terça-feira, 30 de agosto de 2011

A Parábola do Fermento

Dentre as parábolas de Jesus, algumas se destacam por tratar de fatos negativos. Em Mateus 13, os textos a respeito do joio, do pé de mostarda e do fermento enquadram-se nessa categoria. Embora o crescimento da árvore de mostarda não precise ser considerado anormal (já que algumas variedades alcançam altura superior à de um homem), o sentido negativo das aves que se aninham em seus ramos permanece inegável. Se os pássaros que arrebatam o que foi semeado à beira do caminho representam o maligno, como Jesus afirmou (Mt 13:19), eles não devem significar algo positivo em outra parábola.
Não é diferente no caso da mulher que introduziu fermento em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado (Mt 13:30). Para os judeus, o fermento tinha significado negativo. Levítico proibia a sua inclusão nas ofertas a Deus. Na mesma linha de raciocínio, Jesus advertiu seus discípulos contra o fermento dos fariseus (Mt 16:5-12), e Paulo exortou os coríntios a lançarem fora o velho fermento e a serem sem fermento (1 Co 5:7-8).
Tudo isso mostra que o reino dos céus não exclui aspectos negativos. Como as parábolas retratam esse reino e não uma miragem dele, sua intenção é mostrar que os elementos negativos fazem parte da esfera de governo de Deus. Isso significa que o reino está entretecido na realidade precária do mundo e a contém.
Por outro lado, há expositores que apagam o aspecto negativo das parábolas do grão de mostarda e do fermento, interpretando-os como positivos. Afirmam que as aves que se aninham no pé de mostarda representam os crentes, e a mistura do fermento à massa indica o crescimento espetacular do evangelho no mundo. Ainda outros intérpretes reconhecem o caráter negativo desses elementos, mas afirmam que eles se referem à aparência, não à realidade do reino de Deus.
Um problema dessas interpretações é idealizar excessivamente o reino. Tão longe foi a disseminação desse modo de pensar que se fez um hábito. O problema não está no início do hábito, mas no seu final. Não está no lugar de que parte, mas no destino a que chega. O ponto de partida do hábito é de uma beleza vertiginosa. Pautar-se por idealizações é como mirar uma estrela-guia no deserto. Porém, não se pode viver o tempo todo sob orientação das estrelas.
A idealização se transforma em problema, quando deixa de ser um exercício eventual e se converte em hábito. Uns a levam mais longe, outros menos. Porém, os entusiastas da idealização a exercitam até torná-la um hábito inveterado e bastante difícil de abandonar, pois a mente se agrada dele. Não é incomum interpretações sofisticadas da Bíblia, verdadeiros sistemas teológicos, serem erigidos pelo exercício de tal hábito.
A tendência à idealização manifesta-se, por exemplo, quando os cristãos interpretam o estado primitivo do Jardim do Éden. Costuma-se considerar que, no Éden, tudo era perfeito, nada se corrompia, não havia sofrimento, e nem uma flor murchava. Embora seja difícil explicar como as dores de parto puderam multiplicar-se, com a queda de Adão e Eva (Gn 3:16), a não ser supondo que existiram antes, toda uma teologia é construída sobre esse tipo de idealização.
Na Bíblia, as origens certamente retratam um momento privilegiado da experiência espiritual. Foi assim no início da humanidade (no Éden) e na igreja cristã primitiva. O que estou a afirmar é que é perigoso carregar nas tintas da idealização das origens. É perigoso criar um universo imaginário, por nossa conta e risco. E o risco não é pequeno: quando plasmamos um mundo mental perfeito, alojamo-nos dentro dele (talvez no seu centro) e queremos forçar tudo o mais a se moldar a ele, não criamos somente conflitos: deformamos a nossa própria representação do mundo, com todas a consequências nefastas que isso produz.
Nem um mestre cristão com os dotes espirituais e a inspiração de Watchman Nee escapou à influência desse hábito de pensamento. Em A vida normal da igreja cristã, Nee referiu-se à declaração de Jesus sobre o divórcio como um padrão aplicável a todas as áreas da vida da igreja. Segundo ele, as palavras “por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8) devem nortear não apenas a relação marido-mulher, mas também a vida da igreja. Em tudo, devemos retornar ao princípio. Só assim, poderemos abraçar a vontade categórica de Deus (o texto em inglês diz vontade determinante), em lugar da sua vontade permissiva. No caso do divórcio, a vontade categórica do Criador está expressa no verso “E serão os dois uma só carne”; já a vontade permissiva está contida no mandamento dado mediante Moisés. Por isso, “se quisermos conhecer a mente de Deus, devemos olhar para os seus mandamentos em Gênesis, não olhar para as suas permissões posteriores, pois cada permissão tem esta mesma explicação: por causa da dureza do vosso coração” (NEE, Watchman. Normal Christian church life. Introduction).
Aprendi a respeitar profundamente o trabalho interpretativo tanto de expositores antigos, como Agostinho, quanto dos mais modernos, como Watchman Nee, na medida em que advêm da sua funda disposição de servir a Deus. Porém, não posso deixar de reconhecer que esses autores foram falíveis e o que me parece terem sido os erros deles. Parte dos ensinamentos de Nee é fruto de um tipo perigoso de radicalidade construído sobre a idealização.
Em A vida normal da igreja cristã, Nee toma a história de Atos como padrão a ser seguido à risca. Por exemplo: o Espírito Santo mandou os profetas e mestres de Antioquia separarem Barnabé e Saulo para a obra que lhes estava reservada (At 13:2). Logo, diz Nee, todo apóstolo deve ser designado por profetas e mestres. De onde é tirada a força desse argumento? Do princípio da origem. Atos 13:2 narra a primeira designação de apóstolos depois dos Doze. A primeira designação por vontade expressa do Espírito Santo. Por ser totalmente pura, a origem do apostolado tardio não estabelece somente um fato, mas uma norma a que toda a vida da igreja está absolutamente subordinada.
Todo mestre, todo escriba versado no reino dos céus, está inserido numa cultura. Porém, precisamos tomar o cuidado de separar o que há de cultural do que há de bíblico, nos seus ensinamentos. Tenho imensa admiração pela cultura chinesa, mas não posso deixar de observar que ela é uma das mais propensas à centralização de pessoas e relações em focos de poder incontrastável. O ensinamento de Nee sobre a designação dos apóstolos não deixa de refletir essa propensão. Ele observa “que o Espírito Santo não disse à igreja em Antioquia: Separai-me agora a Barnabé e a Saulo. Ele o disse aos profetas e mestres” (idem. Chapter 2). Se lembrarmos que Nee acrescenta que o ministério que os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres devem todos desempenhar é único, pois Efésios 4:11 se refere a ele no singular, entenderemos a que alturas de centralização ministerial o seu ensinamento pode conduzir.
O cuidado com que Nee invariavelmente interpretava a Bíblia não o levou a questionar se a separação (para ele obrigatória) dos apóstolos, por profetas e mestres, em Atos 13:2, exclui a participação da igreja no ato de escolha. Tampouco o levou a indagar por que Deus se agrada de os presbíteros e os diáconos serem indicados pela assembleia local (como acontece no Novo Testamento), e os apóstolos não. Paulo sempre retornava a Antioquia, após as suas viagens; ele também foi enviado por aquela igreja a Jerusalém, juntamente com Barnabé, para tratar de um problema que afetava não só a Judeia e a Síria, mas também a Ásia: isso indica que o apostolado tinha importante raiz local, no primeiro século. Num tempo em que as assembleias cristãs eram pequenas, e as dificuldades de comunicação, enormes, não faz sentido conceber um apostolado sem raízes locais. Então, por que a igreja local podia indicar seus presbíteros e não os apóstolos procedentes dela? Teria Deus fundado esses dois ofícios em princípios contraditórios?

