domingo, 29 de abril de 2012

As Profecias e o Tempo (9): A Ira de Deus

Poucos temas bíblicos foram tão desacreditados, saíram tanto de moda ou de circulação, nos dias atuais, quanto a ira de Deus. Tal é o silêncio sobre ele, em certos meios cristãos, que um pacto parece vigorar, segundo o qual é possível discorrer sobre os mais variados assuntos bíblicos, desde que o tema espantoso da ira divina (orgé theou) seja contornado. É como se o Novo Testamento e o advento da graça em Cristo Jesus tivessem abolido o direito de Deus à sua ira.
No entanto, ao percorrermos as páginas do Novo Testamento, percebemos que o tema da ira de Deus está tão presente quanto nos livros de Gênesis a Malaquias. Ao expor o evangelho de Deus aos romanos, o apóstolo Paulo afirmou que “a ira de Deus se manifesta dos céus sobre a impiedade e a injustiça dos homens, que retêm a verdade na injustiça” (Rm 1:18).
Não é diferente no Apocalipse, que se encerra com o derramamento da ira divina contida nas sete taças. Gostemos ou não, queiramos ou não queiramos, aceitemo-lo ou o rejeitemos, a ira de Deus em estado puro, isenta de toda mistura, é a essência das sete taças.
Como a Bíblia a descreve, a ira divina é semelhante a uma força da natureza. Do modo como o Everest é o que é e como é, independentemente do que achamos que é, a ira de Deus é uma força autônoma e incontrolável. E ainda mais que uma força da natureza (por exemplo, os fenômenos atmosféricos), ela é imprevisível. Não é possível prever se Deus usará de misericórdia ou manifestará a sua ira, quando o homem lhe dá motivo, pois isso depende dele e só dele. Porém, em geral, a ira divina é acumulada, poupada, entesourada, para se manifestar no momento futuro adequado à sua plena atuação. De acordo com esse princípio, as sete taças serão derramadas no momento de todos os momentos, no momento mais adequado à revelação da ira de Deus na História.
O paralelismo das taças e das trombetas não pode ser negado. Da primeira até a sétima, cada taça atinge o mesmo objeto da trombeta correspondente. Uma única diferença se percebe entre elas: enquanto as trombetas incidem na terça parte do mundo, as taças caem sobre o mundo todo. Isso indica que a grande concentração do mal, que produzirá Anticristo, surgirá na terça parte da terra, mas infestará todo o mundo civilizado.
O mistério da iniquidade forma-se e cresce, na terceira parte da terra, mas se dissemina pelo mundo todo. Por isso, as taças são derramadas no mundo. Mas é possível perguntar: por que aquele mistério se espalha de tal maneira e com tal ímpeto? De que modo ele se difunde? Será Anticristo o único responsável por tão vasta subversão?
Se a resposta a essas inquietações for acessível ao entendimento humano, ela deverá provir do intervalo entre as trombetas e as taças. As primeiras são avisos e terminam com a aparição de Anticristo, no palco da História. Como tais, elas prenunciam um mal muito maior do que elas próprias. Esse mal as sucede e, ao mesmo tempo, antecede o derramamento das taças. Ocorre, pois, no intervalo entre as trombetas e as taças, quando as vozes dos quatro anjos são pronunciadas. O objetivo delas é alertar os homens para que temam a Deus e o glorifiquem (14:7), de que a grande Babilônia caiu (14:8), de que os adoradores da besta e sua imagem sofrerão a ira de Deus (14:9-10) e de que aos mortos no Senhor durante a atuação da besta estão garantidas bem-aventuranças (14:13). Isso aponta para a adoração de Anticristo como o grande fator da disseminação mundial do mistério da iniquidade.
Não é preciso supor que a mundialização do culto à besta ocorrerá, por conquistas militares. Mais provavelmente, ela resultará da aproximação política de países de civilizações diferentes e da sua interligação por recursos tecnológicos. Essas duas condições deverão permitir que a veneração da besta, semelhante ao culto dos Imperadores em Roma Antiga, se espalhe pelo mundo todo.
Se alguma dúvida há sobre o meio cultural em que esse novo culto será constituído, basta notar que a quinta trombeta recai na terceira parte do mundo, e a quinta taça, no trono da besta. Isso mostra que a besta estabelecerá o seu trono na terceira parte do mundo, isto é, no território dos povos orientais conquistados por Alexandre Magno. Na sexta taça, assim como na sexta trombeta, o Eufrates é especificamente mencionado, por constituir a fronteira entre os territórios representados pela terceira e pela quarta partes do mundo. De modo que esta é formada pelas terras orientais conquistadas por Alexandre.
