Clemente de Roma |
Há cristãos que equiparam a revolta contra a autoridade espiritual à heresia. Mas, se olharmos atentamente, não é esse o ensino do Novo Testamento ou dos primeiros cristãos. As igrejas de Pérgamo e Tiatira tinham adeptos de doutrinas contrárias à dos apóstolos, como a dos nicolaítas, a de Balaão (Ap 2:14-15) e a de Jezabel (Ap 2:20-24). E as da Galácia não tinham só representantes de doutrinas heréticas como estavam a passar, em bloco, do evangelho de Paulo a outro de cunho legalista (Gl 1:6). Todas essas pessoas foram tratadas como hereges ou distorcedores do evangelho de Cristo, pelos autores do Novo Testamento.
Paulo, porém, aponta o pecado de divisão na igreja em Corinto, sem deixar de tratá-la como uma comunidade cristã. Um dos partidos daquela igreja seguia Paulo, outro, Pedro, outro, Apolo e ainda outro afirmava seguir a Cristo (1 Co 1:12). Contudo, as opiniões desses partidos estavam de acordo com o Novo Testamento, devido às fontes de que provinham. Isso os tornava negativos, mas não tão perigosos quanto as heresias mencionadas antes.
A carta de Clemente de Roma aos coríntios, escrita por volta do ano 95, ajuda a entender o sentido dos problemas existentes naquela cidade. Nela se lê: “Retomai a carta do bem-aventurado apóstolo Paulo. O que vos escreveu ele por primeiro, no início da evangelização? Na verdade, divinamente inspirado, ele enviou a carta para vós a respeito dele mesmo, de Cefas e de Apolo, porque já se formavam divisões entre vós. Contudo, tal divisão representava então pecado menor para vós, já que vos inclináveis para apóstolos autorizados e para um homem aprovado junto de vós. Agora, porém [...] a antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está em revolta contra os seus presbíteros” (ROMA, Clemente de. Clemente aos Coríntios. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 57).
O autor dessa epístola é às vezes identificado com o Clemente de Filipenses 4:3. Mas não temos condições de afirmar com certeza que se trata da mesma pessoa, embora possa ser esse o caso. Sabemos que Clemente era um líder da igreja de Roma, pois não escreve em seu próprio nome, mas no dela. Abre, de fato, a carta com as seguintes palavras dedicatórias: “A Igreja de Deus que vive como estrangeira em Roma à Igreja de Deus que vive como estrangeira em Corinto” (idem. p. 23).
Mas o mais importante é que Clemente nos informa que o pecado dos coríntios tinha-se agravado, em relação ao tempo de Paulo. Tinha passado do orgulho por pequenas diferenças de ensino para a revolta contra homens santos e não censuráveis, a quem Deus tinha confiado o cuidado do seu rebanho. Porém, esse agravamento não havia convertido os coríntios numa igreja herética. Não é assim que Clemente os trata. Pelo contrário, ele dispensa o mesmo tipo de tratamento que Paulo dispensara àquela igreja. Isso mostra que a tradição apostólica considerava não só a divisão por doutrinas, mas também a revolta contra os presbíteros como pecados, porém não tão graves quanto a heresia.
É interessante que a revolta, na igreja em Corinto, como Clemente a descreve, não se dirigiu apenas à autoridade eclesiástica. Mais do que isso, foi uma rebelião “dos sem honra contra os honrados, dos obscuros contra os ilustres, dos insensatos contra os sensatos, dos jovens contra os anciãos” (idem. p. 25).
Essas palavras são reveladoras. Mostram dois níveis de dignidade que a rebelião atingiu. O primeiro é o nível dos atributos que sustentam a autoridade: a honra, o caráter ilustre, a sensatez e a idade. O outro é o da autoridade formal: o presbiterado propriamente dito. Se não discernirmos os dois níveis, não compreenderemos por que a revolta foi censurada por Clemente.