"As palavras acima devem levar-nos a perguntar se a ausência de um fato, na Bíblia, equivale à sua proibição, se a ausência de missões institucionalizadas equivale à interdição desses ministérios por Deus e se a ausência de outras organizações é o mesmo que a proibição delas."

Não há problema algum em adotarmos a história como padrão. Porém, devemos tomar o cuidado de não tornar o padrão muito normativo, de não transformar o fato (histórico) em norma. Esse método de transformação parece ter levado Nee a concluir: “As Escrituras não fornecem precedente algum para a separação e o envio de homens por um ou mais indivíduos, por uma missão ou organização. Até mesmo o envio de obreiros por uma igreja local é desconhecido na palavra de Deus” (idem. Chapter 2). As palavras acima devem levar-nos a perguntar se a ausência de um fato, na Bíblia, equivale à sua proibição, se a ausência de missões institucionalizadas equivale à interdição desses ministérios por Deus e se a ausência de outras organizações é o mesmo que a proibição delas.
Tudo isso mostra que o hábito da idealização pode dar base a uma espécie perigosa de radicalidade. Não pretendo estabelecer o quanto Nee se adiantou nesse processo. Não disponho de meios que me permitam extrair tal conclusão. Porém, o seu modo de proceder, às vezes, resvalou para a idealização excessiva do reino e da igreja, assim como para a transformação da história em norma sobre a qual não se pode transigir.
Aquele que disse que o reino dos céus é semelhante à mulher que ocultou fermento em três medidas de farinha não considerava o reino de Deus uma idealização. Pelo contrário, ele o considerava duro como o real. Tinha-o como um processo em que a natureza divina rompe a superfície da terra, e o fermento se espalha na massa: o divino e o humano, o certo e o errado, o bem e o mal, lado a lado, numa determinada relação.

