Talvez tenham pecado os meus filhos, e blasfemado contra Deus em seu coração” (Jó 1:5).
A palavra “talvez” indica que o patriarca tinha dúvida de que seus filhos houvessem pecado. E, como os intermináveis debates do Livro de Jó sugerem, suas dúvidas não se deviam à ignorância do que os filhos haviam feito, mas do que aquilo que eles tinham praticado significava para Deus. Jó sabia muito bem o que era o pecado cometido na adoração, mas não sabia com certeza o que era pecado moral. Por isso, disse: “Se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, que caminhava esplendente, e o meu coração se deixou enganar em oculto, e beijos lhes atirei com a mão, também isto seria delito à punição de juízes” (Jó 26:10). A idolatria, o culto prestado ao sol ou à lua, eram pecados para Jó. Eram até mesmo pecados sujeitos à punição de juízes. Mas Jó não disse outro tanto dos pecados morais.
Não nos enganemos com a ideia de que as coisas se tornaram mais definidas depois. Não se tornaram. Jó se situa num tempo anterior a Moisés. Porém, as permissões e proibições que esse legislador entregou a Israel estão, em grande parte, envoltas na cláusula pela qual Jesus explicou o direito ao divórcio: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres”. E não nos esqueçamos do que ele afirmou em seguida: “Entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8). Se não só o divórcio, mas outras permissões cabem nessa interpretação de Jesus, a lei não define, muito menos define com exatidão o que seja o pecado moral. O que a lei define, como Jó também faz, é o pecado de adoração.
Jó está mais perto do “princípio” do que Moisés. Veio antes dele. Será que não podemos estender a dúvida que Jó manifestou à Lei de Moisés? Será que não devemos projetá-la no Novo Testamento? Que significa “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7:1)? Que significa Jesus ter perdoado a pecadora que Moisés mandara apedrejar (Jo 8:11)?
Vejamos o caso do amor ao inimigo. Em Romanos 12, Paulo cita apenas dois versos do Antigo Testamento. Esses versos afirmam: “A mim pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor” (12:19; Dt 32:35) e “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça” (12:20; Pv 25:21-22).
As citações escolhidas por Paulo indicam que o foco da argumentação do apóstolo está posto no amor ao inimigo. O amor é uma virtude suprema. Porém, dos amores, o que é dedicado ao inimigo é o maior, o que mais envolve a renúncia de si. Notemos que os versos citados atribuem conteúdo concreto a esse amor. Amar o inimigo é dar-lhe de comer e de beber. Não que a virtude esteja posta em atos mecânicos. Ela tem o seu lar no coração. Virtude não é o dispêndio de energia que realizamos ao agir. É o sentir humano e um modo especial de sentir. Mas Paulo define o amor ao inimigo e as outras virtudes sempre em circunstâncias concretas.
Devemos extrair disso que, em todas as circunstâncias, é nosso dever dar de comer e beber aos inimigos? Absolutamente não. Afirmá-lo seria subverter a ideia bíblica de que o virtuoso define-se e se ajusta a circunstâncias variáveis. Não podemos supor que as circunstâncias sempre nos permitirão dar de comer e beber aos inimigos. Pode ser que, em alguns casos, fazê-lo signifique provocá-los à ira. Então, não o devemos fazer. De sorte que o mandamento do amor ao inimigo significa que devemos dar-lhe de comer e de beber tanto quanto as circunstâncias permitam.
No capítulo 1, Paulo associou a rejeição de Deus pelos gregos à perversão sexual. Vivemos num tempo em que quase metade do mundo pensa que não há perversão sexual, e a outra quase metade acha que todo ato sexual é pervertido. O pensamento de Paulo distancia-se desses dois extremos. E, ao mesmo tempo, é mais profundo que eles, pois trata a perversão como manifestação da ira de Deus pelo pecado, não como o próprio pecado.
Isso exige que separemos bem as coisas. O pecado é um fato da vontade. É a resolução de abandonar a Deus ou, numa palavra: a idolatria. O que Paulo descreve como perversão, em Romanos 1, por outro lado, parece um fato da natureza e não da vontade, já que não é o próprio pecado, mas o juízo de Deus sobre ele. Com efeito, se o pecado reside na vontade, a perversão a que Paulo alude parece ser um dado da natureza, como uma doença ou imperfeição.
Mas isso contradiz a passagem em que Jesus afirmou que o cego de nascença não veio ao mundo sem ver, porque seus pais haviam pecado (Jo 9:1-3). A passagem impede considerar a cegueira o resultado físico de um julgamento de Deus. Por que a perversão que Paulo apresenta como consequência do pecado seria diferente? Se Deus não julga, usualmente, por meio de castigos físicos, é mais provável que Paulo se referisse ao juízo de Deus sobre os gentios como uma perversão da vontade. Voltaremos mais tarde a esse tema.