Na primeira postagem desta série, vimos que um paradigma ou modelo interpretativo da criação foi elaborado, pelos pais da igreja cristã, e aceito por séculos a fio. Esse paradigma emergiu da desconfiança para com a interpretação literal dos textos que descreviam o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas. Porém, embora relativizasse o sentido literal desses versículos, o paradigma patrístico interpretava literalmente os capítulos 1 e 2 de Gênesis.
Com o desenvolvimento da Teoria da Evolução, por Charles Darwin, eruditos e intérpretes das Escrituras, como G. H. Pember, promoveram a primeira grande releitura de Gênesis 1, com base em novas evidências científicas. Dessa releitura emergiu um segundo modelo interpretativo, que não abandonou a exegese do Período Patrístico, mas lhe acrescentou um ou outro dado novo, assim como o intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2 ou a interpretação dos seis dias como eras. Porém, o conhecimento de um número cada vez maior de fatos sobre as origens tem provocado um desgaste tão grande desse segundo modelo quanto do primeiro.
Não é possível, nos limites desta série de postagens, apresentar o desgaste em detalhes. Vou-me limitar a mostrar como ele se manifesta na interpretação de Gênesis 1 apresentada por Pember. A quantidade de vezes que esse autor menciona os fósseis, no clássico As eras mais primitivas da Terra, mostra como a sua releitura de Gênesis 1 foi motivada pelo desenvolvimento das ciências naturais. Nas suas próprias palavras, “Vemos, então, que Deus criou os céus e a terra no princípio, de um modo lindo e perfeito [...] Conforme os resíduos de fósseis claramente mostram, não houve apenas doença e morte [nesse período] – companheiros inseparáveis do pecado então predominante entre as criaturas vivas da terra – mas até mesmo ferocidade e matança” (ob. cit. São Paulo: Editora dos Clássicos, 2002. Tomo 1, pp. 59-60). Se os fósseis mencionados são de plantas e animais mortos, a morte e até mesmo a violência já exerciam o seu império na criação primitiva, o que Pember aceitou e explicou muito bem por meio do intervalo.
Porém, em quase todos os outros pontos, a interpretação que ele nos transmitiu reafirma o modelo patrístico. Vejamos por quê. Para Pember, antes da queda, “o espírito que Deus soprara dentro de [Adão e Eva] guardava total poder e vigor [...] e brilhando pela forma física, projetava uma auréola lustrosa ao redor de ambos” (idem. p. 152). Essa é uma nítida reafirmação da ideia patrística de que os corpos de Adão e Eva eram etéreos e distintos dos nossos. Ao referir-se à tentação de Eva pela serpente, o autor inglês afirmou: “A serpente se aproximou e dirigiu-se a ela. O fato de ela não se ter assustado parece indicar a existência de uma comunicação inteligente entre o homem e as criaturas inferiores antes da queda” (idem. p. 140). Aqui, o texto de Pember admite a interpretação literal da comunicação da serpente com Eva. Dessa comunicação sobreveio o pecado, “o feito fatal, que, aproximadamente seis mil anos não foram suficientes para obliterar” (idem. p. 146). As palavras seis mil anos deixam claro que os acontecimentos do Jardim do Éden devem ser situados nesse tempo. Sobre o Dilúvio, ele declarou: “O mundo tremeu com os rápidos pingos de chuva que caíam, os primeiros que eles já tinham contemplado” (idem. p. 217). Neste ponto, é reafirmada a interpretação literal de Gênesis 2:5-6, que dizem que o Senhor ainda não fizera chover sobre a terra.
Por esses exemplos se vê que G. H. Pember aderiu fortemente ao modelo antigo de interpretação literal de Gênesis. A esse quadro, por si já bastante problemático, ele ainda acrescentou dificuldades novas. Por exemplo, o cataclisma que destruiu o planeta, resultando no quadro de Gênesis 1:2, foi descrito da seguinte maneira: “A terra arruinada [...] foi inundada pelas águas do oceano; seu sol havia-se extinguido, as estrelas não eram mais vistas, suas nuvens e atmosfera, não tendo força de atração para mantê-las em suspensão, haviam descido” (idem. p. 101). Pember comparou esse acontecimento com o Dilúvio de Noé, quando “a arca flutuava sobre as águas, e a terra foi mais uma vez, quase como havia sido antes dos seis dias de restauração, coberta, até o pico mais elevado, pelo oceano” (idem. p. 217). Contra essa descrição do cataclisma universal, milita o fato de não haver o menor indício de inundações totais da Terra, nos últimos três bilhões de anos, muito menos há seis mil. Há ainda a passagem de As eras mais primitivas que afirma que o cataclisma levou a Terra a "um estado de completa desolação, ficando totalmente sem vida. Não apenas seus lugares frutíferos se tornaram um deserto, e todas as suas cidades foram destruídas" (idem. p. 59). Nesse trecho de sua famosa obra, Pember supôs a existência de verdadeiras cidades, quando o cataclisma desabou sobre a Terra.
Portanto, analisada amplamente, a teoria de Pember (como as da maioria dos outros autores que acrescentaram algum tipo de remendo à interpretação literal antiga) está longe de cumprir o que ele pretendeu ao escrevê-la (1876). As afirmações do livro de Pember não explicam um bom número de fatos e se chocam com outros ainda mais numerosos. Necessário é, portanto, buscar um terceiro modelo interpretativo de Gênesis 1. Mais do que isso: para que o novo modelo alcance o que se propõe, é preciso fazê-lo negar amplamente, não apenas num ponto ou outro, a interpretação literal. Isso não significa negar que o relato bíblico formule afirmações sobre a História Natural. É exatamente isso que ele faz, como mostrarei nesta série. Todavia, é bom lembrar que a Bíblia o faz num quadro geral de seis dias com tardes e manhãs metafóricas.
Essa primeira metáfora, que emoldura o capítulo 1 de Gênesis, cria um importante precedente para a interpretação alegórica de ainda outros textos sobre a criação. Por que não entendermos Gênesis 2 nos termos propostos por Orígenes de Alexandria, no século III: “O jardim e a maneira como se diz que Deus o plantou ‘no Éden, no Oriente’, e que em seguida fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal [...] tudo isto pode, sem inconveniência, ser interpretado em sentido figurado” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 318)?
Mesmo assim, a contribuição de Pember à exegese de Gênesis 1 é inestimável. Sua teoria do intervalo permanece atual e válida, embora possa (e a meu ver deva) ser compatibilizada com a interpretação dos seis dias como eras. Porém, ao harmonizarmos as teorias, é útil apararmos os excessos da exegese literal, que Pember herdou do modelo patrístico de interpretação. Não estamos mais no século III ou IV, nem no século de Pember, para reincidirmos em tal erro. Estamos no século XXI e é nele que Deus quer que estejamos. Ou será que a exegese literal da criação se ajusta ao século em que vivemos?
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
Evidências da Criação (5): Criar e Fazer
A ideia de criação do Universo e do homem por Deus só assumiu importância decisiva, em Israel, nos últimos séculos antes de Cristo. São dessa época as principais passagens do Antigo Testamento e o versículo de 2º dos Macabeus sobre o tema: “Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens” (2 Mc 7:28).
Em que pese a efervescência da ideia de criação, em Israel, entre os séculos VI e I a. C., não há registros de que a recriação tenha sido discutida ou conhecida, nessa época. Nem Macabeus, nem Flávio Josefo, nem Fílon a mencionam. Como é claro que uma variante tão fundamental de Gênesis quanto essa teria sido registrada, se houvesse sido cogitada, o fato de não existir registro ou sinal dela, na literatura, parece indicar que a ideia permaneceu desconhecida na Antiguidade.
A inserção da recriação, no pano de fundo de Gênesis 1, não contradiz as práticas literárias dos séculos antes de Cristo. Métodos esotéricos (permitam-me utilizar a palavra, não no sentido pejorativo, mas no de ensinamento restrito a poucas pessoas) de composição e transmissão de textos eram muito comuns nesse tempo. Há pouca dúvida de que tenham sido empregados também em Israel, como estratégia de defesa contra os mecanismos de controle ideológico concentrados no Templo de Jerusalém.
Para não ser marginalizado ou perseguido, pelas autoridades religiosas, que viam a criação de outro modo, provavelmente, o autor de Gênesis 1 inseriu a recriação no pano de fundo do texto que redigiu, reservando o primeiro plano para a criação original. Esse pano de fundo não foi percebido, pelo compilador ou editor final de Gênesis, nem pelas pessoas que abordaram o capítulo, desde que foi escrito, por terem mentalidade mais próxima da que o versículo de 2º dos Macabeus exprime.
Uma das melhores maneiras de se comprovar esses planos distintos (o primeiro reservado à criação, o outro, à recriação), no texto de Gênesis 1, é atentar para os significados dos verbos usados. Em As eras mais primitivas da Terra, G. H. Pember diferenciou as palavras bara e asah, usadas pelo escritor sagrado para descrever os atos criadores de Deus. De acordo com ele, bara significa criar sem matéria preexistente, e asah, criar a partir de um material.
Porém, se adotarmos essa diferença, teremos de concluir que ela vigora no capítulo 1, mas não no capítulo 2, pois as aves foram criadas, em 1:21, e formadas da terra, em 2:19. Semelhantemente, a mulher foi criada, em 1:27, e formada a partir da costela do homem, em 2:21-22.
O fato de a diferenciação entre bara e asah estar enraizada no primeiro, mas não no segundo capítulo de Gênesis confirma que o editor final do livro não a percebeu. Se a tivesse notado, no mínimo, ele teria mantido a distinção, no capítulo 2, o que não aconteceu. Mais provável é que a tivesse divulgado e que a doutrina variante houvesse sido registrada, por outros autores, o que vimos não ter ocorrido, pois a literatura antiga não a menciona.
