sábado, 21 de maio de 2011

Páscoa (9): Amou-os Até o Fim

Do polo cultural da televisão, em que abundam programas sobre Jesus, ao polo oposto da ciência, que há dois séculos se dedida à investigação dos Evangelhos, tudo confirma que Jesus de Nazaré continua a ser fundamental para o que costumamos denominar o Ocidente. Por outro lado, não é menos inegável que o Cristo profético, o Cristo como ele próprio se viu, tem sido apagado das mentes e dos corações pelo Jesus construído por uma nova cultura disseminada por meios eletrônicos e científicos.
O objetivo desta série foi mostrar que a perda de Jesus, não como homem comum, mas como o Cristo, é muito mais que um problema científico. É um mal civilizacional, na medida em que diz respeito à identidade profunda do mundo ocidental e de partes do oriental. Aquele mundo brilhante, que se tornou perverso e violento, é antes de tudo cristão. Por esse motivo, ao perder a consciência do Cristo, ao se descristianizar, o Ocidente se despojou da sua própria identidade. Ao despojar-se, ele colocou em risco a sua própria civilização.
O declínio do Ocidente é um tema reiterado, na literatura universal. Desde Spengler, ele tem sido explicitamente elaborado. Alguns acontecimentos reforçaram a tese da decadência. Foi o caso das Guerras Mundiais do século passado. Outros fatos pareceram refutá-la. Por exemplo: a era de prosperidade encravada, entre a Segunda Guerra e a primeira crise do petróleo. Ao combinar a superação dos conflitos globais com a descoberta de uma saída para a Grande Depressão, o desenvolvimento tecnológico, as liberdades democráticas e os benefícios do Estado de bem-estar, esse período brilhante pareceu sugerir que o declínio era uma falácia.
Fato é que o tempo passou, o sonho do comunismo acabou, a bipolaridade política encerrou-se, as utopias tiveram seu caráter ilusório desmascarado e, ainda assim, o que avultou foram graves problemas. A prosperidade da era de ouro do século XX se foi. A crise de 2008-2009 encerrou o outro ciclo de prosperidade, que se esboçou a partir de 1990. Ao mesmo tempo, o fim da Guerra Fria não produziu a redução dos índices de violência, alcançados pelo Nazismo e o Socialismo Soviético. É o que nos lembram os atentados terroristas e as intervenções militares norte-americanas em vários lugares do mundo. Por esses motivos, voltamos a nos perguntar, seriamente, o que se passa com o Ocidente. Voltamos a nos perguntar se ele não retomou, ou simplesmente manteve, seu prolongado processo de decadência.
O Ocidente acusa o Islã de atraso e obscurantismo. No entanto, o entusiasmo que os muçulmanos demonstram com o seu próprio desenvolvimento, a vontade de mudança que eles revelam, as taxas de crescimento demográfico que ostentam sugerem que os seus povos não estão em maior decadência que o Ocidente. O Islã vive um dilema profundo, uma dúvida essencial, sobre como se modernizar sem se ocidentalizar. Nós não temos tal dilema: temos outros e piores; temos espasmos de identidade tão violentos que levam intelectuais a indagar se não atravessamos uma crise de regressão.
Civilizações surgem, desenvolvem-se, atingem o apogeu, decaem e se extinguem. As duas últimas etapas do ciclo da sua existência assinalam-se por crises de identidade e pelo afrouxamento da disciplina empregada para desenvolver a cultura. Nem sempre uma civilização decadente se extingue, porém ela pode retroceder aos núcleos originais de que nasceu. Pode ser que o Ocidente atravesse um processo tendente a esse fim.
Depois de haver perdido a noção do que o Cristo foi em si e por si, após tê-la substituído pela noção que as igrejas fizeram dele, a civilização ocidental ameaça voltar-se, em definitivo, contra a figura de Cristo. Não se voltar abertamente, não atacar essa figura de frente, é verdade, mas substituí-la, quase imperceptivelmente, pelo Jesus histórico entendido como o Jesus comum, que no fundo e em síntese não faz sentido religioso algum; por um Jesus que faz, até mesmo, escasso sentido civilizatório. Aonde esse processo leva, a não ser à perda da identidade civilizacional do Ocidente?
Esta série procurou mostrar que a troca do Cristo por Jesus, do Messias divino pelo homem comum, deu-se pela moeda da história, porém a moeda era falsa. Foi o que procurei mostrar, pelo menos, em relação à última semana. A crítica científica, histórica e literária ao Cristo das Escrituras cresceu a ponto de se transformar numa hipercrítica, que ameaça descarrilar de vez. O super-homem que concebeu esta última veio a óbito, porém deixou como herdeira a obstinação por liquidar o núcleo da religião e, com ele, o da própria civilização.
Nesse contexto, nada é mais útil ou necessário do que reestudar quem realmente foi Jesus. Se o câmbio do Cristo da religião pelo Jesus humano se deu, mediante a moeda da história, é preciso celebrar a transação inversa, por meio da mesma moeda. É preciso verificar se é possível reencontrar o Cristo, pelo Jesus histórico. Foi o que tentei realizar, em parte, nesta série de artigos sobre os acontecimentos da última semana.

