sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Filho Pródigo

A parábola do filho pródigo inicia-se com o pedido dele para que o pai lhe antecipe a herança. A antecipação era um costume legítimo, na época de Jesus. Por ela, o sucessor recebia o quinhão hereditário antes da morte do pai.
Significa isso que, embora tenha concebido o plano de usar os bens de seu pai para usufruir os prazeres da vida, o filho mais novo do texto não estava errado ao pedir a antecipação. Ele não caiu em pecado apenas por usar ou pretender usar o que o mundo lhe oferece. “Todas as coisas são lícitas” (1 Co 6:12; 10:23). O pecado só surge, só mostra sua silhueta, quando o homem dá o passo seguinte. Quando ele junta o que é seu por direito e se aparta de Deus. E lhe volta as costas, quiçá para sempre.
A saída da casa paterna simboliza o abandono de Deus pelo homem que convive com ele e o conhece, ainda que não de maneira vital, que é somente a maneira do amor. Para descrever esse abandono voluntário, a parábola acrescenta um termo que não aparece nos textos da ovelha e da dracma: morte. Mais de uma vez, o pai afirma que aquele seu filho esteve morto e reviveu, esteve perdido e foi achado (Lc 15:24,32).
Temos aqui dois males, duas consequências do abandono do lar, por parte do homem que conhece a Deus. A primeira é a morte, a outra é a perdição. As parábolas da ovelha e da dracma focalizam a perdição; a do filho pródigo descreve a morte. Apresenta-a como separação voluntária de Deus. O filho morre ao abandonar o seu pai, revive ao retornar para ele.
Em Gênesis 2, a palavra de Deus ao homem criado para relacionar-se com ele foi: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2:17). De fato, ao pecar, Adão e Eva foram apartados da presença de Deus. A palavra divina cumpriu-se, dramaticamente, na experiência da morte como abandono.
A parábola do filho pródigo não nos fala de outra experiência.
O drama do filho é muito mais grave que o da ovelha ou o da dracma. É o drama maior, pois leva não só à perdição, mas à própria morte. Nos termos da parábola, morte é a ida a um país distante, é a adoção de um viver dissoluto, por meio do qual o homem se imola, desconstitui-se para Deus e para todas as outras coisas. Nenhuma experiência merece tanto os nomes mais repugnantes, nenhuma merece tanto ser colocada sob o emblema da morte, e da morte de Adão, quanto essa. Ao escolher abandonar a Deus, seja ele uma figura viva ou um feixe de obrigações, o homem se acaba para ele.
O verbo dissipar-se, empregado pelo evangelista, traz na raiz a palavra essência, de funda significação na época. O pródigo não só dissipou os seus bens. Ele dissipou a sua própria essência. Dissipou-se a si mesmo. Acabou-se, morreu a morte mais consumada, a morte que mais faz jus a esse nome: a morte da separação de Deus.
E repito que não importa que pai, ou que Deus, seja aquele do qual o homem se aparta. Para o pródigo, o pai não era mais do que era para o segundo filho. Não era, de maneira alguma, uma figura sublime. Era apenas um feixe de obrigações legais, uma lista de regras a serem observadas. Era talvez, como na canção popular, um escuro inferno do qual o filho, na sua alucinação, sentia arrepios. Tal pai não podia ser, e de fato não era, o amor. Então o filho foi procurar o amor tão longe quanto pôde encontrar-se do pai. Foi ao real inferno, à procura da luz mais intensa, sem perceber que as trevas não estavam ao redor, mas na sua consciência e haveriam de segui-lo por toda parte.
A morte do filho pródigo não é consequência só do abandono do lar paterno, mas da sua dissolução. O filho não percebe que gasta a si próprio, ao gastar sua fortuna. Então, a fome se abate sobre ele. Esse é o estágio final da alma que troca Deus por prazeres.
Duas ideias lhe ocorrem, nesse contexto: agregar-se a um cidadão do país longínquo em que está e retornar para o pai. Primeiramente, põe em marcha o propósito de se juntar a um cidadão local, tornando-se membro de uma família típica da terra estrangeira em que vive. Ao apartar-se de Deus, o pecador não se contenta em viver como forasteiro. Tem de multiplicar a ojeriza ao pai, agregando-se a um sistema exatamente contrário à vida no lar paterno. Tem de pedir os juros das suas blasfêmias no banco do mundo.