Essas ideias são reforçadas pela atribuição muito comum dos capítulos iniciais da Bíblia a autores distintos, que viveram em épocas também distintas. A atribuição permite explicar por que o capítulo 1 adota a distinção entre os verbos, enquanto o capítulo 2 não o faz. Na verdade, o primeiro texto foi escrito numa época por certo autor, e o outro, numa outra época, por outro autor. Como a doutrina implícita em Gênesis 1 não foi divulgada, a divergência entre os capítulos 1 e 2 não foi corrigida nem debatida.
E. F. Kevan modificou ligeiramente a diferenciação de Pember. Ele afirmou que asah é empregado para atos de criação de seres preexistentes, e bara, para atos de criação de seres totalmente novos. Nas palavras do próprio Kevan: “O principal é sublinhar o significado de bara que apenas supõe a produção dum ser, completamente novo, que antes não existia”.
A observação consta num comentário sucinto do Livro de Gênesis (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. Vol. I, p. 83). Não se segue a demonstração de que a diferença apontada é verdadeira. Podemos propor uma demonstração, observando que bara é usado apenas para a criação dos seres que recebem a bênção de Deus. É o caso das aves, das grandes baleias e do homem. A criação de todos os demais seres é descrita por outros verbos.
O princípio subjacente à demonstração é de que Deus não consagra, nem atribui sua bênção em vão. No contexto da criação, ele o faz porque o ser consagrado passou à existência naquele momento. E se for realmente assim, a palavra bara estará a indicar os seres que vieram à existência durante os seis dias, e asah (e outros verbos), a recriação de seres que haviam existido antes. Portanto, para o autor original, criar não é apenas gerar, produzir, mas também abençoar, consagrar. A bênção divina é o que introduz cada tipo de ser na existência. Ela inaugura a espécie.
Uma outra maneira de exprimir essa diferença entre bara e asah consiste em afirmar que os atos de recriação recapitulam a origem dos mesmos seres, numa época anterior, quando eles foram criados e abençoados. O fundamento bíblico dessa recapitulação é o versículo 2:4, que afirma: "Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados".
A palavra gênese (em hebraico, toledot), nesse versículo, significa história. Indica, portanto, a história do capítulo 1 ou a do capítulo 2. Como esta não narra a criação dos céus, mas a de um jardim e de Adão, o verso só se pode referir aos sete dias. E as palavras "quando foram criados" só podem indicar que os sete dias contêm as origens, a formação inicial, dos céus, da terra e dos seres neles existentes. De sorte que os das em que o verbo bara não aparece tratam da recriação, mas recapitulam a criação.
As observações acima permitem-nos identificar duas sequências de atos de criação, que se sobrepõem: uma sequência designada pela palavra asah e outra composta com bara. A sequência de atos indicados por asah inclui a formação do firmamento (v. 7), dos luzeiros (v. 16), dos répteis, dos animais selvagens, dos domésticos (v. 25) e do homem (v. 26). Se quisermos, podemos acrescentar os itens não designados por qualquer dos dois verbos, assim como a luz do primeiro dia, o oceano e as nuvens. A sequência de bara é composta com as aves, as grandes baleias (v. 21) e o homem (v. 27). A primeira é a sequência em que Deus realizou seus atos criadores originais.
Resumindo: deve existir uma diferença entre bara e asah. Do contrário, a cosmogonia de Gênesis não empregaria os dois verbos. No entanto, todas as diferenciações até hoje propostas falharam. A única que resiste às críticas é a que reconhece que bara refere-se a atos criadores originais, e asah, a atos de recriação. Se o autor de Gênesis quis descrever a criação original, mais que a recriação, os atos indicados por asah são os que a representam. Os designados por bara só ocorreram em momento posterior, quando Deus recriou o planeta.
Em que pese a efervescência da ideia de criação, em Israel, entre os séculos VI e I a. C., não há registros de que a recriação tenha sido discutida ou conhecida, nessa época. Nem Macabeus, nem Flávio Josefo, nem Fílon a mencionam. Como é claro que uma variante tão fundamental de Gênesis quanto essa teria sido registrada, se houvesse sido cogitada, o fato de não existir registro ou sinal dela, na literatura, parece indicar que a ideia permaneceu desconhecida na Antiguidade.
A inserção da recriação, no pano de fundo de Gênesis 1, não contradiz as práticas literárias dos séculos antes de Cristo. Métodos esotéricos (permitam-me utilizar a palavra, não no sentido pejorativo, mas no de ensinamento restrito a poucas pessoas) de composição e transmissão de textos eram muito comuns nesse tempo. Há pouca dúvida de que tenham sido empregados também em Israel, como estratégia de defesa contra os mecanismos de controle ideológico concentrados no Templo de Jerusalém.
Para não ser marginalizado ou perseguido, pelas autoridades religiosas, que viam a criação de outro modo, provavelmente, o autor de Gênesis 1 inseriu a recriação no pano de fundo do texto que redigiu, reservando o primeiro plano para a criação original. Esse pano de fundo não foi percebido, pelo compilador ou editor final de Gênesis, nem pelas pessoas que abordaram o capítulo, desde que foi escrito, por terem mentalidade mais próxima da que o versículo de 2º dos Macabeus exprime.
Uma das melhores maneiras de se comprovar esses planos distintos (o primeiro reservado à criação, o outro, à recriação), no texto de Gênesis 1, é atentar para os significados dos verbos usados. Em As eras mais primitivas da Terra, G. H. Pember diferenciou as palavras bara e asah, usadas pelo escritor sagrado para descrever os atos criadores de Deus. De acordo com ele, bara significa criar sem matéria preexistente, e asah, criar a partir de um material.
Porém, se adotarmos essa diferença, teremos de concluir que ela vigora no capítulo 1, mas não no capítulo 2, pois as aves foram criadas, em 1:21, e formadas da terra, em 2:19. Semelhantemente, a mulher foi criada, em 1:27, e formada a partir da costela do homem, em 2:21-22.
O fato de a diferenciação entre bara e asah estar enraizada no primeiro, mas não no segundo capítulo de Gênesis confirma que o editor final do livro não a percebeu. Se a tivesse notado, no mínimo, ele teria mantido a distinção, no capítulo 2, o que não aconteceu. Mais provável é que a tivesse divulgado e que a doutrina variante houvesse sido registrada, por outros autores, o que vimos não ter ocorrido, pois a literatura antiga não a menciona.
Essas ideias são reforçadas pela atribuição muito comum dos capítulos iniciais da Bíblia a autores distintos, que viveram em épocas também distintas. A atribuição permite explicar por que o capítulo 1 adota a distinção entre os verbos, enquanto o capítulo 2 não o faz. Na verdade, o primeiro texto foi escrito numa época por certo autor, e o outro, numa outra época, por outro autor. Como a doutrina implícita em Gênesis 1 não foi divulgada, a divergência entre os capítulos 1 e 2 não foi corrigida nem debatida.
E. F. Kevan modificou ligeiramente a diferenciação de Pember. Ele afirmou que asah é empregado para atos de criação de seres preexistentes, e bara, para atos de criação de seres totalmente novos. Nas palavras do próprio Kevan: “O principal é sublinhar o significado de bara que apenas supõe a produção dum ser, completamente novo, que antes não existia”.
A observação consta num comentário sucinto do Livro de Gênesis (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. Vol. I, p. 83). Não se segue a demonstração de que a diferença apontada é verdadeira. Podemos propor uma demonstração, observando que bara é usado apenas para a criação dos seres que recebem a bênção de Deus. É o caso das aves, das grandes baleias e do homem. A criação de todos os demais seres é descrita por outros verbos.
O princípio subjacente à demonstração é de que Deus não consagra, nem atribui sua bênção em vão. No contexto da criação, ele o faz porque o ser consagrado passou à existência naquele momento. E se for realmente assim, a palavra bara estará a indicar os seres que vieram à existência durante os seis dias, e asah (e outros verbos), a recriação de seres que haviam existido antes. Portanto, para o autor original, criar não é apenas gerar, produzir, mas também abençoar, consagrar. A bênção divina é o que introduz cada tipo de ser na existência. Ela inaugura a espécie.
Uma outra maneira de exprimir essa diferença entre bara e asah consiste em afirmar que os atos de recriação recapitulam a origem dos mesmos seres, numa época anterior, quando eles foram criados e abençoados. O fundamento bíblico dessa recapitulação é o versículo 2:4, que afirma: "Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados".
A palavra gênese (em hebraico, toledot), nesse versículo, significa história. Indica, portanto, a história do capítulo 1 ou a do capítulo 2. Como esta não narra a criação dos céus, mas a de um jardim e de Adão, o verso só se pode referir aos sete dias. E as palavras "quando foram criados" só podem indicar que os sete dias contêm as origens, a formação inicial, dos céus, da terra e dos seres neles existentes. De sorte que os das em que o verbo bara não aparece tratam da recriação, mas recapitulam a criação.
As observações acima permitem-nos identificar duas sequências de atos de criação, que se sobrepõem: uma sequência designada pela palavra asah e outra composta com bara. A sequência de atos indicados por asah inclui a formação do firmamento (v. 7), dos luzeiros (v. 16), dos répteis, dos animais selvagens, dos domésticos (v. 25) e do homem (v. 26). Se quisermos, podemos acrescentar os itens não designados por qualquer dos dois verbos, assim como a luz do primeiro dia, o oceano e as nuvens. A sequência de bara é composta com as aves, as grandes baleias (v. 21) e o homem (v. 27). A primeira é a sequência em que Deus realizou seus atos criadores originais.
Resumindo: deve existir uma diferença entre bara e asah. Do contrário, a cosmogonia de Gênesis não empregaria os dois verbos. No entanto, todas as diferenciações até hoje propostas falharam. A única que resiste às críticas é a que reconhece que bara refere-se a atos criadores originais, e asah, a atos de recriação. Se o autor de Gênesis quis descrever a criação original, mais que a recriação, os atos indicados por asah são os que a representam. Os designados por bara só ocorreram em momento posterior, quando Deus recriou o planeta.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
Evidências da Criação (4): Os Seis Dias
A palavra dia (em hebraico yom), no primeiro capítulo de Gênesis, pode significar um período de 24 horas ou de extensão indeterminada. Com base nesse último significado, já se propôs que a criação dos seis dias se deu em seis eras.
