Muito antes de os relatos de Gênesis 1 e 2 sobre a criação serem escritos, os povos do Oriente Médio compartilhavam uma cosmovisão em que o Universo era representado como um semicírculo dividido em camadas que repousavam sobre colunas materiais. A camada superior era o céu empíreo, abaixo do qual estavam sucessivamente situados o oceano celeste, o céu sidéreo, a terra, o oceano terrestre e o lugar dos mortos. O céu empíreo e o oceano superior apoiavam-se nas águas inferiores. O céu sidéreo e a terra erguiam-se sobre colunas. Nessa arrebatadora visão, chama particularmente a atenção os papeis de sustentação dos céus e do oceano superior desempenhados pelas águas inferiores e pelas colunas do mundo.
Vestígios de uma representação semelhante do Universo podem ser encontrados em textos como Jó 9, 26, 28 e 38, Salmos 8, 19, 24, 90, 102, 104 e 148, Provérbios 8, Amós 9:6 e Isaías 40, entre outros. Em Jó 26:11, lemos: “As colunas do céu tremem”. Amós 9:6 reitera: “Deus é o que edifica as suas câmaras no céu e a sua abóbada fundou na terra”. As colunas da terra, por sua vez, aparecem em textos ainda mais numerosos, a exemplo de 1º de Samuel 2:8, Jó 9:6, Salmos 18:15, 24:2, 75:3, 102:25, 104:5, Provérbios 8:29 e Isaías 24:18.
Tantas referências aos alicerces, nos quais os mundos celeste e terreno descansam, impõem a compreensão de que os relatos da criação de Gênesis pressupõem esse cenário natural e a ele se referem. Não podemos deixar de reconhecer que esse é um dado incômodo, pois há muito sabemos que os mecanismos de sustentação dos céus e das águas superiores afirmados pelos antigos eram equivocados.
O que nem sempre se percebe é que o incômodo começou nos próprios tempos bíblicos e aumentou nos primeiros séculos da era cristã. Uma das causas dele foi a influência das obras de astrônomos e filósofos gregos, egípcios e babilônicos, sobre os teólogos como Ambrósio e Orígenes, que conceberam a natureza de maneira diferente da tradicional. Porém, o compromisso desses teólogos com as Escrituras era inabalável demais para considerarmos que eles trocaram suas concepções bíblicas por ideias astronômicas mais avançadas. Devemos, antes, perguntar se eles não encontraram, na própria Bíblia, motivos para reinterpretar o mundo físico, assim como os filósofos e astrônomos tinham encontrado os seus próprios motivos na investigação da natureza.
Não é possível compreender o que os primeiros teólogos cristãos realizaram, no tocante à descrição do mundo físico, sem admitir que, de algum modo, eles problematizaram as referências bíblicas à constituição sólida do firmamento, às colunas dos céus e da terra e a outros aspectos da mundivisão do homem antigo. Problematizar não significa, aqui, rejeitar (pois isso eles nunca fizeram, nem poderiam ter feito), mas manifestar dúvidas e sugerir novas interpretações das expressões das Escrituras que refletem aquelas concepções mais antigas.
Ao iniciar esta série sobre a criação bíblica, parto desses pensadores cristãos dos séculos II a VI, pois as desconfianças que nutriram em relação à visão de mundo antiga não podem ser atribuídas à vontade de corrigi-la com base em descobertas científicas. Se nós, que vivemos no século XXI, sugeríssemos uma exegese da criação que harmonizasse o relato da Bíblia com a ciência atual, seríamos tidos como suspeitos, já que é fácil corrigir equívocos depois que eles se tornam patentes. Mas os autores antigos não conheceram a ciência moderna, que tornou os equívocos evidentes. Portanto, as desconfianças que mantiveram em relação à mundivisão arcaica merece ser investigada para verificarmos se, afinal, eles não encontraram, na própria Bíblia, motivos para relativizá-la.
No século VI, Boécio sintetizou os avanços alcançados pelos astrônomos e os questionamentos dos teólogos cristãos, numa passagem célebre: “Toda a extensão da Terra, como bem o sabes graças às demonstrações dos astrônomos, comparada à extensão do Céu, não passa de um pequeno ponto: isso quer dizer que, comparada à extensão dos céus, a magnitude da Terra não é quase nada. E, dessa região tão ínfima, apenas um quarto, segundo os cálculos de Ptolomeu, é habitado por seres vivos. E, se desse quarto tu tirares toda a superfície ocupada por oceanos, lagos, desertos, etc., restará uma ínfima parte onde habitam os homens" (BOÉCIO, Severino. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 46).