O ponto mais grave da revolta coríntia era o prejuízo que gerava para os atributos que sustentam a autoridade. Esses atributos são mais valiosos que a autoridade formal. Mas eles próprios são, em parte, também definidos formalmente. Vejamos o caso do caráter ilustre, que Clemente opõe à obscuridade. Parece referir-se senão ao nascimento, ao menos à posição de classe. Se assim não fosse, por que opor o ilustre ao obscuro?
E a honra a que Clemente se refere? Também ela parece um pouco formal. Não se opõe à desonestidade ou a outro vício do comportamento, mas à falta de honra como algo evidente e quase visível naquela época. De novo, somos levados a pensar num atributo de posição.
A idade é o apanágio mais claramente divorciado da conduta, dentre os que o autor menciona. É pura decorrência do tempo. Dos quatro atributos, portanto, só a sensatez está inequivocamente relacionada ao pensamento e à conduta.
Em suma, se a autoridade eclesiástica repousa em atributos que a antecedem e não pode existir sem eles, por outro lado, os atributos são entendidos de modo acentuadamente formal. Devemos perguntar se esse formalismo não é um sinal do que hoje denominamos conservadorismo. Penso que é. O conservadorismo antigo era, ao menos em parte, o hábito não só de estabelecer a ordem social, mas também de justificá-la por meio de valores morais baseados no nascimento, na posição, em títulos, enfim em requisitos formais.
A concepção de autoridade vigente na igreja primitiva, portanto, era semelhante, quando não idêntica, à que vigorava no mundo pagão. Comparemos o ensinamento de Clemente com a imagem que Marcos Agripa utiliza para descrever a sociedade secular de seu tempo. De acordo com ele, "Seria tolo as mãos, os pés ou os olhos se rebelarem contra o estômago; assim também, os plebeus não se devem rebelar contra os patrícios, mas aceitar a sua autoridade".
Contrariamente à ausência desse hábito no ensinamento de Jesus e à presença em forma mais branda, na lista dos requisitos do presbítero e do diácono em 1ª a Timóteo e Tito, notamos presença muito maior na epístola de Clemente aos coríntios. Não é de espantar, se Clemente escrevia da capital do Império, onde estavam situados o Senado e a Corte dos Césares, se escrevia em nome da igreja ali existente, que embora estrangeira, como ele diz, não podia escapar à influência do meio.
A epístola de Clemente é talvez o primeiro documento cristão que demonstra influência muito forte do conservadorismo social na estrutura da igreja. As alusões de Paulo à mulher e aos escravos eram sinais de conservadorismo, mas não se aplicavam à estrutura da própria igreja. Paulo recomendava a submissão da mulher ao marido e do escravo ao senhor, em respeito à ordem social. Não definia a ordem da igreja, com base nessas relações. Clemente, ao contrário, aceitou que se definisse a autoridade eclesiástica pela posição social.
Não chego a afirmar que Clemente escorasse a autoridade espiritual em títulos, cargos ou posições de governo. Pouquíssimos cristãos possuíam sinais de nobreza, no primeiro século. Exigi-los como fundamento para o presbiterado seria privar a igreja de presbíteros. Porém, a carta de Clemente transparece um pensamento formalista e conservador e o aplica à igreja. É, por isso, um marco muito importante das transformações por que a igreja passou, no seu primeiro século.
Podemos acompanhar as mesmas transformações em outros textos daquela época. Inácio escreveu várias epístolas a igrejas. Em cada uma menciona um bispo, presbíteros e diáconos. Portanto, na época desses escritos (cerca de 110 d. C.), o bispo, que no Novo Testamento era outro nome para o presbítero, se distinguira dele. Fora posto acima do presbitério. Nesse sentido, Inácio escreve à igreja em Filadélfia: “Há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo [o pão da eucaristia] e um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos filadelfienses. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 110). Ao se referir a várias igrejas, na mesma epístola, Inácio fala de bispos, no plural, e não mais de um só: “As Igrejas mais próximas enviaram seus bispos, outras seus presbíteros e diáconos” (idem. p. 113). E, de novo, à igreja em Esmirna considerada individualmente escreve: “Saúdo o bispo, digno de Deus, o respeitável presbitério, os meus diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos esmirniotas. In ob. cit. p. 120).