Em 1876, George Hawkins Pember publicou Earth’s earliest ages, em que combateu a interpretação dos dias como eras geológicas, por entender que a palavra yom pode significar período indeterminado, mas o mesmo não ocorre com os termos tarde e manhã, em que os dias da criação se dividem e que só podem indicar as metades dos ciclos de 24 horas (Earth’s earliest ages. 2ª ed. 1884. pp. 87-88).
Essas dificuldades da compreensão dos dias como eras levaram Pember a explicar os fósseis de seres vivos que viveram há milhões de anos, por meio da teoria do intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2. O primeiro desses versículos descreve a criação original dos céus e da Terra. Pember explicou os fósseis como remanescentes desse período, em que a Terra foi amplamente habitada por seres vivos. Até que um cataclisma introduziu o caos do segundo verso. Então, durante os seis dias, Deus recriou o que fora destruído pelo cataclisma.
É preciso lembrar que, após mais de um século da publicação de Earth’s earliest ages, está claro que nem o evento extintivo, nem a recriação mencionados na obra podem ter ocorrido há poucos milhares de anos, como Pember supôs. A impressão que se tem é de que, do modo como foi elaborada, a teoria do intervalo troca uma criação há 6.000 anos por uma extinção e uma recriação nessa mesma época, o que pouco altera o descompasso de Gênesis com a evidência científica, já que as provas de uma Terra jovem são tão inexistentes quanto as de uma extinção em massa há apenas alguns milhares de anos.
Os problemas da teoria de Pember só desaparecem, quando a adotamos juntamente com a interpretação dos dias como períodos indeterminados, que fazem o grande cataclisma e a recriação recuarem indefinidamente. O intervalo de Gênesis 1:1-2 permite entender os seis dias como uma progressiva passagem do caos à ordem. Essa transição explica por que as palavras tarde e manhã foram empregadas, em cada um dos seis dias: como período de trevas, tarde refere-se metaforicamente ao caos (ou à ordem inferior) existente antes de Deus intervir; já a palavra dia indica a nova ordem implantada pela intervenção divina.
Essa reinterpretação de tarde e manhã permite explicar ainda outras características do texto da criação. Por exemplo: todos os seis primeiros dias são encerrados pela expressão “Houve tarde e manhã, o dia tal”. Só no sétimo dia, essas palavras não aparecem. A omissão pode ser explicada, com base em que, no sétimo dia, a obra de Deus estava completa. Não havia mais caos ou ordem inferior, apenas a ordem sublime da criação divina.
No entanto, apesar dessas vantagens, assim como ocorre com a teoria do intervalo, os dias-eras não bastam para eliminar as dificuldades do relato da criação. Tomadas sozinhas, as eras de Gênesis 1 formam uma sequência bastante distinta da que a ciência descobriu. Por exemplo, elas indicam que os répteis surgiram depois das aves e das “grandes baleias” (Versão Almeida Fiel), o que contraria os dados científicos.
Porém, é notável que, ao serem adotadas simultaneamente, as teorias do intervalo e dos dias-eras eliminam toda e qualquer incompatibilidade do relato da criação com as descobertas da ciência. O intervalo restringe a criação original ao primeiro versículo bíblico (“No princípio criou Deus os céus e a terra”). E a interpretação dos dias como eras permite entender que a extinção em massa e a restauração do planeta ocorreram numa época indeterminada, não há 6.000 anos.
Em 1876, George Hawkins Pember publicou Earth’s earliest ages, em que combateu a interpretação dos dias como eras geológicas, por entender que a palavra yom pode significar período indeterminado, mas o mesmo não ocorre com os termos tarde e manhã, em que os dias da criação se dividem e que só podem indicar as metades dos ciclos de 24 horas (Earth’s earliest ages. 2ª ed. 1884. pp. 87-88).
Essas dificuldades da compreensão dos dias como eras levaram Pember a explicar os fósseis de seres vivos que viveram há milhões de anos, por meio da teoria do intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2. O primeiro desses versículos descreve a criação original dos céus e da Terra. Pember explicou os fósseis como remanescentes desse período, em que a Terra foi amplamente habitada por seres vivos. Até que um cataclisma introduziu o caos do segundo verso. Então, durante os seis dias, Deus recriou o que fora destruído pelo cataclisma.
É preciso lembrar que, após mais de um século da publicação de Earth’s earliest ages, está claro que nem o evento extintivo, nem a recriação mencionados na obra podem ter ocorrido há poucos milhares de anos, como Pember supôs. A impressão que se tem é de que, do modo como foi elaborada, a teoria do intervalo troca uma criação há 6.000 anos por uma extinção e uma recriação nessa mesma época, o que pouco altera o descompasso de Gênesis com a evidência científica, já que as provas de uma Terra jovem são tão inexistentes quanto as de uma extinção em massa há apenas alguns milhares de anos.
Os problemas da teoria de Pember só desaparecem, quando a adotamos juntamente com a interpretação dos dias como períodos indeterminados, que fazem o grande cataclisma e a recriação recuarem indefinidamente. O intervalo de Gênesis 1:1-2 permite entender os seis dias como uma progressiva passagem do caos à ordem. Essa transição explica por que as palavras tarde e manhã foram empregadas, em cada um dos seis dias: como período de trevas, tarde refere-se metaforicamente ao caos (ou à ordem inferior) existente antes de Deus intervir; já a palavra dia indica a nova ordem implantada pela intervenção divina.
Essa reinterpretação de tarde e manhã permite explicar ainda outras características do texto da criação. Por exemplo: todos os seis primeiros dias são encerrados pela expressão “Houve tarde e manhã, o dia tal”. Só no sétimo dia, essas palavras não aparecem. A omissão pode ser explicada, com base em que, no sétimo dia, a obra de Deus estava completa. Não havia mais caos ou ordem inferior, apenas a ordem sublime da criação divina.
No entanto, apesar dessas vantagens, assim como ocorre com a teoria do intervalo, os dias-eras não bastam para eliminar as dificuldades do relato da criação. Tomadas sozinhas, as eras de Gênesis 1 formam uma sequência bastante distinta da que a ciência descobriu. Por exemplo, elas indicam que os répteis surgiram depois das aves e das “grandes baleias” (Versão Almeida Fiel), o que contraria os dados científicos.
Porém, é notável que, ao serem adotadas simultaneamente, as teorias do intervalo e dos dias-eras eliminam toda e qualquer incompatibilidade do relato da criação com as descobertas da ciência. O intervalo restringe a criação original ao primeiro versículo bíblico (“No princípio criou Deus os céus e a terra”). E a interpretação dos dias como eras permite entender que a extinção em massa e a restauração do planeta ocorreram numa época indeterminada, não há 6.000 anos.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
Evidências da Criação (9): A Idade de Adão
A concepção de que a humanidade existe há 6.000 anos foi construída a partir de cinco versículos bíblicos: “Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. Homem e mulher os criou; e os abençoou, e os chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e pôs-lhe o nome de Sete. E foram os dias de Adão, depois que gerou a Sete, oitocentos anos; e gerou filhos e filhas. Todos os dias que Adão viveu foram novecentos e trinta anos; e morreu” (Gn 5:1-5).
A interpretação literal desses versos é tão antiga quanto Gênesis. Até mesmo intérpretes atentos e sofisticados, como Agostinho, a adotaram, como se nota na passagem em que ele criticou aqueles que, "não reparando nas lacunas da Escritura, julgaram que Caim teve relação sexual com a mãe, nascendo assima prole ali mencionada. Pensaram que os filhos de Adão não tiveram irmãs, visto que a Escritura silencia aquela passagem, mas depois, recapitulando, apresenta o que omitira, dizendo que Adão gerou filhos e filhas (Gm 5,4).Mas não revela o tempo de seu nascimento nem o número nem seus nomes" (HIPONA, Agostinho de. A natureza e a graça. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007. p. 154).
Fora da tradição cristã, encontramos constestações das genealogias, como as de Celso (século II) e Porfírio (século III). Porém, o primeiro foi cabalmente refutado por Orígenes de Alexandria, e o último, por Eusébio de Cesareia. Com essas refutações, praticamente encerraram-se as discussões e até mesmo a crítica à verdade histórica da Bíblia, no século IV. O mundo romano inteiro aceitou o Cristianismo não só como religião, mas também como história.
Porém, nada impede refletirmos um pouco mais sobre a idade de Adão. Gênesis divide-se em várias seções iniciadas com as palavras “São estas as gerações de” ou “Esta é a história de”. Hoje, admite-se que tais seções derivam de tradições independentes, que o autor reuniu para compor o primeiro livro bíblico. As expressões citadas foram, simplesmente, a argamassa que ele utilizou para juntá-las.
As seções em que os onze primeiros capítulos de Gênesis se dividem quase sempre começam com um recuo cronológico. A título de exemplo, após o relato dos seis dias da criação, a Escritura afirma: “Havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera”. Em seguida, inicia-se a história do Éden, mediante um recuo ao “dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (Gn 2:4).
Semelhantemente, o capítulo 5 traz uma nova história: “Este é o livro das gerações [isto é, dos descendentes] de Adão”. E imediatamente recua até “o dia em que Deus criou o homem” (Gn 5:1). Não citarei os recuos seguintes a esses para não me tornar cansativo, porém é certo que as tradições dos primeiros capítulos de Gênesis foram coladas umas nas outras mediante a técnica do recuo cronológico ou recapitulação.
