sábado, 26 de outubro de 2013

Livre Exame de Romanos (18): Filhos e Herdeiros de Deus

Mateus, Marcos, Lucas e João transmitem-nos os fatos relevantes do ministério de Cristo na Terra, mas não interpretam de modo especial esses fatos. Para conhecermos a interpretação do evangelho de Deus, precisamos recorrer às epístolas, entre as quais Romanos ocupa o lugar central, por conter a única interpretação sistemática da salvação que nos foi dada por Deus em Cristo.
Mas, assim como a interpretação do evangelho tem em Romanos seu centro, podemos afirmar que essa epístola se centra no capítulo 8 dela, no qual todas as suas afirmações convergem e alcançam aplicação máxima. E, embora Romanos 8 nos fale de vários temas, o Espírito Santo predomina nos primeiros 16 versículos, assim como a condição de filhos de Deus, nos versos 14 a 23. Por isso, podemos concluir que não há como entender o evangelho de Deus, sem conhecer o trabalho do Espírito Santo no interior dos que creem e as implicações decorrentes de Deus os fazer seus filhos.
Vimos anteriormente que a obra do Espírito consiste em ensinar ao nosso coração as palavras que Cristo falou pessoalmente ou por meio de seus primeiros apóstolos. Assim, o ministério do Espírito Santo está ligado ao ensino de Jesus Cristo e tem como resultados primordiais a vida e a paz que Paulo menciona em 8:6: “Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz”. Não há dúvida de que essa não é qualquer vida ou uma vida indeterminada, cujo sentido ninguém conhece, inclusive o apóstolo. Tampouco é a vida humana comum e tenho para mim que, nos termos do Novo Testamento, ela tampouco é a vida divina.
Mas, se não é a vida humana comum ou a vida de Deus, que vem a ser essa vida que o Espírito gera no interior dos que creem em Cristo? Ela é, antes de tudo, a vida resultante do novo nascimento da água e do Espírito, ao qual Jesus se referiu em João 3:5: “Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”. Para entendermos o sentido desse novo nascimento, precisamos, em primeiro lugar, nos perguntar quem passa por ele e recebe a nova vida.
É estreme de dúvida que os que recebem o dom de uma vida nova são os que creem em Cristo. Esse é um ponto fundamental, pois Paulo se esforça para nos mostrar, em Romanos, que a fé é o único meio pelo qual Deus realiza sua obra de salvação. Porém, tão crucial quanto entender que os que recebem a nova vida são crentes é reconhecer que eles são seres humanos e que, por isso, a vida que recebem de Deus só pode ser uma vida humana. Até porque qualquer outra vida, seja de Deus ou de um animal, transformaria quem a recebesse em outro tipo de ser: em Deus ou num animal.
Essa é uma verdade tão clara e tão simples quanto afirmar que o fogo queima. Ter a vida de Deus é o mesmo que ser Deus e ter a vida de um animal irracional é ser um animal irracional. Como não somos Deus, nem animal irracional, a vida que recebemos pelo novo nascimento não é a de Deus ou a de um animal. É uma nova vida humana, diferente e superior à que Adão recebeu.
Claro que a nova vida humana não é recebida sem intensa atuação da vida divina. Porque Deus age no homem para produzir o novo nascimento, podemos afirmar que a vida divina está ali plenamente ativa. Nesse sentido, o Evangelho afirma que aqueles que creem em Cristo nascem de Deus (Jo 1:12). O que não acontece, nesse novo nascimento, é a vida divina misturar-se à humana, de modo a formar uma nova vida. Essa é uma afirmação que falta no Novo Testamento. Não a encontramos em Paulo ou em qualquer outro escritor bíblico.
Porém, a nova vida iniciada a partir do novo nascimento é o ponto central de Romanos 8 tanto quanto o resultado máximo do evangelho de Deus. Quem não a recebe não pode entrar no reino de Deus, nem o ver (Jo 3:3,5). E sem entrar e sem ver o reino, não há evangelho algum, não há Novo Testamento, nem há salvação.
Por isso, Paulo enfatiza tanto a filiação, em Romanos 8. Por isso ele fala tantas vezes dos filhos de Deus: “Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo” (8:14-17).
Esse é só um exemplo da importância que Paulo atribui à filiação. Não há evangelho sem a experiência de se tornar filho de Deus. Porém, exatamente por isso, devemos indagar e procurar responder com atenção redobrada o que significa receber a adoção de filho. Se não significa receber a vida de Deus ou misturar-se com ela, deve indicar uma nova relação com Deus. Nesse sentido, é que Paulo opõe a filiação à escravidão. O escravo não tem a vida do dono. Se a tivesse, ele seria o próprio dono. O que ele possui, o que o faz um escravo, é a sua relação com o dono. Do mesmo modo, o que faz a pessoa ser filho de Deus é a relação que adquire com Deus.
Isso era extremamente claro, no primeiro século, já que a existência de pai, filhos e escravos, na mesma casa, era algo comum. No entanto, a relação do escravo era muito diferente da do filho com o pai. A essa diferença é que Paulo alude. Quem estivesse inserido numa das famílias daquela época compreenderia esse fato imediatamente. Nenhuma dúvida permaneceria na sua mente de que as diferenças entre o pai, o filho e o escravo eram relacionais, deviam-se à relação entre eles e não à natureza ou à vida deles.