Inácio já foi apontado como criador da hierarquia cristã e como o primeiro a diferenciar o bispo do presbítero. Mas a análise cuidadosa dos seus textos mostra que ele apenas se referiu a uma hierarquia já existente. Não foi o seu criador. Por outro lado, a diferença hierárquica entre o bispo e o presbítero não o antecedeu muito, já que Clemente sempre adotou a terminologia bíblica, segundo a qual os presbíteros são também bispos. Por exemplo, ao combater a destituição dos presbíteros, numa passagem, ele escreveu: “Não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado [encargo de bispo] aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito” (ROMA, Clemente de. Ob. cit. p. 55).
É provável que o desenho hierárquico da igreja, a que Inácio se refere, tenha surgido pelo aprofundamento da tendência conservadora já evidente na epístola de Clemente Romano. Se a autoridade era pensada em termos formais e se a família possuía o pater, o Império, o César, e os reinos, seus reis, por que não constituir um líder supremo da igreja?
A hierarquia eclesiástica é um dos traços mais evidentes do conservadorismo baseado em formas, títulos e outros atributos externos a que me refiro. É interessante observar como uma das mensagens mais avessas a ele que já foram pregadas (a de Cristo) tenha sido adotada como base para o estabelecimento de instituições tão nitidamente conservadoras. É que o mundo antigo não funcionava a não ser com base em valores e métodos conservadores. A opção a eles era a absoluta disfuncionalidade. Era não criar igreja alguma. Por isso, os cristãos bem cedo estabeleceram comunidades inspiradas no evangelho, porém moldadas à semelhança do mundo de sua época.
Outra é a situação do mundo hoje. A grande marca da Modernidade é ter produzido não apenas propostas, mas modos de vida que rompem com os valores do conservadorismo. Esses modos de vida foram postos em prática, testados e, ao menos alguns, mostraram-se funcionais. A ponto de podemos afirmar que o mundo de hoje é uma combinação de elementos antigos e tradicionais, de um lado, e elementos modernos, de outro.
Essa mudança do mundo oferece uma oportunidade extraordinária para a igreja mudar seus valores, para ela substituir as formas e instituições tradicionais por formas e instituições modernas. A começar pelo formato hierárquico e pela ordem interna da igreja. Para isso, é necessário reconhecer que a hierarquia formal não é um legado do evangelho , mas do conservadorismo antigo, assim como a submissão da mulher ao marido e a do escravo ao senhor o são. Na verdade, a hierarquia eclesiástica nem sequer é ordenada como um valor neotestamentário, ao contrário do que ocorre com a submissão das mulheres e dos escravos que são valores mundanos recepcionados nas cartas do Novo Testamento. De sorte que a questão maior, que a História dos primeiros séculos coloca, não é a hierarquia, a submissão das mulheres ou a escravidão, mas o conservadorismo do qual as três são manifestações particulares.
Se a hierarquia mais rígida é um produto do conservadorismo antigo, a submissão das mulheres e a escravidão não têm outra origem, nem fluem de outro princípio. Se estamos livres da primeira, mas não da segunda, por estar na Bíblia, por que não praticamos a escravidão, que também está? Porque ela foi abolida, nas nossas sociedades, dirão. Sim, mas e a submissão das mulheres: não foi também abolida? Não é, pois, correto praticarmos uma consequência e não outra do mesmo princípio básico (o conservadorismo antigo), se as duas estão na Bíblia e foram abolidas na sociedade.
A fé tem uma estranha intimidade com o princípio conhecido como tertium non datur. Ou algo é, ou não é. Não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou cremos, ou não cremos na Bíblia. Não podemos crer e não crer. Por isso, ou adotamos a escravidão, a submissão das mulheres e a hierarquia rígida, pois emanam do mesmo princípio, ou proclamamos a nossa libertação de todos como instituições prescritas de um tempo passado.
