“As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei.”
(Carlos Drummond de Andrade)
O JARDIM DO ÉDEN
Enquanto os Macacos conversavam sobre os manuscritos, a sentinela da fome enviava-lhes constantes avisos. A princípio, não lhe dispensaram atenção, mas, de tanto insistir, o atalaia os fez entender à força de repetições que a natureza circunscreve o pensamento, como o deserto à civilização, não o contrário.
Os avisos da fome acabaram por convencê-los de que já não bastava paliá-la com Insetos. Para continuarem o inquérito que haviam aberto, precisavam resolver o problema cada vez mais urgente da sua subsistência. O que, na situação em que estavam, significava alcançar a mata costeira.
Nesse entrementes, a ideia retornou ao cérebro de Caco: por que não tinham persuadido o Burro a lhes fornecer traslado? Tivessem-no feito e poderiam consumar a travessia do vasto elemento árido mais rapidamente e sem tantos padecimentos. Mas dessa vez, Caco opôs à sedução o pensamento oposto de que viver, para os racionais, envolve a necessidade de olhar para o outro e enxergá-lo. Ou para aplicar o princípio ao caso, por adversas que fossem as circunstâncias da peregrinação, os quatro não poderiam iludir o Burro, com lisonjas ou artimanhas, a fim de que os transportasse até a mata.
O arrependimento, porém, só se dissipou totalmente, quando retornaram aos manuscritos e descobriram adjutórios mais úteis que aqueles que o Burro poderia subministrar-lhes. O rolo em seis colunas falava de consolações, infundia esperança e capacitava a arrancar forças não só de outras forças, mas até da fraqueza. Assim, do modo como o vento os havia conduzido aos manuscritos, o logos que emanava destes, cravando-se na alma dos quatro, manifestou o poder supremo de elevar a sua energia pouca, conferindo-lhes um recurso inteiramente novo. De modo que se dispuseram a retomar a marcha, mesmo com o ventre abastecido apenas de Insetos que, juntos, sacudidos e recalcados, não igualavam a massa de uma única pluma. E após outra noite de sono, abandonaram as ruínas em direção à mata.
No trajeto, Vidro perguntou aos companheiros:
-- Essa energia incrível que nos propulsionou ao lermos os manuscritos, esse dínamo que nos fez bastantes para a travessia, não será o sentimento do sagrado?
-- Também o sinto mover-me, respondeu Telha. Mas não cesso de me indagar se o sentimento não é produzido por alguma ilusão. Pergunto-me se, assim como produz miragens de oásis e águas, o cérebro do viandante exausto não inunda o seu coração de consolos ilusórios e esperanças vãs. E se esse misto de engano e consolo não constitui o que os homens denominam religião.
Caco formava um parecer diferente e expressou-o:
-- Talvez, essas faces siamesas da religião, o consolo e a ilusão, sejam somente um momento dela. Tão longa é a existência da religião, no mundo, tão protraída, a adoração que os Homens elevam ao divino, que as pessoas têm dificuldade de apercebê-las exatamente. Tomam o momento como se fora a inteira extensão do fenômeno. Observação mais atenta permitiria entender que a religião muda de forma, e não a devemos julgar somente pelo instante primordial, em que seu poder de consolação e “ilusão” se concentra e dobra-se sobre si mesmo. Melhor é julgá-la com base no seu devir integral, isto é, no processo inteiro de transformação por que a religião passa.
-- E como é esse processo? indagou Telha.
-- Essa é a questão central a ser respondida sobre a religião. Todas as outras são colaterais, secundárias, em relação a ela. Porém, a religião é complexa demais, admitiu Macaco de Vidro, para que eu possa dar dela uma descrição sem carências ou falhas. Limitar-me-ei a afirmar que a ilusão religiosa é uma interpretação, não um dado. E como toda interpretação, não é a única conclusão que se pode extrair da experiência religiosa. Lembras dos sonhos que tivemos na noite passada?
-- Sim e me pergunto se a religião não é, ela própria, um sonho consciente, um sonho que se sonha acordado.
-- Penso que o é, replicou Caco, ou ao menos que é análoga ao sonho. Porém, nem este, nem a religião são propriamente ilusórios. Ao sonharmos, não nos iludimos, porquanto não vemos, ouvimos ou cheiramos algo e, a seguir, o representamos. As formas oníricas não têm a finalidade de representar objetos reais. Portanto, não são verdadeiras ou falsas. São antes respostas imaginativas da mente às necessidades emocionais do indivíduo. Ou por outra, os sonhos e a religião justificam-se por sua função, não pela representação que produzem do mundo. A função da religião é amparar a pessoa, no extremo risco de viver.
