“Por muito tempo achei que a
ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.”
(Carlos Drummond de Andrade)
O OCEANO DA VERDADE
As palavras de Patinho Feio, se era ele mesmo, trouxeram a mais palpável resposta às interrogações formuladas pelos Macacos durante o inquérito. Por isso, a revoada que se seguiu encheu o coração deles de ardente pesar. Foi sentida como a maior de todas as perdas que podem afligir a mente. Transcendia a própria perda de um ente querido.
Mas é impossível cruzar a floresta, escalar a montanha gelada, atravessar o deserto, descer a falésia até a mata e não adquirir resistência a uma falta. A heroica saga tornara os Macacos íntimos das carências de proteção, abrigo, calor, das faltas de água, sombra, alimento. E até das carências de paz. Cada passo que tinham dado, na longa marcha, havia acrescido o calo de um número imenso de privações, o que os acostumara ao não-ter de que a vida se anima. E pensaram se, num tempo como o atual, em que o ter se fez a medida de todas as coisas, a vida não se tornou, por reflexo, um fio suspenso entre os abismos vizinhos do ter e do não-ter.
No entanto, apesar do condicionamento sem paralelo que a marcha lhes valera, não sabiam como suportar aquela ausência devastadora, que é a mais básica de quantas podem existir: a ausência de Patinho Feio. Como, por que, para que ele os abandonara, após os ter ajudado, no lancinante transe daquela investigação? O amor, esse laço que ata as almas, por que é assim tão frágil, tão pronto a se desatar, a transformar a presença em ausência, o clímax em anticlímax, o tudo em nada?
Fustigavam-se com essas interrogações, quando sentiram ainda uma outra ausência: a de remédio imediato para a dor de viver. Embora na floresta, na geleira, no deserto e no bosque tivessem encontrado lenitivo para todo mal que os afligira, um deles parecia não comportar solução e era a dor aguda da ausência. Pensaram se, em tal estado, não lhes seria melhor recolher-se ao silêncio e retomar a caminhada até o mar.
Mas o dia ameaçava declinar e tiveram de aguardar melhor ocasião para o fazerem. Nesse entretanto, fartaram-se dos frutos da mata e dos anfíbios do lago. E como a lua andava arredia, adormeceram tão-logo os últimos raios de sol se dissiparam. Quando as árvores ainda destilavam a água da noite, como lágrimas vertidas do céu, e a alvorada não começara a se derramar sobre a imensidão do bosque, lépidos, os quatro devoraram alguns frutos, sorveram goles do bálsamo que a vegetação recolhera em seus cálices e recomeçaram a marchar. Contornaram a face da falésia que olhava para o lago e, em seguida, desceram para o mar.
Estavam prestes a sair da mata, quando ouviram o canto de um Galo. Olharam ao redor, mas a meia-luz ainda reinava, e nada encontraram. Outro pequeno lapso e ouviram de novo o canto. Dessa vez predispostos, descobriram que o som provinha de um ponto em que a penumbra adensava-se em sombra. E lobrigaram o contorno informe da Ave que o emitira.
-- Bom dia, Galo! exclamou Macaco de Louça, ligando o vulto aos sons.
-- Desejo-vos muito bom dia! Ou boa noite, dada a penumbra, respondeu a Ave, com voz receosa.
-- Será difícil ter um bom dia, mas te agradeço o voto, tornou-lhe Louça.
-- Por que difícil? perguntou o Galo, notando o olhar plangente de seu interlocutor.
-- Porque ontem encontramos um grupo de lindos Cisnes. Conversamos com um deles que, sem que lhe houvéssemos contado, disse-nos o que conversáramos longe daqui, nos dias anteriores.
-- Um Cisne vidente? admirou-se o Galo. Quem o crerá? E que relação pode isso guardar com vossa tristeza? Acaso o vidente previu-vos calamidades, desventuras, infortúnios? Vaticinou-vos a morte?
-- Não, nada disso, mas o modo como nos deixou, de chofre, depois de nos ter falado da evolução das espécies, chocou-nos profundamente.
-- Evolução! Admirou-se de novo o Galo, que se acalmara ao notar o sofrimento dos quatro. Tendes nisso interesse?
-- Muito e há muito tempo. E tu?
-- Indago-me a origem do mundo e o modo como os Galos surgiram.
-- Que ideias formaste sobre o assunto? quis saber Louça.
-- Vês essa mata? respondeu-lhe o outro. Milhares de espécies habitam nela. Se todas evoluíram, o DNA de cada uma registrou as mudanças por que passaram. Portanto, o DNA é a chave de todo o processo evolutivo.
A ponderação fazia sentido. De Vidro aceitou a premissa do Galo e indagou-lhe curioso:
-- Estás a sugerir que a análise do DNA permite desvendar o processo da evolução?