sábado, 27 de agosto de 2011

O Tesouro Escondido

Uma leitura apressada da parábola do tesouro (Mt 13:44) pode induzir à conclusão de que o descobridor o acha por acaso. Porém, o sentido do texto é outro. O tesouro está fora do alcance da vista das pessoas. Ao realizarem as suas atividades cotidianas, elas não o veem. Além disso, o homem descobre o tesouro num campo que não lhe pertence. Que estava a fazer ali? A parábola não diz que o lavrava. Mais provável é que procurasse jazidas de pedras e de metais preciosos: algo muito parecido com o que o descobridor da pérola também realizava (Mt 13:45-46), por força de sua profissão. De modo que as suas descobertas não foram casuais.
Tanto a parábola do tesouro como a da pérola repetem a lição de Jó 28. Esse capítulo abre-se com as palavras: “Na verdade, a prata tem suas minas, e o ouro, que se refina, o seu lugar. O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre” (Jó 28:1-2). E continua: “Até aos últimos confins [pessoas] procuram as pedras ocultas nas trevas e na densa escuridade. Abrem estradas para minas longe da habitação dos homens, em lugares esquecidos dos transeuntes” (Jó 28:3-4). E a experiência de Deus, de onde se extrai? Também ela se tira de mananciais localizados bem longe do conhecimento ordinário. Também ela está no fundo dos poços e na escuridão das minas da existência humana. Por isso, não raro, o homem precisa encontrar um sofrimento radical, para realmente achar Deus.
O homem é um ser perdido, pois não sabe onde estão as coisas que mais lhe importam. Onde está Deus e quem é, onde estão as gerações passadas, onde podem ser encontrados os justos. Essa é a suma de todo o Antigo Testamento. Talvez o versículo que mais o expresse seja o do oitavo salmo: “Que é o homem, para que dele te lembres?”. A pergunta deve ficar sem resposta, para exprimir plenamente a condição humana. O homem é um ser perdido. Ele não sabe quem é. Isso é a lei e os profetas. Se não o for, é ao menos o preâmbulo deles. É a antropologia da Bíblia. Se amar a Deus e ao próximo é um compêndio do Antigo Testamento, saber quem é o homem e quem é Deus constitui o preâmbulo a toda Escritura.
O ser humano não se conhece, pois não conhece Deus, a cuja imagem foi forjado. E não conhece o seu Criador, pois este está oculto. Onde se esconde Deus? No fundo da terra, onde o tesouro se abriga, e nas profundezas do mar, onde está alojada a pérola. Assim como não se pode lançar mão das riquezas do subsolo e do mar sem um conhecimento especializado, os mananciais da experiência de Deus não se dão a descobrir sem certo grau de conhecimento bíblico. Buscar a Deus sem esse conhecimento é como buscar petróleo, sem dominar a ciência da sua prospecção e extração. A chance de o homem encontrar petróleo dessa maneira é igual à de encontrarmos as experiências mais elevadas do reino dos céus sem um conhecimento adequado das Escrituras.

"O conhecimento da Bíblia não é, em si mesmo, o ouro, a prata ou a pérola. Porém, assim como não se descobrem essas riquezas sem o conhecimento adequado, é impossível obter-se as experiências mais elevadas do reino dos céus sem certo grau de conhecimento bíblico."

“Estende o homem a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes. Abre canais nas pedras, e os seus olhos veem tudo o que há de mais precioso. Tapa os veios de água e nem uma gota sai deles, e traz à luz o que estava escondido. Mas onde se achará a sabedoria?” (Jó 28:9-12). Claramente, a descoberta e a extração das riquezas do subsolo são comparadas à aquisição do verdadeiro saber. Por isso se diz que a sabedoria “está encoberta aos olhos de todo vivente, e oculta às aves do céu” (Jó 28:21).
O conhecimento da Bíblia não é, em si mesmo, o ouro, a prata ou a pérola. Porém, assim como não se descobrem essas riquezas sem o conhecimento adequado, é impossível obter-se as experiências mais elevadas do reino dos céus sem certo grau de conhecimento bíblico. Acaso, estaríamos a dizer o que dizemos, a conversar, pregar, ouvir e ensinar o que conversamos, pregamos, ouvimos e ensinamos, sobre o reino dos céus, se o Novo Testamento não existisse? O ressoar dessa pergunta deveria bastar para entendermos que aprouve a Deus sujeitar as experiências cristãs à mediação da Bíblia. Deveria bastar para que cessássemos imediatamente o que estamos a criar com a matéria-prima das opiniões humanas (sempre positivas e às vezes indispensáveis, mas infinitamente inferiores ao verdadeiro saber), a fim de buscarmos um conhecimento das Escrituras que realmente nos faça tremer.
Há uma diferença notável entre as opiniões sobre a Bíblia e o ouro, a prata e as pérolas da palavra de Deus. Não podemos tratar a Bíblia como quem se deleita em palpites sobre política ou futebol. Assim como o bom trabalhador não aprende o seu ofício ouvindo opiniões, mas interiorizando e praticando com seriedade uma técnica, as experiências mais elevadas do reino dos céus requerem uma prospecção muito séria, por meio de noites em claro, vigílias e temores, no fundo escuro onde brilha o ouro.
Esse manancial é o dos apóstolos e profetas. Ninguém tem acesso a ele, sem se sentar aos pés dos instrumentos humanos eleitos por Deus. Porém, só o sentar-se e o ouvir não bastam. A leitura e a formação de opiniões sobre a Bíblia capacitam-nos a obter as experiências sublimes do reino tanto quanto é possível colher ouro e prata de árvores.
Para entrar no ventre das Escrituras, o homem perdido necessita sentar-se aos pés dos apóstolos e profetas e ouvi-los quase interminavelmente, até entender a mensagem desses portadores de filosofias bárbaras, como os romanos os denominavam. Precisa receber grandes doses da tradição originária de povos nômades da Idade do Ferro, como os modernos críticos da Bíblia a denominam. Embora depreciativos, esses juízos não são tão despropositados, pois não estão longe da concepção expressa na exclamação de Jesus em Mateus 11:25 (“Graças te dou, ó Pai” etc.). Para ele, de certo, o fazer-se pequenino, em vez de sábio e entendido, significava aderir aos pastores hebreus da Idade do Ferro e aos galileus do primeiro século.
Porém, somente aceitar tais pastores, apóstolos e profetas não é suficiente para acharmos o tesouro e a pérola onde se encontram, ou seja, no fundo da terra e no mar. Para isso, é necessário adquirir ainda um grau adequado de conhecimento deles. É preciso buscá-los. Ao mundo que desenvolveu uma ciência e uma técnica vertiginosas, Deus ordena não só aceitar, mas se aprofundar nos ensinamentos dos pastores da Idade do Ferro, dos apóstolos e profetas semibárbaros do primeiro século. Ele ordena buscá-los com afinco, ainda que para isso seja necessário descer aos abismos do despojamento da nossa cultura orgulhosa e altiva.
Essa é uma questão muito séria. Se não o fosse, Jesus não teria dito para vendermos tudo o que temos, a fim de comprarmos o tesouro e a pérola. Quando leio o Diário de John Wesley ou um livro de Watchman Nee, independentemente de concordar ou não com certas interpretações bíblicas deles, deparo-me com essa exata espécie de renúncia. Por isso, dou-os como exemplos. Wesley e Nee não só aceitavam as Escrituras como autoridade: eles as valorizavam altamente, o que é muito distinto. Tão distinto quanto achar ouro e cascalho. Esse valorizar radical, mais do que as paisagens interpretativas que os mestres da Bíblia frequentam, constitui o segredo das parábolas do tesouro e da pérola.
Por meio do conhecimento bíblico, descobrimos esses dois bens superiores. Comprá-los, porém, é todo um outro assunto. Para nos apropriarmos do tesouro e da pérola e denominá-los nossos, precisamos de uma experiência pessoal diferente do conhecimento bíblico: precisamos liquidar todos os nossos bens pelo preço que for possível alcançar. Vender significa trocar. Não se vende, dissipando, mas dando e recebendo algo em troca. O dinheiro que recebemos, ao vender tudo o que temos, ainda não é o tesouro e a pérola. Mas já é o equivalente deles: é o sentimento de fé, no qual o tesouro e a pérola habitam. Esse sentimento é implantado abundantemente, pelo Espírito Santo, em nosso coração, conforme nos despojamos de tudo o que constitui o nosso patrimônio, a nossa herança humana, os nossos conceitos, em suma, o nosso eu. Perdendo-nos nos encontramos. E encontrando-nos, o campo e a pérola que também achamos tornam-se nossos.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Bom Pastor