Enquanto discutiam essas coisas, os amigos iniciaram a descida da falésia entre o deserto e o mar. A parte inicial da gigantesca formação era constituída por rochedos nus, entre os quais solevavam arbustos. Naquele dia, porém, a escarpa estava envolta em brumas que aos Macacos parecia adentrar-lhes nos olhos. E, para dificultar ainda mais o descenso, chovia. Por isso, os amigos caminhavam com cautela e, de tempos em tempos, paravam para se localizar. Num desses momentos, Telha dirigiu-se a de Vidro:
-- Afirmaste que a religião não tem a finalidade de representar o mundo. Mas ela não produz representações de ojetos e fatos? Na mitologia hindu, por exemplo, o mundo não é descrito como uma Tartaruga chamada Kurma? Estás a propor que os hindus nunca entenderam esse mito como uma descrição do Universo?
-- Não. Com certeza eles o fizeram, e essa é uma das interpretações possíveis do mito em questão. Mas as mesmas mentes que criaram a interpretação duvidaram dela. Portanto, conceberam a interpretação alternativa de que a Tartaruga é uma metáfora, um símbolo, não uma descrição literal do mundo. O importante é que a religião, por si só, não evolui para fora do impasse que cria entre as interpretações literais e simbólicas do mito.
Nesse ponto, de Louça não se conteve e ingressou na conversa:
-- Da “ilusão” religiosa inicial, que as ajuda a vencer desafios de vida ou morte, as pessoas passam às representações do mundo. E o fazem porque a solução, o remédio que a religião provê para os problemas da vida, tende a tornar o mundo parte do próprio problema. O mundo se torna um lugar ameaçador, para aquele que se administrou a medicina religiosa. Ele parece contradizer a religião e, por isso, ameaçá-la. Então, para conciliar a religião e o mundo, as sociedades criam cosmovisões que denominamos mitos. Mas os próprios mitos, embora reduzam o descompasso entre a religião e o mundo, tendem a ser apropriados mais como novos remédios imaginativos do que como antídotos para a “ilusão”.
-- Sim, completou Caco. Porém, quanto mais desenvolvem as várias modalidades de pensamento racional (a filosofia, a matemática, a ciência natural e a humana, as técnicas), mais as pessoas avançam na crítica da “ilusão” religiosa. Nesse processo, elas tendem a superar o impasse entre as interpretações literais e simbólicas do mito, resolvendo-o em favor de umas ou outras, a depender das circunstâncias históricas.
-- Foi o que aconteceu com os filósofos gregos e os grandes escritores romanos, que questionaram os antigos mitos, lembrou de Louça. E também com os rabinos judeus e os teólogos cristãos, que aprofundaram o pensamento religioso em direções racionais.
-- Sem dúvida, concordou novamente Caco. A própria religião inicia o questionamento do mito, ao criar diferentes interpretações dele. Porém, a continuação do questionamento depende da ajuda de outras formas de pensamento racional. Esse processo, que pode ser denominado crítico, é extremamente cruel com a “ilusão” religiosa, pois a reduz a mil pedaços. Levado suficientemente longe, pode chegar a anulá-la. Então, só então, se completa o ciclo de transformação da religião.
Dessa vez, coube a Louça concordar com Caco:
-- Sim. Mas há coisas fora do ciclo que também são importantes para a compreensão dele. Por exemplo, a extinção dos grupos que não desenvolveram a religião. A piedade e os sentimentos ligados a ela foram tão bem-sucedidos, na História Natural, que só os grupos que os cultivaram chegaram até hoje. De sorte que é necessário observarmos as várias etapas de desenvolvimento da religião, sem negligenciar o contraste entre esse desenvolvimento e o das populações não religiosas.
Telha os ouvia com máxima compenetração. Ao final, observou:
-- Estais a sugerir que a religião deve ser julgada por seu inteiro processo de desenvolvimento e não só pelo momento em que a percebemos como ilusão...
-- Precisamente, respondeu Caco. Estamos num inquérito, talvez o mais árduo que já se realizou sobre as origens símias. Há muito, notamos que a origem das nossas espécies prende-se à de outros seres vivos e que essas origens todas, entrelaçadas, governam-se, em parte, por leis como a seleção natural. Porém, esse ponto de vista, que se costuma dizer científico, não torna a religião ilusória, antes a justifica, já que as populações religiosas alcançaram o mais alto grau de sucesso evolutivo. Vede o caso dos Homens. Eles surgiram muito antes da religião. No entanto, as populações que se voltaram à transcendência foram exatamente as que sobreviveram. A evolução humana permite concluir, portanto, que o abandono da religião que os Homens hoje preconizam constitui uma involução, uma reversão evolutiva que dificilmente terá sucesso.
Enquanto debatiam essas ideias, os Macacos chegaram a um trecho da falésia guarnecido de arvoredo viçoso e farto. Ao respirarem o ar fresco que o impregnava, um secreto prazer invadiu-os. Estava claro que, daquele ponto em diante, a fauna passaria a incluir animais cada vez mais diversos, multiplicar-se-iam as fontes, e as árvores tornar-se-iam pródigas em frutos. Lagos, rios e cachoeiras também seriam avistados com crescente facilidade. E para sorte ainda maior do grupo, a bruma rapidamente se dissipava. O que lhes pareceu significar que estavam a salvo do risco diuturno de morte, que os acompanhara na geleira e no deserto. E tanto folgaram que, inspirados por Gênesis, denominaram o lugar Jardim do Éden.