-- Sim, é o que penso. Essa análise já existe e é denominada sequenciamento genético. Por meio dela, confirmou-se que as espécies e os grupos maiores de seres vivos realmente descendem uns dos outros. Para fornecer um só dos motivos dessa conclusão, Elementos Repetitivos Antigos (ERA), pedaços de genes mutantes que trocam aleatoriamente de posição no DNA, foram encontrados quase nos mesmos lugares do genoma do Homem e do Camundongo. Francis Collins, que dirigiu o projeto internacional de sequenciamento do DNA humano, afirmou: “A menos que se queira assumir a posição de que Deus colocou esses ERA nessas exatas posições, para nos confundir e desviar, é praticamente impossível escapar da conclusão de que existiu um ancestral comum para humanos e camundongos”.
-- Certo, aplaudiu de Vidro. A evolução é um fato, mas o que nos preocupa é o alcance do fato. Há várias semanas, realizamos um inquérito para tentar entender esse alcance. Os seres vivos têm um único ancestral comum ou descendem de vários? E as espécies: têm múltiplos ancestrais? Se os têm, eles foram todos da mesma espécie ou de várias? A depender das respostas a essas perguntas, a árvore da vida será mais ou menos ramificada. Aliás, ela poderá deixar de ser árvore, para se assemelhar a uma teia. Do ponto de vista científico, até a criação dos seres vivos por Deus depende dessas respostas e não, como se propala, da existência ou não de uma evolução.
-- Infelizmente, os resultados da ciência a esse respeito, respondeu o Galo, ainda são controversos ou mesmo equívocos. Em 1986, o cientista australiano Michael Denton publicou a mais impressionante crítica à Evolução já produzida com base no sequenciamento genético. No livro intitulado Evolution: a theory in crisis, Denton argumentou que a Macroevolução (a evolução dos grandes grupos de seres vivos) está em crise. O principal argumento dele é a equidistância genética. O exemplo preferido de Denton é o do citocromo das bactérias, que difere 64% do do cavalo, 64% daquele do pombo, 65% do citocromo do tuna fish, 65% do que possui o bicho da seda, 66% do que o trigo apresenta e 69% daquele da levedura. Como a Teoria da Evolução sustenta que os genes que especificam as proteínas se alteram a taxas regulares, a equidistância entre grupos tão diferentes deveria indicar que eles surgiram ao mesmo tempo. Mas os fósseis mostram que isso não ocorreu, o que levou Denton a concluir que a Teoria da Evolução dos grandes grupos está em crise.
-- Mas Denton publicou outro livro, lembrou Macaco de Vidro, 12 anos depois daquele que mencionaste, em que explicou o processo pelo qual a Macroevolução ocorreu.
-- Sim, mas a tese central desse outro livro se estriba em ideias muito pouco aceitas pela comunidade científica. Além disso, consta que Denton não retratou o primeiro livro no que publicou mais tarde. Trata-se de obras harmônicas, não antagônicas.
Macaco de Telha interveio:
-- Os graus de comprovação das teses principais dos dois livros são muito distintos. Assim como o sequenciamento genético forneceu a prova definitiva da Evolução, o primeiro livro de Denton levantou o mais importante questionamento sobre essa teoria, desde os dias de Darwin. Por isso, ele pode ser considerado a obra central sobre o tema, da descoberta do DNA até hoje. A avaliação não é um casuísmo. Tampouco é fruto de preferências ideológicas ou informação incompleta. O cientista especializado em Genética e Evolução Gert Korthof declarou que “não se pode entender o Neodarwinismo sem se ler integralmente o livro de Denton, pois ele enuncia as implicações do Darwinismo em maiores detalhes do que jamais fizeram os meus professores e os livros a respeito do tema”. E olhem que Korthof discorda da consequência que Denton extrai da equidistância genética.
O silêncio que Telha guardara até então contribuiu para que redobrassem a atenção às suas palavras. Por isso, continuou:
-- O primeiro livro de Denton não propõe solução para a crise na Teoria da Evolução. Mas define o território em que será travada a batalha final sobre ela. Como a Genética Mendeliana explicou a Microevolução, a batalha da Macroevolução será travada no interior da Biologia Molecular. Mais particularmente, no território dos sequenciamentos de DNA.
-- Sim, concordou de Vidro. Nessa batalha, será também decidida a eventual participação de Deus no processo evolutivo, o que se costuma denominar criação dos seres vivos.
Nesse ponto, Caco adentrou na discussão:
-- Apesar de toda a controvérsia a respeito da equidistância genética dos grandes grupos, não há disputas sobre os exemplos que Denton fornece dela. A questão é se os exemplos bastam para refutar a Macroevolução ou são simples furos, que serão eliminados por novas descobertas. A maior parte dos cientistas trata-os como furos ou dubiedades, mas não há fatos que refutem os exemplos. E essa ausência de refutação empírica é, ela própria, outro fato. Denton acha que, por causa dela, os exemplos da equidistância autorizam concluir que a Macroevolução está abalada.
