Se a Bíblia é o livro mais lido do mundo, Salmos é o livro mais lido da Bíblia, e por motivos bem fortes. Nele, mais que em toda outra parte das Escrituras, a doutrina revelada por Deus é, sistematicamente, inserida em situações de vida, nas quais os sentimentos dos que as experimentam ocupam lugar de destaque. Essa metamorfose da revelação em vida é o que mais explica o interesse das pessoas pelos Salmos.
Poderíamos pensar que, à frente de uma coletânea de poemas tão celestiais quanto os cânticos bíblicos, deveria ser posto um texto inteiramente devocional. Porém, se isso tivesse ocorrido, a conexão entre os Salmos e a doutrina revelada (a lei) não seria posta em relevo. Para evitar esse desencontro, o poema escolhido para servir de abertura ao livro nos fala, propositadamente, de um homem que tem a lei no seu coração e nela medita dia e noite.
A lei não foi entregue a Israel para servir de regra inflexível de comportamento, mas como motivo de meditação. Ela devia estar no coração do homem e ser meditada, em todos os momentos da vida comum e cotidiana. Podemos afirmar, confiantemente, que os Salmos são a plena realização disso.
Ao ser meditada, a lei de Deus torna-se um espelho para o homem. Na sua superfície, o homem reconhece a sua verdadeira compleição moral: seus sofrimentos, seus esforços para realizar o bem e a agonizante insuficiência deles. Assim, a lei se transforma em parte integrante da antropologia da Bíblia, por nos revelar o coração partido do homem.
Salmos é a oficina, o laboratório divino, em que a lei é, primeiro, transformada em situações de vida e, depois, em cânticos. Por terem percebido esse fato, alguns dos copistas do livro acrescentaram-lhe subtítulos que especificam os supostos autores dos poemas, bem como as situações em que foram escritos. O objetivo dessas epígrafes, que não fazem parte do texto bíblico, não é estabelecer quem, de fato, compôs os Salmos. Seria impossível copistas definirem tão grande número de autores desconhecidos, depois da elaboração dos poemas. Por isso, o objetivo deles, ao acrescentar as epígrafes, foi inserir os poemas em biografias ou situações de vida de personagens bem conhecidas.
Com isso, os autores das epígrafes salientaram ainda mais uma característica ressaltada dos Salmos e que independe dos subtítulos: a conexão dos poemas com a vida como os judeus a viam e sentiam, isto é, como um vale de lágrimas que apenas Deus pode converter em outra coisa. De fato, há 15 categorias de Salmos: a mais numerosa, por ampla margem, é a dos poemas de lamentação. Mesmo os salmos que não contêm apenas lamentos, às vezes possuem prefácios que expressam sofrimentos e queixas.
Torna-se, pois, evidente que, se os Salmos inserem a doutrina revelada por Deus na existência cotidiana do homem, essa existência é apresentada como um caminho repleto de sofrimentos. Esse é o pano de fundo do livro. Podemos afirmar que é, ao mesmo tempo, o contexto de toda a Bíblia. De modo que, se os Salmos e as Escrituras realizam algo prático, é converter esse calvário em alegria, até mesmo em felicidade. Por isso, quase todos os Salmos que começam com lamentos terminam em ações de graças ou declarações de esperança em Deus. E o Saltério como um todo começa com as queixas dos primeiros poemas e termina com o louvor retumbante dos últimos.
Poucos poemas, porém, retratam a confiança em Deus de maneira mais simples e límpida do que o vigésimo-terceiro salmo. Os sofrimentos são nele mencionados só de passagem, sob a forma do vale da sombra da morte, no versículo 4, e dos inimigos do quinto verso. Não há detalhamento algum seja dos perigos do vale, seja da perversidade dos inimigos do autor do poema. Só os cuidados do pastor e os benefícios providos pelo anfitrião que prepara uma mesa na presença dos inimigos são descritos em minúcias. Vejamos como isso se dá.
Os quatro primeiros versículos desenvolvem a imagem do pastor que cuida de sua ovelha. Uma série de experiências pastoris enriquece essa imagem e desperta a atenção dos leitores, que se esforçam para estabelecer o que significa nada faltar à ovelha, o repouso nos pastos verdejantes, as águas de descanso, as veredas da justiça, o vale da sombra da morte, a vara, o cajado e o consolo provido por eles.