O mistério da iniquidade é o culto de homens em vida. Não que o culto de reis e outros homens, após a sua morte, seja algo aceitável. Porém, do ponto de vista histórico, ele sempre foi praticado. Nunca foi novidade. Diferente era o caso do culto de seres humanos em vida. Por volta do primeiro século, quando Apocalipse foi escrito, os Imperadores romanos haviam tornado esse culto comum. Por isso, o Livro de Apocalipse o reflete e caracteriza como o mistério da iniquidade.
Sobre esse mistério, esse culto, será derramada a ira de Deus. A ira contida, armazenada, recalcada, intensificada até o máximo grau de pureza, de repente, desabará sobre o mundo magnetizado pelo homem do pecado como por um grande ímã. Essa ira recortada no pano da História, como inverso do mal, dos paroxismos do pecado e do ódio ao amor divino, porá fim à História até então decorrida. Não sem que uma nova etapa da História, muito mais luminosa e assinalada pela obediência de Deus, seja inaugurada.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

As Profecias e o Tempo (8): O Anticristo

Não há como ler a passagem sobre a emersão da besta semelhante a leopardo, em Apocalipse 13:1-10, e não a relacionar com o capítulo 7 de Daniel. Os dois textos são escatológicos; em ambos, um animal semelhante a leopardo surge do mar; e num como no outro, esse mar é o Mediterrâneo.
As similitudes não se suspendem aí. Como o quarto animal de Daniel, a besta de Apocalipse também tem dez chifres. E, assim como outros seres da profecia mais antiga, ela tem características de urso e leão. É preciso convir que as chances de as mesmas espécies de seres vivos serem citadas, em oráculos escritos com intervalo de séculos, seriam mínimas, se o autor não tivesse o propósito claro de relacionar o seu texto com o de Daniel.
Portanto, é provável que as semelhanças de várias partes da besta de Apocalipse 13:1-10 com as partes correspondentes dos animais de Daniel não ocorram por coincidência. Pelo contrário, elas relacionam estreitamente os dois animais. Anticristo não fará lembrar vagamente os pés do urso e a boca do leão dos últimos tempos. O paralelo entre eles será mais forte: o urso entregará a Anticristo, de modo irrestrito, o poderio representado pelos seus pés, e o leão colocará à disposição dele o poder simbolizado por sua boca.
Anticristo terá ainda maior participação nos poderes do leopardo do que nos do urso e do leão. Essa maior semelhança decorre de o reino anticristão e o terceiro reino de Daniel 7 serem representados por animais da mesma espécie (leopardos). Se, na profecia escatológica, povos diversos são indicados por animais distintos, dois seres da mesma espécie devem retratar o controle do poder por um mesmo grupo, exércitos e máquinas administrativas desenvolvidas por um mesmo método, talvez até ao mesmo tempo, em dois Estados. É o que sucederá com os leopardos de Daniel e Apocalipse.
Porém, apesar dos pontos em comum que possuem, o quarto animal de Daniel 7 não é a besta que sobe do mar em Apocalipse 13. Esta tem sete cabeças; do quarto animal não se diz outro tanto. Não se concebe que Daniel tenha visto o mesmo animal e não ressaltado as suas sete cabeças. Portanto, temos de concluir que o quarto animal de Daniel não tem sete cabeças e não é a besta de Apocalipse 13 e 17.
Mas uma segunda besta se ergue da terra, em Apocalipse 13. Contrariamente ao animal que a precede, ela dissimula sua natureza feroz sob a aparência de mansidão. Parece um cordeiro, mas fala como dragão. Tanto essa segunda besta como o dragão são animais. Em linguagem moderna, podemos dizer Estados. A segunda besta, em particular, é um Estado teocrático da última hora.
Ela promoverá o culto de Anticristo e levará o povo a erigir uma imagem a ele. Esse dado faz recordar a estátua, que Antíoco Epífanes fez instalar no santuário de Jerusalém, ao profaná-lo, no século II a. C. Porém, a lembrança daquele episódio estava bastante apagada na memória dos judeus, quando Apocalipse foi escrito. Mais viva devia ser a lembrança do episódio do século I d. C., em que Calígula tentou introduzir uma imagem sua no Templo, para ser adorada: “Não podendo tolerar que os judeus fossem os únicos, que se recusavam a obedecer-lhe, [Calígula] mandou Petrônio à Síria, para ser governador no lugar de Vitélio, com ordem de entrar com armas na Judeia e de colocar sua estátua no templo de Jerusalém” (JOSEFO, Flávio. Antiguidades judaicas. Livro Décimo-Oitavo, Cap. 11). O ato da época de Calígula prefigura o que o falso profeta praticará, no último tempo, embora não de modo literal.