Se a revolta contra os presbíteros de Corinto está envolta em costumes conservadores é uma hipótese ou possibilidade hermenêutica. A História que escrevo é hipotética, porque profundamente interpretativa. Mas a fé não é hipótese. É antes certeza. Por isso, não é conforme a fé criar governos colegiados, libertar os escravos e manter as mulheres em submissão. É?
Paulo, porém, aponta o pecado de divisão na igreja em Corinto, sem deixar de tratá-la como uma comunidade cristã. Um dos partidos daquela igreja seguia Paulo, outro, Pedro, outro, Apolo e ainda outro afirmava seguir a Cristo (1 Co 1:12). Contudo, as opiniões desses partidos estavam de acordo com o Novo Testamento, devido às fontes de que provinham. Isso os tornava negativos, mas não tão perigosos quanto as heresias mencionadas antes.
A carta de Clemente de Roma aos coríntios, escrita por volta do ano 95, ajuda a entender o sentido dos problemas existentes naquela cidade. Nela se lê: “Retomai a carta do bem-aventurado apóstolo Paulo. O que vos escreveu ele por primeiro, no início da evangelização? Na verdade, divinamente inspirado, ele enviou a carta para vós a respeito dele mesmo, de Cefas e de Apolo, porque já se formavam divisões entre vós. Contudo, tal divisão representava então pecado menor para vós, já que vos inclináveis para apóstolos autorizados e para um homem aprovado junto de vós. Agora, porém [...] a antiga Igreja de Corinto, por causa de uma ou duas pessoas, está em revolta contra os seus presbíteros” (ROMA, Clemente de. Clemente aos Coríntios. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 57).
O autor dessa epístola é às vezes identificado com o Clemente de Filipenses 4:3. Mas não temos condições de afirmar com certeza que se trata da mesma pessoa, embora possa ser esse o caso. Sabemos que Clemente era um líder da igreja de Roma, pois não escreve em seu próprio nome, mas no dela. Abre, de fato, a carta com as seguintes palavras dedicatórias: “A Igreja de Deus que vive como estrangeira em Roma à Igreja de Deus que vive como estrangeira em Corinto” (idem. p. 23).
Mas o mais importante é que Clemente nos informa que o pecado dos coríntios tinha-se agravado, em relação ao tempo de Paulo. Tinha passado do orgulho por pequenas diferenças de ensino para a revolta contra homens santos e não censuráveis, a quem Deus tinha confiado o cuidado do seu rebanho. Porém, esse agravamento não havia convertido os coríntios numa igreja herética. Não é assim que Clemente os trata. Pelo contrário, ele dispensa o mesmo tipo de tratamento que Paulo dispensara àquela igreja. Isso mostra que a tradição apostólica considerava não só a divisão por doutrinas, mas também a revolta contra os presbíteros como pecados, porém não tão graves quanto a heresia.
É interessante que a revolta, na igreja em Corinto, como Clemente a descreve, não se dirigiu apenas à autoridade eclesiástica. Mais do que isso, foi uma rebelião “dos sem honra contra os honrados, dos obscuros contra os ilustres, dos insensatos contra os sensatos, dos jovens contra os anciãos” (idem. p. 25).
Essas palavras são reveladoras. Mostram dois níveis de dignidade que a rebelião atingiu. O primeiro é o nível dos atributos que sustentam a autoridade: a honra, o caráter ilustre, a sensatez e a idade. O outro é o da autoridade formal: o presbiterado propriamente dito. Se não discernirmos os dois níveis, não compreenderemos por que a revolta foi censurada por Clemente.
O ponto mais grave da revolta coríntia era o prejuízo que gerava para os atributos que sustentam a autoridade. Esses atributos são mais valiosos que a autoridade formal. Mas eles próprios são, em parte, também definidos formalmente. Vejamos o caso do caráter ilustre, que Clemente opõe à obscuridade. Parece referir-se senão ao nascimento, ao menos à posição de classe. Se assim não fosse, por que opor o ilustre ao obscuro?
E a honra a que Clemente se refere? Também ela parece um pouco formal. Não se opõe à desonestidade ou a outro vício do comportamento, mas à falta de honra como algo evidente e quase visível naquela época. De novo, somos levados a pensar num atributo de posição.