Não é tarefa fácil interpretar esses símbolos, já que não temos indício certo do que significam na esfera espiritual. Sabemos que os itens positivos devem significar coisas espiritualmente boas, e os negativos, coisas más, porém não temos como determinar exatamente o quê, sem acrescentarmos algo nosso ao texto. Essa é uma dificuldade sempre presente, quando a interpretação alegórica entra em questão e é melhor não tentarmos superá-la por recursos pessoais e não bíblicos.
Melhor do que atribuir significado a cada item é estabelecer o sentido geral do salmo, como Paulo fazia ao tratar de alegorias. Para isso, é preciso partir do versículo 1, que esclarece que o pastor é Deus. E, como Cristo revela Deus plenamente, podemos afirmar que ele é também retratado na figura do pastor. É o que João 10 claramente confirma. Quanto à ovelha, não é preciso afirmar que representa o seguidor de Deus e de Cristo. Não um seguidor qualquer, mas aquele que ouve a sua voz e a reconhece.
Resta, porém, estabelecer o significado de outro elemento central do salmo: a relação do pastor com a ovelha. Se o horizonte do Antigo Testamento é Cristo, o território que se espraia até ele é formado pelas experiências comuns e cotidianas do povo de Deus. Por isso, cada passagem tem Cristo como horizonte implícito, é nesse sentido messiânica, porém nos remete imediatamente às experiências da época em que foi escrita.
No caso do Salmo 23, essa experiência é a do cuidado de Deus, em meio às agruras da vida humana. É até mesmo o cuidado infalível de Deus, pois o autor compreende o resultado das dispensações divinas à sua alma de maneira categórica: “nada me faltará” (v. 1), “bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida” (v. 6) e outras expressões igualmente inequívocas.
Fundamental é notar que esse cuidado maravilhoso, que ultrapassa a compreensão humana, se dá no penoso contexto da existência terrena. Como já disse, esse é o pano de fundo dos Salmos e de todo o Antigo Testamento. A própria cultura grecorromana, embora constituída por povos nutridos na abundância, reconhecia o lugar central dos sofrimentos na vida. Apenas lhes atribuía um valor positivo, pois considerava que, se os vastos céus sujeitam-se a uma ordem inflexível, não pode ser diferente na terra. Como os céus estão em ordem, a terra também está, embora essa ordem, não raro, envolva sofrimentos e nos seja desfavorável.
A concepção grecorromana do sofrimento reflete-se claramente na obra do escritor Boécio, que foi senador e cônsul da Itália no sexto século. Após uma ascensão política meteórica, Boécio caiu na desgraça do rei dos godos, que o encarcerou, torturou e matou. Na prisão, entre as sessões de tortura, Boécio escreveu uma das obras que exerceram maior influência durante a Idade Média, na qual culpou severamente a sorte, o destino, a fortuna, pelos males que lhe tinham sobrevindo, até uma mulher radiante aparecer-lhe e começar a conversar com ele. O leitor logo descobre que a mulher é a Sabedoria, que se dirige ao prisioneiro nos seguintes termos: “Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel em sua inconstância” (Boécio. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 26).
Quer a Sabedoria dizer que o mundo humano é essencialmente inconstante. Que esse é o seu modo de ser, a sua ordem própria. E, por ser ordem, não é má, mas boa. Porém, a visitante inesperada não cessa de apresentar a Boécio as razões do seu infeliz estado. Mostra que as oscilações da sorte são parte normal da vida humana, como a regularidade é normal no mundo dos astros. E chega ao desfecho espantoso: “Seca portanto estas lágrimas. A Fortuna não foi cruel com toda a tua família [que escapara à perseguição dos godos], e a tempestade que se abateu sobre ti não foi demasiado violenta, pois tuas âncoras são firmes [...] Não posso suportar esse [teu] comportamento fraco, essa maneira de exaltar teu desespero com o pretexto de que algo falta à tua felicidade” (idem. p. 34).
Essa era a maneira romana não de negar o sofrimento, mas de o tratar de modo radicalmente distinto daquele pelo qual o judeu o tratava. Ao prisioneiro torturado e condenado à morte, a Sabedoria foi capaz de sussurrar: “A felicidade pode entrar em toda parte se suportamos tudo sem queixas” (idem. p. 35).