O falso profeta fará com que as pessoas sob sua autoridade recebam uma marca na mão ou na fronte, com o nome ou o número da outra besta. A exortação discorre: “Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é seiscentos e sessenta e seis” (Ap 13:18).
Por não possuírem sistemas numéricos, muitos povos antigos usavam as letras do alfabeto como números. Portanto, para eles, as palavras eram, ao mesmo tempo, formadas por letras e números. Cada qual tinha um valor correspondente à soma dos números das suas letras. O “número do nome” de Anticristo tem esse provável sentido.
Mas qual é o nome ao qual corresponde o número da besta (666)? Essa questão foi extensamente debatida  ao longo do História. Na minha opinião, duas respostas destacam-se como as mais consistentes oferecidas a ela. A primeira envolvem a expressão César Nero, que em hebraico tem valor numérico 666. Portanto, identifica Anticristo com Nero. A outra resposta baseia-se na palavra latheinos, (latinos, ou seja, romanos), que também tem valor numérico 666. De acordo com a segunda resposta, Anticristo seria o povo romano com sua cultura latina.
Como Apocalipse esclarece que o número da besta é “o número de um homem”, sua identificação com os latinos é menos adequada. Embora seja um poder político, a besta é ao mesmo tempo um governante, como o texto bíblico lembra: "A besta que era e não é, também é ele, o oitavo rei" (Ap 17:11). Portanto, a identificação da besta com César Nero parece superior à assimilação aos latinos. Até porque Nero foi o primeiro Imperador a perseguir os cristãos.
Não sabemos quem Anticristo será, mas as Escrituras sugerem que o espírito de César Nero encarnará nele. Por isso, o príncipe vindouro é denominado um dentre sete reis de Roma, cinco dos quais haviam caído, um existia e outro estava para subir ao trono, quando Apocalipse foi escrito: "Aqui está o sentido, que tem sabedoria: As sete cabeças são sete montes, nos quais a mulher está sentada. São também sete reis, dos quais caíram cinco, um existe, e o outro ainda não chegou; e, quando chegar, tem de durar pouco. E a besta que viste [...] procede dos sete, e caminha para a destruição" (Ap 17:9-11).
Para identificarmos corretamente esses reis, precisamos entender primeiro que eles são as cabeças da besta que também tem 10 chifres. Sobre a besta se assenta a prostituta. Como ocorre com todos os conjuntos formados por uma montaria e aquele que a monta, a besta não realiza o que quer, mas os desígnios de quem a dirige, ou seja, a prostituta. Essa é claramente identificada com a cidade de Roma: "A mulher que viste é a grande cidade que domina sobre os reis da terra" (Ap 17:18). Precisamos entender, porém, que não é a cidade física, mas o poder que a governa. Mais do que isso, é o poder quando se prostitui.
Mas, assim como nenhuma mulher nasce prostituta, a cidade de Roma não se prostituiu desde a sua fundação. Como, nas profecias bíblicas, a prostituição costuma indicar a corrupção do culto ao divino, devemos entender que Roma não se prostituiu, propriamente, por adorar outros deuses, pois foi politeísta e idólatra desde a sua fundação, mas quando passou a adorar seus Imperadores. O culto ao Imperador é a prostituição da mulher, isto é, da cidade de Roma. Portanto, os sete reis identificados como as cabeças da besta são sete governantes adorados em vida.
Todos ou quase todos os Imperadores de Roma foram cultuados depois da morte. A instituição desse culto póstumo chamava-se apoteose. Porém, alguns Imperadores foram cultuados em vida. É provável que, em Apocalipse, esse culto tributado a um ser humano ainda em vida seja considerado o mistério da iniquidade, a manifestação histórica mais clara e concentrada do espírito anticristão.
