Em Mateus 4:18-22, Jesus chama quatro discípulos para segui-lo: primeiramente, Simão Pedro e André; em seguida, Tiago e João. Todos estão na praia, em plena faina do dia, pois são pescadores. Os primeiros lançam a rede ao mar. Os outros, consertam as suas. Àqueles Jesus diz: “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4:18). Não há registro do que ele fala aos demais.
Em Lucas 5, o mesmo episódio é narrado com maior riqueza de detalhes. Porém, o foco é posto nos momentos que antecedem o chamamento dos quatro. Jesus percorre a margem do lago, quando avista dois barcos e os seus tripulantes na praia a lavar as redes. Então, ele manda Simão lançar as redes ao mar. Pedro entra no barco e, com ajuda de outros, o faz. Apanham tão grande quantidade de peixes que as redes começam a romper-se. Então, alguns companheiros vão até eles e, juntos, enchem dois barcos com o que haviam pescado.
Outro texto paralelo, o da parábola da grande pesca, em Mateus 13:47-50, ajuda a entender o significado simbólico de que o chamamento dos discípulos se reveste. A parábola não enfatiza o fato de os pescadores se utilizarem de um barco ou outros aspectos da pescaria, mas o lançamento da rede: “o reino dos céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar, recolhe peixes de toda espécie” (Mt 13:47).
Uma versão de Mateus 13:47 afirma que a rede apanha os peixes; outra, que ela os recolhe. Mas o significado mais básico do grego synagagousi é reunir e ajuntar. Syn significa junto, com. Ago é guiar, conduzir ou educar. Daí o substantivo sinagoga, que é um ajuntamento de pessoas para receberem instrução.
Na parábola da pesca, os peixes são transformados em sinagoga, em ajuntamento, pela ação da rede lançada ao mar. Por isso, a rede é a palavra de Deus, que ocupa o centro da era histórica da pescaria, situada entre a ascensão de Cristo e o dia de hoje. Pela mesma razão, é significativo que João e Tiago estejam a consertar as redes rompidas durante a pesca, quando Jesus os chama, como Watchman Nee mostrou.
O conserto das redes lembra-nos que a palavra do evangelho possui um elemento humano. Assim como Cristo era Deus e tornou-se homem, a palavra divina assume elementos humanos ao ser entregue ao homem. Isso é verdadeiro tanto em relação ao evangelho quanto às Escrituras. Ambos passaram por um processo de formação e transmissão que, quanto mais intenso, mais acrescentou elementos humanos à palavra de Deus.
Os 66 livros da Bíblia foram escritos por homens. Essa escrita não está isenta de características humanas, inclusive erros de cópia, embora os sentidos do texto sejam inteiramente divinos. Pode-se supor que o elemento humano assumido pela palavra de Deus, ao vir ao mundo, necessita ser consertado, apurado, assim como as redes precisaram ser remendadas por João e Tiago.
Dos doze apóstolos, Tiago é o único cujo martírio é narrado na Bíblia (At 12:1-2). Isso não deve ter sucedido por acaso. Ele deve ter prestado testemunho tão significativo da morte e ressurreição de Jesus que os líderes judeus o mataram. Sabemos também que a preservação das histórias e discursos do quarto Evangelho foi atribuída a João por uma tradição antiga. Juntando esses dados, é possível pensar que os irmãos Tiago e João acompanharam Jesus desde antes do chamamento de Mateus 4, presenciaram ensinamentos e atos que outros apóstolos não observaram e deram origem a uma tradição complementar à que eles propagaram.
Talvez os discípulos de João Batista que o ouviram exclamar “Eis o Cordeiro de Deus”, em João 2:35-37, tenham sido João e Tiago. O último verso afirma que “ouvindo-o dizer isto, [eles] seguiram a Jesus”. Se realmente se trata de João e Tiago, é possível que eles tenham “consertado as redes” dos fatos sobre Cristo, por exemplo, ao permitir a ampliação do período ministerial dos 12 a 15 meses retratados nos sinóticos para os três anos e meio do quarto Evangelho.
