sábado, 8 de outubro de 2011

O Corpo de Cristo

Um dos maiores legados de Watchman Nee às gerações recentes foi a clara denúncia que fez das divisões no meio cristão. Com a nítida preocupação de opor a doutrina bíblica a essas divisões, Nee desenvolveu sua doutrina da igreja a partir de Mateus 16:18 e 18:15-17. Esse método de exposição foi bem-sucedido, na medida em que esses textos contêm as únicas menções da palavra igreja pelo próprio Cristo.
No entanto, até pelo seu tamanho reduzido, os versos de Mateus não fornecem uma elucidação completa da igreja no Novo Testamento. Ciente disso, Nee desenvolveu a sua reflexão sobre a igreja, em muito maior profundidade, em obras como A vida normal da igreja cristã e Palestras adicionais sobre a vida da igreja. Alguns de seus leitores e seguidores, por sua vez, adotaram o caminho alternativo de explicar a igreja universal e a local por uma série de metáforas bíblicas, assim como o corpo de Cristo, o rebanho, o edifício e a lavoura de Deus, entre outras.
Embora as metáforas sejam muito importantes, precisamos tomar o cuidado de não as passar adiante da revelação com sentido claro, que Deus transmitiu nas Escrituras. Ao nos depararmos com um ensino metafórico e outro com sentido claro, devemos dar preferência à revelação clara de Deus e subordinar o ensino alegórico a ela.
Esse princípio de interpretação defendido por Lutero, na histórica discussão que travou com Erasmo, pode ser aplicado, de modo eficaz, à revelação clara da igreja e a metáforas como o corpo de Cristo, o edifício de Deus etc. Não resta dúvida de que a igreja é adequadamente descrita por essas metáforas, porém a revelação primária e básica do Novo Testamento sobre ela deve ser extraída das palavras claras de Cristo e dos autores das Epístolas.
À luz desses princípios, vejamos o que os versos de Mateus sobre a igreja de fato ministram. O versículo 16:18 contém duas metáforas: a da edificação da igreja e a das portas do hades (inferno). Isso o torna bastante difícil. Para entender o seu significado, é útil começar pelo que há de mais claro no verso. Refiro-me à própria palavra ekklesia. Todos os expositores do Novo Testamento concordam que esse termo grego significa assembleia ou congregação. Portanto, antes de tudo, a igreja é uma coletividade de pessoas reunidas e não dispersas.
O próprio Watchman Nee enfatizou que a igreja, em sentido local, é constituída por todos os cristãos em determinada cidade. Aliás, em A vida normal da igreja cristã, Nee acrescentou também as vilas como bases geográficas, nas quais uma igreja neotestamentária pode ser constituída. No entanto, a inclusão de todos os cristãos na igreja da cidade, da vila ou de outra circunscrição é menos uma contribuição pessoal de Nee ao entendimento da igreja do que um reflexo da compreensão usual dos cristãos.
Esse ensinamento é questionável. Se a igreja for todos os cristãos, numa vila, cidade ou outra circunscrição, seu aspecto de assembleia ficará prejudicado, pois ali poderão existir cristãos reunindo-se e não se reunindo. Como a palavra ekklesia nunca foi empregada, na Bíblia, para indicar pessoas não reunidas, esse aspecto da doutrina de Nee deve ser tomado com o necessário cuidado.
Algumas vezes ocorre de determinada palavra perder o sentido original, após ser muito empregada em outro sentido. Não há, porém, sinais de que isso estivesse a ocorrer com o termo ekklesia, no primeiro século. Se olharmos atentamente para o Novo Testamento, perceberemos que o termo foi empregado para a congregação de Israel no deserto (At 7:38 - grego), porém nunca para esse mesmo povo, no estágio posterior em Canaã. Por que essa clara diferenciação? Somos levados a pensar que o motivo é o fato de Israel, em Canaã, não viver reunido em assembleia como no deserto. Isso basta para indicar que ekklesia não estava em processo de vir a ser utilizada para designar um grupo de pessoas não reunidas, à época do Novo Testamento.