Nas igrejas cristãs, é inconcebível se admitir um novo membro, celebrar um casamento ou sepultar um morto, sem a intervenção visível de líderes ordenados. Não apenas pela maior familiaridade que têm com a palavra de Deus, mas pelo papel simbólico que exercem, esses líderes são invariavelmente chamados a intervir nos momentos cruciais da vida das comunidades. Como se a sua não intervenção, de alguma forma, retirasse ou diminuísse a eficácia dos atos que então se praticam.
Podemos sentir certo desconforto com esse modo de pensar, mas o fato é que a dependência das comunidades para com a liderança tradicional tem motivos profundos. Subordinar a coesão de grupos ao destaque intrínseco de seus líderes é um hábito humano ancestral. Aliás, as palavras líder, liderança e autoridade têm, neste assunto, a função de eufemismos. Elas encobrem realidades muito mais cruas que a liderança e a autoridade. Encobrem o que realmente mantém a coesão das pessoas, no seio das comunidades, que é o poder puro e simples de um líder sobre todas as outras pessoas.
Não é diferente na igreja. Ao longo da História, a unidade cristã sempre dependeu do poder exercido por três tipos de líderes: o hierarca, o pastor e o ícone. O primeiro é o líder católico ou ortodoxo, que atua sob o do peso da estrutura eclesiástica que integra. O segundo é o líder protestante, cuja função principal é ensinar e pregar a palavra de Deus. Por trabalhar muito mais com a palavra, o pastor exerce um poder mais simbólico que coercitivo. Por último, o ícone é a figura carismática, em torno da qual se forma um grupo dissidente ou autônomo, no interior do Catolicismo ou do Protestantismo (agostinianos, franciscanos, dominicanos, jesuítas, salesianos, presbiterianos, metodistas, mórmons etc.). Essa figura pode ser a do fundador histórico ou a de um líder tardio do movimento. Enquanto o poder dos pastores decorre dos cargos que ocupam e não deles próprios, a autoridade dos grandes ícones decorre deles, dos seus predicados e história pessoal.
Não se pode negar que, embora seja o corpo de Cristo, a igreja não se dissolveu ou dissolve numa multiplicidade de células desconectadas, por causa da atuação desses líderes. O que mostra que, embora reconheça a palavra de Deus como sua única base, a igreja vive em constante contradição com essa base. Se a palavra fosse, na prática como é em doutrina, o único esteio da igreja, ela não tenderia a se dissolver tão facilmente em células desconectadas, pelo fato de seus líderes deixarem de exercer os papeis tradicionais que lhes cabem. Isso mostra que a igreja, a um tempo, está baseada na palavra de Deus e mantém a sua coesão por meio da liderança tradicional.
Essa tremenda contradição forma um dilema, em que a igreja vive mergulhada. Na parábola do bom pastor, Jesus tratou do dilema, sem rodeios ou atenuações, ao comparar os comportamentos do pastor e do ladrão de ovelhas. Enquanto o primeiro promove a coesão do rebanho por meio da sua voz, o segundo age pela violência. O pastor dirige-se ao vigia, que lhe abre a porta do curral para que entre; o ladrão, escala por outra parte, em busca de uma abertura destinada à ventilação do lugar. Por essa brecha, ele entra, para furtar as ovelhas. Como não consegue guiá-las por sua voz, o ladrão precisa espancar as ovelhas para retirá-las do aprisco. Ao fazê-lo, ele chega a matar algumas. Outras vezes, chega a destruir o próprio curral para remover as ovelhas. Por isso, o texto afirma que o ladrão vem para roubar, matar e destruir.
Essas diferenças de comportamento externo e esses resultados líquidos de atuação correspondem, porém, apenas às distinções mais visíveis entre o pastor e o ladrão. Estão longe de indicar a distinção mais básica. O que revela mais profundamente o caráter intrínseco da relação do pastor com as ovelhas são as vozes, que ele lhes dirige e por meio das quais as comanda. Essas vozes são ouvidas e reconhecidas pelas ovelhas; o falar do ladrão não. Ao ingressar no aprisco, o ladrão tenta comandar as ovelhas, com a sua voz, mas elas não a reconhecem.
Ao tecer essa observação sobre a voz, Jesus quis mostrar que a função essencial do pastor de almas é falar a palavra de Deus. O pastor não é seguido pelo emprego que faz da vara, mas pelo manejo que tem da palavra. Esse timbre particular, que ele e só ele emite, é inconfundível. A parábola indica que, no reino de Deus, algo diferente passa a ocorrer: a agregação do rebanho de Deus passa a se dar muito mais pelo ressoar da palavra divina, no coração das pessoas, do que pelos mecanismos de coesão baseados no poder coercitivo, simbólico ou pessoal.
Nenhuma declaração poderia deixar mais patente a mudança no princípio de liderança do que esta: “Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e salteadores” (Jo 10:8). “Antes de mim” não é uma expressão com sentido cronológico (do contrário, todos os líderes do Antigo Testamento seriam ladrões), mas que aponta para uma experiência. Significa antes de conhecer Jesus subjetivamente e de maneira pessoal. Sejam líderes de outras religiões, hierarcas, pastores ou ícones cristãos, os que guiam as ovelhas sem serem guiados por essa experiência não são bons pastores.
Porém, não devemos entender o bom pastor só à luz do ideal de amor que ele representa. Na Antiguidade, o pastor não representava só o amor e o cuidado, mas também a coragem e a força física. Apocalipse 2,26-27 dá-nos uma boa descrição desse outro aspecto do pastor: "Ao vencedor e ao que guardar as minhas palavras até o fim, dar-lhe-ei autoridade sobre as nações. Ele as apascentará com cetro de ferro e como vasos de barro quebra-las-á em pedaços".
Esses versos referem-se ao antigo ideal do rei-pastor, do rei que exercia a sua autoridade pelo pastoreio. Eles mostram claramente que a ideia do pastor não era a de uma pessoa sempre pacífica. A autoridade e o pastoreio a que os versículos se referem estão em paralelo. "Dar-lhe-ei autoridade sobre as nações. Ele as apascentará". Mas como apascentará? A própria passagem responde: quebran-do-as em pedaços com um cetro de ferro.
Uma característica surpreendente das palavras de Jesus aos anjos das sete igrejas, em Apocalipse 2 e 3, não é que elas contradizem as do Jesus amoroso dos Evangelhos, mas que eles mostram a face exigente daquele amor. "Eu repreendo e disciplino a quem amo" (Apocalipse 3:19). O amor não é só amor. É também disciplina e correção. Portanto, o pastoreio não é só cuidado, mas também exercício de força.
Verdade é que as ovelhas não precisam ser quebradas em pedaços, mas as nações precisam. Os cristãos devem aprender a ser pastores de ambos. Os líderes cristãos não devem ser tolos. Devem antes aprender os dois pastoreios em profundidade. Devem saber que ambos são um em princípio, e que a diferença entre eles decorre apenas do grau em que cada um exibe as faces branda e severa do amor.
O filósofo Friedrich Nietzsche acusou o cristianismo e o próprio Cristo de disseminarem valores como amor e compaixão, que implicam o louvor da fraqueza. Pensou que esses valores levavam a civilização ao colapso. Ele não viu que o amor de Cristo é um animal bifronte. Que ele tem um aspecto de ternura e outro de disciplina e punição.
Porém, nos versos seguintes da parábola, Jesus referiu-se a ainda uma outra personagem simbólica: o mercenário. “O mercenário, e o que não é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge; e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas” (Jo 10:12).
Diferentemente do ladrão, o mercenário não é uma antítese perfeita do pastor. Pelo contrário, ele faz quase tudo o que faz o bom pastor: dirige-se ao porteiro, entra pela porta do aprisco, fala às ovelhas e é reconhecido, leva-as para o pasto e as recolhe de volta, no fim do dia. A diferença entre o mercenário e o pastor só se manifesta quando vem o lobo. Nessa ocasião extrema e somente nela, os dois se distinguem: o mercenário foge, o bom pastor dá a vida pelas ovelhas.