Retomaram, então, a descida, cada vez mais animados. Duas horas mais caminharam e chegaram a um lago de águas serenas, onde deslizava um punhado de Cisnes. De Vidro abordou-os:
-- Salve! Em que lindo lugar habitais! É vossa casa?
-- Sim, respondeu uma das Aves. É nossa casa, na medida em que somos uma família. Se não o formos, não o será.
-- Como assim? perguntou o Símio.
-- A exuberância deste ambiente só perfaz uma casa, um paraíso, se vivermos como família. Esta é a minha família, completou, referindo-se aos pares que singravam com ele as águas.
-- Bem, entendo-o... respondeu de Vidro. Tão galante família deve ser um dos píncaros da evolução das Aves!
-- De que ancestral evolutivo provindes? perguntou Telha, sem poder evitar o tema inquietante.
-- A descendência é assunto por demais complexo, para ser abrangida em pergunta tão restritiva, respondeu-lhe a Ave. Não estamos obrigados a concebê-la como sinônimo de origem de um único e mesmo tronco ancestral.
Essa última frase soou familiar aos Macacos, especialmente a de Vidro, que indagou:
-- Mas não é lá possível citar, ao menos, os mais fortes candidatos a terem sido vossos ancestrais?
-- Vede: se a vida engendrou-se muitas vezes e de muitas maneiras, por que a origem espontânea dela, como a ciência a descreve, e a criação divina, que as religiões propõem, não podem ser ambas verdadeiras? E se o forem, a resposta a vossas perguntas não será jamais encontrada numa investigação limitada aos quadros da Evolução.
De novo a resposta da Ave soou conhecida. Ao ouvi-la, Louça não se conteve. Exclamou:
-- Alarguemos as vistas do nosso intelecto, alarguemo-las extremamente!
Nesse momento, os outros compreenderam, como Louça já tinha feito, que o Cisne citava frases pronunciadas durante o inquérito.
-- As regras do pensamento conceitual, continuou o habitante da mata, submetem-se a um imperativo prático de ordem superior. Os antigos fizeram da Astronomia uma Astrologia. Deram-lhe, pois, um sentido prático. Mas o Homem atual perdeu o contato com essa harmonia entre o conhecimento e seu princípio prático.
Os Macacos estavam paralisados de repentino estupor. Já eram frases do Burro que tinham sido citadas!
-- Quando a ciência se torna bazófia, de pedras, Deus costuma suscitar filhos a Abraão, acrescentou o Cisne.
Assim, do encontro dos quatro com os Cisnes se fez a exibição do inteiro filme do inquérito. Ou ao menos de algumas cenas. Naquele paraíso, os quatro sentiram-se então tocados pelo mais fundo sentimento de verdade. Um sentimento como o que o vento lhes comunicara no deserto.
-- O diapasão do vento, continuou o Cisne, é como a voz de um profeta, que ecoa quando todas as bocas foram amordaçadas, e a ordem cultural oscila. Já a paixão da ciência e a paixão em geral...
-- Não são elas a falsa lira? completou Macaco de Vidro, que passara do estupor ao êxtase; e perguntou-lhe:
-- Que conclusão, que remate, essas frases sugerem para o inquérito que desenvolvemos?
-- Por que não a de que a evolução tem múltiplas fontes, que a ciência, por suas limitações (ou achais que não as possui?), conhece somente em parte? E por que não também a de que, entre as fontes, há uma que guia o processo evolutivo? E que sois manuscritos compostos por essa fonte suprema? Sim, manuscritos como os que achastes e tanto vos inspiraram...
De Vidro estava aturdido com a penetrante ciência e a sabedoria superior que encontrara naquele Animal. Ousou perguntar-lhe ainda uma vez:
-- Por que não proclamas ao mundo essas coisas?
-- Porque o mundo se rege pela aparência. E ao olhar para a minha e a de meus pares, não gosta. Acha-nos feios.
De Vidro olhou ao redor e só viu formosura. A névoa se dissipara completamente. O tempo se abrira em flor. Embeveceu-se de novo com a cena dos Cisnes brancos a vogar nas águas negras do lago. Percebendo que eram sete, o Macaco pediu-lhes:
-- Dizei-nos como vos chamais.
Nesse momento, o Cisne alçou elegante voo. E os outros debandaram após ele.
-- Patinho Feio! exclamou Caco.
-- Sim, Patinho Feio! gritaram os outros, como quem desperta de um sono.
E continuaram a gritar: “Patinho Feio, Patinho Feio!” Mas o Cisne não retornou. E todos se entristeceram.
O chão estava coberto de lírios dos mais lindos matizes.