Em O choque de civilizações (Rio de Janeiro: Objetiva, 2010), o cientista político norte-americano Samuel Huntington afirmou a importância central da religião para a formação e a sobrevivência de qualquer civilização. Não é possível negar-lhe razão. Porém, o papel destacado da religião, na ordem social, não se deve a suas posições reacionárias, mas à sua capacidade de se renovar e assumir formas revolucionárias. Não é outro o valor específico da fé cristã demonstrado na última semana da vida de Jesus.
Jesus de Nazaré foi um homem da sua época, um adorador de Jeová, um cultor do Tanaque, a Bíblia hebraica, um observante das leis de Israel, um rabi que ensinava nas sinagogas e no Templo de Jerusalém. Antes de ser preso, Jesus discutiu, longamente, com representantes das principais correntes de pensamento da época. Essa era uma atividade rabínica bastante típica. Porém, o que distinguiu Jesus foi a maneira como ele denunciou os desvios das várias correntes da religião que professou, como se preocupou em introduzir uma nova aliança com Deus, pautada no amor e na compaixão, como pôs em movimento essa pregação e esse ensino, na sua própria vida, compadecendo-se dos fracos, doentes, pobres e oprimidos. Com isso, Jesus não criou uma religião totalmente nova, mas fez tudo o que era preciso para redirecionar e renovar a religião judaica. É inegável, também, que Jesus obteve o mais amplo sucesso nesse desiderato.
Mais que em qualquer outro momento dos Evangelhos, o caráter revolucionário do ministério de Cristo demonstra-se na sua última semana de vida. Nesse curto período, Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, cumprindo intencionalmente a profecia messiânica de Zacarias, expulsou os vendilhões do Templo sem permissão das autoridades, afirmou que o templo seria destruído (um ultraje grave), provavelmente curou pessoas, discutiu asperamente, em momentos consecutivos, com representantes das principais correntes de pensamento da época, com exceção dos essênios, condenou os escribas e os fariseus no discurso inflamado que proferiu no Templo, assumiu seu papel messiânico ante o Sumo-Sacerdote e respondeu, incisivamente, os interrogatórios judiciais a que foi submetido.
Durante todo esse tempo, inclusive nos interrogatórios, Jesus nunca se retraiu. Pelo contrário, ele se manteve sempre na ofensiva, respondendo não só com firmeza, mas até com agressividade aos juízes e líderes que o interrogaram. Chegou ao ponto de recusar a bebida oferecida para roubar-lhe os sentidos e atenuar-lhe o sofrimento na cruz. Jesus só tomou o vinagre, minutos antes de expirar. Portanto, ele decidiu enfrentar o maior e mais humilhante castigo público daquela época, em toda a sua brutalidade e sem atenuações. Tudo isso ele fez sozinho, pois seus seguidores o abandonaram. Fê-lo com resultado espantoso, pois a maioria dos juízes que o examinaram convenceu-se da sua inocência.
Esses dados indicam que o sentido da última semana é o de uma grande revolução espiritual. O Evangelho de João abre a narrativa desse tempo, que excede todos os outros em importância, com as seguintes palavras: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13:1). Essa frase é a chave para abrirmos os mistérios do que Jesus realizou nos capítulos seguintes, a saber, os acontecimentos revolucionários da última semana.
Ao mesmo tempo, ela desvenda o sentido da inteira vida de Jesus, antes e durante a última semana. De acordo com o célebre verso, antes daquele momento Jesus amara os seus que estavam no mundo; depois dele, amou-os até o fim. Talvez saibamos, embora mal, o que é amar. Porém, certamente, o mundo não havia conhecido, até então, o que é amar até o fim. Essa é razão bastante para dividirmos o Evangelho entre o que vem antes de João 13:1 e o que vem depois. A última semana, somente ela, desvenda o amor terminal, o amor sem limites, o amor até o fim, o amor diferente de tudo o que é terreno, de tudo o que é temporal, de tudo o que histórico.
Até João 13, vemos o amor temporal, o amor encarnado, o amor dentro do mundo e da história; a partir de João 13, contemplamos o amor atemporal na mais exata definição, o amor divino oculto dos séculos e das gerações, cuja luz não brilhara na Terra até então, mas que brilhou na espessa treva que envolveu Jerusalém, como um manto, durante as três horas finais. A luz brilha nas trevas: trevas por definição foram as que tomaram o Gólgota; amor foi o de Jesus.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Páscoa (6): Sobrevivência e Morte Comum

Cinquenta dias transcorreram, entre a Páscoa e o Pentecoste, quando Lucas afirma que a ressurreição de Jesus foi anunciada, publicamente, pela primeira vez. Esse foi o provável período de tempo, durante o qual a versão dos discípulos sobre a ressurreição foi elaborada. Nesta e nas próximas postagens, discutirei como a elaboração se deu.
Para enfrentar a questão, o melhor caminho será considerar, à maneira de uma perquirição judicial, as principais hipóteses explicativas do evento, por trás da ressurreição, e as evidências que as corroboram ou infirmam. Quatro são as hipóteses explicativas da ressurreição: a) Jesus sobreviveu à crucificação; b) o corpo de Jesus permaneceu onde foi sepultado; c) o corpo foi transferido do sepulcro para outro lugar; d) Jesus ressuscitou. Irei discuti-las nesta e nas próximas postagens.

