Aos fariseus e aos escribas que murmuravam contra ele por receber pecadores, Jesus pronunciou a seguinte parábola: “Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E, indo para casa, reúne os amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida” (Lc 15:4-6).
A satisfação de uma ovelha são as suas experiências físicas. É o pasto, a água, os raios de sol, as crias, as outras ovelhas. A satisfação do homem é o que permite à sua consciência erguer voo para lá das experiências físicas. É a realização máxima das suas potencialidades, a paz com o próximo, o pertencimento à própria cultura, a harmonia com a ordem do Universo, o autêntico conhecimento de Deus. Contrariamente, para a ovelha e para o homem, perder-se é perder todas essas coisas.
O animal da parábola perdeu todas as coisas físicas que o seu pastor lhe propiciara. Perdeu-o porque, no momento em que se desgarrou, sentia o calor do sol a banhar as pastagens que o atraíam para longe do rebanho, mas não era capaz de pensar no frio que o faria sua presa, apenas um pouco mais tarde, quando a lua despontasse no céu, e a escuridão se assentasse no trono da noite. Assim é a consciência da ovelha.
Para a consciência humana, porém, perder-se não é uma experiência física. Não é como a sensação de frio, de umidade, de escuridão, do ataque de um agente infeccioso. A mente do homem pode elevar-se acima de todas essas coisas, pensá-las antes que sobrevenham e se precaver contra os seus males potenciais. Por esse motivo, para o homem, perder-se é algo muito distinto do que é para a ovelha. É embrenhar-se em hábitos mentais que lhe roubam a noção de si, de Deus e pior: que lhe redundarão no mais profundo sofrimento.
Por meio da parábola da ovelha perdida, Jesus referiu-se a dois tipos de pessoas muito comuns na sua época: o publicano e o pecador. Este último termo é particularmente significativo, pois se aplicava a pessoas cujas condições de vida (ofício, recursos materiais quase sempre escassos, condição familiar etc.) só lhes deixavam a alternativa de viver uma vida de transgressores. Uma vida mergulhada no que Moisés definia claramente como pecado: prostituição, lascívia e toda sorte de males que se praticam por meio do corpo. Por isso, como em Israel havia fariseus, saduceus, sacerdotes, levitas, artesãos, lavradores, soldados, existia também o grupo bizarro dos pecadores.
Destoando desse grupo restrito, os judeus em geral criam ser filhos de Abraão e, portanto, de Deus. Por isso, não estavam perdidos, embora estivessem condenados, como Jesus lhes declarou (Jo 8:24). Eles eram as 99 ovelhas. Já os publicanos e os pecadores estavam não só condenados, mas também perdidos. Sua condenação era consequência do seu pecado. Era a morte do espírito, a separação de Deus. Como haviam pecado, estavam sob essa condenação. Porém, ao estado de condenação se somava o de perdição. Essas eram as ovelhas desgarradas de Deus.
Porém, contrastando com esse estado desesperador do homem que não está apenas sob condenação, mas se perdeu totalmente, a parábola mostra que o pastor pratica por ele o que não faz pelas 99. Só a ovelha perdida é salva nos ombros largos do bom pastor. E esses ombros existem para salvá-la. É importante que se brade: Deus reserva seus luxos, seus mimos, seu ombro forte, sua festa, exatamente para esse tipo de pecador. Para o pior dentre os piores. Esse pecador contumaz, somente ele, é tomado no colo por Deus e carregado em seus ombros.
“Esse é o amor agape: um amor que é por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele.”
A parábola evoca a força maior do Universo: a que leva a buscar a ovelha extraviada. Essa força é descrita pela palavra agape (amor em grego), a qual é formada por um radical que significa eleição. Quando olhamos atentamente para o Novo Testamento, percebemos que a ideia de eleição, e ainda mais a de amor-eleição, não é apenas um pano de fundo. É o objeto central. Alguém poderia perguntar eleição de que ou de quem. A parábola propõe uma resposta inequívoca: a eleição que o Novo Testamento descreve é a da única ovelha.
Uma conhecida oração de Santo Agostinho refere-se a Deus como quem “cuida de cada um como se cuidasse apenas dele”. Esse é o amor agape: um amor que é absolutamente por todos, mas é para cada um como se fosse só para ele. O poder infinito do texto de Lucas reside em expressar esse amor.
A parábola da ovelha única é um microcosmo do Novo Testamento. O que este transmite, nos seus 27 livros, ela nos diz em quatro versos. E diz-nos sem carências. Diz-nos que, a Religião, cujos representantes deixaram o homem semimorto, no caminho para Jericó, é pura Matemática. O levita e o sacerdote da outra parábola estavam cheios de preocupação com as 99 ovelhas do Templo.
De fato, para a Religião, 99 é mais do que um, pois a Religião é Matemática. Mas o Amor não é Matemática. Para ele, uma ovelha perdida é zero. O pecador semimorto é nada, por mais que seja um. Mas esse um que é nada é mais que todas as 99. E estas? Elas também são nada, já que foram deixadas pelo pastor no deserto? Bem, aos olhos do Amor, elas também são 99 uns.