sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Livre Exame de Romanos (1): O Evangelho de Deus

Muito se discute em que gênero literário os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas se enquadram. Seriam obras biográficas, teológicas ou uma mescla de história e teologia? Se reconhecermos conteúdo predominantemente teológico aos textos, deveremos considerá-los o registro de uma pregação semelhante à de Jeremias ou Daniel ou um gênero teológico inteiramente novo, que se originou e esgotou com a vinda de Cristo?
Na verdade, os Evangelhos sinóticos assemelham-se mais a testemunhos ou reconstituições de testemunhos sobre o ensinamento e os atos públicos de Jesus. Como testemunhos, eles não são biografias ou relatos de uma vida inteira. Pela mesma razão, pressupõem três apóstolos ou testemunhas diretas dos fatos que narram. Papias, Ireneu e Eusébio afirmaram que Mateus iniciou a transmissão dos discursos de Jesus no Evangelho que tem o seu nome, Marcos registra o testemunho de Pedro sobre Jesus, e Lucas, o de Paulo. É possível que esses testemunhos bastante antigos reflitam, aproximadamente, a realidade a respeito dos Evangelhos chamados sinóticos.
Embora não tenha seguido Jesus, durante os três anos e meio (para alguns) ou durante o único ano (para outros) do seu ministério, como judeu que era, Paulo deve ter comparecido a festas oficiais em que ele também esteve e nas quais ensinou no Templo. Por esse motivo, o conhecimento que Paulo tinha dos fatos narrados por Lucas não se limitava às aparições de Jesus a ele, mas incluía a observação do ocorrido naquelas festas, principalmente na Última Páscoa. É possível que, como fariseu proeminente, Paulo tenha até participado das sessões de julgamento de Jesus pelo Sinédrio narradas por Lucas, embora não como membro daquele tribunal.
Paulo denominou “meu evangelho” o seu testemunho a respeito do ministério de Jesus. Pouco se pode duvidar de que a parte principal desse “evangelho” esteja abrangida em Lucas. Porém, além desse texto, o apóstolo deixou-nos Atos (também escrito por Lucas) e as suas epístolas. O primeiro tem lugar de destaque entre os textos paulinos em sentido amplo, por nos mostrar o evangelho pregado e crido, após a ascensão de Jesus.
Porém, um terceiro escrito deve ser colocado ao lado desses, como fecho da exposição do evangelho por Paulo: a Epístola aos Romanos. Se Lucas é o evangelho narrado, Atos, o evangelho pregado e crido, Romanos é o evangelho interpretado. Mais do que isso, é a mais completa, concatenada e longa explicação do evangelho de Jesus Cristo, em toda a Bíblia, ao lado da Epístola aos Hebreus.
Claro que as outras cartas ditas de Paulo e dos demais apóstolos também explicam o evangelho, porém explanações completas só as encontramos em Romanos e Hebreus. A primeira é da autoria de Paulo; a outra provavelmente não, porém foi escrita sob influência ou a partir de um discurso dele.
Quanto ao Evangelho de João, pode-se questionar se deve ser considerado narração ou explicação das boas-novas de Cristo. Para mim, é um misto das duas coisas, com predominância da primeira. Claro que os sinóticos também contêm interpretações, porém não é esse o seu foco. Por exemplo, eles citam como Jesus morreu e apareceu aos discípulos depois de três dias, mas pouco ou nada aduzem sobre os efeitos salvíficos desses acontecimentos. Alias, os sinóticos não interpretam o que narram sequer na mesma medida de João.
O autor do quarto Evangelho enxertou (talvez tenha também expandido) discursos não incluídos nos três sinóticos numa estrutura narrativa baseada nas festas e, principalmente, nas Páscoas ministeriais, com o duplo objetivo de narrar e interpretar. Porém, ainda assim, seu propósito principal foi narrar. Daí a escolha da forma literária de evangelho.
Desse modo, as principais explicações do evangelho, no Novo Testamento, permanecem Romanos e Hebreus. Isso basta para nos advertir da importância do apóstolo Paulo para a fé cristã. Para entender o evangelho de Jesus Cristo, do modo como a parábola do semeador recomenda que ele seja entendido e crido, é indispensável voltar a esses livros, isto é, a Paulo.
Verdade é que a forma epistolar e a extensão de Romanos e Hebreus depõem contra a ideia às vezes propalada de que esses textos constituem tratados ou exposições sistemáticas. Porém, na Antiguidade, as exigências para enquadrar obras literárias na categoria do tratado não eram tão inalcançáveis quanto hoje. O tratado antigo era muito distinto do contemporâneo, já que textos relativamente curtos eram, às vezes, chamados tratados. Antes de Paulo, o filósofo grego Epicuro utilizou a forma epistolar para difundir suas ideias: é provável que algumas de suas epístolas tenham sido tratadas como tratados.
Devemos ter Romanos em idêntica conta. Se não é um tratado, essa epístola de Paulo pertence a um gênero literário semelhante. É, ao lado de Hebreus, a mais raciocinada e abrangente exposição do pensamento de um apóstolo, sobre o pecado e sua condenação por Deus. E, do lado positivo, é a mais completa explicação do evangelho, em toda a Bíblia. O que, por si só, lhe garante lugar único, na coleção sagrada.