"Assim como estão presentes na igreja, a liderança tradicional e a nova, que o bom pastor introduziu, estão no interior do nosso coração. Olham-se nos olhos, como titãs que se enfrentam e nunca se entendem, por serem irreconciliáveis. Um dos titãs quer guiar as ovelhas por sua vara; o outro, por sua voz."

O par pastor-mercenário foi analisado por Jesus, com o objetivo de diferenciar o primeiro não só dos que lideram por meio do poder, mas também dos que lideram pela palavra, com base no motivo errado. O problema do ladrão é a violência que usa para conduzir as ovelhas; o do mercenário é a motivação pela qual as conduz. Mercenário é alguém que faz tudo o que tem de fazer, mas o faz com vistas ao dinheiro que receberá. É alguém que pensa em si mesmo e não nas ovelhas. Por isso, quando vem o lobo, ele as abandona.
A parábola do bom pastor fecha e sitia, por todos os lados, os equívocos da liderança tradicional. Infelizmente, costumamos lê-la como se fizesse referência a um problema do judaísmo ou de hereges. Difícil é reconhecermos que a autoridade hierárquica, a pastoral e a baseada em ícones, tão comuns no meio cristão regular, seguem o exato modelo tradicional que a parábola combate. E ainda mais difícil é rompermos com esse modelo.
Assim como estão presentes na igreja, a liderança tradicional e a nova, que o bom pastor introduziu, estão arraigadas no coração de cada cristão. Ali elas se fitam, como titãs que se enfrentam, por serem irreconciliáveis. Um dos titãs quer guiar as ovelhas por sua vara; o outro, por sua voz. O primeiro dirige as ovelhas, por ser dirigido por hábitos ancestrais de poder. O outro as guia, pois seu amor infinito o libertou daqueles hábitos. No entanto, ao impasse desse modo constituído aplica-se inteiramente o ditado: "Não se pode servir a dois senhores".