A descrição dos céus de Boécio desafia a concepção geocêntrica do semicírculo calcado em colunas, que colocava a terra no centro do Universo. Ela resulta, manifestamente, do aparecimento de uma visão concorrente sobre o mundo físico, que se desenvolveu na Grécia, em Israel e outros povos.
Sobre a passagem do Livro de Jó que afirma que Deus “faz pairar a terra sobre o nada” (Jó 26:7), Ambrósio de Milão se pronunciou da seguinte maneira: “Deus suspende a terra no nada. Não importa discutir se ela está suspensa no ar ou em cima da água, para que daí nasça uma controvérsia: de que modo a natureza do ar, tênue e muito mole, pode sustentar o peso da terra? Ou então, se está sobre as águas, como é que a massa das terras não cai e não afunda nelas? [...] Assim como a terra está suspensa no vazio e permanece imóvel devido ao equilíbrio de peso em toda parte, assim também a água é equilibrada com a terra por pesos superiores ou iguais ao seu. Por isso o mar não se espalha facilmente sobre as terras” (MILÃO, Ambrósio de. Examerão - os seis dias da criação. São Paulo: Paulus, 2009. p. 66).
As citações acima refletem a crença de que a terra repousa sobre fundamentos sólidos, tanto quanto sobre a água e o ar. Esses três elementos misturam-se sob o solo, e o modo específico da mistura é responsável pela sustentação da terra e dos mares.
Por isso, de acordo com Ambrósio: “Não podemos pensar que a terra esteja realmente apoiada sobre colunas, mas sim sobre aquela virtude que sustenta e mantém a sua substância” (idem. p. 35). A palavra virtude não é aqui empregada em sentido moral, mas físico. Indica uma propriedade da matéria. E não há motivo para duvidarmos de que o emprego de tais termos nos remete a uma autêntica reinterpretação das colunas subterrâneas.
Vejamos, porém, outro aspecto da visão antiga. Muitos sustentam que a crença na existência de águas sobre o firmamento era um equívoco, mas esse juízo só é possível se adotarmos a perspectiva do homem moderno. Para os antigos, a palavra água tinha sentido elástico, como se depreende da seguinte passagem de Ambrósio: “Uma só e a mesma é a água e geralmente assume aparências diferentes [...] Fica ácida nos sucos prematuros; torna-se amarga no absinto; tem sabor mais intenso no vinho, mais azedo em outras bebidas, gosto ruim no veneno, doce no mel [...] Algumas espécies de águas produzem seiva mais amarga, outras mais doces, umas tardias, outras precocemente. Seus próprios perfumes também se distinguem entre si. Um é o perfume da videira, outro da oliveira, outro das cerejeiras, outro da figueira, diferente na macieira, ímpar na tamareira” (idem. pp. 121-122).
O homem antigo não tinha à mão as informações científicas que nós possuímos sobre a natureza. Considerava que os sucos, vinhos, seivas e resinas de árvores continham água ou eram água acrescida de outras propriedades. Claro que, com tantas formas possíveis de água, dificilmente o judeu e o cristão se atreviam a afirmar, de maneira precisa, como eram as águas sobre o firmamento.
É oportuno lembrar que, antes de Ambrósio, o autor de Jó reconhecera sua ignorância sobre o que havia nos céus: “Acaso a chuva tem pai? Ou quem gera as gotas do orvalho? De que ventre procede o gelo? E quem dá à luz a geada do céu? [...] Sabes tu as ordenanças dos céus, podes estabelecer a sua influência sobre a terra? [...] Quem pôs sabedoria nas camadas de nuvens? Ou quem deu entendimento ao meteoro? Quem pode numerar com sabedoria as nuvens? (Jó 38:28-29,33,36-37)”.
Os questionamentos de Ambrósio ecoam os do Livro de Jó. Mas, se o autor bíblico formula tantos questionamentos, é mesmo possível entendermos os seus ditos como sentenças definitivas sobre a natureza, a exemplo do que alguns cristãos até hoje fazem? Não tinha razão Ambrósio ao aprofundar os questionamentos de Jó, em vez de transformá-los em afirmações peremptórias?
Ambrósio delineou sua própria síntese do que se sabia e não se sabia, na sua época, a respeito dos céus: “Nós ouvimos os trovões produzidos pela colisão das nuvens [...] Que digam com exatidão de que forma o ar se condensa em nuvem e se a chuva é produzida pelas nuvens. Vemos muitas vezes as nuvens saírem dos montes. Pergunto: é a água que sobe das terras ou a que está acima dos céus que desce em grande aguaceiro? Se a água sobe, é certamente contra a natureza que ela sobe para o alto, porque é mais pesada e é transportada pelo ar, que é mais tênue” (idem. pp. 62, 65-66).