Os versículos 15 a 17 do capítulo 1 de Romanos ajudam a entender para que fim o tipo literário do tratado foi utilizado por Paulo: “Quanto está em mim, estou pronto a anunciar o evangelho também a vós outros, em Roma. Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”.
O contexto desses versículos lembra que Paulo quisera ir a Roma anunciar o evangelho à igreja de lá, mas não pudera colocar em prática seu intento: “Não quero, irmãos, que ignoreis que muitas vezes me propus ir ter convosco, no que tenho sido até agora impedido” (Rm 1:13). Por meio da epístola, ele saldou o débito dessa pregação postergada.
Isso significa que Romanos é uma apresentação completa e, por vezes, até analítica do evangelho de Deus ou, para ser mais exato, dos efeitos da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A característica mais importante do texto é o fato de relacionar o evangelho ao pecado. Daí os três primeiros capítulos da epístola, que formam um verdadeiro posfácio ao Antigo Testamento.
E por que o formam? Basicamente, porque a pregação dos profetas produzira, em Israel, um sentimento generalizado de morte e pecado. O autor de Gênesis expressou esse sentimento, ao encerrar sua narrativa com o homem, que Deus criara no capítulo 1, colocado num caixão, no capítulo 50. Não por acaso, o último verso do livro afirma: “Morreu José da idade de cento e dez anos; embalsamaram-no, e o puseram num caixão no Egito” (Gn 50:26). O verso expressa a consciência profunda de seu autor e de toda uma época.
A consciência do pecado, tão disseminada entre os judeus, foi o que levou Paulo a apresentar o “evangelho de Deus” (Rm 1:17). Romanos estende-a tanto aos judeus (de sangue ou convertidos) como aos gentios, embora de modos distintos: “Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração” (Rm 2:12-14).
Geralmente, o apóstolo se refere aos gentios como “gregos”, o que evoca pessoas que falavam grego ou latim. Em raros momentos, ele se referiu a um terceiro grupo de pessoas, além dos judeus (de sangue e prosélitos) e dos gentios de cultura grecorromana, a saber: os bárbaros. Ele o fez, por exemplo, quando se declarou “devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes” (Rm 1: 14). Bárbaros e ignorantes eram pessoas que não pertenciam às culturas adiantadas da época.
Não devemos considerar que os bárbaros fossem as pessoas com a norma da lei inscrita no coração, a que o apóstolo se referiu em Romanos 2:12-14, embora essa afirmativa se aplique, em parte, a eles. Na estrutura de Romanos 1 e 2, tais pessoas eram, basicamente, gentios de povos cultos como os de Roma.
O veredito condenatório de Romanos 1:18—3:18, divide-se, pois, em duas seções: a do versículo 18 do capítulo 1 ao 16 do capítulo 2 e a do verso 17 do segundo capítulo ao 18 do capítulo 3. A primeira seção aplica-se aos povos gentios cultos, pois deles se diz que se tinham inculcado por sábios (Rm 1:22). A segunda seção trata dos judeus. Portanto, os bárbaros parecem excluídos do longo veredito condenatório das duas seções.
Não desejo afirmar que alguém (no caso, os bárbaros) não tenha pecado ou esteja isento da ira de Deus. Mas quero reafirmar que a condenação do pecado por Deus se revela de modos diferentes a grupos também diferentes. Em Romanos 5:13, Paulo afirmou que o pecado não é levado em conta onde não há lei: “Porque até o regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei”. E em 4:15, escreveu: “pois a lei suscita a ira; mas onde não há lei, também não há transgressão”. Se, entre os seres humanos, os bárbaros são os que têm uma legislação menos desenvolvida e mais diferenciada da lei de Deus no Antigo Testamento, o princípio de Romanos 4:15 e 5:13 aplica-se a eles.
No Antigo Testamento, os profetas tinham vociferado contra os mais diferentes povos, inclusive contra alguns bárbaros. Nenhum desses povos foi proclamado livre do pecado. Essa é uma evidência robusta de que o pecado é universal e abrange tanto judeus como os gentios cultos e bárbaros.
Porém, abrange-os diferentemente. Nenhum profeta igualou totalmente os povos, no tocante ao pecado. Paulo tampouco o faz. Ele se refere a uma pecaminosidade universal, porém não homogênea. Sugere, ao contrário, que a pecaminosidade gentílica é essencialmente heterogênea, ao excluir os bárbaros do veredito condenatório dos três primeiros capítulos de Romanos. Esse é o quadro da pecaminosidade humana traçado por Paulo. O quadro no qual e para o qual ele apresenta o evangelho de Deus.
O tratado supõe a intenção ao de aprofundar e de refinar o pensamento. Não é concebível que Paulo se tenha dado ao trabalho de compor um tratado para afirmar a condenação dos seres humanos de todas as épocas exatamente à mesma pena. Isso ultrapassa muito o propósito do apóstolo. Romanos 1 a 3 descrevem a condição pecaminosa de todos os homens. Não conclui, entretanto, que essa condição seja identicamente desenvolvida em todos os homens.