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O Escriba Versado no Reino dos Céus

A ideia de discipulado se extrai da grande comissão, em que Jesus ordenou aos onze “Ide, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19). Nesse mandamento, o cristão é representado não apenas como quem crê, mas como alguém que se submete a um discipulado sério e contínuo.
O sentido do discipulado cristão é controvertido. Porém, como Jesus nunca ensinou algo desvinculado da realidade histórica, podemos tomar como certo que a formação de discípulos inerente à grande comissão é um desenvolvimento da relação típica do primeiro século. Vários aspectos desse desenvolvimento estão representados na última das oito parábolas proferidas por Jesus, em Mateus capítulo 13. No versículo 51, Jesus perguntou aos discípulos: “Entendestes todas estas cousas [as parábolas anteriores]? Responderam-lhe: Sim”. Então ele concluiu: “Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do seu depósito cousas novas e cousas velhas” (Mt 13:52).
Diferentemente do semeador da primeira parábola, que é único e singular, os escribas de Mateus 13:52 são vários. Além disso, o semeador é um símbolo do Filho do homem (Mt 13:37); o escriba não é um símbolo, mas a realidade representada por ele. Sabemos disso pois, em Mateus, as parábolas começam com a expressão “o reino dos céus é semelhante”. Na comparação do escriba com o pai, essa frase não está presente. Em lugar dela, temos a declaração de que o próprio escriba é semelhante ao pai que retira coisas do seu tesouro. Portanto, o escriba está no lugar do reino dos céus. Ele é o objeto real simbolizado pela parábola.

“Ensinar após Jesus é como um músico se apresentar depois de Beethoven ou um pintor inexperiente exibir a sua tela na inauguração da Capela Sistina.”

Costuma-se debater se é lícito ao mestre cristão ter discípulos. A resposta da parábola é afirmativa, pois ela retrata um escriba no reino dos céus, não no judaísmo. Na época de Jesus, todo escriba era um mestre que tinha discípulos, como o professor atual tem alunos. Portanto, “o escriba versado no reino dos céus” era um mestre com seus discípulos, no interior do reino de Deus.
Esse é um princípio básico do discipulado. O princípio admite a ressalva de que, no reino dos céus, todo mestre exerce o seu ministério depois de Jesus ter proferido discursos como o Sermão do Monte. A inevitável comparação com Jesus faz com que os mestres cristãos se tornem não-mestres. Ensinar após Jesus é como um músico se apresentar depois de Beethoven ou um pintor inexperiente exibir a sua tela na inauguração da Capela Sistina. Em poucas palavras, ensinar depois de Jesus é sentir nas entranhas que nada se está a ensinar.
Com o seu ensino, Jesus alçou-se sozinho à categoria de Mestre de todos os mestres. “Vós me chamais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem: porque eu o sou” (Jo 13:13). E também: “Não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre” (Mt 23:8). A proibição de ser chamado mestre, nesse último versículo, não deve ser considerada absoluta. Efésios 4:11 afirma que Deus concedeu mestres à igreja. Se ele o fez, não há problema em os chamarmos mestres. Como o mestre pressupõe discípulos, a relação discípulo-mestre é inteiramente cabível no reino dos céus. Porém, mesmo assim, o mestre cristão é, no fundo, um não-mestre.
Nesse sentido, é que a relação discípulo-mestre foi modificada por Jesus. O mestre cristão não é como o escriba cooptado pelo poder religioso do Templo, nem como o rabi que pensa entender muito bem e a fundo os mistérios de Deus. Ele é mais como Jacó, após Deus ter tocado o nervo da sua coxa. Jacó lutou com Deus. Ele até triunfou sobre Deus. Porém, apenas até Deus tocar a sua coxa.
Ao mestre forte e invencível, ao Jacó que lutou com Deus e o venceu, opõe-se um segundo tipo de mestre, um segundo Jacó, que se tornou fraco e teve o seu nome alterado por Deus. A coxa desse segundo Jacó representa a sua força. Para formar Israel, Deus não precisa torná-lo forte: precisa retirar-lhe a força. Da mesma forma, antes de Deus o tocar, o mestre das Escrituras é um sábio, porém a sua sabedoria é usurpada. O toque divino, somente ele, o transforma em alguém que continua a ser mestre, mas já não se sente tal, que continua a ser professor, mas adquire consciência profunda da ilegitimidade dos seus títulos. Em poucas palavras, enquanto no judaísmo o rabi, o mestre no sentido forte, se impunha pela afirmação da sabedoria, no cortejo de Cristo, os mestres no sentido fraco do termo constituem-se mais pela negação do que pela afirmação do que sabem.
Durante todo o primeiro século, a Judeia e a Galileia ferveram com mestres e discípulos do primeiro tipo. A relação entre eles era das mais comuns e importantes na sociedade judaica. Na parábola do pai que tira coisas novas e velhas do seu tesouro, Jesus mostrou que, após o estabelecimento do reino dos céus, essa relação passaria por uma metamorfose. Mediante uma experiência como a do toque de Deus na coxa do usurpador Jacó, o mestre passaria a ser pai, e a relação dele com o Templo passaria a se desenrolar no interior de uma família.
A família são os filhos espirituais do mestre no reino dos céus. Que faz o pai para seus filhos? A parábola afirma que ele tira, não dos outros, mas de si mesmo, isto é, do seu tesouro. As coisas novas e velhas que tira são os ensinamentos do Novo e do Antigo Testamentos. Ao ser tocado por Deus, o novo mestre adquire essas coisas. Elas deixam de ser meros ensinamentos num livro, deixam de ser alheias para se tornarem suas: sua experiência subjetiva, a palavra de Deus escrita não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne.