a) A hipótese da sobrevivência
A hipótese da sobrevivência foi defendida pelos primeiros muçulmanos (nesse sentido, KHALID, Tarif, org. O Jesus muçulmano - provérbios e histórias na Literatura Islâmica. Rio de Janeiro: Imago, 2001. Introdução). Modernamente, foi retomada por Holger Kersten, no livro Jesus viveu na Índia (24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007). As tradições escritas sobre a sobrevivência não recuam além da época de Maomé. Não foi por outro motivo que Kersten teve de buscar na Índia evidências mais críveis de que Jesus teria sobrevivido. Porém, as evidências reunidas, no livro dele, fazem prova mais eficaz de que a Índia abrigou um enclave cristão, como o que comprovadamente existiu antes do primeiro século na Etiópia, do que da ida de Jesus para lá, após a crucificação.
Do modo como os etíopes criaram lendas, ligando a recepção das tradições judaicas, nas suas terras, a Moisés, Salomão e outras personalidades bíblicas, os indianos fizeram o mesmo com Jesus. Não precisamos emprestar crédito à tradição etíope de que uma parte dos israelitas que saiu do Egito desceu para lá, e outra parte foi para Canaã. Pelas mesmas razões, não precisamos tomar como fidedignos os relatos da ida de Jesus à Índia, que ali circularam durante algum tempo. O que há de certo, em ambos os casos, é que judeus migraram para a Etiópia e a Índia. No último caso, o sinal mais visível dessa migração é o fato de a Caxemira ter, até hoje, um idioma quase idêntico ao aramaico usado em Israel na época de Jesus.
A tradição cristã primitiva, recolhida em Eusébio (CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Rio de Janeiro: CPAD, 1999), reza que Tomé foi pregar o evangelho na Índia. Não é impossível que a ida de um dos apóstolos tenha sido, ao depois, transformada no comparecimento do próprio Jesus.
Porém, nenhuma dessas evidências faz da ideia da sobrevivência mais do que uma invenção muito posterior à morte de Jesus. Ela é contrariada, pelo testemunho convergente dos quatro Evangelhos, de dois historiadores (Josefo e Tácito) e dos judeus (Talmude), que afirmaram que Jesus morreu crucificado.
Quando Josefo, Tácito e os autores do Talmude escreveram, os cristãos ainda não eram a comunidade numerosa e de âmbito mundial, que vieram a se tornar mais tarde. Apesar da Diáspora ou por causa dela, os judeus eram mais importantes que eles. Por isso, tanto Josefo como Tácito e os autores do Talmude tinham motivos de sobra, para expressar um ponto de vista judeu discrepante do cristão, sobre a morte de Jesus, caso tivesse existido. Como nenhum deles o fez, é de se concluir que nem os partidários, nem os opositores de Jesus acreditaram na hipótese da sobrevivência à crucificação.
A posição de Josefo sobre esse assunto é particularmente significativa. Os três últimos Livros das Antiguidades têm características diferentes dos dezessete que os precedem. Estes informam, concisamente, os fatos de cada época. Já os Livros XVIII, XIX e XX, que tratam do século em que Josefo viveu (I d. C.), trazem narrativas muito mais pormenorizadas. O poder dos irmãos Asineu e Anileu, da colônia judaica em Babilônia (Antiguidades. 5ª ed., Rio de Janeiro: CPAD, 1999. pp. 432-435), e o assassinato de Calígula (idem. pp. 436-443) são exemplos de acontecimentos narrados com tal riqueza de detalhes que chegam a causar espanto. É pouco provável que um autor tão bem informado, sobre os acontecimentos do primeiro século, tenha omitido os rumores da sobrevivência de Jesus à morte, se eles tivessem existido ou sido relevantes. Em suma: se as obras mais detalhadas da época não contêm o menor vestígio de que as testemunhas da morte de Cristo a entenderam de outra maneira, por que razes alguém de boa-fé, que não testemunhou aquele acontecimento, iria alterar o seu conteúdo séculos depois?
Há mais: por que os romanos, que condenaram Jesus à morte por crucificação, nunca se importaram em procurá-lo, se rumores consistentes de sobrevivência circularam? Os romanos não se interessarem pelo caso equivaleria a desautorizarem a sua própria ordem de execução do prisioneiro galileu. Equivaleria a proclamar ao mundo que as sentenças romanas não precisavam ser cumpridas, pois Jesus fora condenado à morte, escapara com vida, e os romanos haviam deixado tudo nesse mesmo estado.

b) A hipótese da morte comum
Não há indícios de que a ideia da permanência do corpo de Jesus no sepulcro tenha encontrado seguidores no primeiro século. Ainda assim, temos de considerar essa hipótese como uma das maneiras pelas quais se pode, teoricamente, explicar os fatos que se seguiram à morte e ao sepultamento.
A razão pela qual essa hipótese não pode ser verdadeira é simples: os cristãos tiveram nos saduceus, nos sacerdotes, nos escribas e em outras autoridades exaltados adversários. No entanto, nenhum deles mandou abrir o sepulcro, para provar que a pregação dos cristãos era falsa. Não há a menor notícia disso, em toda a literatura conhecida. Como teria sido extremamente fácil para qualquer indivíduo daqueles grupos mandar fazê-lo, a hipótese de que o corpo permaneceu no sepulcro parece profundamente equivocada.
Mesmo assim, em pleno século XXI, uma obra sensacionalista foi lançada, anunciando a descoberta da tumba de Jesus Cristo, em plena Jerusalém. A prova fornecida pelo descobridor - ninguém menos que o cineasta norte-americano James Cameron - é uma sepultura com os nomes de Jesus, Maria (Madalena, para Cameron e talvez também para Dan Brown) e o filho dos dois denominado Judas. Nada mais do que isso; porém, foi o bastante para o autor anunciar a maior descoberta da História.
Claro que o achado não foi realizado pelo próprio cineasta, mas por peritos em Arqueologia. Curiosamente, um desses peritos, o arqueólogo Amos Kloner, veio a público, depois de Cameron divulgar sua interpretação, para desmenti-la. De acordo com ele, a gruta encontrada continha caixões pertencentes a uma família judia cujos nomes são parecidos com os de Jesus e seus parentes. Nada mais do que isso. "Posso dizer positivamente que não aceito a identificação como pertencendo à família de Jesus em Jerusalém", declarou o arqueólogo à Agência Reuters (www.tumbadejesus. tripod.com/oglobo2).
Mesmo assim, o descobridor apresentou-se como autor da façanha imortal de vender dezenas de milhares de cópias do seu documentário e de um livro, em cima desse conto. Que me desculpem a obstinação em dizê-lo e em não aceitar tão boa prova de que os Evangelhos precisam ser reescritos, já que não houve ressurreição, e Jesus desposou Maria. De fato, nunca se matou dois coelhos mais importantes com a mesma cajadada.
Cameron arrazoa: como poderiam os nomes de três pessoas de uma família judaica do primeiro século serem idênticos aos de Jesus, Maria e Judas (o irmão de Jesus, como é óbvio) sem se tratar dos próprios? A conclusão é tão elementar quanto a inferência de que uma sepultura com os nomes João, José e Maria, localizada no Brasil, pertence por certo à família dos três indivíduos mais famosos com esses nomes e algum parentesco recíproco.
O apêndice "A tumba de Talpiot e o ossário de Tiago", incluído no livro de Shimon Gibson sobre a última semana de Jesus, esclarece, a meu ver cabalmente, a descoberta. O arqueólogo mostra que "dez ossários foram descobertos na tumba Talpiot". As inscrições mencionadas acima foram encontradas num deles. Outro ossário contém a frase: "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". Gibson continua: "Os nomes Yehuda (Judas) e Yeshua (Jesus) eram muito populares no século I [...] Tem havido muita polêmica em todo o mundo sobre a sugestão de que a tumba Talpiot, talvez, seja a tumba familiar de Jesus. Além da semelhança entre certos nomes nos ossários de Talpiot e nomes conhecidos dos evangelhos (Jesus, Maria e José), o principal aspecto a favor desse argumento tem sido que Mariamene, inscrito em um dos ossários, é uma forma de Mariamne, que deveria ser identificada como Maria Madalena, e que o nome José, em outro ossário, deveria ser identificado como sendo o de José, irmão de Jesus [...] Contudo, conforme mencionado antes, a leitura apropriada da suposta inscrição Mariamne parece ser Mariame kai Mara, como grande número de estudiosos concluiu recentemente [...] Isso daria a entender que os restos de esqueleto de duas mulheres foram colocados no ossário [...] O nome Yosé, em um dos outros ossários, poderia, na verdade, ser uma forma abreviada de Yehosef, e, na minha opinião, é provável que seja o mesmo Yehosef pai de Yeshua de outro ossário da tumba" (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. pp. 199-200).