Assim entendidos, os cinco versículos que parecem afirmar a idade recente de Adão (Gn 5:1-5) começam com um recuo, como todos os que foram usados para grudar as seções de Gênesis 1 a 11 umas nas outras. Mas se é um recuo, a passagem em questão não afirma que o que se encontra nos versículos 3 a 32 (a genealogia de Adão) se inicia com o que está nos versos 1 e 2 (a criação desse patriarca). O autor bíblico recuou à criação, para recapitulá-la, antes de transmitir a genealogia, como fez, de resto, em todas as outras histórias que narrou.
É importante assinalar que, quase sempre, o que se entende ou deve entender como a mensagem de Deus, na Bíblia, coincide com a intenção redacional dos autores. De novo não é diferente no caso de Gênesis, cujo autor pretendeu transmitir as histórias que o livro contém, não os recuos usados para conectá-las. Ou alguém acredita que o recuo à época “em que o Senhor Deus fez a terra e os céus”, em Gênesis 2:4, significa que a história do Éden ocorreu nesse tempo? Só há duas maneiras de entender esse recuo: ou a época em que Deus “criou os céus e a terra” é a do primeiro versículo bíblico (Gn 1:1), ou ela indica o terceiro e o quarto dias da criação, quando os continentes (a terra) e os luzeiros (o céu) foram feitos. Em qualquer das duas hipóteses, estamos diante de um recuo cronológico, maior ou menor. E, em nenhum dos dois períodos, o Jardim do Éden existia. Isso mostra que o recuo de Gênesis 2:4 não deve ser interpretado literalmente, ou seja, que o Jardim do Éden não foi plantado por Deus no mesmo dia em que os céus e a terra foram criados. O mesmo ocorre com todos os outros recuos de Gênesis.
Darwin chocou o mundo ao mostrar que a humanidade não existe há seis mil anos, mas há dezenas de milhares. Da sua época a hoje, as evidências se acumularam no mesmo sentido. Tão longa demonstração não introduziu só uma nova visão da idade de Adão. Como o triunfo da História Bíblica, nos séculos III e IV, antecedeu a cristianização do mundo romano, a demolição do principal fundamento dela (a idade de Adão) desencadeou a descristianização do mundo ocidental. Cabe, porém, indagar: a Evolução realmente demoliu a mensagem histórica das genealogias?
A demolição só poderá ser considerada verdadeira, se o recuo for considerado falso, já que são absolutamente antitéticos. Se considerarmos Gênesis 5:1-2 um recuo com função conectiva, a genealogia de Adão não começará com a sua criação, e ele não terá 6.000 anos. Mas, se não reconhecermos a existência do recuo citado, Adão permanecerá com a sua clássica idade literal. Nesse caso, como sabemos, a fé só poderá ser exercida por uma teimosa obstinação contra fatos científicos sedimentados.
A interpretação literal desses versos é tão antiga quanto Gênesis. Até mesmo intérpretes atentos e sofisticados, como Agostinho, a adotaram, como se nota na passagem em que ele criticou aqueles que, "não reparando nas lacunas da Escritura, julgaram que Caim teve relação sexual com a mãe, nascendo assima prole ali mencionada. Pensaram que os filhos de Adão não tiveram irmãs, visto que a Escritura silencia aquela passagem, mas depois, recapitulando, apresenta o que omitira, dizendo que Adão gerou filhos e filhas (Gm 5,4).Mas não revela o tempo de seu nascimento nem o número nem seus nomes" (HIPONA, Agostinho de. A natureza e a graça. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007. p. 154).
Fora da tradição cristã, encontramos constestações das genealogias, como as de Celso (século II) e Porfírio (século III). Porém, o primeiro foi cabalmente refutado por Orígenes de Alexandria, e o último, por Eusébio de Cesareia. Com essas refutações, praticamente encerraram-se as discussões e até mesmo a crítica à verdade histórica da Bíblia, no século IV. O mundo romano inteiro aceitou o Cristianismo não só como religião, mas também como história.
Porém, nada impede refletirmos um pouco mais sobre a idade de Adão. Gênesis divide-se em várias seções iniciadas com as palavras “São estas as gerações de” ou “Esta é a história de”. Hoje, admite-se que tais seções derivam de tradições independentes, que o autor reuniu para compor o primeiro livro bíblico. As expressões citadas foram, simplesmente, a argamassa que ele utilizou para juntá-las.
As seções em que os onze primeiros capítulos de Gênesis se dividem quase sempre começam com um recuo cronológico. A título de exemplo, após o relato dos seis dias da criação, a Escritura afirma: “Havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera”. Em seguida, inicia-se a história do Éden, mediante um recuo ao “dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (Gn 2:4).
Semelhantemente, o capítulo 5 traz uma nova história: “Este é o livro das gerações [isto é, dos descendentes] de Adão”. E imediatamente recua até “o dia em que Deus criou o homem” (Gn 5:1). Não citarei os recuos seguintes a esses para não me tornar cansativo, porém é certo que as tradições dos primeiros capítulos de Gênesis foram coladas umas nas outras mediante a técnica do recuo cronológico ou recapitulação.
Assim entendidos, os cinco versículos que parecem afirmar a idade recente de Adão (Gn 5:1-5) começam com um recuo, como todos os que foram usados para grudar as seções de Gênesis 1 a 11 umas nas outras. Mas se é um recuo, a passagem em questão não afirma que o que se encontra nos versículos 3 a 32 (a genealogia de Adão) se inicia com o que está nos versos 1 e 2 (a criação desse patriarca). O autor bíblico recuou à criação, para recapitulá-la, antes de transmitir a genealogia, como fez, de resto, em todas as outras histórias que narrou.
É importante assinalar que, quase sempre, o que se entende ou deve entender como a mensagem de Deus, na Bíblia, coincide com a intenção redacional dos autores. De novo não é diferente no caso de Gênesis, cujo autor pretendeu transmitir as histórias que o livro contém, não os recuos usados para conectá-las. Ou alguém acredita que o recuo à época “em que o Senhor Deus fez a terra e os céus”, em Gênesis 2:4, significa que a história do Éden ocorreu nesse tempo? Só há duas maneiras de entender esse recuo: ou a época em que Deus “criou os céus e a terra” é a do primeiro versículo bíblico (Gn 1:1), ou ela indica o terceiro e o quarto dias da criação, quando os continentes (a terra) e os luzeiros (o céu) foram feitos. Em qualquer das duas hipóteses, estamos diante de um recuo cronológico, maior ou menor. E, em nenhum dos dois períodos, o Jardim do Éden existia. Isso mostra que o recuo de Gênesis 2:4 não deve ser interpretado literalmente, ou seja, que o Jardim do Éden não foi plantado por Deus no mesmo dia em que os céus e a terra foram criados. O mesmo ocorre com todos os outros recuos de Gênesis.
Darwin chocou o mundo ao mostrar que a humanidade não existe há seis mil anos, mas há dezenas de milhares. Da sua época a hoje, as evidências se acumularam no mesmo sentido. Tão longa demonstração não introduziu só uma nova visão da idade de Adão. Como o triunfo da História Bíblica, nos séculos III e IV, antecedeu a cristianização do mundo romano, a demolição do principal fundamento dela (a idade de Adão) desencadeou a descristianização do mundo ocidental. Cabe, porém, indagar: a Evolução realmente demoliu a mensagem histórica das genealogias?
A demolição só poderá ser considerada verdadeira, se o recuo for considerado falso, já que são absolutamente antitéticos. Se considerarmos Gênesis 5:1-2 um recuo com função conectiva, a genealogia de Adão não começará com a sua criação, e ele não terá 6.000 anos. Mas, se não reconhecermos a existência do recuo citado, Adão permanecerá com a sua clássica idade literal. Nesse caso, como sabemos, a fé só poderá ser exercida por uma teimosa obstinação contra fatos científicos sedimentados.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Evidence for Creation: Introduction
This post kicks off the series Evidence for Creation, which aims to show that the creation of the universe, the earth and man, as described in Genesis 1 and 2, has not been refuted by contemporary science.
In the third and fourth centuries, the patristic theologians Origen of Alexandria, Basil of Caesarea, Gregory of Nyssa, Ambrose and Augustine published several works on the Jewish idea of creation of the world by God. These texts were not only accepted, but established a new paradigm, a novel pattern of thought that went through the Middle Ages and Modernity, until the time of Charles Darwin.
Contrary to popular belief, Darwin did not demolish the patristic paradigm of creation, to establish the theory of evolution. On the contrary, in the classic The Origin of Species, he adopted this paradigm as a starting point for the presentation of his revolutionary theory. Here are two passages in which Darwin made this clear:
"I believe that animals have descended from at most four or five progenitors, and plants, from a number equal to or lower" (The Origin of Species. In Great Books of the Western world. Vol 49. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. p. 240-241).
In this passage, Darwin made all forms of life recede to less than ten prototypes or basic groups. The General Theory of Evolution that he created works from these groups, but few people realize how he explained their origin. In Darwin's own words:
"There is grandeur in this view of life, with its several powers, having been blown by the Creator into a few forms or into one. From so simple a beginning, as the planet continued to spin according to the fixed law of gravity, endless forms of beauty and wonder insurmountable evolved and continue to evolve to this day "(idem. p. 243).
Succinctly but clearly, The Origin of Species presents the evolution from five to ten prototypical groups of living beings created by God. This shows that Darwin did not reject the paradigm of creation, but adopted it as starting point of his theory. However, half a century after his death, the paradigm of creation was devastated, destroyed. Not destroyed in the religious sphere, in which it is accepted until today, but within the realm of that knowledge which is considered the most accurate about reality.
Who was responsible for this great transformation? What reasons can be evoked to justify or warrant it? The first question is not difficult to answer: the demolition of the patristic paradigm of creation was carried out by scientists who have treated of Evolution after Darwin. Of course, other thinkers like Nietzsche, Feuerbach, Marx and Freud emulated scientists in carrying out their task, which is why they came to be considered fathers of materialistic philosophies. However, the removal of creationist paradigms was not their work, but of the scientists who remade Darwin’s Theory of Evolution under the new name Synthetic Theory.