Por isso, as sete cabeças devem ser sete Imperadores cultuados em vida. O filósofo judeu do primeiro século Fílon escreveu: “A Augusto [...] foram prestadas honras divinas e em diversos lugares lhe foram consagrados templos tão grandiosos que não podemos encontrar outros semelhantes” e ainda “O imperador [Calígula] ordenou que se colocasse a sua estátua no santuário [de Jerusalém] e que se escrevesse na coluna o nome de Júpiter” (ALEXANDRIA, Fílon de. Relato de Filom. In JOSEFO, Flávio. História dos hebreus. Rio de Janeiro: CPAD. pp. 768, 771). O culto a Tibério é descrito por David Flusser: "Imperadores romanos eram normalmente deificados apenas depois de sua morte, mas [...] Pilatos ergueu o pequeno santuário para Tibério,cuja inscrição dedicatória foi descoberta" (FLUSSER, David. Jesus. São Paulo: Perspectiva, 2002. pp. 128-129). De acordo com Flusser, a palavra tiberium veio a ser empregada para indicar um templo a esse Imperador, o que mostra que o edifício cujas ruínas foram encontradas não foi o único. O culto a Calígula, Cláudio e Nero é atestado em Eusébio de Cesareia (CESAREIA, Eusébio de. História eclesiástica. Rio de Janeiro: CPAD. pp. 54,76,95-96). Penso serem esses as cinco primeiras cabeças da besta.
Apocalipse 17:10 divide as sete cabeças em três grupos: as cinco primeiras, a sexta e a sétima. Diz que as cinco primeiras haviam passado, a sexta vivia na época em que o livro foi escrito, e a sétima ainda ia surgir. Sabemos que o profeta João foi exilado em Patmos. Como Domiciano foi o primeiro a perseguir os cristãos depois de Nero, é provável que o livro tenha sido escrito na época dele, o que explica a afirmação de que a besta (Nero) "era e já não é" (Ap 17:8), existira e não mais existia. Se essas considerações estiverem corretas, Domiciano será a sexta cabeça, e Nerva, seu sucessor, a sétima. O oitavo rei, Anticristo, por sua vez, pertence a uma quarta categoria, correspondente a um futuro não imediato.
A divisão das oito cabeças em quatro grupos não é sem significado: as cinco primeiras são Imperadores consecutivos. Após o reinado do quinto Imperador, há um intervalo, no qual outros Césares assumem o poder. Seguem-se a sexta e a sétima cabeças, que também são consecutivas. Por isso, são agrupadas. Outro intervalo de extensão ignorada se estende até a oitava cabeça, Anticristo.
Em suma, o fator espiritual que dirigirá a atuação de Anticristo será a meretriz, o poder governante de Roma, que sustentou o culto aos Imperadores em vida. Não necessariamente o Império Romano será revivido. Não necessariamente, o culto aos Imperadores será restaurado de modo ostensivo, nos últimos tempos. O que Apocalipse indica é que um dos espíritos que se elevou à posição de Deus, no primeiro século (o de César Nero), voltará à Terra como governante do país representado pela besta de Apocalipse 13 e 17. O fato de se tratar de Nero é, em si, suficiente para associá-lo à perseguição aos cristãos e ao culto do Imperador em vida, pois Nero foi cultuado, quando reinou no primeiro século. Não necessariamente, portanto, o culto será repetido. Menos ainda será necessariamente repetido de modo ostensivo, no extremo final dos tempos. O mistério da iniquidade será, essencialmente, o retorno à Terra do espírito que impulsionou aquele culto.
Essa interpretação da grande tribulação é eminentemente futurista. Ela, Anticristo e seu reino são todos vindouros. Parece-me, pois, um erro entender a besta como o Império, e os 10 chifres que ela tem na cabeça como poderes daquela época. Eles não são poderes passados, nem que serão restaurados do modo como existiram no passado. São poderes vindouros que assumirão uma forma também nunca vista.

sábado, 21 de abril de 2012

As Profecias e o Tempo (7): As Sete Trombetas

A Escola Histórica de interpretação de Apocalipse sustenta que as profecias do livro se cumprem, ao longo de séculos. Em princípio, essa distribuição dos eventos proféticos constitui a melhor maneira de se interpretar Apocalipse. Porém, os estudiosos consagrados à perquirição do livro bíblico ainda não chegaram a um consenso sobre o modo preciso como o método histórico deve ser utilizado e o conteúdo dos acontecimentos finais que ele permite desvendar.