Quanta diferença em relação aos Salmos! Nestes, encontramos autor após autor a queixar-se, a gritar a Deus as suas infelicidades. Nas obras grecorromanas, temos a exaltação da força, da rigidez absoluta do caráter não baseadas na própria força e na rigidez, mas na sabedoria, ou seja, na aceitação de que as mudanças da sorte, os triunfos e os reveses, são inerentes à ordem do mundo. Estamos, enfim, diante de duas maneiras distintas e, às vezes, opostas de tratar o sofrimento. Nenhuma o nega. No fundo, ambas são estratégias para lidar com ele e o superar.
A maneira judaica consiste em confiar em Deus, que não apenas cuida dos seus, mas cuida completamente. “Nada me faltará”, diz o salmista. Paulo completa: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8:28). Embora todas as coisas inclua Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e as futuras, como ele diz em 1ª aos Coríntios 3:22, isso não significa que essas coisas não nos possam causar sofrimento, mas que a presença de Deus se torna ainda mais forte nos sofrimentos que elas nos causam.
Essa é também a lição do salmo. Sem pôr nem tirar. “Nada me faltará” é o mesmo que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. Nem uma, nem outra dessas promessas significa que o sofrimento não nos atingirá. Prometê-lo seria assegurar que o mundo mudaria de natureza. Deus nunca o disse. Nunca o prometeu. Disse, porém, e prometeu estar conosco, infalivelmente, em todas as situações. Prometeu também dispensar-nos o seu cuidado não de pastor humano, mas de pastor divino: cuidado perfeito e carente de nada.
Nem Salmos, nem Romanos ou Coríntios afirmam que não há sofrimento. Todos garantem, em uníssono, que existe o cuidado divino. “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23:4). Nem no vale da sombra da morte, na pior de todas as situações, esse cuidado pode faltar.
No entanto, após ter desenvolvido a figura do pastor e da ovelha, a ponto de orná-la com os mais belos sinais alegóricos, repentinamente, o salmista para. Abandona a figura que até então utilizara. Da imagem dos pastos, das águas e do vale, passa ao banquete que Deus lhe prepara na presença dos seus inimigos. Deus deixa de ser o pastor para passar a ser o anfitrião do banquete. Alguém que o abriga, durante a mortal perseguição promovida por inimigos.
Era costume judaico o perseguidor respeitar a residência de um terceiro inocente, em que o perseguido se refugiasse. O salmista refere-se a esse costume, mas vai além: afirma que o anfitrião prepara uma mesa e o coloca à frente dos seus inimigos, não para fazer um triunfar sobre o outro, mas para os reconciliar.
O objetivo de Deus não é nos fazer triunfar sobre os nossos inimigos. Não é nos levar a oprimir nossos opressores, mas fazer-nos sentar com eles em volta da mesma mesa. “Unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda” (Sl 23:5). A unção era um modo costumeiro de demonstrar acolhida e hospitalidade, na Palestina. Era uma das mais exaltadas demonstrações de amor. Lembramo-nos da mulher que quebrou o frasco de alabastro e ungiu Jesus com o seu amor (Lc 7:36-50). Não é outro o sentido da unção no salmo, mas seu emprego é invertido. Deus não é aqui ungido: ele próprio é quem unge o pecador.
Assim, o encontro com os opressores termina como deve: não apenas em reconciliação, mas num grandioso banquete. E isso não porque o salmista ou seus inimigos o mereçam, mas porque é próprio do caráter de Deus fazê-lo. Em momento nenhum, o salmo lida com a categoria do merecimento humano. O tempo todo, ele nos revelas o caráter de Deus.
Quem são nossos inimigos? Não precisamos chegar ao ponto de afirmar que são demônios. São antes seres da mesma natureza do salmista, seus concidadãos, filhos do mesmo pai. Assim como Esaú, que nasceu depois, persegue Jacó e, na parábola do filho pródigo, ao contrário, o que nasce primeiro persegue o mais novo, no Salmo 23 vemos inimigos perseguirem o servo de Deus. As três histórias, porém, terminam em reconciliação, clara ou implícita.
Jesus ensinou-nos a orar pelos nossos inimigos. Os exemplos citados mostram que, sob a graça, essa oração será respondida.