O problema é que, apesar de seu brilho, tudo o que o sistema ao final lhe oferece é escravidão e comida de porcos. No contexto da época, o trabalho a que o filho acaba reduzido, o cuidado de porcos, era típico de um escravo. Não era remunerado. E pior: a só contrapartida que lhe proporcionava eram as alfarrobas dadas aos porcos. Aliás, a contrapartida mal lhe era oferecida. Tudo o que o filho tinha era o desejo de obtê-la. Era um suspiro por alfarrobas.
Se algo é inferno, é isso. Não sei se alguma representação do Tártaro, imagem grega do inferno no primeiro século, era pior do que isso. Mal o creio. Mas, nesse anticlímax, o filho se lembra do oposto. Lembra-se da casa do pai: “Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura e eu aqui morro de fome!” (Lc 15:17). Compara, também, seu estado tardio com o que possuía na casa paterna.
Todo homem tem duas e apenas duas opções na vida: abraçar o mundo, com o brilho que tem no início e a escravidão e a vida de porcos do fim, ou viver da palavra que sai da boca de Deus. O superdesenvolvimento atual do mundo embriaga as pessoas e as faz viver como se houvessem descoberto uma terceira opção. A viver como se a ciência, a tecnologia e as instituições democráticas lhes houvessem facultado desprender-se de Deus, sem incidir no modo de vida brutal dos porcos. Mas, como sempre ocorreu, o sonho dessa terceira posição também terminará num delirante anelo por alfarrobas.
O fim de todas as eras do mundo é amargar, é transformar-se no anseio enlouquecedor por comida suína. Não será diferente, quando a cortina do tempo cair sobre o palco da ciência, da tecnologia e das instituições democráticas. Felizes os que caem em si e o percebem. O grego do Novo Testamento chama esse despertar um "entrar em si". O filho entrou em si, depois de ter saído, depois de se ter alienado. Na Bíblia, alienar-se de Deus é alienar-se de si. Por isso, entrar em si é o que se chama conversão. Não é melhora moral. Tampouco é uma experiência mística desorientada ou qualquer. É antes um achar-se e um achar a Deus.
Felizes são, pois, os que têm Moisés e os profetas e não apenas os guardam e os cumprem, mas os ouvem. Felizes os que têm o Novo Testamento e o escutam como quem lembra uma terra distante e paradisíaca, que um dia pensaram inferno. Felizes os que os ouvem, ainda que com funda dúvida. Só assim, só comparando seu segundo estado com o primeiro, o filho pôde alcançar o terceiro.
Antes de cumprir o propósito de regressar para casa, porém, nosso homem concebeu as palavras com que haveria de exprimir seu amargo arrependimento ao pai: “Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores” (Lc 15:18-19). Ensaiou a profissão de fé como o catecúmeno aprende a sua. Mas aprendeu a dizê-la de um modo inteiramente sentido.
E essa síntese mínima da amarga experiência do filho, contida na precária confissão, foi para o pai tão máxima que não permitiu ao pródigo chegar ao fim: atirou-se ao pescoço dele, antes que concluísse as doloridas palavras.

"Se há teologia, na Bíblia, não é para verbalizar o que não se ajusta ao verbo. Nem é para colocar em palavras o que as transcende. É apenas para dizer que Deus nos pede para abraçá-lo, é só para entregar, a todos os pródigos do mundo, o convite ao abraço que cancela a dívida incancelável."

A intervenção do pai mostra que a eficácia da salvação não reside nas fórmulas que o pecador pronuncia, ao se arrepender, mas no abraço em que é estreitado por Deus. A conceituação teológica tende a associar o perdão às fórmulas; o amor o vincula ao abraço. Todo pecado e toda vida pecaminosa terminam nos braços do Pai amoroso, do Pai que vigia constantemente o horizonte.
Se há teologia, na Bíblia, não é para verbalizar o que não se ajusta ao verbo. Nem é para colocar em palavras o que as transcende. É apenas para dizer que Deus nos pede para abraçá-lo, é só para entregar, a todos os pródigos do mundo, o convite ao abraço que cancela a dívida incancelável.