No mundo protestante, é cada vez mais comum as pessoas ignorarem a Crítica desenvolvida, nos últimos 200 anos, à historicidade dos eventos centrais das Escrituras. Devido à gravidade dos temas suscitados pela Crítica, essa resolução tornou-se tão relevante, hoje, quanto a de Lutero ao rejeitar a venda de indulgências, no século XVI, embora com consequências opostas para o progresso do evangelho no mundo.
Tanto a Crítica Histórica como a Literária afirmam que muitos eventos bíblicos não ocorreram ou, ao menos, não ocorreram do modo como as Escrituras os apresentam. Por exemplo, para elas, não houve travessia do Mar Vermelho, talvez não tenha havido sequer um Êxodo ou um Moisés, Jesus não realizou milagres e assim por diante.
Claro que Críticas que reduzem de tal forma a grandeza da Bíblia devem ser tomadas com cuidados, mas isso não significa que se deva simplesmente desconsiderá-las.O silêncio acrítico das Igrejas só seria aceitável, se a identidade histórica do Protestantismo não estivesse tão relacionada às Sagradas Escrituras. Mas a consciência protestante, como se sabe, está enraizada no sola Scriptura e no sola fide como em seu duplo solo natural. Por isso, somos levados a indagar se a atitude de ignorar a Crítica às Escrituras não é, antes de tudo, alienada.
Duas justificativas costumam ser apresentadas para o silêncio das Igrejas a respeito dessa questão. A primeira é a justificativa da fé. As Igrejas creem na inspiração divina da Bíblia, não em descobertas científicas sobre a sua historicidade e autenticidade. A explicação seria aceitável, se a fé importasse a paralisação da razão. Mas não é esse o caso. Portanto, a explicação baseada na fé não convence.
A segunda justificativa consiste em sustentar que bons teólogos evangélicos já ofereceram respostas à Crítica, com o que o problema foi encerrado, do ponto de vista das Igrejas. Mas será que as respostas foram tão superiores às críticas que o tema pode ser desproblematizado ao ponto do silêncio? Não é o que pensam os maiores especialistas no assunto. Considero, portanto, escusado desconfiar também da segunda justificativa do silêncio protestante.
A suspensão da razão em questões cuja importância, no mundo atual, assemelha-se à do heliocentrismo, nos séculos XVI e XVII, é tão perigosa para a causa cristã quanto a abolição da própria fé. Faz tanto sentido ser cristão sem a razão quanto sem a fé. Sobretudo, quando um tópico racional se reveste de importância central, em certo momento histórico. É o caso da interpretação crítica das Escrituras. Se a Bíblia não fosse tão fundamental para a História, a Religião, a Teologia e a Filosofia, o hábito de ignorar a Crítica não seria tão grave. Porém, a importância da Bíblia faz com que modificações profundas na interpretação dela repercutam em áreas tão diversas quanto política, economia, costumes, arte e entretenimento. Consintamos ou não, sintamo-nos ou não confortáveis com isso, o mundo secularizado em que vivemos não deixa de ser consequência de certas releituras bíblicas.
Porém, é espantoso que, em culturas tão profundamente alteradas pela Crítica às Escrituras como as de hoje, pregadores subam ao púlpito para bradar com a veia saltada: “Sola fide!” E para dizer com o autor de Hebreus: “Pela fé, pela fé!”, num contexto em que a fé não tem mais o significado do século I. No entanto, tal estranha situação parece dever-se ainda mais ao povo do que ao púlpito, pois a alienação do trabalho crítico concentra-se no primeiro. Não que a decisão sobre essa primazia importe tanto, já que o povo e o púlpito se reforçam e confirmam mutuamente. O que realmente importa é perguntar se há fé nesse estranho sacrifício da verdade, nessa pura alienação, nesse holocausto da razão protestante. Se concluirmos que há, eis uma fé que mata e não vivifica.
O que se prega dos púlpitos é o que se crê no coração. E o que se crê no coração é o que se vive, bem ou mal. O que significa que a atitude alienada tornou-se a atmosfera protestante. É o ar que respiramos, por toda parte, o firme (ou nem tão firme) pilar dos nossos atuais valores comuns.
Já é tempo de os cristãos pararem de se esconder do fato de que a Bíblia foi desafiada. E de que o duelo em que a envolveram é para vida ou morte. A fé sabe como o duelo terminará. Mas sabe também que o Deus soberano, que o profeta avistou no trono, está a perguntar: ”A quem enviarei (à refrega)?” Sabe, por fim, que o combate que se fere com a espada da alienação não é o que o autor bíblico denominou bom combate. É, antes, o combate ilícito, vedado e interditado.