Mesmo assim, os sete selos, as sete trombetas e as sete taças de Apocalipse permanecem a estrutura profética mais ampla e sofisticada da Bíblia. E como tais, eles têm de estender-se por períodos consideráveis, a maior parte passados, como exigem as premissas do método histórico. Porém, devemos acautelar-nos contra aplicações excessivas do historicismo, que fazem as séries de selos, trombetas e taças corresponderem a 21 períodos consecutivos, do fim do primeiro século à volta de Cristo. Em nenhuma profecia bíblica, o tempo é tratado como se fora um tecido inconsútil e sem poros. Os profetas judeus, simplesmente, não viam a História dessa maneira. Podemos encontrar oráculos com alguns, mas nunca com muitos eventos consecutivos.
Sob a perspectiva característica da profecia judaica, os selos, trombetas e taças formam um arcabouço notável, mas não uma sequência ininterrupta de acontecimentos. Os fatos dos seis primeiros selos localizam-se, no final do quarto e no quinto séculos. Descrevem o declínio e a queda do Império Romano. Por outro lado, as trombetas retratam eventos nos territórios do antigo Império Grego, como mostrarei a seguir.
Apocalipse divide o mundo abrangido pelos seus oráculos nas seções denominadas terça e quarta partes da terra. Não raro, essa divisão é interpretada, literalmente, como um terço e um quarto da superfície do globo. Porém, se ela é parte integrante de símbolos (selos e trombetas), não é possível que o seu significado seja literal.
É evidente que a divisão tampouco deve ser entendida conforme o gosto dos expositores da Bíblia, como se os números três e quatro indicassem o que cada um bem prefere. Mais coerente é buscar o significado da terça e da quarta partes da terra no interior da profecia escatológica, mais especificamente no capítulo 2 de Daniel. Nesse contexto profético, a terça parte pode ser identificada com o terceiro reino da estátua do sonho de Nabucodonosor (a Grécia), e a quarta parte, com o quarto reino (Roma). Sob essa Como os gregos conquistaram terras situadas muito além das fronteiras orientais dos Césares e a maior parte dos seus domínios nunca pertenceu aos romanos, a interpretação sugerida permite estabelecer a uma divisão territorial e política do mundo conhecido no primeiro século.
É como se a estátua representasse a terra, em diferentes épocas, e as expressões "terça parte" e "quarta parte" indicassem, na realidade, a terceira e a quarta partes dela. Portanto, os territórios dominados, respectivamente, pela Grécia e por Roma, no auge de seu poder. Sob essa concepção, os eventos das trombetas ocorrem nas terras orientais conquistadas por Alexandre Magno. Além dos Bálcãs, berço do grande príncipe, essas terras incluem a Ásia Menor (Turquia), a Palestina, o Egito, a Pérsia (Irã), a Báctria, os territórios que se estendem do Afeganistão ao Cazaquistão e partes da Índia. Uma característica notável da história desse enorme conglomerado geográfico é ter sido conquistado não apenas por Alexandre, mas também pelos muçulmanos. Como as trombetas são eventos futuros, e os muçulmanos até hoje controlam boa parte dos territórios orientais do Império Grego, é possível pensar que os eventos retratados pelas trombetas terão lugar em nações islâmicas.
No entanto, a localização dos acontecimentos das trombetas no espaço não basta para garantir uma compreensão adequada deles. Necessário é ainda os localizarmos no tempo. A quinta e a sexta trombetas trazem informações úteis para isso. Refiro-me aos cinco meses, durante os quais os gafanhotos da quinta trombeta agem na terra (Ap 9:3,5,10), e à hora, o dia, o mês e o ano da atuação dos anjos da sexta trombeta (Ap 9:15). Se adotarmos o padrão do Livro de Daniel, cada dia da profecia escatológica estará no lugar de um ano, como no caso das 70 semanas (Dn 9). As frações de dias serão frações de anos. De modo que os cinco meses da quinta trombeta serão 150 anos bíblicos de 360 dias ou 147 anos solares. E a hora, o dia, o mês e o ano da sexta trombeta corresponderão a 391 anos bíblicos (376 solares).
Se considerarmos que o oráculo das 2.300 tardes e manhãs localiza o fim da presente era, em torno de 2.320 d. C., o início da quinta trombeta deverá ser situado por volta de 1.793 d. C. Os próprios eventos dos quatro primeiros avisos não devem ter ocorrido muito antes disso. Provavelmente, tiveram lugar no século XVIII.