Páscoa (8): A Ressurreição

Uma lição imortal se enuncia da seguinte maneira: o senso comum se divide em senso comum comum e senso comum incomum. O último é a regra para o homem humilde, que abarca o sol com a mão espalmada e uns poucos centímetros de chão com os pés. O primeiro é o guia dos que constroem ciências vertiginosas para negá-las por meio do óbvio.

O depoimento de Pedro, sobre a ressurreição de Jesus, é importante por se tratar de uma testemunha presencial dos fatos. No entanto, o próprio Pedro nunca o registrou por escrito. Seu testemunho foi reconstruído, por Lucas, nos seguintes termos:
"Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus [...] vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte.
[...] A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas.
[...] Matastes o Autor da vida, a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, do que nós somos testemunhas [...] Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes, e a quem Deus ressuscitou dentre os mortos, sim, em seu nome é que este está curado perante vós.
[...] O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro [...] Nós somos testemunhas destes fatos.
[...] Ao qual também tiraram a vida, pendurando-o no madeiro. A este ressuscitou Deus no terceiro dia, e concedeu que fosse manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos" (At 2:22-24,32; 3:15; 4:10; 5: 30; 10:40-41).
Apesar de claro e incisivo, como já vimos, esse testemunho de Pedro é indireto, pois foi redigido por Lucas, décadas depois de ter sido prestado. O único testemunho, aparentemente, de primeira mão, sobre a ressurreição de Jesus, é o do autor do Evangelho de João, que o transmitiu, cerca de 65 anos após a crucificação.
Uma marca da observação direta da ressurreição, pelo escritor de João, é a observação, presente somente nele, de que o lençol que envolvera o corpo de seu mestre estava apartado do lenço, que havia sido colocado na sua cabeça (Jo 20:7-8). Pormenores visuais como esse, invariavelmente, se apagam da memória com o tempo. É comum a testemunha visual de uma cena lembrar-se mais da sequência em que observou os diversos componentes dela do que de detalhes particulares. Estes só são recordados, se têm importância para a sequência ou para a memória do observador como um todo. Por exemplo: uma pessoa pode-se recordar de ter ficado doente e de ter sido levada para o hospital, num carro de marca e cor tais, há 20 anos, se o carro já fosse conhecido dela. Por se tratar de um objeto importante, a lembrança de detalhes como a sua cor se torna possível. Porém, se ela tivesse sido levada para o hospital num táxi, normalmente, a cor e a marca não seriam lembrados.
O sepultamento de Jesus foi realizado, por José de Arimateia e Nicodemos (Jo 19:38-39), não pelo autor de João. No entanto, ao contrário de hoje, naquela época, o sepultamento não era feito, por técnicos especializados, pois cada detalhe dele tinha significado religioso. João 19:40 dispõe: “Tomaram, pois, o corpo de Jesus e o envolveram em lençois com os aromas, como é de uso entre os judeus na preparação para o sepulcro”.
Por não se tratar de uma obra de especialistas, muitas pessoas sabiam realizar a "preparação para o sepulcro", a que João se refere, assim como as mulheres, que acompanharam o desfecho da crucificação e “se retiraram para preparar aromas e bálsamos” (Lc 23:56), a fim de embalsamarem Jesus. O autor de João também estava acostumado com o rito de exéquias. Por isso e somente por isso, muitos anos depois, ele pôde se recordar de ter visto um item importante dele: o lenço usado para cobrir o rosto.
A forma como o autor sagrado narra esse pormenor é bastante significativa. Ele afirma que Pedro entrou primeiro e viu os lençois “e o lenço”:
"Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençois de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençois, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençois, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu" (Jo 20:3-8).
O relato é o de uma testemunha ocular, direta, presencial. Não há outra razão para o pormenor do lenço ter sido mencionado. Quem afirmou ter visto o túmulo vazio e não compreendido que Jesus ressuscitara foi alguém que ali esteve. Isso significa que o alheamento dos discípulos à ressurreição é um dado verídico. Os discípulos não cogitavam disso.
O alheamento não fica sem consequências, para a hipótese do furto do corpo, que já discutimos. Se os discípulos mais próximos de Jesus, que o seguiam o tempo todo, viram o túmulo vazio, mas não atinaram que ele havia ressuscitado, como poderiam outros ter concebido o plano de furtar o corpo, para forjar a ressurreição? A ideia da ressurreição não surgiu, no curto período de 35 horas, entre o sepultamento e a descoberta do túmulo vazio, mas depois. Portanto, não houve furto do corpo.
Shimon Gibson considera que a utilização de um lenço para cobrir o rosto do morto, nos rituais fúnebres, quando o sudário seria suficiente para envolver o corpo todo, devia-se ao estágio embrionário da Medicina, na época, e aos relatos comparativamente frequentes de pessoas que despertavam nos túmulos. Como os mortos eram sepultados com pés e mãos atados, ser-lhes-ia mais fácil remover o lenço do que o sudário. Pela mesma razão, os mortos não eram propriamente enterrados, mas colocados em cavernas, onde poderiam sobreviver se não tivessem verdadeiramente morrido (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 46).
Tudo isso ajuda a entender por que milhares de pessoas começaram a aderir à fé cristã, 50 dias após a crucificação. Tantas conversões, inclusive de incrédulos tão proeminentes quanto Saulo de Tarso e Tiago, irmão de Jesus, demandam uma razão suficiente. A ressurreição aparece, naturalmente, como essa razão, como a explicação natural e única do complexo contexto dos últimos capítulos dos Evangelhos e dos primeiros de Atos dos Apóstolos.
Assim como a Páscoa reunira judeus e gentios piedosos de todo o mundo, a Festa de Pentecoste seguinte operara algo semelhante. Nessa última solenidade, muitas pessoas que haviam pedido a Pilatos que Jesus fosse crucificado foram feridas no coração, pela pregação de Pedro. Como se não bastasse a conversão, o grau de arrependimento daquelas pessoas, ante as evidências oculares da ressurreição de Jesus, pode ser aquilatado por haverem vendido tudo o que possuíam para entregar à comunidade cristã. Como explicar tudo isso, a não ser pelo reconhecimento de que algo extraordinário ocorrera?