Os críticos mostraram que houve três Isaías. Três profetas que proferiram cada qual uma parte dos oráculos do livro que tem o seu nome. Há 50 anos, isso era ao menos objeto de menção e contra-argumentação, nas Igrejas evangélicas. Nos seminários, então, nem se diga. Era motivo de mais do que simples menção. Hoje, porém, não há mais preocupação com essas “coisas críticas”. Cobre-se o assunto com os pares de asas dos serafins de Isaías. Sem se perceber que, naquele profeta, as asas eram usadas para cobrir os pés e o rosto dos serafins, não Deus, que está assentado no trono. É o que nos diz o texto da fé. Pergunto-me, com efeito, se cobrir uma das mais autênticas discussões que a humanidade produziu sobre a Bíblia não é cobrir, de algum modo, Deus.
Na visão de Isaías 6, Deus está assentado num alto e sublime trono. Serafins voam acima dele a exclamar: “Santo, santo, santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”! Quando eles falam, as bases do limiar se movem, e a fumaça enche o templo em que estão. E à cabeça de toda a visão, lê-se: “No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado” etc. (Is 6:1).
O contexto invocado pela inscrição não pode ser desprezado. Uzias foi um rei piedoso, mas que cometeu a loucura de entrar no Templo de Deus para queimar incenso, o que lhe era terminantemente vedado. Os livros históricos sugerem que Uzias arrependeu-se desse pecado. Pode parecer que isso encerrou os problemas espirituais da época, como de fato encerrou, mas apenas para ele, individualmente. Não para o povo, coletivamente considerado. Se o rei se transviara e se arrependera, “o povo continuava na prática do mal” (2 Cr 27:2).
O antídoto, o remédio, que Deus apresentou para essa dupla degradação foi a visão de Isaías 6. Qual é o conteúdo dela? É a exaltação de Deus e de mais ninguém. No templo em que Deus está, não há rei ou sacerdote algum. Os serafins não estão diante dele. E por que não estão? Para não o cobrir, pois a glória da cena emana de Deus e somente dele.
Deus não deve ser coberto, assim como tudo o que o expressa. Não é diferente com a interpretação das suas palavras. Ainda que ela pareça desafiar a glória de Deus, enquanto permanecer interpretação e não se tornar invenção, não haverá desafio algum. Quando muito, se houver, será um desafio benigno e consentido, pois o Deus verdadeiro não se importa em ser julgado por um reles homem. Se alguém se arvorar em juiz das palavras divinas, que problema causará a quem não é homem? A quem é a própria verdade? Por isso, “está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras, e venhas a vencer quando fores julgado” (Rm 3:4).
O verso não diz: para não seres julgado, mas “para que venhas a vencer quando fores julgado”. É devido o homem julgar a Deus. Indevido é ele se apartar da verdade sobre o seu Criador. É erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. Como se erguem tais fortalezas? Pela incredulidade, dirão. Sem sombra de dúvida. Mas a incredulidade não é o único modo de se erguer fortalezas contra o conhecimento de Deus. A alienação é às vezes mais eficaz do que ela para esse fim. Especialmente a alienação sistemática para com interpretações bíblicas relevantes.
A verdade sobre Deus está na interpretação da Escritura. Se não fosse assim, Abraão não teria dito a Lázaro: “Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lc 16:29). Porém, esse ouvir não é só interpretar. É também não aborrecer o que se descobre no texto interpretado. A desgraça do tempo de Jesus era os intérpretes da lei deterem a chave da ciência e não a usarem (Lc 11:52). Se eram intérpretes, como Jesus os denominou, é certo que interpretavam. Isso era deter a chave. Não abrir a porta com ela era outra coisa. Era alienar-se do que encontravam ao interpretar.
Alienar-se não é apenas se isolar de uma realidade. É ao mesmo tempo perder-se em outra realidade. A blindagem das mentes contra a Crítica Histórica e Literária não é só a perda do que esta descortina, mas a inserção da mente num mundo fantasioso que o sujeito acredita real. Esse desacerto, esse desencontro, entre a consciência e o real, é a alienação. Não vejo outro resultado da prática protestante corrente de se proteger obsessivamente contra a Crítica.