No tocante ao conteúdo, as quatro primeiras trombetas são juízos desencadeados por forças humanas ou naturais, no território entre a Turquia e a Índia. Já a quinta e a sexta trombetas descrevem a atuação de forças demoníacas (gafanhotos) e angélicas (cavalos), que infestam a terça parte da terra. Os demônios atuam de modo um tanto desorganizado. Os anjos caídos articulam-se em principados, o que lhes permite sujeitar as pessoas muito mais eficientemente. Por isso se afirma que os demônios atormentam, ao passo que os anjos matam as pessoas. E a sétima trombeta é continuação da sexta, já que Anticristo, que nela surge, é o anjo do abismo (Abadom ou Apoliom) e o rei dos demônios (Ap 9:11). Ele sobe do mesmo abismo em que demônios e anjos parecem estar encerrados (Ap 9:11).
Se isso estiver correto, a aliança de dez países que sustentará Anticristo, nos últimos tempos, formar-se-á no mundo muçulmano. Aliás, ele próprio, por se incluir na sétima trombeta (Ap 11:15—14:20), provavelmente, terá a mesma origem. Se os fatos das quatro primeiras e da sexta trombetas ocorrem na terça parte da terra (Ap 8:7-12; 9:15,18), não é difícil concluir que os da sétima também o fazem. Porém, esse tema será desenvolvido em outra postagem.
Na Antiguidade, as trombetas eram usadas para avisar as tropas de um exército para aprontarem-se e se colocarem em ordem para a batalha. Por isso, as sete trombetas são avisos da aproximação do combate final entre as forças de Deus e do mal. Ao mesmo tempo, elas são convocações para que os servos de Deus se aprontem para o conflito, pois terão de intervir nele.
Um aviso basta para encarecer a importância de direcionar a atenção ao evento que ele anuncia. Sete avisos formam um apelo sem precedentes. Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir veja e ouça que assim é, porque o conflito final é o evento profético mais importante da era cristã. Se os cristãos devessem ser meros expectadores dele, após o arrebatamento, talvez não fossem necessários tantos avisos. Porém, eles não o serão. Essa é a tônica do Apocalipse e a chave das suas exortações.
O conflito final não se explica pela ótica do arrebatamento como meio de preservação, mas como meio de participação ativa dos crentes no combate a Anticristo. Este é vencido pelo Verbo de Deus acompanhado de exércitos celestes com vestes de linho fino (Ap 19:14). O texto afirmar que os exércitos estavam no céu indica que haviam sido para lá arrebatados, não para assistirem, mas para virem com o Verbo de Deus e lutarem ao seu lado contra Anticristo.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Grande Conflito

A História da Igreja é cortada ao meio, rasgada como o véu do santuário, pela apostasia prevista em 1ª a Timóteo 4:1-4 e 2ª a Timóteo 3:1-2. Esse último texto afirma: “Sabe, porém, isto, que nos últimos dias sobrevirão tempos penosos; pois os homens serão amantes de si mesmos, gananciosos, presunçosos, soberbos”. Segue-se uma longa lista de pecados tanto da carne (a exemplo da incontinência e da concupiscência) quanto do espírito (blasfêmia, piedade aparente etc.).
Enquanto em 1ª a Timóteo 4 a apostasia é apresentada no interior da igreja, em 2ª a Timóteo seus reflexos no mundo são descritos. É o que nos diz a palavra homens (seres humanos de modo geral), no texto transcrito acima. Unindo as duas passagens, então, percebemos que a apostasia tem âmbito universal, abrange a igreja e o mundo, assim judeus como gentios.
Além disso, em 1ª a Timóteo está claro que o grande movimento maligno tem duas fontes principais: espíritos enganadores e demônios (1 Tm 4:1). A distinção entre essas entidades se soma a Atos 23:9 e outras passagens, que mostram que os judeus em geral criam na existência de múltiplos seres não encarnados. Espíritos enganadores são uma dessas espécies: especificamente, seres dotados de natureza angélica, que aderiram a algum tipo de rebelião contra Deus. Sua influência sobre as pessoas resulta na hipocrisia e mas mentiras mencionadas no versículo seguinte de Timóteo. Pode-se, pois, concluir que essa primeira vertente da apostasia tem por foco a hipocrisia, o fingimento, o engano e a mentira.
No entanto, a apostasia tem uma segunda vertente, associada à proibição do casamento e à abstenção de alimentos: “Nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios [...] proibindo o casamento, e ordenando a abstinência de alimentos que Deus criou” (1 Tm 4:-1,3). No Novo Testamento, os demônios são descritos como dotados da necessidade de possuir corpos humanos, por meio dos quais satisfazem os impulsos violentos de sua natureza. A proibição do casamento e a privação de alimentos eram consideradas ensinos demoníacos, não porque os demônios tivessem objetivos teológicos ou doutrinários, mas porque tinham interesse no comércio carnal, na glutonaria e na embriaguez.