A ressurreição é o extraordinário, que se ergue acima do ordinário e do óbvio. É o despertar do espírito imortal, o triunfo da chama sobre o ar que a alimenta e sufoca. É a insurreição contra os versos: “Que não seja imortal/posto que é chama/mas que seja infinito/enquanto dure”.

Páscoa (7): A Transferência

Um olhar atento percebe que a cronologia rigorosa e quase universalmente aceita, que localiza a morte de Jesus no fim da sexta-feira, e a ressurreição, no nascer do sol do domingo, exige que o furto do seu cadáver tenha ocorrido no sábado ou durante a noite (parte inicial) do domingo, para que essa hipótese possa ser verdadeira. Não mais do que essas 35 horas estiveram disponíveis, portanto, para que a transferência fosse realizada.
Porém, é difícil imaginar alguém animado a retirar o corpo de Jesus do sepulcro, num período tão curto de tempo. Afinal, as primeiras 24 horas após o sepultamento foram as do sábado de descanso. Uma pessoa interessada em simular a ressurreição, teria sido um judeu piedoso: um fariseu, um cristão ou, no mínimo, um simpatizante desses grupos. O imaginário homem, porém, exatamente por ser piedoso, não poderia realizar trabalhos no sábado. Além disso, Jerusalém estava cheia demais para que o furto pudesse ocorrer sem mais. Isso torna bastante improvável que a transferência do corpo tenha ocorrido no sábado.
Restaria a possibilidade de ele ter acontecido, às ocultas, na noite de domingo. Para os judeus, o dia começava com o pôr do sol e terminava no ocaso do dia imediato. Marcos, Lucas e João situam a descoberta da ressurreição, no nascer do sol. O primeiro afirma que ela ocorreu “muito cedo, no primeiro dia da semana, ao despontar do sol” (Mc 16:2). Lucas diz que era “o primeiro dia da semana” e “alta madrugada” (Lc 24:1). E João, que era “o primeiro dia da semana”, “de madrugada” e que estava “ainda escuro” (Jo 20:1).
Essas expressões de sentido cronológico indicam que os evangelistas desdobraram-se para situar, com a maior exatidão possível, o horário da descoberta. Marcos deu três referenciais de tempo, Lucas, dois, e o autor de João, três. Todos apontaram a madrugada do domingo como o momento da descoberta.
O autor de Mateus foi o único a dissentir dos outros evangelistas. De acordo com ele, a ida de Maria Madalena e da outra Maria ao sepulcro se deu, “no findar do sábado, ao entrar o primeiro dia da semana” (Mt 28:1).
A diferença de cerca de 10 horas, entre a primeira ida de discípulos ao sepulcro, em Marcos, Lucas e João, e em Mateus, sugere a existência de duas versões de horário. O fato de nem Marcos, nem Lucas, nem João terem afirmado que as mulheres, que foram ao sepulcro, encontraram guardas, como Mateus o fez (Mt 27:66), ou que ocorreu um terremoto (Mt 28:2), parece indicar que versões abrangiam também outros pontos. Provavelmente, as versões nasceram de testemunhos oculares parcialmente divergentes.
Não faltaram testemunhos divergentes sobre a ressurreição. Nem poderia ter sido diferente. Mateus fala de duas mulheres que foram ao sepulcro, Marcos, de três, Lucas, de um número indeterminado. Isso para nos atermos apenas ao primeiro grupo que entrou no túmulo. Mais tarde, o discípulo amado, Pedro e muitas outras pessoas foram até lá ou ouviram falar o que se passara. É claro que dessas múltiplas observações e comunicações resultaram versões diferentes do horário da descoberta do túmulo vazio.
O horário de Mateus é uma dessas versões. Não é sequer a versão mais crível, por um simples motivo: as mulheres que descobriram o túmulo vazio não foram lá por curiosidade, mas com o objetivo de embalsamar o corpo de Jesus (Mc 16:1). Para isso, tiveram de comprar os aromas usados no embalsamamento, após o sábado. É improvável que elas os tenham adquirido na noite de domingo. Além disso, como e por que mulheres teriam ido ao túmulo à noite, quando poderiam tê-lo feito na manhã imediata? Por ansiedade? Os costumes sociais e as regras religiosas da época tornariam, no mínimo, muito difícil mulheres darem vazão à sua ansiedade, de modo a comparecerem a um sepulcro de madrugada, nas condições específicas daquele domingo pascal.
É preciso observar, porém, que vários aspectos da versão de Mateus são aprovados no teste lógico. Mateus não afirma que as mulheres entraram no sepulcro de noite, o que teria sido de se duvidar ou admirar. Além disso, na Páscoa, a cidade e seus arredores estavam lotados de peregrinos, o que pode ter encorajado as seguidoras de Jesus a saírem da cidade à noite.