Repentinamente, uma ideia luziu na mente de Caco:
-- Quando nos disse que somos manuscritos, o Cisne não se referia ao DNA? Nossas células não são formadas com base no código genético que está dentro delas? Esse código não costuma ser representado por letras? E essas letras não formam um texto, um manuscrito?
Não se pode negar que a ideia era luminosa. Se admitirmos que uma inteligência interveio no processo de modificação das espécies, de modo a gerar a equidistância genética, o DNA não será só “semelhante”, mas efetivamente constituído por símbolos. E essa passagem da semelhança ao fato simbólico será o mais claro reflexo de Deus na ciência. Será a hipótese de um Deus que não lança dados, antes escreve manuscritos.
Ao longo de todo o inquérito, os quatro tinham repetidamente chegado à convicção de que a ciência e a Macroevolução, em particular, constituem um modo de pensar totalitário. A realidade é espremida no interior de teorias de alcance tão vasto que escapam à verificação. E essas teorias tão amplas que se fazem vagas moldam-nos a mente, para não mencionar os costumes.
Se é causa do sucesso explicativo da ciência, esse modo circular de deduzir e induzir, de tornar a induzir e de deduzir novamente, ad infinitum, não explica também as cegueiras da mente? Ao ouvirem o duplo canto do Galo e conversarem com ele, os Macacos fizeram-se todas essas perguntas. E ainda mais indagaram se a equidistância genética não pode ser tomada como um modo de se reduzir o caráter totalitário da Evolução.
-- A ciência, ao mesmo tempo, esclarece e obscurece, afirmou Macaco de Caco intrepidamente. Ela pode ser apropriada para fins libertários ou totalitários. Korthof rebateu Denton da seguinte maneira: “Denton apresenta a descontinuidade dos fósseis, dos organismos vivos, das proteínas e do DNA como confirmação do seu Modelo Tipológico, e a sua descrição é muito consentânea com a observação. Essa é uma boa coisa em ciência. Mas a ciência sem teorias é somente uma atividade descritiva. A proximidade em relação à realidade empírica é um critério importante, mas não é o único pelo qual devemos julgar teorias”. Vede que, com essas palavras, Korthof faz os fatos cederem à teoria. O velho ditado ressurge, então, para atormentar a ciência: "Se os fatos não confirmam a teoria, pior para os fatos". É justo perguntarmos: esse desprezo dos fatos em favor da teoria é a genuína sabedoria científica ou um vício lógico? Não o consideramos um vício, ao depararmos o Mamute e o Homem na geleira e ao encontrarmos o Trilobita no interior da pegada humana? Não concluímos diversas vezes que o vício é real e lhe discutimos as consequências? Não o fizemos ao conversar com o Pavão e com o Urso? O grande mal, o tormento inescapável, é que o vício torna a ciência ilusória.
Louça concordou imediatamente:
-- As pedras não nos disseram também que a fé em Deus tem sido negligenciada? E não sugeriram que a negligência se deve à ignorância do sentido prático dela? O Burro não afirmou a mesma coisa? Não vimos nos manuscritos que a descrição monoteísta da criação pode ter interpretação diversa da que foi refutada pela ciência?
A conversa estava animada, mas o sol ia alto, e os amigos despediram-se do Galo, que os saudou de um modo que soou estranho:
-- Lembrai-vos dos cantos da nossa estirpe!
Os Macacos cobriram, então, o escasso caminho que os separava do oceano. Em poucos minutos, chegaram à praia e depararam a enormidade das águas. O incrível cenário inspirou a Caco a pergunta:
-- A verdade que procuramos não é como o oceano?
-- E não conhecemos dela somente o que se pode tirar do oceano com uma cuia? completou de Vidro.
-- Que nos dirá sobre isso Patinho Feio? perguntou Louça.
-- Dirá que a verdade é o mar? ecoou Macaco de Telha.
-- Já não sinto que ele nos tenha abandonado, completou Caco. Sinto, ao revés, que voa sobre nós todos os dias. E nos olha com o mesmo carinho que nos dedicou na mata.
Então, todos os dias, sob o olhar vigilante de Patinho Feio e seu bando, os Macacos iam da mata ao oceano e, deste, de volta à mata. Até que o trajeto se lhes tornou usual. Na praia, brincavam com as conchas, as rochas e os animaizinhos que achavam. Porém, ao contrário do ir e vir, as brincadeiras nunca se tornaram usuais nem mecânicas.
Era impossível tornarem-se tais, pois o mar estava sempre lá para recepcioná-los, brindá-los com os seus mistérios e enchê-los de todo desvanecimento. Acharam, assim, no mar, a verdade total, absoluta, mas nunca se aventuraram nela. Somente brincaram à sua frente, miraram-na, até mesmo a saudaram e admiraram. E a porta dessa verdade permaneceu sempre aberta.