Demônios tinham fins práticos e eram por eles movidos a promover certas doutrinas de preferência a outras. Proibindo o casamento, eles aumentavam a disponibilidade de mulheres. Recomendando a abstenção de alimentos, facilitavam o seu próprio acesso a eles. De fato, na História, a superabundância de mulheres, alimentos e bebidas sempre fez aumentar a licenciosidade, os bacanais, a glutonaria, a embriaguez, os festins e muitas outras formas de incontinência. Tais práticas eram consideradas ainda mais conformes à natureza demoníaca do que à humana, pelos autores que anunciaram a apostasia.
A História da Igreja é movida por impulsos mais práticos do que, por vezes, nos damos conta. Mais importante do que fundar uma Igreja no Papa, em patriarcas ou pastores, é não direcionar a fé ao dinheiro. Mais fundamental do que professar certos dogmas é o uso que se faz deles. É a relação que os dogmas guardam com as paixões carnais ou a unção do Espírito Santo. Do ponto de vista de Timóteo e de Tito, as doutrinas não são verdadeiras ou falsas por si, mas de acordo com essa relação.
À doutrina de demônios opõe-se a sã doutrina, e à apostasia, a restauração da igreja. Não que a restauração seja uma reversão da apostasia, mas ela se dá no contexto de tal processo. A restauração ambienta-se num mundo apóstata. O embate do bem com o mal não deixa de estar aqui implicado. Chamem-no maniqueísmo ou como preferirem chamá-lo. É um fato profético. É o inexorável, o irresistível.
Conflito do bem com o mal é exatamente o que a Bíblia apregoa que está a ocorrer e ocorrerá ainda mais. Um espírito tenebroso envolve a presente era como uma enorme nuvem. Não há como negar que a nuvem se adensa. Quando aquele que ainda a contém for afastado e deixar de obstruí-la, de tenebroso o estado do mundo passará a maligno. A resposta de Deus a esse processo em marcha acelerada só pode ser a restauração da igreja. Por uma razão muito simples: se não o for, a resposta terá de ser o estado ordinário da Cristandade: exatamente o que foi afetado pela apostasia e carcomido pela corrupção.
Se a apostasia de 1ª e 2ª a Timóteo corta a História ao meio, não há como se crer na pureza da Igreja organizada. Não há como se afirmar que ela é o exército vestido de branco, que acompanha o Verbo de Deus em seu triunfo final(Ap 19:11-14). E a menos que aquele exército venha a ser produzido de modo contrário à tendência dos fatos (e então pior para os fatos), uma restauração terá de intervir para ele entrar em cena.

sábado, 7 de abril de 2012

Doze Cestos Cheios

O vídeo "Simple Church", exibido no YouTube, levou-me a procurar mais informações sobre a Igreja Simples, nos sites www.house2house.com e www.simplechurch.com. Como o vídeo aparece associado à organização Amigrace, examinei ainda www.amigrace.org.
Nesses sítios, a Igreja Simples aparece como uma experiência propagada, ao mesmo tempo, por muitas pessoas e pela Amigrace. Essa dupla propagação ocorreu repetidas vezes, na História, particularmente nos grandes avivamentos espirituais. O que vivi na Igreja Local assemelha-se, em vários aspectos, ao que o vídeo mostra. De sorte que a presente postagem aplica-se também a essa igreja.
Nos avivamentos, é comum o trabalho do Espírito Santo concentrar-se nas pessoas e, em muito menor escala, no interior de organizações. Com o tempo, essas duas vertentes, que chamarei individual-familiar e organizacional, tendem a se diferenciar cada vez mais, até produzirem resultados antagônicos e incompatíveis. Geralmente, a vertente organizacional se fortalece mais do que a outra e lança tentáculos poderosos sobre os indivíduos e as famílias.
A experiência da Igreja Simples não parece escapar a essa regra. Ela assemelha-se ao que, há algumas décadas, se tornou conhecido como igreja em células. O precursor desse modo de vida cristã foi o pastor argentino Juan Carlos Ortiz, cujos livros O discípulo e Ser e fazer discípulos, lançados na década de 70 e/ou início da de 80, criticam inteligentemente o Cristianismo organizado e propõem o desenvolvimento de uma vida da igreja em casas. A preocupação com os problemas práticos das pessoas era uma das propostas centrais de Ortiz para serem desenvolvidas nos lares cristãos. Ela se parece muito com o que o vídeo do YouTube denomina a igreja servir de “hospital, escola, exército”, conforme a necessidade das pessoas.