A idade é o apanágio mais claramente divorciado da conduta, dentre os que o autor menciona. É pura decorrência do tempo. Dos quatro atributos, portanto, só a sensatez está inequivocamente relacionada ao pensamento e à conduta.
Em suma, se a autoridade eclesiástica repousa em atributos que a antecedem e não pode existir sem eles, por outro lado, os atributos são entendidos de modo acentuadamente formal. Devemos perguntar se esse formalismo não é um sinal do que hoje denominamos conservadorismo. Penso que é. O conservadorismo antigo era, ao menos em parte, o hábito não só de estabelecer a ordem social, mas também de justificá-la por meio de valores morais baseados no nascimento, na posição, em títulos, enfim em requisitos formais.
A concepção de autoridade vigente na igreja primitiva, portanto, era semelhante, quando não idêntica, à que vigorava no mundo pagão. Comparemos o ensinamento de Clemente com a imagem que Marcos Agripa utiliza para descrever a sociedade secular de seu tempo. De acordo com ele, "Seria tolo as mãos, os pés ou os olhos se rebelarem contra o estômago; assim também, os plebeus não se devem rebelar contra os patrícios, mas aceitar a sua autoridade".
Contrariamente à ausência desse hábito no ensinamento de Jesus e à presença em forma mais branda, na lista dos requisitos do presbítero e do diácono em 1ª a Timóteo e Tito, notamos presença muito maior na epístola de Clemente aos coríntios. Não é de espantar, se Clemente escrevia da capital do Império, onde estavam situados o Senado e a Corte dos Césares, se escrevia em nome da igreja ali existente, que embora estrangeira, como ele diz, não podia escapar à influência do meio.
A epístola de Clemente é talvez o primeiro documento cristão que demonstra influência muito forte do conservadorismo social na estrutura da igreja. As alusões de Paulo à mulher e aos escravos eram sinais de conservadorismo, mas não se aplicavam à estrutura da própria igreja. Paulo recomendava a submissão da mulher ao marido e do escravo ao senhor, em respeito à ordem social. Não definia a ordem da igreja, com base nessas relações. Clemente, ao contrário, aceitou que se definisse a autoridade eclesiástica pela posição social.
Não chego a afirmar que Clemente escorasse a autoridade espiritual em títulos, cargos ou posições de governo. Pouquíssimos cristãos possuíam sinais de nobreza, no primeiro século. Exigi-los como fundamento para o presbiterado seria privar a igreja de presbíteros. Porém, a carta de Clemente transparece um pensamento formalista e conservador e o aplica à igreja. É, por isso, um marco muito importante das transformações por que a igreja passou, no seu primeiro século.
Podemos acompanhar as mesmas transformações em outros textos daquela época. Inácio escreveu várias epístolas a igrejas. Em cada uma menciona um bispo, presbíteros e diáconos. Portanto, na época desses escritos (cerca de 110 d. C.), o bispo, que no Novo Testamento era outro nome para o presbítero, se distinguira dele. Fora posto acima do presbitério. Nesse sentido, Inácio escreve à igreja em Filadélfia: “Há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo [o pão da eucaristia] e um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos filadelfienses. In Padres apostólicos. 4ª ed., São Paulo: Paulus, 2008. p. 110). Ao se referir a várias igrejas, na mesma epístola, Inácio fala de bispos, no plural, e não mais de um só: “As Igrejas mais próximas enviaram seus bispos, outras seus presbíteros e diáconos” (idem. p. 113). E, de novo, à igreja em Esmirna considerada individualmente escreve: “Saúdo o bispo, digno de Deus, o respeitável presbitério, os meus diáconos” (ANTIOQUIA, Inácio de. Inácio aos esmirniotas. In ob. cit. p. 120).