Esses pormenores, sem dúvida, salvam o horário de Mateus do descrédito total, mas não o tornam mais provável que o de Marcos, adotado também por Lucas e ratificado por João. Ambas as versões são lógicas. Porém, diferentemente de Mateus, Marcos, Lucas e João deixam um lapso de tempo, também no domingo, para que o furto do corpo possa ter ocorrido.
Mas, se o lapso provavelmente existiu, não se pode afirmar o mesmo das condições e do motivo para que o furto se consumasse. Shimon Gibson afirma que, nas três grandes festas anuais (Páscoa, Pentecoste e Tabernáculos), Jerusalém recebia "dezenas de milhares de peregrinos" (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 80). Não seria fácil a alguém perpetrar o furto de um cadáver nessa situação. O caso se agrava, ao considerarmos que "muitos dos peregrinos ficavam em acampamentos formados por tendas fora da cidade, nas áreas norte e leste do Gólgota" (idem. p. 58). Basta olharmos um mapa da Jerusalém do século I para nos darmos conta de que essas áreas eram muito próximas do túmulo de Jesus. Nesse contexto, não seria fácil a alguém sair com o cadáver, sem ser visto.
Quanto ao motivo do furto, João relata que, após encontrar o túmulo aberto, Maria Madalena avisou Pedro e o discípulo amado, retornou ao túmulo e ali permaneceu chorando (Jo 20:11). Maria chorou, porque a ideia da ressurreição não lhe ocorreu. O mesmo deve ser afirmado de Pedro e do outro discípulo. Após declarar que estes viram o túmulo vazio, o Evangelho acrescenta: “pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos” (Jo 20:9). Os discípulos viram, mas não entenderam.
Como discípulos que nem sequer pensavam em ressurreição, poderiam ter furtado o corpo, para simular uma? A tristeza de Maria não foi diferente da de Pedro e do outro discípulo que viram o túmulo logo depois dela. Nenhum deles entendeu que Jesus haveria de ressuscitar.
Poderia alguém ter tomado atitude totalmente diversa da de Maria, de Pedro e do condiscípulo que o acompanhou ao sepulcro? É claro que poderia, mas isso não é provável. De todos os seguidores de Jesus, ninguém excedia aqueles, em proximidade e diligência. Como os discípulos mais próximos e mais diligentes poderiam ter permanecido na ignorância sobre a ressurreição, enquanto outros tramavam simulá-la? Como o contexto da Páscoa poderia ter produzido atitudes tão opostas quanto essas, em meras 35 horas?
No entanto, há um outro obstáculo à hipótese em consideração. O fato de Jesus ter sido aclamado, ao entrar em Jerusalém, e ter sido condenado pela multidão, cinco dias depois, indica que os seus seguidores se dispersaram e emudeceram, quando ele foi preso. Nesse contexto, como imaginar tanta ousadia quanto a necessária para furtar ou transferir o corpo de Jesus, a fim de simular a ressurreição? Como imaginar que isso possa ter sido pensado e executado, ainda por cima, em parcas 35 horas?
Na verdade, os discípulos de Jesus tremeram. Eles foram possuídos de medo. Por isso, sumiram dos locais dos julgamentos e da paixão. Por isso também, não podem ter reunido forças para desfechar, tão imediatamente, o contra-ataque da transferência.
Apesar disso tudo, a transferência do cadáver do santo sepulcro para outro local tem sido a tese defendida por praticamente todos os críticos. Raros deles aceitam as hipóteses da morte comum ou da sobrevivência. Ao que parece, tampouco creem na ressurreição. O mais curioso nesse entendimento é que contraria, frontalmente, o método crítico, como acabo de demonstrar. Analisados criticamente, os dados dos Evangelhos sobre o pós-morte não deixam perceber que o corpo de Jesus foi furtado ou transferido do sepulcro.
A tese absurda da transferência sustenta-se, ou é sustentada, sobre uma única base: o senso comum, não a própria Crítica. O senso comum demonstra que os homens morrem e não ressuscitam. Os críticos não precisam de mais do que isso. Não precisam sequer da Crítica que inventaram. Para eles, Jesus não pode ter ressurgido dos mortos.
Mas se realizou seu trabalho hercúleo para, ao final, trocá-lo pelo prato de lentilhas do senso comum, por que a Crítica ainda se bate contra a fé e o senso comum? Sua atitude, nesse ponto específico, não se mantém em dívida para com eles? Não se reduz à fé no senso comum?