The second question above reappears, at this very point: what motives led the authors of the Synthetic Theory to reject the paradigm of creation? The main reason was the discovery of several mechanisms that explain precisely how certain pieces of ADN called genes are transformed and engender new species. Many of these mechanisms were given complicated names, such as replication errors, chemical and physical changes of ADN, adaptive and maladaptive changes in phenotype and increased mutation rate. Through them, the Special Theory of Evolution (on the emergence of new species) has been widely confirmed, but the General Theory (about the origin of major groups) was not. So much so that it had to be replaced by the Synthetic Theory.
The error that resulted in the elimination of the paradigm of creation occurred exactly in this transition from the General Theory of Evolution, developed by Darwin himself, to the Synthetic Theory of neo-Darwinists. Several issues contributed to the misunderstanding. The most important were: a) that the paradigm of creation was developed in theological language, and the Synthetic Theory in biological speech, b) the suspension of the exegesis of Genesis 1 and 2 at about the same stage where the patristic writers left it. I will address these issues in subsequent posts of the series Evidence for Creation.
In the third and fourth centuries, the patristic theologians Origen of Alexandria, Basil of Caesarea, Gregory of Nyssa, Ambrose and Augustine published several works on the Jewish idea of creation of the world by God. These texts were not only accepted, but established a new paradigm, a novel pattern of thought that went through the Middle Ages and Modernity, until the time of Charles Darwin.
Contrary to popular belief, Darwin did not demolish the patristic paradigm of creation, to establish the theory of evolution. On the contrary, in the classic The Origin of Species, he adopted this paradigm as a starting point for the presentation of his revolutionary theory. Here are two passages in which Darwin made this clear:
"I believe that animals have descended from at most four or five progenitors, and plants, from a number equal to or lower" (The Origin of Species. In Great Books of the Western world. Vol 49. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. p. 240-241).
In this passage, Darwin made all forms of life recede to less than ten prototypes or basic groups. The General Theory of Evolution that he created works from these groups, but few people realize how he explained their origin. In Darwin's own words:
"There is grandeur in this view of life, with its several powers, having been blown by the Creator into a few forms or into one. From so simple a beginning, as the planet continued to spin according to the fixed law of gravity, endless forms of beauty and wonder insurmountable evolved and continue to evolve to this day "(idem. p. 243).
Succinctly but clearly, The Origin of Species presents the evolution from five to ten prototypical groups of living beings created by God. This shows that Darwin did not reject the paradigm of creation, but adopted it as starting point of his theory. However, half a century after his death, the paradigm of creation was devastated, destroyed. Not destroyed in the religious sphere, in which it is accepted until today, but within the realm of that knowledge which is considered the most accurate about reality.
Who was responsible for this great transformation? What reasons can be evoked to justify or warrant it? The first question is not difficult to answer: the demolition of the patristic paradigm of creation was carried out by scientists who have treated of Evolution after Darwin. Of course, other thinkers like Nietzsche, Feuerbach, Marx and Freud emulated scientists in carrying out their task, which is why they came to be considered fathers of materialistic philosophies. However, the removal of creationist paradigms was not their work, but of the scientists who remade Darwin’s Theory of Evolution under the new name Synthetic Theory.
The second question above reappears, at this very point: what motives led the authors of the Synthetic Theory to reject the paradigm of creation? The main reason was the discovery of several mechanisms that explain precisely how certain pieces of ADN called genes are transformed and engender new species. Many of these mechanisms were given complicated names, such as replication errors, chemical and physical changes of ADN, adaptive and maladaptive changes in phenotype and increased mutation rate. Through them, the Special Theory of Evolution (on the emergence of new species) has been widely confirmed, but the General Theory (about the origin of major groups) was not. So much so that it had to be replaced by the Synthetic Theory.
The error that resulted in the elimination of the paradigm of creation occurred exactly in this transition from the General Theory of Evolution, developed by Darwin himself, to the Synthetic Theory of neo-Darwinists. Several issues contributed to the misunderstanding. The most important were: a) that the paradigm of creation was developed in theological language, and the Synthetic Theory in biological speech, b) the suspension of the exegesis of Genesis 1 and 2 at about the same stage where the patristic writers left it. I will address these issues in subsequent posts of the series Evidence for Creation.
Evidências da Criação (3): O Desafio de Darwin
Nos séculos III e IV, teólogos patrísticos como Orígenes de Alexandria, Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa, Ambrósio de Milão e Agostinho de Hipona publicaram uma série de obras, sobre a ideia judaica de criação do mundo por Deus. Esses textos não apenas foram aceitos como estabeleceram um novo paradigma, um modelo de pensamento inédito, que atravessou a Idade Média e a Modernidade, até a época de Charles Darwin.
O modelo patrístico surgiu sobre as cinzas da cosmovisão apresentada na primeira postagem desta série, que retratava o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas materiais às vezes denominadas pilares dos céus e da Terra. Essa cosmovisão, compartilhada por vários povos, foi tratada com crescente desconfiança, também em vários lugares do mundo. A Astronomia antiga lançou desafios a ela. A Filosofia grega também. E não foi diferente em Israel, cuja cosmologia se formou em reação à cosmovisão tradicional do Oriente Médio.
Ao contrário do que se costuma pensar, Darwin não demoliu o paradigma patrístico da criação, ao criar a Teoria da Evolução. Pelo contrário, no clássico A origem das espécies, ele adotou esse paradigma como ponto de partida para a apresentação de sua teoria revolucionária. Vejamos duas passagens em que Darwin deixou isso claro:
“Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior” (The origin of species. In Great books of the western world. Vol. 49. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. p. 240-241).
Claramente, Darwin fez todas as formas de vida que conhecemos retrocederem a menos de dez protótipos ou grupos fundamentais. A Teoria Geral da Evolução por ele criada funciona a partir desses grupos, porém poucas pessoas imaginam como ele explicou a sua origem. Nas palavras do próprio Darwin:
“Há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir” (idem. p. 243).
Eis como, de maneira sintética mas inequívoca, A origem das espécies apresenta a evolução, a partir de cinco a dez grupos prototípicos de seres vivos criados por Deus. Isso mostra que Darwin não rejeitou, antes adotou a criação como starting point da sua teoria. No entanto, meio século após sua morte, o paradigma da criação estava arrasado, destruído. Não destruído no âmbito religioso, no qual continua a ser aceito até hoje, mas no interior da ciência, ou seja, do conhecimento tido como o mais exato sobre a realidade.
Quem foi responsável por essa grande transformação? Que motivos a justificaram ou justificam? A primeira pergunta não é difícil de responder: a demolição do paradigma patrístico da criação foi levada a efeito pelos cientistas que trataram da Evolução depois de Darwin. É claro que outros pensadores emularam os cientistas na execução de sua tarefa, razão pela qual vieram a ser considerados pais de materialismos diversos, assim como Nietzsche, Feuerbach, Marx e Freud, porém a remoção do paradigma criacionista não foi obra deles e sim dos cientistas que relançaram a Teoria de Evolução de Darwin sob o novo nome de Teoria Sintética.
A segunda pergunta acima ressurge, naturalmente, nesse exato ponto: que motivos levaram os autores da Teoria Sintética a rejeitar o paradigma da criação? O motivo principal foi a descoberta de uma série de mecanismos naturais que explicam, com precisão, como certos pedaços do DNA denominados genes sofrem transformações, que originam espécies novas. Esses mecanismos receberam nomes complicados, assim como erros de duplicação, alterações químicas e físicas do DNA, mudanças adaptativas e desadaptativas no fenótipo e intensificação da taxa de mutação. Por meio deles, a Teoria Especial da Evolução (sobre o surgimento de novas espécies) foi amplamente confirmada, porém a Teoria Geral (sobre a origem de grupos maiores) não o foi. Tanto é que ela teve de ser substituída pela Teoria Sintética.
O erro que culminou na eliminação do paradigma da criação ocorreu exatamente nessa transição da Teoria Geral da Evolução, de autoria do próprio Darwin, para a Teoria Sintética dos neodarwinistas. Vários problemas contribuíram para o equívoco. Os mais importantes foram: a) o fato de o paradigma da criação funcionar em linguagem teológica, e o da Teoria Sintética, em linguagem biológica; b) a paralisação da exegese de Gênesis 1 e 2 no estágio em que os escritores patrísticos a deixaram. Tratarei desses problemas nas postagens seguintes da série Evidências da Criação.
O modelo patrístico surgiu sobre as cinzas da cosmovisão apresentada na primeira postagem desta série, que retratava o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas materiais às vezes denominadas pilares dos céus e da Terra. Essa cosmovisão, compartilhada por vários povos, foi tratada com crescente desconfiança, também em vários lugares do mundo. A Astronomia antiga lançou desafios a ela. A Filosofia grega também. E não foi diferente em Israel, cuja cosmologia se formou em reação à cosmovisão tradicional do Oriente Médio.
Ao contrário do que se costuma pensar, Darwin não demoliu o paradigma patrístico da criação, ao criar a Teoria da Evolução. Pelo contrário, no clássico A origem das espécies, ele adotou esse paradigma como ponto de partida para a apresentação de sua teoria revolucionária. Vejamos duas passagens em que Darwin deixou isso claro:
“Acredito que os animais descendem de, no máximo, quatro ou cinco progenitores, e as plantas, de um número igual ou inferior” (The origin of species. In Great books of the western world. Vol. 49. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. p. 240-241).
Claramente, Darwin fez todas as formas de vida que conhecemos retrocederem a menos de dez protótipos ou grupos fundamentais. A Teoria Geral da Evolução por ele criada funciona a partir desses grupos, porém poucas pessoas imaginam como ele explicou a sua origem. Nas palavras do próprio Darwin:
“Há grandiosidade nessa visão da vida, com os seus vários poderes, tendo sido soprada pelo Criador em umas poucas formas ou mesmo em uma só. A partir de um início tão simples, enquanto o planeta seguia girando segundo a lei fixa da gravidade, infinitas formas de beleza e de maravilha insuperáveis evoluíram e continuam até hoje a evoluir” (idem. p. 243).