Do mesmo modo, a diferença entre a vida dos filhos de Deus e a dos escravos do pecado decorre da relação que uns e outros mantêm com Deus. No primeiro caso, a relação é de amor; no outro é de inimizade. O que o novo nascimento confere, portanto, é a primeira relação, a relação especialíssima de filho de Deus. É o privilégio de ser filho do Criador do Universo. É o poder chamar Deus Pai, o viver com ele e o estar inseparavelmente ligado a ele. É ter intrepidez para se aproximar do trono da graça (Hb 4:16). Enfim, é toda uma nova relação, que não existia antes de Cristo realizar sua obra salvadora, mas que não se confunde com a comunicação da vida de Deus ao homem.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo são todos Deus. Claro que todos, por isso, possuem a natureza e a vida de Deus. Mas eles também mantêm relações uns com os outros. A vida e a natureza de Deus são incomunicáveis, porém a espécie de relação que o Pai tem com o Filho não o é. Deus nos concede algo análogo a essa relação, por meio do novo nascimento. Assim como o Pai está no Filho, e o Filho, no Pai, somos admitidos à presença do Pai e do Filho por meio do novo nascimento. E assim como o Pai ama o Filho, e o Filho, o Pai, somos amados por eles e começamos a amá-los, ao crermos na obra redentora de Cristo.
Tudo isso são relações. São até mesmo uma nova e única relação global com Deus, que Paulo denomina filiação ou adoção. Sabemos que, em grego, a palavra huiostesía, empregada por Paulo, significava adoção. Essa é a modalidade de filiação que recebemos de Deus. Porém, não se compreende o significado de huiostesía sem se entender a relação que o termo implica. A palavra está sobrecarregada com o significado dessa relação. De modo que todo outro significado é completamente secundário nela.
Que relação está implicada no termo huiostesía? A relação do Pai com o Filho. E que relação é essa, a não ser um consórcio de amor? É uma relação que, uma vez preservada, se torna inexpugnável. Nada a pode abalar. Uma reação química pode ocorrer, mas também pode ser desfeita. A associação de blocos de matéria como átomos e moléculas também pode ocorrer e ser desfeita por forças externas. Porém, a relação entre Deus e seus filhos não pode ser dissolvida. Só o livre arbítrio de Deus e dos próprios filhos a pode suspender, não um fator externo, pois a relação não é como uma ligação química. É, antes, de todo inquebrantável.
No texto hebraico do Salmo 23, as frases “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará” não são duas afirmações complementares, mas correlativas, quase reiterativas. “Nada me faltará” é quase uma repetição de “O Senhor é o meu pastor”. E, posto que o tempo verbal, em hebraico, não funciona como em português, “nada me faltará” é também “nada me falta”, como a Bíblia de Jerusalém o traduz. Portanto, o Senhor ser meu pastor implica nada me faltar no dia de hoje e para todo o sempre. Implica que entramos numa espécie de relação indissolúvel com o bom Pastor.
E Paulo, que nos diz? “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (8:31). Entendamos: se Deus se ligou inseparavelmente a nós, quem quebrará essa relação? “Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (8:32-33). Entendamos: se Deus não poupou o seu próprio Filho, poupará simples coisas? Se nos deu o seu Filho Unigênito, não nos dará com ele todas as coisas? Ou em linguagem jurídica: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (8:33-34). E na frase talvez mais culminante e definitiva de quantas podemos encontrar: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (8:35).
Poderíamos dizer até mesmo: Quem nos separará do amor que é o próprio Espírito Santo? Pois, se Deus ama o Filho, se ele se alegra com o Filho e se tem paz na companhia do Filho, podemos dizer que esse amor, essa alegria e essa paz são o Espírito Santo. A relação de amor, de alegria e de paz é, sempre, do Pai com seu Filho, mas ela é o Espírito Santo.
Santo Agostinho foi o maior mestre dessa interpretação. Ele escreveu: “A razão pela qual o Apóstolo fala da graça e da paz de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo [no início das suas epístolas], sem acrescentar o Espírito Santo, parece-me não ser outra senão porque compreendemos o Espírito como o próprio dom de Deus. Com efeito, o que são a graça e a paz senão o dom de Deus? Por isso, de forma alguma podem ser concedidas aos homens a graça, que nos liberta dos pecados, e a paz, que nos reconcilia com Deus, senão pelo Espírito Santo” (HIPONA, Agostinho de. Explicação incoada da Carta aos Romanos. In Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2009. p. 167). Semelhantemente, o amor e a alegria de Deus só são concedidos pelo Espírito Santo.
Por esses motivos, o Espírito é tão importante, em Romanos 8 e no Novo Testamento como um todo. Sem ele, não há participação do homem em Deus e em Cristo. Só o Espírito coloca realmente o homem em relação com Deus, pois só ele é a relação do Pai com o Filho da qual importa que o homem participe. E ninguém participa de coisas tão elevadas sem nascer de novo, sem provar uma vida inteiramente nova, uma vida que não procede da carne ou do sangue, da vontade da carne ou da vontade do homem, mas de Deus e somente dele. Adão foi feito do pó da terra; Eva, da costela de Adão. Por isso, um é terreno e o outro, antrópico. O novo homem, somente ele, é criado no espírito humano por Deus Espírito e é, por isso, espiritual.