sábado, 14 de maio de 2011

Páscoa (5): Paixão e Morte

Homologada a condenação de Jesus por Pilatos, ele foi entregue aos soldados romanos, para ser crucificado. A paixão começou com o espancamento de que Jesus foi vítima.
Pouca dúvida resta sobre a historicidade desse espancamento. Embora abusiva, a prática fora introduzida no exército romano. Porém, o grau de flagelamento a que Jesus foi submetido envolve dúvidas. Foi ele torturado ao ponto extremo de A Paixão de Cristo, do diretor Mel Gibson? Vejamos o que o outro Gibson, arqueólogo, tem a declarar:
“A crucificação era, com frequência, precedida por açoitamento, amarrando a vítima a uma coluna e espancando-a com um flagellum – vara com cordões de couro ou correias com pontas de ferro duro ou de ossos. O espancamento não poderia constituir ameaça à vida, pois o condenado ainda deveria ter força suficiente para carregar a trava de madeira, horizontalmente, nos ombros até o local da crucificação. A vítima era levada por soldados, um dos quais levava o titulus – uma inscrição com o nome do criminoso e sua ofensa, para ser afixado na cruz, acima do moribundo” (GIBSON, Shimon. Os últimos dias de Jesus - a evidência arqueológica. São Paulo: Landscape, 2009. p. 125).
As palavras de (Shimon) Gibson são um bom resumo histórico do açoitamento. Cumpre acrescentar somente que a prática também podia constituir uma pena autônoma, ministrada aos culpados de delitos menores. Nesse caso, era preciso moderar o açoitamento, por não se tratar de pena de morte. Os soldados romanos eram adestrados para aplicar, corretamente, todas essas diversas penas. Eles eram particularmente condicionados a desassociar o flagelamento com açoites dos castigos que resultavam em morte. Teria sido uma inépcia sem paralelo aplicarem, em Jesus, o flagelo que antecede a crucificação em A Paixão, de Mel Gibson.
Não foi por outro motivo que (Shimon) Gibson declarou: “Saí de uma sessão do filme de Mel Gibson sobre os últimos dias de Jesus, A Paixão de Cristo, sentindo-me ensopado com o desnecessário sangue de Hollywood” (idem. p. 13). De fato, o sangue que o filme faz Jesus derramar, durante o açoitamento, é demasiado. Esse primeiro flagelo era ministrado, na dose necessária para debilitar o condenado, sem que os executores se arriscassem a matá-lo.
Mesmo assim, sabemos que Jesus foi rudemente golpeado, pelos soldados, e teve de carregar a própria cruz, como a Arqueologia descobriu ser comum na época. A cruz não podia ser pequena, nem leve demais, pois devia suster o corpo de um homem sem desabar. No entanto, não deve ter sido o objeto alto que se costuma representar.
Em 1968, arqueólogos descobriram os restos de um homem crucificado, numa cova judaica do século I d. C. O calcanhar direito estava atravessado por um prego de 11,5 centímetros de comprimento (idem. p. 126). Essa é a evidência física mais direta, de que dispomos de uma crucificação ocorrida, em Jerusalém, no século de Jesus.
Sabemos que os métodos de crucificação eram tão variados quanto as vítimas desse suplício. Por isso, os restos da vítima do primeiro século não nos dizem algo aplicável a todas as ocorrências da pena capital romana. As posturas do condenado na cruz variavam, conforme os tipos de traves e vigas disponíveis. Tudo dependia das circunstâncias. Normalmente, o condenado era preso à cruz, despido, por meio de cordas e pregos de ferro (idem. pp. 129, 131). Como não suportava o peso do próprio corpo, ele sofria espasmos musculares e morria asfixiado, em algumas horas.
Jesus caminhou com a cruz, do Pretório ao Monte Calvário. Embora ficasse fora da cidade, o lugar não era muito distante do Pretório. Porém, por se tratar de um monte, a sua escalada com a cruz foi particularmente extenuante. Por isso, Jesus teve de ser auxiliado por Simão Cireneu. O papel de Simão empresta autenticidade ao relato dos evangelistas, pois teria sido humanamente impossível a alguém carregar a cruz sozinho, por percurso tão longo e com trechos íngremes. No Calvário, Jesus foi crucificado.
Holger Kersten considera que o vinagre, que ofereceram a Jesus, quando ele estava na cruz, foi responsável pela perda de consciência e a morte aparente, que se seguiram. Kersten buscou essa teoria nos versículos de João que afirmam: “Disse: Tenho sede! Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: Está consumado! E, inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19:28-30).
De acordo com o autor do best-seller sobre a peregrinação de Jesus à Índia, o vinagre era utilizado para animar os condenados às galés (KERSTEN, Holger. Jesus viveu na Índia – a desconhecida história de Cristo antes e depois da crucificação. 24ª ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2007. p. 173). Não há dúvida de que os romanos ofereciam essa substância, também, aos condenados à morte. Kersten cita a passagem do Talmude que narra: “Aquele que caminhava para a execução recebeu um copo de vinho, com um pequeno pedaço de incenso, para que ficasse inconsciente (Sanh. 43a)” (idem). O vinho e o vinagre eram ministrados aos condenados, para entorpecê-los.
Até aí, Kersten caminha bem. Como a pena de crucificação era aplicada amiúde, em Israel (Josefo narra centenas de crucificações concomitantes), os judeus estavam familiarizados com os efeitos do vinagre ministrado aos condenados. A passagem de João é particularmente sugestiva de que Jesus desfaleceu, após ingerir o vinagre. Porém, nada disso significa que ele não morreu. A perda da consciência não significa que o processo de liquidação do seu corpo cessou. Muito pelo contrário, esse processo continuou, durante o período em que os judeus foram solicitar a Pilatos que mandasse quebrar as pernas dos condenados, para que morressem logo (Jo 19:30-33).
Para direcionar a perda dos sentidos por Jesus à sua teoria da sobrevivência, Kersten cita relatos de drogas que produzem tal estado de torpor, nos seus usuários, que eles parecem morrer. Fiel à sua tendência de ligar Jesus à Índia, esse autor busca evidências do uso de drogas com esses poderes, naquele país e na vizinha Pérsia. Nesta, ele encontra a haoma; naquela, o soma. Ambas eram extraídas da planta asclepias acida:
“Na Índia, a bebida do soma permitia que as pessoas familiarizadas com a droga ficassem aparentemente mortas por vários dias, despertando depois em um estado de euforia que durava também vários dias. Em tal estado de êxtase religioso podia manifestar-se uma consciência mais elevada, dotada de novos poderes de percepção” (idem. p. 173).
O problema é que não há provas de que os romanos ministrassem soma indiana aos seus condenados. Embora pudesse entorpecer, o vinagre que Jesus bebeu tampouco tinha as propriedades da asclepias. Ele foi ministrado, porque Jesus reclamou de sede, e era proibido dar água aos condenados.