Claramente, Ambrósio admite que a água sobe da terra às nuvens, mas não explica como um líquido pode transformar-se em ar, e este condensar-se em nuvem. Ele sabe que as chuvas resultam da colisão de nuvens, mas desconhece como ou por que isso ocorre.
As palavras de Ambrósio sobre o movimento ascendente das águas da terra às nuvens refletem a declaração de Isaías: "Assim como descem a chuva e a neve dos céus, e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra e a fecundem e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a designei" (Is 55:10-11). Se a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, sem que reguem a terra e fecundem o solo, segue-se que retornam depois de o terem feito. Poderia haver descrição mais coincidente com o que a ciência também nos ensina sobre a evaporação da água na terra?
O autor de Jó declarou que Deus “estende o norte sobre o vazio” (Jó 26:7), que ele “é quem sozinho estende os céus” (Jó 9:8). O salmista e o livro de Isaías o corroboram: “Deus estende o céu como uma cortina” (Sl 104:2); “É ele quem estende os céus como cortina” (Is 40:22).
O verbo estender, utilizado nesses versículos, sugere que o céu não é fixo. Torna também implícito que o firmamento criado no segundo e no quarto dias de Gênesis 1 é aéreo e não sólido. Por isso ele é tratado, em Gênesis, Jó, Salmos e Isaías, como expansão. Em nenhum desses versos, há sinal da abóbada celeste sólida assentada sobre colunas, que tendem a desaparecer do texto bíblico.
Devemos reconhecer, nessas passagens, as verdadeiras sementes do movimento de suspeição e relativização da mundivisão arcaica, que autores do Período Patrístico como Ambrósio e Boécio desenvolveram até as últimas consequências. A visão antiga não foi abandonada por eles, mas podemos considerar que ela foi revirada e reinterpretada como uma série de questionamentos, hipóteses, enfim como variações sobre a natureza inseridas no interior da própria Bíblia.
Essas conjecturas e variações traduzem-se numa palavra: problematização. O homem atual sente forte atração por doutrinas prontas e definidas. Mas é forçoso reconhecer que as Escrituras não contêm apenas isso. Só algumas doutrinas, nelas, são prontas e definidas. A maior parte foi afirmada como verdades parciais ou apenas possíveis.
Nunca é demais lembrar que, no caso dos versos sobre a natureza, a problematização amplia-se, quando consideramos que a maior parte deles foi composta em linguagem poética. Praticamente não há afirmações semelhantes, nos textos didáticos, históricos ou doutrinários das Escrituras. A grande exceção é Gênesis 1. Como textos poéticos dão-se a sentidos variáveis e figurados, sequer é possível afirmar que as descrições bíblicas da natureza são, propriamente, certas ou erradas.
Os autores que citei (Boécio e Ambrósio) são apenas dois, entre muitos outros que problematizaram as descrições tradicionais da natureza. Quanta problematização semelhante poderíamos extrair dos três comentários de Santo Agostinho sobre o Gênesis? Quanta quiséssemos. E de Orígenes? Também quanta desejássemos. Darei o exemplo de uma só passagem em que esse último autor conjectura sobre a vida e a alma: “Entre os seres que se movem há uns que são a própria causa do seu movimento, e há outros que só se movem por algo externo. Movem-se apenas a partir de fora aqueles objetos que podemos transportar, como as madeiras [...] Têm em si mesmos a causa do seu movimento os animais, as plantas e, em resumo, tudo o que subsiste devido à sua natureza e tem alma. Dizem que também os veios metálicos e, além disso, o fogo têm seu próprio movimento, e talvez até as fontes de água” (ALEXANDRIA, Orígenes. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004).
Que concluir de todas essas considerações, a não ser que os autores patrísticos questionaram quanto lhes foi possível a cosmovisão antiga e que o fizeram, acima de tudo, a partir da própria Bíblia? A obra desses autores mostra que a concepção judaicocristã da natureza surgiu da desintegração da cosmovisão antiga. Portanto, não a reproduziu, nem a reafirmou, como tanto se propala. Se elementos da representação arcaica do mundo podem ser encontrados nas Escrituras, é muito mais com o sentido de problemas do que de afirmações. Muito mais com o significado de questões do que de dogmas.