O modelo de Ortiz foi implantado, com ou sem modificações, em vários lugares do mundo. Foi muito difundido nos Estados Unidos (que não é?). Mas produziu os resultados numéricos mais espetaculares na Coreia do Sul, sob a liderança do pastor Paul (depois David) Yong Cho. No fundo, a Amigrace propaga uma versão renovada do discipulado de Ortiz. Digo-o porque uma das características centrais do Cristianismo Evangélico dos nossos tempos é a diversidade aparente. Se excetuarmos as seitas e as heresias, a multiplicidade estonteante de grupos, igrejas e organizações evangélicas é portadora de um número reduzidíssimo de propostas de vida cristã realmente distintas. Sob esse princípio, a Amigrace parece-me fortemente tributária da igreja em células de Ortiz.
No entanto, em que pesem os dotes pessoais notáveis do reverendo Juan Carlos, desde a origem, as suas propostas tenderam a produzir o contrário do que propugnavam. Ortiz sempre pregou a igreja em células, porém as suas propostas continham um perigoso elemento de centralização das igrejas numa rede de controle. Ortiz ensinava que cada cristão devia seguir fielmente um mestre e ser seu discípulo. Mais do que isso: como o Novo Testamento nos fala de uma igreja por cidade, para ele, os primeiros pastores das denominações deviam formar um Colégio de líderes a se reunir regularmente para governar as igrejas nas casas. Os milhões de adeptos da Igreja de David Yong Cho, na Coreia, são o exemplo acabado e palpável da hierarquia eclesiástica a que o modelo de Ortiz tende.
O DNA de uma organização não é tão definido pelo que ela professa quanto pelo que faz. E no tocante à prática, a Amigrace parece seguir um modelo de desenvolvimento ainda mais perigoso. Ela mantém um site .org e outro .com. Seus líderes Edson e Cristiane Sant’Anna intitulam-se respectivamente apóstolo e profeta. O espaço www.house2house.com, mencionado no final do vídeo, por sua vez, destina-se a difundir a Igreja Simples, mas pede doações o tempo todo. Enfim, a Amigrace parece uma organização de porte considerável, com líderes autointitulados, a promover o seu próprio fortalecimento por uma proposta de vida da igreja em pequenos grupos.
Todas as cenas do vídeo de 24 minutos foram gravadas em ambientes sofisticados. Embora não duvide da genuinidade da experiência nele retratada, não posso deixar de observar que ela é um tanto restrita à classe média alta e à classe alta de uma ou mais localidades americanas. É claro que o Espírito sopra onde quer, mas engarrafá-lo dessa maneira me parece difícil...
Não é incomum organizações surgirem, durante os avivamentos, para apoiá-los e difundir as experiências espirituais das pessoas envolvidas neles. O problema é que essas organizações tendem a se hipertrofiar e a exercer uma autoridade malsã sobre indivíduos e famílias. O resultado desse processo é indefectível e está resumido na imagem evangélica dos doze cestos cheios. Infelizmente, os cestos que a hipertrofia organizacional produz não são cheios de graça e de luz, mas de fracasso e de dor...
Essa modalidade de experiência organizacional começa subsidiária e termina contrária ao mover do Espírito Santo. Começa como instrumento precioso da ação divina e termina como uma multiplicação dos pães ao contrário. No texto sinótico, cinco mil sentam-se na relva, comem e se fartam (Mc 6:39-42). E ainda sobram doze cestos cheios (Mc 6:43). Quando a organização é usada para controlar as pessoas e suas famílias, a multiplicação que se dá é a da morte. Come-se e bebe-se morte e ainda sobram doze cestos transbordantes.
Na Igreja Local, não passamos também por isso, em algum momento? Vejo, contudo, uma enorme dificuldade para reconhecermos o nosso fracasso, em toda a sua extensão. Queremos cobrir nossos cestos lotados de fracasso. Ou dizer que seis deles contêm fracasso, não os outros seis. Que os cestos que os outros levam nas costas, após terem comido o alimento pútrido, estão contaminados, porém não os nossos.
Apesar de sua carga negativa, é possível fazer ressoar bem alto as palavras de Isaías, sobre essa situação: “O povo que andava em trevas viu uma grande luz; e sobre os que habitavam na terra de profunda escuridão resplandeceu a luz” (Is 9:2).