Faríamos melhor se aceitássemos toda luz que a verdade divina reflete, de todas as formas, como na cena de Isaías 6. Esse capítulo é o meio-dia do Antigo Testamento. É a glória divina, shekiná, sem ofuscamentos. Deixar essa glória brilhar em toda a terra não é entregar o templo de Deus a forças estranhas. Só precisamos entender que há uma glória crítica, se a razão humana é a imagem de Deus.
A Bíblia é a palavra de Deus por si só. Não precisou da nossa razão para vir a ser, nem precisará dela para continuar a ser tal palavra. Mas, precisamente por isso, devemos ter o destemor de exercitar a razão para interpretá-la. Se acharmos nela um erro, teremos achado um erro na palavra de Deus, não naquilo que não é a palavra divina. Erro nenhum tem o poder de cancelar essa palavra. Nada tem. É o que João 10:35 afirma. Ou não é? Portanto, independentemente do que façamos ou deixemos de fazer, do que critiquemos ou deixemos de criticar, passarão os céus e a terra, mas essa palavra não passará.
Por esses motivos, a genealogia da Crítica (quero dizer sua origem) não se reporta aos que perderam a fé ao desenvolvê-la, mas aos que ganharam mais fé por a terem desenvolvido. É um erro pensar que a Crítica começou com o Iluminismo. Ela principiou com Orígenes (sugestivo nome!), o mestre cristão do século III, que escreveu: “Uma vez que a finalidade [das Escrituras] é apresentar a coerência das realidades espirituais por meio dos acontecimentos que se produziram [isto é, da História], [...] onde a ação de tal ou qual [personagem], antes descrita, não concordava com ela por causa dos significados mais místicos, a Escritura teceu no relato aquilo que não se passou” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Tratado sobre os princípios. São Paulo: Paulus, 2012. 4º Livro, Cap. 2. p. 300).
Ao afirmar que a Escritura teceu no relato o que não se passou, Orígenes atestou que a Bíblia contém aquilo que os homens denominam erros históricos. E isso “não somente nos livros anteriores à vinda de Cristo [nos quais] o Espírito assim dispôs as coisas, mas, como ele é o mesmo Espírito e provém do mesmo Deus, agiu com os Evangelhos da mesma maneira, e com os [livros dos] apóstolos, pois também neles o relato é por vezes misturado com adendos que foram tecidos segundo o sentido corporal [literal], mas que não correspondem a acontecimentos reais” (idem. pp. 300-301).
Com toda razão, portanto, se deve pensar que o maior precursor e talvez o inventor do método crítico tenha sido Orígenes de Alexandria. Com base nesse método, ele concluiu que apenas um “tolo pensa que, como se fosse um homem agricultor, Deus plantou um paraíso no Éden do lado do Oriente, e nele fez uma árvore da vida visível e sensível, de tal modo que aquele que provasse da sua fruta com dentes corporais receberia a vida” (idem. p. 301). Descobriu ainda que, “se Deus é representado passeando à tarde no jardim, e Adão escondendo-se debaixo da árvore [...] não se pode duvidar de que tudo isso, exposto numa estória que parece que aconteceu, mas não aconteceu corporalmente [literalmente], indica certos mistérios” (idem).
Não se diga que os hereges gnósticos desenvolveram a Crítica antes de Orígenes. Os gnósticos eram ignorantes das Escrituras. Conheciam-nas muito mal. Estavam mais preocupados em devanear e inventar mundos espirituais do que em estudar a Bíblia. É verdade que eles escreveram uma multidão de Evangelhos alternativos, mas isso foi parte dos seus devaneios, não resultado de estudos sérios. Claro que, se confrontaram tanto as Escrituras, desenvolveram também uma crítica, porém não douta.
A Crítica em sentido elevado, profunda, bem informada e erudita, surgiu no contexto de um dos maiores e mais proficientes esforços de investigação da Bíblia de toda a História. Para se ter noção desse esforço, basta lembrar que Orígenes mandou copiar à mão seis versões diferentes do Antigo Testamento, alinhando verso a verso cada tradução, para melhor compará-las. Esse amor à Escritura está na genealogia da Crítica. É o título de propriedade original da fé sobre ela.
Eis, porém, que, nos dias atuais, estranhamente, retiramo-nos da arena onde ruge o combate. Entregamos a arca da Crítica nas mãos do primeiro filisteu que se disponha a levá-la aos seus templos. Alienamos a nossa propriedade e nos alienamos com ela. Que nos falta? Falta-nos a visão de Isaías. A visão de que devemos cobrir-nos, não cobrir a glória de Deus. E de que essa glória não se encontra apenas no templo, não é estreita ou particular, mas enche todo o globo terrestre.