Os sinóticos relatam que houve trevas, na terra, durante a crucificação. A localização de um fenômeno natural “na terra” ou “em toda a terra” é comum nas Escrituras. A palavra terra indica um lugar determinado, não o planeta todo. No caso, a cidade de Jerusalém.
As trevas mencionadas, nos sinóticos, foram interpretadas como um eclipse, pelos historiadores Talo e Flegão, citados por Júlio Africano. Embora adotada por vários estudiosos, a teoria do eclipse foi afastada, pela ciência moderna, que não identificou a possibilidade de um fenômeno assim ter ocorrido, nas datas prováveis da crucificação. Mais verossímil é que as trevas tenham sido causadas por nuvens pesadas e negras, que encheram o céu de Jerusalém, encobrindo o sol.
Mateus ainda informa que um terremoto ocorreu, na hora da morte: “Tremeu a terra, fenderam-se as rochas, abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, ressuscitaram” (Mt 27:51-52). O véu do santuário rasgou-se de cima a baixo, na mesma hora.
A ocorrência de um terremoto, na hora exata em que Jesus expirou, é improvável. Porém, não é esse o sentido do texto de Mateus. Seria absurdo um autor pretender estabelecer, décadas depois, de maneira exata, o momento em que um tremor se verificou. Não é isso que Mateus realiza ou sugere. O texto quer, tão-somente, informar que houve um terremoto em Jerusalém, naquele dia. Tanto é que ele continua: “e, saindo dos sepulcros depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos” (Mt 27:53).
A ressurreição e as aparições a que Mateus se refere foram um processo, não um fato pontual. Os mortos só saíram dos sepulcros, “depois da ressurreição de Jesus”. Portanto, o terremoto não foi simultâneo à crucificação.
É provável que Mateus tenha em mente uma ressurreição continuada, que durou vários dias, meses ou mesmo anos. Sua intenção é associar a obra de Jesus, na cruz, à ressurreição dos santos. É mostrar que a ressurreição foi e é o efeito contínuo do evangelho. Como o termo ressurreição tinha sentido bastante elástico, muito provavelmente, Mateus se refere a visões, que várias pessoas tiveram de indivíduos mortos, nos dias que se seguiram à morte de Jesus.
O terremoto também causou avarias, no recinto interior do Templo, onde só o Sumo-Sacerdote podia ingressar, uma vez por ano. A tradução da frase “o véu se rasgou de alto a baixo” é um tanto enigmática. Parece indicar um movimento anormal. O véu ficava pendurado numa estrutura, que o encimava e que deve ter sido abalada pelo terremoto. Se essa estrutura tivesse duas partes, elas poderiam se desencaixar, e o véu poderia voltar ao repouso em posição inclinada, após o terremoto. Se isso tiver ocorrido, o verbo rasgou-se seria melhor traduzido fendeu-se ou abriu-se.
O interesse particular dos judeus na crucificação de Jesus fez com que o encerramento do ato fosse apressado, pois o dia seguinte era sábado, quando não podem realizar trabalhos. O método de antecipação da morte, que os romanos mancomunados com as autoridades judaicas se dispuseram a usar, consistiu em quebrar os ossos de Jesus e dos ladrões crucificados com ele. Porém, quando os soldados foram fazê-lo, Jesus já havia morrido.
Nesse momento, um soldado perfurou o lado de Jesus com a lança, para se certificar de que ele estava morto. Do lugar perfurado, saiu sangue misturado com água. A maior parte dos autores explica essa mistura como o soro que se forma em lugar do sangue, durante o processo de decomposição. Numa época pré-científica, esse soro sanguíneo foi descrito, com admirável precisão, como uma mistura de “sangue e água”.
Porém, o sangue só entra em decomposição, seis horas após a morte. Por isso, talvez tenhamos de optar entre a exatidão do horário da morte, em Mateus e Marcos (a hora nona, três da tarde), e o jorro de sangue e água do lado de Jesus pouco antes do sepultamento. Como esse jorro foi testemunhado de modo específico (Jo 19:34-35), na necessidade de optar, parece melhor fazê-lo em favor da perfuração e recuar o horário da morte. Talvez até o da crucificação.
Sobre esse ponto, vale recordar que Marcos fornece duas informações de horário: as trevas que envolveram Jerusalém e arredores estenderam-se da sexta à nona hora, e Jesus morreu na hora nona (Mc 15:33-37). Mateus, que segue a narrativa de Marcos quase palavra por palavra, relativiza o horário do segundo acontecimento, ao dizer "por volta da hora nona" (Mt 27:46). Mas o mais importante é que Lucas recua as trevas (portanto, a própria crucificação) para antes da hora sexta e retira toda referência ao horário da morte: "Já era quase a hora sexta e, escurecendo-se o sol, houve trevas sobre toda a terra até a hora nona. E rasgou-se pelo meio o véu do santuário. Então Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito isto, expirou" (Lc 23:44,46). A localização da morte, em Lucas, é dada pela palavra então ("Então Jesus clamou [...] e expirou"). Mas essa palavra se refere ao momento em que o véu se rasgou, não à hora nona.
Morto, Jesus foi sepultado, por Arimateia e Nicodemos. Shimon Gibson considera que a localização exata do túmulo é impossível de ser determinada, com base no conhecimento atual. Ele não descarta uma localização próxima da Igreja do Santo Sepulcro, mas deixa a questão em aberto.
Ao relato do sepultamento, Mateus acrescenta o da designação de uma guarda para o sepulcro. Mateus não inventou esse relato, mas recolheu-o do meio religioso em que vivia e o registrou no seu livro. Em todos os evangelistas, o processo de recepção, seleção e transmissão de uma história, em forma escrita, é orientado por seus propósitos redacionais. No caso de Mateus, o propósito foi provar que Jesus cumpriu as profecias messiânicas. A ressurreição era uma predição messiânica. Para aumentar o grau de certeza de que Jesus a cumprira, o autor de Mateus selecionou o relato da guarda do sepulcro.
Claro que a pergunta merece ser formulada: houve de fato uma guarda? Não é preciso responder que sim, para que o relato de Mateus seja considerado histórico. Pode ser que o ponto em questão tenha sido adicionado por copistas interessados em afastar a versão do furto do corpo de Jesus. Devemo lembrar-nos de que o relato da guarda não aparece em qualquer dos outros Evangelhos e de que Mateus recua o horário da ressurreição de 10 a 12 horas em relação aos demais Evangelhos. Isso pode indicar algum grau de manipulação do relato desse livro, por copistas interessados em exacerbar o propósito original de Mateus, que era provar o cumprimento das profecias messiânicas.