O mesmo princípio se aplica à igreja universal. Quando declarou “sobre essa rocha edificarei a minha igreja”, Jesus não se referiu a uma igreja dispersa ou abstrata. Ele não se referiu à igreja como uma lista de pessoas. A igreja universal não é uma lista com os nomes dos crentes em Cristo de todas as épocas e lugares. Ela é os crentes congregados, reunidos em assembleia. Pode-se afirmar até que a edificação da igreja (metáfora) é a adição de novos e novos membros a Cristo, através dos séculos, seguida da reunião deles num corpo. A reunião é tão importante quanto a adição, para termos a igreja.
Sob essa luz, a declaração de Mateus 16:18 é uma maravilhosa promessa, por meio da qual nos é garantido que, ainda que todas as forças do Universo atuem para desunir e afastar os cristãos, eles serão reunidos por seu Senhor e Mestre numa assembleia definitiva. Nem a força mais terrível de todas (a morte), representada pela palavra hades (inferno), prevalecerá contra essa assembleia.
De modo um pouco contrário a isso, porém, ao longo da História, a igreja universal foi entendida de três maneiras principais. Entre o primeiro século e a consolidação do domínio da Igreja de Roma, a expressão foi usada para indicar a totalidade dos cristãos na Terra. Quando o domínio de Roma se consolidou, por volta do século IX, a igreja universal passou a ser compreendida como instituição, isto é, como a própria Igreja Romana. Por fim, no século XVI, ganhou força a concepção da igreja invisível formada por todos aqueles a quem Deus concede a graça salvadora. Essa última concepção foi adotada pelos dois ramos originais da Reforma: luteranos e reformados.
Nenhuma dessas concepções históricas faz jus ao aspecto de assembleia da igreja. A igreja espalhada pela Terra não é uma assembleia. A Igreja Romana como instituição tampouco o é. E a igreja invisível não se constitui em assembleia pelo fato de receber a salvação de Cristo. Pode-se, pois, perguntar o que é e como se forma a igreja universal. De acordo com Mateus 16:18, a igreja se forma pela sua edificação, ou seja, pela reunião de todas as pessoas que se agregam a Cristo por meio da fé, ao longo dos séculos. Esse número nunca se perfaz totalmente na Terra. Por isso, a igreja universal nunca está inteiramente na Terra. É biblicamente equivocado considerar um conjunto qualquer de cristãos, vivendo em determinado período (por exemplo, hoje), como o corpo de Cristo.
Um dos erros mais comuns entre leitores não muito cuidadosos de Watchman Nee, nos tempos atuais, é a aplicação de metáforas da igreja universal, como o corpo de Cristo, a contingentes limitados de cristãos sobre a Terra. Mais particularmente a cristãos sob determinado ministério. O equívoco advém do fato de muitos leitores de Nee estarem envolvidos em divisões ministeriais, hoje em dia. O grupo sob o ministério com maior alcance geográfico alega ser o corpo de Cristo e acusa o outro grupo de se separar do corpo, por se ter separado dele. E por incrível que possa parecer, o outro grupo alega que os seus integrantes é que são o corpo.
Nenhum dos dois grupos está alinhado com o ensinamento de Nee, nesse ponto, pois ele sempre combateu tenazmente as divisões no meio cristão. Reconhecer a condição ou a posição espiritual de corpo de Cristo (e não de uma parte dele) a cristãos sob determinado ministério, tratá-los como se fossem a igreja universal, é uma atitude antes de tudo divisiva. Portanto, contrária à obra de Nee. Ninguém que conheça adequadamente essa obra pode negar tal fato.
À luz do Novo Testamento, atribuir a condição ou a posição de corpo de Cristo a um conjunto limitado de cristãos não é apenas repetir os erros da História da Igreja: é piorá-los muito, pois os contingentes identificados com a igreja universal, hoje, são muito mais reduzidos que os de ontem.
O corpo de Cristo é uma metáfora da igreja universal (Ef 1:22; Cl 1:18). Nenhum grupo ou contingente cristão pode-se dizer esse corpo, a menos que revogue o ensinamento claro da Bíblia por uma metáfora.