No entanto, a ênfase da grande alegoria da pesca não está no conserto das redes, mas na captura dos peixes, pela palavra de Deus. Essa captura retrata a total impotência do livre arbítrio para optar por Deus, antes da salvação. O homem pode tanto realizar esse ato, por suas próprias forças, quanto o peixe procura ser preso. Na realidade, ocorre o contrário: como o peixe tenta escapar da rede, o livre arbítrio do homem, corrompido e enfraquecido pelo pecado, afasta-o de tudo aquilo que é a sua salvação. Esse é o testemunho uníssono do Novo Testamento. O testemunho que Paulo como ninguém explicou.
Diferentemente da pesca com vara e anzol, aquela que se executa com redes não envolve, digamos, o ato de ludibriar o peixe. É muito mais um exercício de força. Os que acusam Deus de nada fazer para livrar o homem do sofrimento esquecem-se desse grande feito divino. A salvação do Novo Testamento é o ato de força de Deus contra o homem e a sua vontade, que só se deixa apanhar, só concorda, aceita e consente com a captura no último momento, assim como o peixe se debate até suas forças se esvaírem completamente e assim como Saulo recalcitrou contra os aguilhões até o derradeiro instante. Ele pensava exercer violência contra os cristãos, mas Deus, pela sua palavra, era quem caía sobre ele por todos os lados, com poder avassalador.
Jesus também afirmou que o reino de Deus é tomado por violência (Mt 11:12). Nessa frase, o reino de Deus é o povo do reino, os peixes capturados com violência pelos pescadores. Jesus pregou o evangelho com essa consciência e o mesmo fizeram os apóstolos. No ato da salvação, Deus dirige uma espécie de violência contra a vontade humana, isto é, contra o livre arbítrio tornado impotente pelo pecado. Por isso, a vontade não possui, nem pode possuir o menor mérito pela salvação.
Pelágio afirmou que o livre arbítrio pode acumular méritos que permitem ao homem salvar-se. Na época da Reforma, Erasmo de Roterdã publicou sua Diatribe sobre o livre arbítrio, em que afirmou que o erro de Pelágio consistira em atribuir grande mérito à vontade humana, na salvação, quando tudo o que ela pode alcançar é um pequeno mérito. Censurou, pois, em Pelágio, unicamente a medida do mérito humano que atua na salvação.
Lutero respondeu-lhe: “Pelo menos aqueles que dizem que o livre-arbítrio envolve um grande mérito (os chamados pelagianos) conferem um elevado preço à graça divina, porquanto concebem que um grande mérito é necessário para alguém obter a salvação. Todavia, Erasmo barateia a graça divina, podendo ser obtida por um débil esforço” (LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos: Fiel, 1992. p. 23). Para Lutero, assim como para os principais reformadores, a vontade humana não é capaz de merecer a salvação seja em maior, seja em menor medida, porque está cativa.
Tudo isso se extrai da imagem do peixe preso na rede. É uma obra autenticamente divina tal verdade ter sido preservada e atravessado os séculos. Sim, o homem tem livre arbítrio, mas não se pode salvar por meio dele. Em tudo o que diz respeito a Deus, ele é totalmente incapaz. É um ser inerme, impotente e morto na sua agitação. Mas Deus prova o seu amor por ele, imobilizando-o na rede da sua palavra. Se é uma violência, esse ato é também a mais poderosa experiência de amor que uma criatura pode obter. Deus mesmo prende-a, enreda-a, submete-a contra a sua vontade e contra todo o poder do seu comportamento, a fim de tê-la para si.
Por que o pescador captura alguns e não outros? Sempre há quem acuse o evangelho de arbitrariedade, por insinuações como essa. Porém, a Escritura não sugere que Deus olhe para os homens e diga: “Este sim, este não; este outro sim, este outro não”. Ele não o faz e não o pode fazer, assim como o pescador não pode escolher que peixes pescar. Simplesmente, lança sua rede ali onde sabe que há muito peixe em condição de ser capturado. E quando o faz, nada ou quase nada lhe escapa, tudo ou quase tudo é reduzido ao cativeiro da palavra de Deus. A grande rede da misericórdia se enche a ponto de se partir.