Eis como, de maneira sintética mas inequívoca, A origem das espécies apresenta a evolução, a partir de cinco a dez grupos prototípicos de seres vivos criados por Deus. Isso mostra que Darwin não rejeitou, antes adotou a criação como starting point da sua teoria. No entanto, meio século após sua morte, o paradigma da criação estava arrasado, destruído. Não destruído no âmbito religioso, no qual continua a ser aceito até hoje, mas no interior da ciência, ou seja, do conhecimento tido como o mais exato sobre a realidade.
Quem foi responsável por essa grande transformação? Que motivos a justificaram ou justificam? A primeira pergunta não é difícil de responder: a demolição do paradigma patrístico da criação foi levada a efeito pelos cientistas que trataram da Evolução depois de Darwin. É claro que outros pensadores emularam os cientistas na execução de sua tarefa, razão pela qual vieram a ser considerados pais de materialismos diversos, assim como Nietzsche, Feuerbach, Marx e Freud, porém a remoção do paradigma criacionista não foi obra deles e sim dos cientistas que relançaram a Teoria de Evolução de Darwin sob o novo nome de Teoria Sintética.
A segunda pergunta acima ressurge, naturalmente, nesse exato ponto: que motivos levaram os autores da Teoria Sintética a rejeitar o paradigma da criação? O motivo principal foi a descoberta de uma série de mecanismos naturais que explicam, com precisão, como certos pedaços do DNA denominados genes sofrem transformações, que originam espécies novas. Esses mecanismos receberam nomes complicados, assim como erros de duplicação, alterações químicas e físicas do DNA, mudanças adaptativas e desadaptativas no fenótipo e intensificação da taxa de mutação. Por meio deles, a Teoria Especial da Evolução (sobre o surgimento de novas espécies) foi amplamente confirmada, porém a Teoria Geral (sobre a origem de grupos maiores) não o foi. Tanto é que ela teve de ser substituída pela Teoria Sintética.
O erro que culminou na eliminação do paradigma da criação ocorreu exatamente nessa transição da Teoria Geral da Evolução, de autoria do próprio Darwin, para a Teoria Sintética dos neodarwinistas. Vários problemas contribuíram para o equívoco. Os mais importantes foram: a) o fato de o paradigma da criação funcionar em linguagem teológica, e o da Teoria Sintética, em linguagem biológica; b) a paralisação da exegese de Gênesis 1 e 2 no estágio em que os escritores patrísticos a deixaram. Tratarei desses problemas nas postagens seguintes da série Evidências da Criação.
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Um Sonho de Comunhão (com notas explicativas)
SUMÁRIO: Capítulo 1: 1. Uma comunhão positiva. 2. A situação atual da restauração. Capítulo 2: 1. A comunhão dos apóstolos. 2. O crescimento extrínseco da igreja. 3. O aperfeiçoamento da unidade. 4. O sacerdócio integral dos santos. Capítulo 3: 1. Vida da igreja de casa em casa. 2. Visitas e contatos. 3. Produção descentralizada de escritos, músicas etc. 4. Ofício próprio. Posfácio.
CAPÍTULO 1
1. Uma comunhão positiva (1)
* Os números entre parênteses indicam as notas explicativas no final do texto (2)
Cão foi amaldiçoado por haver visto a nudez e embriaguez de seu pai com prazer, enquanto seus dois irmãos foram abençoados por a haverem coberto respeitosamente. Embora seja fora de dúvida que Noé, pai dos três, errara ao se entregar à bebedeira, Deus não se agradou do ato negativo de Cão, mas justificou a atitude de Sem e Jafé, porquanto esta edificou (3) e aquele apenas denegriu.
Toda economia de Deus é positiva. Se devemos rejeitar o mal, condená-lo e o odiar, não é porque Deus dispense atenção a ele. A única atenção, que o Ser puro e imaculado concede, é ao bem, jamais ao mal. O cuidado do mal, mencionado com tanta frequência na Bíblia, não é um envolvimento com ele e sim um bem, já que a condenação e a rejeição do mal são bens. Deus não atenta para o mal ao condená-lo, mas para o bem de o condenar.
Precisamos olhar cuidadosamente para esse ponto. Quando nos vemos diante de uma situação negativa a tratar, como não podemos negar ser o caso neste texto (4), necessitamos aprender a lição dos filhos de Noé. Diante de Deus, a atitude de Cão é execrável. Noé era uma autoridade tanto espiritual quanto natural para ele, como quem lhe comunicara a palavra de Deus e como seu pai. A autoridade é uma das coisas mais positivas e caras a Deus. De modo nenhum, Cão a deveria ter desconsiderado, ou tratado levianamente. Era-lhe possível não aprovar, nem pactuar com o erro de seu pai, sem arranhar a dignidade positiva, que este possuía diante de Deus.
O mal nunca é a preocupação de Deus, que não se ocupa dele, nem deseja que seu povo se ocupe. Por isso, a advertência discorre conosco: sede “sábios para o bem e símplices para o mal” (Rm 16:19). Se lidamos com o mal, é unicamente para o condenarmos e o rejeitarmos. Quão imensa desolação se abate sobre nós, quando as ameaças do mal, os problemas e terríveis opressões que ele introduz ocupam o nosso coração! A igreja é grandemente prejudicada por isso, por não compreender, nem praticar a lição de que Deus jamais perde tempo com o mal, mesmo quando lida com ele.
Por isso, se damos resposta azeda ao azedume de quem se nos opõe (5), é tão-somente com os olhos fitos na doçura do que isso representa. Assim como o sal misturado à laranja azeda torna-a mais doce, o repúdio ao mal é um bem. Não devemos, porém, ir longe demais nesses movimentos. Basta que a mentira não fique sem resposta, e boa resposta. No mais, a prática do bem pelo bem é o que nos incumbe desenvolver.
Polêmica e discussões muito acesas podem ser sustentadas por membros da igreja, mas não no interior dela (6). Enquanto puder produzir dividendos para o evangelho, a polêmica deve ser travada. Paulo o fez extensivamente nas sinagogas, nas praças e nos conselhos, com judeus, gregos, epicureus, estóicos, autoridades ou com quem se apresentasse perante ele. É muito comum o livro de Atos usar o verbo arrazoar para descrever a atividade de Paulo, na pregação aos não convertidos. Entre os convertidos, porém, Paulo rejeitava e proibia com todo rigor a polêmica (Tt 3:9; 1 Tm 1:3-4 ) (7).
A igreja tem a ver com fé, não com polêmica. Discussão é de nossas portas para fora (8), e ainda assim apenas quando possa produzir algum dividendo para o evangelho (9). Não devemos esquecer que a epístola geralmente considerada a mais profunda, entre os escritos paulinos, na qual nenhum problema ou situação negativa é mencionado, a Carta aos Efésios, foi dirigida a testemunhas de um dos mais intensos tiroteios de palavras e doutrinas daquele tempo (1 Tm 1:3-4). Ainda assim, Efésios não menciona esse antecedente. Ela se limita a derramar a sã doutrina, de modo resplandecente, sem críticas, sem ataques, sem insinuações, sem sequer mencionar o mal, deixando-nos entrever que é com a afirmação da verdade, não com pelejas ou repulsas, que se edifica a igreja.
Se nuvens negras sombreiam nosso horizonte e nos preocupam, é tão-só na medida em que sentimos poder extrair delas bens e edificação. Não nos ocupamos com esse negócio por outra razão. Não choramos pelos muros derrubados e as portas queimadas de Jerusalém, a não ser por amarmos as suas muralhas em pé e as suas portas no lugar. Nenhum proveito produz afirmarmos que algo é doce, enquanto outros afirmam que é amargo, repetir que é doce, enquanto repetem que é amargo. Nosso encargo é bem outro, é buscar objetivamente um resultado positivo para todos. O melhor, o único bem que podemos fazer aos irmãos é dispensar-lhes Cristo e nos esmerarmos por falar-lhes a palavra de Deus. Isso é realmente positivo, e desejamos com isso honrá-los neste opúsculo. Deixamos ao Diabo a tarefa de se ocupar com o mal. Não acreditamos que seja pela habilidade de criticar por criticar, de denegrir e destruir, que alguém deva ser reconhecido, mas por comprovar sua habilidade de acrescentar edificação nova aos ouvintes e à igreja de Deus, enquanto trata o que tem de tratar.
2. A situação atual da restauração
As nuvens que divisamos no horizonte como um mal e um perigo (10), na restauração do Senhor (11), deveras nos preocupam. Temo-nos calado longamente(12), porém perguntamos se o tempo de falar não é chegado. Segundo Eclesiastes, “há tempo de estar calado e há tempo de falar” (Ec 3:7). O tempo de falar não falha; vem inexoravelmente. Não creio que o reino milenar será esse tempo (13).
Quando se trata de uma necessidade clara de Deus (14), não devemos declarar: “Ainda não veio o tempo, o tempo em que a casa do Senhor deve ser edificada”, mas perguntar com toda a honestidade: “Acaso é tempo de habitarmos nós em casas apaineladas, enquanto esta casa permanece em ruínas?” (Ag 1:2,4) (15).
Creio que o tempo de falar é chegado e chegará ainda mais (16), se a situação que iremos descrever a seguir continuar (17). É hora de tocar a ferida (18) com grande esperança e cuidado, para contribuirmos, no que nos compete, para as correções necessárias, uma vez comprovado serem elas realmente necessárias.
Desde o início da busca de um novo caminho prático para a vida da igreja, na restauração do Senhor, em 1984, a hora de falar é chegada e tem chegado cada vez mais (19). O povo do Senhor tem clamado, há um anseio mais ou menos claro (20), no coração de muitos, e esse é um sinal de que o tempo da vantagem de Satanás (21)aproxima-se do fim. Êxodo 1 fala que uma pesada opressão foi colocada sobre os filhos de Israel no Egito, mas cala totalmente que eles tenham levantado clamor ao Senhor dos exércitos. Apenas no final do capítulo 2, esse clamor é produzido (Êx 2:23-25). Quando isso ocorre, Deus levanta Moisés, imediatamente, para pôr fim à opressão. Portanto, o clamor do povo de Deus é o sinal de que a opressão está por encerrar-se.
