sábado, 30 de junho de 2012

As Dez Minas

A parábola das 10 minas, no Evangelho de Lucas, é semelhante à dos talentos, que aparece em Mateus. Em ambas, antes de se ausentar do país, um homem empresta considerável quantia de dinheiro aos seus servos. Nas duas, ele retorna, após longo tempo, e pede contas do dinheiro emprestado. Dois servos conseguem prestar as contas satisfatoriamente, porém um terceiro não.
Em Lucas, essa história básica é enriquecida com muitas informações. Além dos servos, nela aparecem rivais, inimigos que enviam uma embaixada após o homem que sai do país. O objetivo da embaixada é pleitear que o homem não venha a reinar sobre eles. Portanto, que ele não receba o reino que lhe está destinado.
Esse envio de embaixadores era comum, na época de Jesus. Líderes em luta pelo poder costumavam enviar representantes ou ir pessoalmente à corte dos soberanos que podiam constituí-los reis em suas regiões. Exemplo notável dessa prática ocorreu, quando Herodes, o Grande, adoeceu gravemente, e os candidatos à sua sucessão foram a Augusto reivindicar a realeza.
A parábola das minas narra duas viagens dessa espécie: “Certo homem nobre partiu para uma terra longínqua, a fim de tomar posse de um reino e depois voltar [...] Mas os seus concidadãos odiavam-no, e enviaram após ele uma embaixada, dizendo: Não queremos que este homem reine sobre nós“ (Lc 19:12,14).
Embora situada no pano de fundo da parábola, a luta entre os grupos que almejam o poder é mais importante do que o empréstimo das minas, que aparece em primeiro plano. Tão mais importante quanto a posse ou a perda do reino era mais valiosa para a personagem central da parábola do que o dinheiro emprestado aos servos.
Por outro lado, a negociação das 10 minas tem certa importância, por constituir o foco da parábola. A história começa com o empréstimo do dinheiro aos servos, prática tão antiga quanto a própria moeda. A mina a que a parábola se refere valia 100 denários ou dracmas, que era o salário médio de um dia de trabalho. Portanto, 10 minas correspondiam a 1.000 dias de trabalho.
A entrega das minas aos servos representa um empréstimo. A parábola não esclarece quanto cada servo devolve ao senhor, quando ele retorna. Diz apenas que um servo apresenta 10 minas, e outro, cinco. Porém, apresentar não significa devolver. Todo mútuo se realiza para que o mutuário possa embolsar uma parte do que obteve com o dinheiro. Não era diferente no primeiro século. Por mais injustas que as práticas produtivas fossem, o Direito Romano impunha limites mínimos de decência aos contratos. De acordo com os costumes da época, então, não certamente o servo que ganhou 10 minas devolveu as 10, nem o que ganhou cinco devolveu as cinco. Na verdade, a parábola não menciona sequer que tenha havido devolução, já que o seu objetivo não é a contabilidade exata que estava em jogo, mas o contraste entre os servos e os embaixadores.
A parábola quer transmitir que o senhor não incumbiu os servos de fazerem o mesmo que os embaixadores ou seja, lutar por poder. Os servos não deviam se comportar como integrantes de um partido político. Se não estava em suas mãos decidir quem receberia o reino, eles não deviam lutar para conquistá-lo. Porém, as 10 minas estavam efetivamente nas mãos dos servos. Por isso, o que lhes incumbia era negociá-las.

“Quando os cristãos lutam entre si [...] uma grave perda de foco acontece. O desvio não se dá do sucesso para o insucesso, pois muitos são bem-sucedidos na luta pelo poder. Mas os que lutam não não têm parte na negociação das minas.”

A História do Cristianismo é fortemente marcada pelo descumprimento dessa ordem de Cristo. Nos últimos 20 séculos, muita luta por liderança e poder se desenvolveu no meio cristão. Algumas vezes, essa luta se travou em torno do poder secular; outras vezes, em torno do eclesiástico. Em ambos os casos, foram lutas ferozes. Não se pode deixar de emprestar a esta constatação um tom de denúncia.
Quando os cristãos lutam entre si, quando opõem obra a obra, doutrina a doutrina, ministério a ministério, partido a partido, igreja a igreja, instituição a instituição, uma grave perda de foco acontece. O desvio não se dá do sucesso para o insucesso, pois muitos são bem-sucedidos na luta pelo poder. Consiste em subtrair os que lutam à tarefa de negociar as minas.
Vejamos em que consiste o trabalho de negociação confiado aos servos. As minas representam a palavra de Cristo. Todo cristão genuíno é depositário dessa palavra. Recebeu os Evangelhos canônicos e as Epístolas do Novo Testamento, cujo poder salvador experimentou. Porém, embora todos os servos os tenham recebido, alguns negociam o depósito, outros não. Uns multiplicam a palavra de Deus, espalham-na pelo mundo; outros simplesmente não o fazem.
O servo que não negociou sua mina tentou devolvê-la num lenço, quando seu senhor regressou. A afirmação soa estranha nos nossos tempos, mas não era assim no primeiro século. Naquela época, uma moeda valia o que pesava. Uma mina era a quantidade de prata encerrada nela. Se passava de mão em mão muitas vezes, a moeda sofria um desgaste físico, que a desvalorizava. Por isso, o fato de o servo ter envolvido sua mina num lenço indica que preservara o valor intrínseco dela.
O ato de guardar a moeda envolvida num lenço representa o esforço de preservação da doutrina cristã. Ao longo da História, as Igrejas mantiveram centros de controle da pureza doutrinária do seu rebanho. Códigos de disciplina, inquisições, tribunais foram laboriosamente criados, com esse propósito. Porém, a parábola deixa claro que, aos servos de Cristo, não basta preservar o valor intrínseco da palavra de Deus contra as mutilações da heresia, por mais que isso seja importante. Não basta não ser herege, blasfemo ou realizar qualquer outra forma de trabalho negativo. A comissão que Cristo deixou a seus servos não é de índole passiva. Não consiste em não fazer alguma coisa, mas em propagar ativamente a palavra de Deus.
Por isso, o senhor rejeitou a devolução da mina intacta. Ele não aceitou a justificativa do servo de que a cobrança de juros significava tirar o que ele não colocara e ceifar onde não semeara. O banco sempre estivera à disposição do mau servo, para tomar a moeda emprestada e devolvê-la com juros. Portanto, a restituição sem juros era inescusável.
O reempréstimo da moeda que o senhor exigiu de seu servo significa que, se alguém não deseja, não pode ou tem medo de multiplicar a palavra de Deus, por meio do ensino, da pregação e de outros trabalhos de propagação, pode “emprestá-la” a quem se dispõe a fazê-lo. Isso é depositar a mina no banco. É realizar um segundo empréstimo, em vez de deixar a moeda ociosa.
Esse ato mínimo representa o apoio que os cristãos menos ativos oferecem aos que se dedicam à propagação da palavra de Deus. O apoio não é financeiro. A moeda emprestada segunda vez não é literal. Representa o testemunho pessoal da pessoa, em apoio à palavra que os divulgadores do evangelho espalham pelo mundo.
Assim, a parábola das minas apresenta o inteiro espectro de condutas possíveis ao servo de Deus, que não faz sua a missão de lutar pelo poder eclesiástico, do mínimo aceitável, que é a confirmação do evangelho pelo testemunho pessoal, ao máximo da multiplicação da palavra pelo ensino e pregação ativos.