"Esse dar não tem tradução, pois o amor é inefável. Por isso, foi omitido, transferido para o ar, transformado em exalação, na essência espiritual do amor do mestre versado no reino dos céus."

Que faz o pai com as coisas que saca desse incalculável depósito? A parábola não o diz. Jesus preferiu descrever com o silêncio o que está além das palavras. Com isso, mostrou que o mestre verdadeiro não é loquaz, pois sabe que o silêncio é tão importante quanto as palavras. O silêncio é como o espaço entre os fios que compõem a tapeçaria ou entre as células que integram o organismo. Assim como um corpo é também o espaço entre as peças que o formam, a geometria que o estrutura, o ensino de um mestre é constituído pelo seu silêncio e as suas palavras. Jesus o mostrou, ao omitir a palavra central da parábola a respeito do pai: dar. Ele não disse que o pai tira do seu tesouro, para dar aos filhos. Com isso, deixou implícito o que mais define o novo mestre: o que ele dá e o modo como dá. Esse dar não tem tradução, pois o amor é inefável. Por isso, foi omitido, transferido para o ar, transformado em exalação, na essência espiritual do amor do mestre versado no reino dos céus.
À luz da parábola de Mateus 13:52, a grande comissão de Jesus (“Fazei discípulos”) se mostra uma obra única, porém não a obra de um único mestre. Muitos escribas a realizam conjuntamente, já que não há ciúmes ou exclusividades no reino dos céus. Assim como realizou milagres e concedeu aos seus seguidores o poder de realizá-los, pregou e enviou seus discípulos para pregarem, cuidou das pessoas e nos ordenou cuidar delas, Jesus também ensinou e enviou seus discípulos a ensinar às nações. Ele instituiu um discipulado contínuo e compartilhado. Um discipulado que só quem teve o nervo da coxa tocado por Deus é capaz de exercer.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O Semeador

A mais longa sequência de parábolas de Jesus é a de Mateus 13. Ela se abre com o pequeno conto sobre o semeador e se encerra com a parábola do pai que retira coisas novas e velhas do seu depósito. Entre outras coisas, a série mostra-nos que o reino dos céus é fortemente representado por práticas agrícolas. Poucas atividades humanas retratam melhor a ação de Deus que as de plantar, regar, colher e transformar em alimento.
Curioso é que, na sua sabedoria, o grande semeador não lança os seus grãos apenas na boa terra, mas também à beira do caminho e no terreno com espinhos e pedras. Ele deixa cair a semente do reino em todos os tipos de solo. E não o faz por descuido. Não há, na parábola, o menor sinal de que o agricultor semeie os vários tipos de solo por casualidade. Nenhuma palavra indica que ele lança os seus grãos por acaso, na beira do caminho, e voluntariamente, na boa terra. As mesmas palavras são empregadas para descrever tanto um como o outro tipo de semear.
A semeadura em diversos tipos de solo, a que Jesus se referiu, era uma prática antiga na Palestina. O conhecido teólogo Joachin Jeremias explicou: "O semeador da parábola caminha sobre um terreno ainda não arado [...] Semeia, de propósito, sobre o caminho que os habitantes da aldeia certamente fizeram através do campo de restolhos, porque esse caminho será arado juntamente com o resto do terreno. Semeia de propósito entre os espinhos ressequidos do terreno inculto, porque eles serão incluídos também na aradura. E que os grãos caiam em terreno pedregoso não nos deve surpreender: as rochas calcáreas [...] não se sobressaem ao campo ainda não arado, até que a relha do arado, rangendo, tope nelas" (JEREMIAS, Joachin. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976).
A lição inerente a esse fato é de que Jesus não realizou a sua missão de semeador, com base na acepção de pessoas. Ele não saiu pelo mundo, escolhendo: para este sim, para aquele não, para este sim, para aquele não. O reino dos céus é para todos os tipos de homens.

"Mais do que o tempo de espera, porém, a essência vital do reino é a paciência com que se espera."