Por mais que Moisés deva passar quarenta anos no deserto, para que seu zelo natural termine e o zelo de Deus possa consumi-lo, o clamor de Israel não pode ser desconsiderado. Quando ele se ergue aos céus, a vantagem de Satanás está terminada e a hora da libertação é chegada. Esse clamor já existe hoje.
É claro que nem todos os assuntos amadurecem ao mesmo tempo. Porém, várias questões latentes desde 1984 amadureceram o bastante para serem tratadas. Algumas já vieram à baila; outras não têm cessado de amadurecer para virem a ser tratadas. Creio que, se o tempo de umas já chegou, o das outras não pode estar longe (22). Cada passo que é dado com sabedoria e sem precipitação, no sentido de torná-las conhecidas, ainda que primeiramente de um círculo menor de pessoas (23), é sinal de que o tempo é chegado, em parte, e está por chegar, por outra parte. Incumbe-nos tratar positivamente dessas questões.
A restauração do Senhor, por que temos estado empenhados, não ocorre de uma vez por todas. Lutero anunciou com clareza estarrecedora, para a época, que a fase de centralização papal da igreja corresponde a um cativeiro babilônico dela (24). De fato, a história do Velho Testamento é um retrato geral do que tem de acontecer com a igreja cristã na nova aliança, na medida em que as coisas antigas são sombras da realidade atual.
Ao cativeiro papal da igreja, deve seguir-se a restauração dela, do modo como ao cativeiro de Judá seguiu-se o retorno dos exilados, a reconstrução do templo, dos muros, da cidade santa e de todo o país. Nesses poucos itens principais consistiu quase toda a restauração do povo outrora levado cativo.
A história do Velho Testamento nos mostra que a restauração não se dá de uma vez. Primeiro, Ciro publicou seu decreto e ocorreu o retorno gradual dos exilados, depois o templo começou a ser construído, a reedificação foi interrompida por dificuldades circunstantes, foi retomada e concluída, os muros de Jerusalém foram reerguidos, e o esplendor, devolvido à capital de Judá.
As setenta semanas de Daniel dividem-se em duas seções até o Cristo (sete mais sessenta e duas semanas), porque as primeiras sete cobrem um período completo da restauração. Daniel meditava sobre a restauração, quando lhe foi transmitida a profecia (Dn 9:2-3). Por isso, a reedificação das praças (a cidade) e das circunvalações (os muros) de Jerusalém é mencionada explicitamente, quando da explicação das duas seções de semanas (Dn 9:25). Elas integram o período inicial da restauração,nas primeiras sete semanas (25).
Isso indica que a restauração da igreja deve ocorrer por fases, não de uma vez. Muitos anos após o fim do cativeiro, o retorno dos exilados e a reconstrução básica do templo, Neemias chorou ao saber a situação de Jerusalém, e não foi de alegria (Ne 1:3). A própria restauração do templo demandou várias etapas. Interrompida por dificuldades circunstantes, ela foi retomada, sob a pregação de Ageu e Zacarias, anos depois. Nos dias de Neemias a construção do templo ainda recebia seus toques finais. Portanto, tudo se deu por etapas.
A restauração da igreja deve seguir esse exemplo. Ela não se completou com a Reforma (26). As denominações protestantes precisam deixar seu orgulho e reconhecer que não realizaram senão uma parte menor dela (27). Ninguém chegou ao fim ou ao ápice. É provável (28) que nós, na restauração do Senhor, tenhamos chegado a uma etapa mais avançada da restauração (29), porém ainda resta caminho considerável a trilhar (30). Não nos devemos impressionar demasiadamente com o que já foi restaurado, entre nós, sem perceber o que há para ser restaurado (31).
A igreja de Deus precisa ser cabalmente restaurada. Por isso, o que ainda resta recobrar nela deve tomar o lugar do nosso interesse pessoal,como o texto de Ageu menciona. Não nos aventuraremos na interpretação de detalhes do quadro tipológico da restauração do povo de Deus no Velho Testamento, mas cremos que não é muito chamar a atenção para a particularidade de que, entre as últimas coisas a serem restauradas na igreja, está a pluralidade no interior da unidade. Assim como o restante da cidade de Jerusalém e o país de Judá como um todo foram restaurados muito depois do templo e dos muros, as várias formas de expressão da vida da igreja (32) ainda estão por ser restauradas.
Um dos passos finais, na restauração da igreja cristã, é o aprofundamento da diversidade no interior da unidade, sem prejuízo desta. Se somos pelo Senhor e a restauração de sua igreja (33), devemos ser também por este ponto. Ou será que não cremos nas indicações da Sua palavra? Não estou a afirmar que a pluralidade no interior da unidade seja a única coisa implicada na restauração final da igreja, mas que ela está incluída ali.
A restauração da igreja, após o seu cativeiro babilônico, dá-se gradualmente. Ela é um processo, como toda obra de Deus. Que obra Deus completou de uma vez e por um único instrumento humano, sem que o bastão tivesse sido passado(34)? Abraão recebeu a ordem de ir para a terra de Canaã, mas apenas a sua posteridade a possuiu; Moisés tirou o povo do Egito, mas Josué o introduziu na boa terra; Davi conquistou o mais amplo território e formou o mais forte Estado hebreu da Antiguidade, porém o apogeu e o templo vieram com Salomão; Isaías e Jeremias se sucederam para completar a mensagem ao povo antes do exílio; Ezequiel e Daniel durante o exílio; Ageu, Zacarias e Malaquias depois; João preparou o caminho que Cristo trilhou, e até mesmo este, embora fosse o Filho, precisou não só da preparação de João, mas também dos apóstolos que o sucederam. Deus se apraz nessa sucessão, nessa expressão da unidade dos Seus servos. Uns ceifam onde não semearam; outros trabalham, e seus sucessores entram no seu trabalho (Jo 4:38).
Não é diferente com a restauração da igreja, que não foi completada por Martinho Lutero (35) ou quaisquer outros cristãos. Ela não está acabada ou a aguardar os retoques finais, antes da volta do glorioso Rei. Há uma obra considerável e substancial a ser realizada. Não que a volta de Cristo esteja distante. O Espírito de Deus pode realizar prodígios, em pouquíssimo tempo, para abreviá-la. Porém, ainda resta uma restauração substancial por realizar-se.
Onde está o sal puro, que preserva a terra e impacta o século com a sua pregação(36)? A influência do Cristianismo degradado (37) não realiza essa imagem. Só o testemunho da igreja restaurada o faz. Onde está a prática plena do sacerdócio universal e o fim do clericalismo? Onde a unidade acrisolada como ouro, numa diversidade interna fortíssima? Onde a expressão não institucional dessas realidades? Mencionarei quatro colunas necessárias, no momento atual da restauração e que compreendem algo do que, no meu entender (38), ainda falta à plena restauração da igreja. As colunas respondem as quatro perguntas acima.
Além das coisas que nunca foram restauradas e conservadas no seu novo estado, há ainda outros males que escurecem o horizonte, em algumas partes do nosso território. Resumo-os em quatro coisas: tendências à centralização universal da obra ou, ao menos, de aspectos dela, riscos de institucionalização excessiva, restrições sistemáticas à comunhão e tendências de esfriamento espiritual. Não estou apto a tratar dessas coisas do ponto de vista da autoridade oficial, nem possuo informação suficiente sobre as igrejas na restauração, para o afirmar de modo muito amplo. Valho-me de observações do nosso irmão Lee e do testemunho da palavra de Deus sobre o assunto, lembrando que todo cristão possui o direito, quando não o dever, de dizer o que julga necessário para não pecar por omissão.
Por outro lado, como disse Philip Jacob Spener, no corpo a dor, a infecção ou a febre de um membro são sinais indicativos do estado de todo o organismo, assim como o remédio administrado a um membro restaura a saúde de todo o corpo. Portanto, mesmo o que observo pessoalmente deve ser o sinal de problemas muito maiores.
Não é preciso explicar melhor cada aspecto das nuvens negras mencionadas. Não é necessário lambuzar as mãos e o corpo com a sujeira; basta indicá-la claramente. Tampouco é preciso apressar o tratamento dos males. Pelo contrário, é preciso deixar que cada semente germine, cresça e dê fruto. Estamos em plena fase de crescimento, quando já é possível discernir a espécie da planta, ou talvez nos primeiros frutos. Somente quando os frutos se tornarem amplamente conhecidos de todos, as coisas se revelarão de modo cristalino e geral. Nossa esperança é de que os frutos das más sementes possam vir a ser compensados pelo arrependimento (39).
Sei por experiência pessoal que discussões de princípios (40) são de pouca utilidade na igreja, de modo que, ao conteúdo das ponderações deste texto, espero ver um dia somada a prática delas, para que, por frutos reais e não apenas princípios , possamos contribuir para uma comunhão mais plena e o avanço da restauração.
Não há qualquer intenção ou germe faccioso, que eu saiba, em se desejar isso. Pelo contrário, se alguém discerne os acontecimentos, deve compreender que o meu objetivo e o dos que veem as coisas de maneira semelhante é promover a unidade e a comunhão. Temos um assunto de comunhão a tratar com os irmãos que estão à frente entre nós e com os santos de maneira geral. Sabemos em quem temos crido e que o Senhor é poderoso para nô-lo conceder.
Não propomos algo particular, individual ou restrito. Propomos uma vida da igreja integral. Nada além disso e nada menos do que isso. Para ser ainda mais claro: não buscamos algo com ênfase intelectual, como a pregação do evangelho nas Universidades. O centro da obra de Deus é a igreja; portanto, é a vida da igreja integral que almejamos.