Inácio já foi apontado como criador da hierarquia cristã e como o primeiro a diferenciar o bispo do presbítero. Mas a análise cuidadosa dos seus textos mostra que ele apenas se referiu a uma hierarquia já existente. Não foi o seu criador. Por outro lado, a diferença hierárquica entre o bispo e o presbítero não o antecedeu muito, já que Clemente sempre adotou a terminologia bíblica, segundo a qual os presbíteros são também bispos. Por exemplo, ao combater a destituição dos presbíteros, numa passagem, ele escreveu: “Não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado [encargo de bispo] aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito” (ROMA, Clemente de. Ob. cit. p. 55).
É provável que o desenho hierárquico da igreja, a que Inácio se refere, tenha surgido pelo aprofundamento da tendência conservadora já evidente na epístola de Clemente Romano. Se a autoridade era pensada em termos formais e se a família possuía o pater, o Império, o César, e os reinos, seus reis, por que não constituir um líder supremo da igreja?
A hierarquia eclesiástica é um dos traços mais evidentes do conservadorismo baseado em formas, títulos e outros atributos externos a que me refiro. É interessante observar como uma das mensagens mais avessas a ele que já foram pregadas (a de Cristo) tenha sido adotada como base para o estabelecimento de instituições tão nitidamente conservadoras. É que o mundo antigo não funcionava a não ser com base em valores e métodos conservadores. A opção a eles era a absoluta disfuncionalidade. Era não criar igreja alguma. Por isso, os cristãos bem cedo estabeleceram comunidades inspiradas no evangelho, porém moldadas à semelhança do mundo de sua época.
Outra é a situação do mundo hoje. A grande marca da Modernidade é ter produzido não apenas propostas, mas modos de vida que rompem com os valores do conservadorismo. Esses modos de vida foram postos em prática, testados e, ao menos alguns, mostraram-se funcionais. A ponto de podemos afirmar que o mundo de hoje é uma combinação de elementos antigos e tradicionais, de um lado, e elementos modernos, de outro.
Essa mudança do mundo oferece uma oportunidade extraordinária para a igreja mudar seus valores, para ela substituir as formas e instituições tradicionais por formas e instituições modernas. A começar pelo formato hierárquico e pela ordem interna da igreja. Para isso, é necessário reconhecer que a hierarquia formal não é um legado do evangelho , mas do conservadorismo antigo, assim como a submissão da mulher ao marido e a do escravo ao senhor o são. Na verdade, a hierarquia eclesiástica nem sequer é ordenada como um valor neotestamentário, ao contrário do que ocorre com a submissão das mulheres e dos escravos que são valores mundanos recepcionados nas cartas do Novo Testamento. De sorte que a questão maior, que a História dos primeiros séculos coloca, não é a hierarquia, a submissão das mulheres ou a escravidão, mas o conservadorismo do qual as três são manifestações particulares.
Se a hierarquia mais rígida é um produto do conservadorismo antigo, a submissão das mulheres e a escravidão não têm outra origem, nem fluem de outro princípio. Se estamos livres da primeira, mas não da segunda, por estar na Bíblia, por que não praticamos a escravidão, que também está? Porque ela foi abolida, nas nossas sociedades, dirão. Sim, mas e a submissão das mulheres: não foi também abolida? Não é, pois, correto praticarmos uma consequência e não outra do mesmo princípio básico (o conservadorismo antigo), se as duas estão na Bíblia e foram abolidas na sociedade.
A fé tem uma estranha intimidade com o princípio conhecido como tertium non datur. Ou algo é, ou não é. Não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou cremos, ou não cremos na Bíblia. Não podemos crer e não crer. Por isso, ou adotamos a escravidão, a submissão das mulheres e a hierarquia rígida, pois emanam do mesmo princípio, ou proclamamos a nossa libertação de todos como instituições prescritas de um tempo passado.
Se a revolta contra os presbíteros de Corinto está envolta em costumes conservadores é uma hipótese ou possibilidade hermenêutica. A História que escrevo é hipotética, porque profundamente interpretativa. Mas a fé não é hipótese. É antes certeza. Por isso, não é conforme a fé criar governos colegiados, libertar os escravos e manter as mulheres em submissão. É?