O semeador tampouco implanta árvores prontas: ele semeia grãos. Quantas vezes queremos atingir resultados imediatos! Queremos convencer as pessoas, dobrar o seu entendimento, mudá-las, custe o que custar. Assim transformamos a pregação do evangelho em conflito, em esforço de desintegração de maneiras de pensar, sentir e agir. Já não realizamos Cruzadas como as da Idade Média. As cruzadas de hoje consistem em passar sobre os modos de ser das pessoas, com o trator da doutrina. Jesus nada faz de comparável a isso. Ele é um semeador. Há dois mil anos, lançou grãos ao solo e tem esperado que cresçam. Essa semeadura e a interminável espera que a segue constituem o que Mateus denomina o reino dos céus.
Mais do que o tempo de espera, porém, a essência vital do reino é a paciência com que se espera. Esta é a era da paciência. Paulo ensinou, em Gálatas 6:7-10, que é tempo de semearmos incansavelmente. Semear é espalhar grãos, não implantar árvores prontas. É implantar o germe (apenas o germe) do ensinamento cristão nos corações e esperar. Implantar pouco e esperar muito.
Quando nos tornamos incapazes de esperar, quando perdemos a paciência com as pessoas, quando ralhamos com elas e as julgamos, quando enfim as queremos condenar, perdemos a noção essencial do reino de Deus. Quantas vezes João 3:16 foi pregado, a partir dos púlpitos, como uma síntese de todo o evangelho! No entanto, esse verso só é plenamente elucidado pelo que vem a seguir: “Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”.
De todas as palavras que já foram pronunciadas, ouvidas e escritas, “Deus enviou” são, para mim, de certo, as mais tocantes. Porém, essa singela sequência de termos tem uma explicação, um porquê, na estrutura do capítulo 3 de João. Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para o condenar, mas para o salvar. Sem esse aditivo, sem esse colírio para os olhos e calmante para o espírito, o enviar do Filho por Deus permanece sem explicação. Não faz sentido algum.
As parábolas de Mateus 13 ensinam exatamente isso. Sobretudo a do semeador. Jesus semeou em todos os tipos de terra, não porque desejasse condenar a maioria dos homens, mas porque queria e ainda quer salvar a todos. Por isso também, até hoje, o grande semeador espera com longanimidade infinita.

Ao lermos a parábola do semeador, somos tomados pela impressão de que a paciência nela ensinada é verdadeiramente infinita. No entanto, a parábola seguinte amplia ainda mais essa paciência, levando-a a abranger não apenas a messe plantada por Cristo (o trigo), mas também os filhos do maligno, isto é, o joio.
A parábola das duas sementes não afirma que o semeador cai no sono, após ter plantado, mas que “os homens” o fazem. Enquanto isso ocorre, de noite, o inimigo de Cristo semeia o campo com joio. Com as metáforas da noite, do sono e da semeadura do joio, Jesus quis indicar que uma crise sobreviria, logo após ele deixar seus discípulos.
As falsas doutrinas semeadas pelo maligno, durante o sono dos primeiros cristãos, foram as gnósticas. Os partidários dessas heresias tentaram reinterpretar o evangelho e acabaram por subvertê-lo. No século II, Ireneu de Lião escreveu uma ampla recensão, que permanece o mais importante testemunho sobre a penetração das doutrinas gnósticas no interior da igreja. Naquela época, a fé cristã ainda era recente. Não existia a diversidade estonteante de heresias, que se constituíram mais tarde. Por isso, Ireneu atribuiu ao seu livro contra os gnósticos o título Contra as heresias. Para ele, heresia era sinônimo de gnosticismo. A crermos no relato de Ireneu, é impressionante como as correntes gnósticas desenvolveram hipóteses puramente imaginativas sobre Deus, Jesus, o Espírito Santo e uma série quase interminável de entidades espirituais.
Entretanto, o erro contra o qual Jesus nos advertiu, na parábola do joio, não foi o da falta de combate aos hereges ou mesmo às heresias, mas exatamente o contrário: foi o erro do combate excessivo, da tentativa de desarraigar prematuramente os seguidores de doutrinas discrepantes, assim como as dos gnósticos. Infelizmente, essa atitude intolerante, violenta e dogmática predominou durante séculos. Ela inspirou uma parte significativa da História da Igreja. Pode-se afirmar que numerosos capítulos da existência cristã, no mundo, nada mais foram que um longo descumprimento da parábola do joio e do trigo.

"A pressa de eliminar o joio, o afã de acabar com a mistura, no reino dos céus, não correspondem à longanimidade e à paciência do semeador. Correspondem à falta de coração e de disposição para perdoar 70 vezes sete."

Jesus ensinou-nos a deixar o joio crescer, lado a lado com o trigo. Isso não significa que devemos deixar de combater as falsas doutrinas, mas deixar de reagir violentamente contra os seus seguidores. Precisamos de moderação e, ainda mais do que isso, de paciência para com eles. Se o reino dos céus não deixa de ser o reino dos céus, porque a mulher da quarta parábola de Mateus 13 mistura o fermento ao trigo plantado por Cristo, se ele não perde a sua natureza íntima, quando o trigo é ingerido juntamente com o fermento, muito menos no estágio anterior em que o trigo e o joio permanecem como lavoura. Jesus quis dizer, claramente, com isso, que a mistura continua e deve continuar no mundo, até o tempo determinado pelo Pai.
A pressa de eliminar o joio, o afã de acabar com a mistura, no reino dos céus, não correspondem à longanimidade e à paciência do semeador. Correspondem à falta de coração e de disposição para perdoar 70 vezes sete. Jesus não deixou de semear em qualquer parte do campo. Ele demonstrou misericórdia e até hoje exercita paciência, para com todos os tipos de homens.
Em suma, a parábola do joio não ensina apenas a abstenção da violência física contra os adeptos de doutrinas extravagantes e heréticas, mas a abstenção de toda sorte de excesso moral contra eles. Excessos morais, desrespeito pela dignidade intrínseca às pessoas, podem indicar maior falta de compaixão e paciência do que a própria violência física. A resistência que Jesus ensinou a opor ao mal é espiritual e moral, porém não atrevida, insolente, desrespeitosa para com o que Deus depositou em cada tipo de pessoa, até mesmo em cada indivíduo. Simplesmente, não temos discernimento bastante para agir de maneira contrária a esse princípio. Ou será que alguns têm? Ou será que a alguns não se aplica a parábola do joio e do trigo?