Daí o título do presente opúsculo: um sonho de comunhão. Tenho um sonho e espero a sua realização no Senhor. Busco a comunhão no sentido mais prático de intercâmbio de sentimentos e revelações, em prol da restauração do Senhor. Oro para que Deus torne possível conversarmos um dia, sobre o conteúdo destas páginas, mais o que o Espírito Santo queira acrescentar, menos o que Ele queira retirar (41), com o fito de novos avanços na restauração que é do Senhor e de ninguém mais.
Infelizmente, do modo como as coisas vão, só é possível conversar e ter esperança de correção, sobre frutos bastante clamorosos (42). A força e o trunfo estão na prática. Que Deus nos abençoe e abra o caminho para a necessária prática destes princípios.
CAPÍTULO 2
A partir de 1984, o irmão Witness Lee passou a falar da necessidade do que denominou um novo caminho na restauração da igreja. Não de um novo caminho referente à verdade ou à experiência interior de Cristo, pois essas coisas são por natureza imutáveis na restauração, mas de um novo caminho concernente à prática concreta da vida da igreja. Desde então, Lee tem exposto como essa prática sofreu certo envelhecimento espiritual e estagnação, ao menos nas igrejas mais antigas.
Diante disso (43), nosso encargo é apresentar quatro colunas que a obra de restauração reclama. Já não é possível seguirmos da maneira prática que adotamos, em dias passados, com uma alteração aqui, outra ali. Chegamos a um ponto crítico, em que ou mudamos radicalmente, ou nos degradamos (44). Reitero que a radical mudança necessária não é nas grandes verdades bíblicas ou na experiência de vida interior com Deus, mas na prática concreta da vida da igreja.
Obviamente, não é possível descer aos detalhes de uma programação prática para o novo caminho. Se o fizéssemos, estaríamos a suprimir a necessidade e o próprio trabalho do Espírito Santo. O que se faz necessário é procurarmos juntos as diretrizes principais, repito: principais e não secundárias da obra da restauração do ponto atual em diante. Precisamos vislumbrar claramente o rumo geral a ser seguido e não desenhar um mapa com todos os acidentes do percurso futuro. Para isso, portanto, para buscar o rumo da obra da restauração avançada de Deus, é que passarei a discorrer sobre as quatro colunas.
1. A comunhão dos apóstolos (45)
Os grandes pontos da fé cristã referentes à verdade e à vida não são passíveis de alteração. Pelo contrário, conservá-los e obter novos progressos no conhecimento deles deve ser sempre o nosso primeiro e maior encargo. Quando falamos das quatro colunas da restauração avançada da igreja, a preservação desses pontos e o progresso no seu conhecimento aparecem logo como a primeira e principal coluna. Qualquer retrocesso, nesse terreno, importa o perigo de desnaturação da experiência cristã e um tipo de degradação.
De modo nenhum, devemos negociar nesse campo. A comunhão dos apóstolos, na qual estão incluídas todas as riquezas de verdade e de vida que possuímos, é normativa na igreja. Ela é a regra que estabelece o que deve ser considerado cristão. Por isso, a primeira coluna da restauração avançada consiste em preservar e progredir no conhecimento da inestimável herança que recebemos dos primeiros apóstolos.
A comunhão dos apóstolos não envolve apenas ensinamentos objetivos, mas também experiências subjetivas. Toda a experiência do Cristo subjetivo é um tipo de comunhão, um ir e vir constante, um relacionamento com Deus. Assim como toda a vida da igreja é um relacionamento com Deus e os homens, um ir e vir de sentimentos, revelações, desfrute, consolação, admoestação etc.
Comunhão é um trânsito ou fluir (46). No momento em que esse fluir para, perde-se a comunhão. Quando o ir e vir encontra barreiras, algo se instala sorrateiramente em lugar da comunhão. Outro tipo de relacionamento aparece, que não é mais a comunhão ou ao menos não a “comunhão dos apóstolos”. Esta é a comunhão sem obstáculos, que se estabelece uma vez respeitadas as bases de fé mencionadas antes. De modo que qualquer relacionamento com obstáculos tem algo diferente dessa comunhão.
Para frutificarem, as verdades e experiências que recebemos de Deus devem produzir a comunhão com Deus e com os outros homens. Atos 2:42 nos ensina que o resultado final da herança que recebemos dos apóstolos é essa comunhão, esse ir e vir sem barreiras com Deus e com os homens.
Que nada nos leve a perder seja a direção do verdadeiro ensinamento bíblico, seja o ir e vir sem barreiras que dele resulta. Tenho arrepios quando percebo barreiras reticentes, quase costumeiras,a se erguerem no meio do nosso ir e vir (47). Deus nos livre desse mal.
2. O crescimento extrínseco da igreja
O novo caminho (48) poderá vir a constituir uma etapa inteiramente nova de restauração da igreja. Depois das etapas dos reformadores, dos primeiros herdeiros da Reforma, da restauração original com os Irmãos Unidos na Inglaterra, da retomada da restauração na China e da difusão dela pelos sete continentes (49), os fatos indicam que estamos no início de um novo período da restauração da igreja.
Desde que a restauração da unidade perdida com a opressão católica (50) e as divisões protestantes (51) passou a ser um objetivo prioritário, na época dos Irmãos Unidos,o crescimento extrínseco (numérico) da igreja foi cada vez menos enfatizado. Não que a pregação do evangelho tenha deixado de se desenvolver, nos períodos em que a restauração da unidade se tornou a palavra de ordem, porém a ênfase dessas etapas foi na situação interna da igreja. Muitíssimo se adiantou, assim, o desenvolvimento intrínseco da vida da igreja, enquanto o seu crescimento extrínseco (entenda-se a expansão numérica) foi por assim dizer reduzido.
A restauração completa da igreja, porém, inclui os dois aspectos: tanto o crescimento da vida interior quanto a multiplicação exterior. Para que Cristo possa voltar, é necessário que o evangelho do reino (com ênfase coletiva) seja pregado a toda nação (Mt 42:14). Do contrário, por mais que cresçamos interiormente em vida, o propósito divino não será alcançado.
Essa expansão específica (da igreja após a restauração da unidade) está relacionada à administração das eras por Deus e à segunda vinda de Cristo. Quem pode negar a importância dela? A finalização da economia de Deus, na presente era, pressupõe a expansão mundial das boas-novas, na base na oração sacerdotal de Jesus em João 17 (“a fim de que sejam um e o mundo creia que tu me enviaste”) (52).
Esse é o crescimento extrínseco da igreja, que deve contrabalançar o notável crescimento intrínseco experimentado onde a unidade cristã encontrou terreno fértil. A restauração completa inclui a recuperação do impacto da sua pregação, a partir da experiência de uma genuína unidade. Na época dos apóstolos, a igreja possuía sumo impacto: a pregação de Pedro e de Paulo ganhava multidões, sem recorrer a artifícios (At 2:41,47; 4:4,32; 5:13-14; 13:44; 14:18; 17:4,6; 21:20). Representantes de todas as camadas sociais, desde pessoas de alta posição (53) até as classes humildes, engrossavam o cortejo do evangelho. Hoje, porém, a pregação baseada numa vida da igreja mais pura (não excessivamente institucional), está reduzida a um impacto bastante diminuto.
Compare-se o efeito da obra primitiva da Reforma, que conquistou nações inteiras e derreteu o coração de reis, com a bem menos difundida obra inicial dos Irmãos Unidos, na Inglaterra, ou com a restauração entre as Igrejas Locais no período áureo. A sensação que nos invade, ao realizar as comparações, é de que a restauração perdeu impacto extrínseco.
Por isso, é necessária a recuperação do impacto que exprime a natureza dinâmica da igreja e do evangelho. Não se trata de uma grandiosidade desvirtuada, como a do Catolicismo Romano, que acrescentou elementos mundanos e até idólatras ao evangelho. Trata-se de mostrar ao mundo que, sem se desnaturar, a igreja é algo tremendamente dinâmico.
É um fato que a diminuição do crescimento extrínseco da igreja está em razão direta do avanço do naturalismo no mundo. Naturalismo é a noção de que as coisas e os fatos são suficientemente explicados por causas naturais e não sobrenaturais. A história da piedade, no mundo, é resumida na experiência do seu patriarca: “Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gn 15:6); no entanto, a fé tem enfraquecido, onde o naturalismo avança. Nem sempre, ideias materialistas substituíram diretamente o evangelho, porém elas expediram a licença para que a tendência natural da carne afastasse as pessoas de Cristo.
Esse fato tão óbvio não demanda ulteriores explicações. O naturalismo e o materialismo tornaram-se os maiores inimigos do crescimento extrínseco da igreja. Trata-se de duas ou de uma mesma heresia (54) básica que, espantosamente, suscita pouca resposta no meio cristão hoje em dia. Nosso (55) estarrecedor silêncio indica que nos acostumamos com o mal ou não sabemos como o refutar. Lutero declarou que heresias devem ser combatidas com escritos, mas a triste verdade é: que escritos cristãos têm-se erguido à altura do naturalismo para desbancá-lo? Que espada tem sido sacada para o combater? O espantoso silêncio dos cristãos é a prova da sua derrota, do seu recuo, da sua incapacidade de reagir à onda naturalista. Finjimos que não ligamos, quando no fundo, ah, como ligamos!
É claro que a alienação é um modo de seguir adiante. Porém, é um modo satisfatório? Que cristãos de outras eras recuaram, tão completamente, diante de um mal, quando seus efeitos se erguiam aos céus? Em que outra época os piedosos, chamados coluna e baluarte da verdade (1 Tm 3:15), calaram-se e se omitiram tanto?
Nem tomo em consideração a reação muito tímida e indouta, que se encontra aqui e ali, na literatura evangélica contra o naturalismo. Sua incompetência é o atestado de seu fracasso. Contra ela discorre ela mesma. Seu discurso é uma sentença condenatória. O naturalismo acusa os golpes que lhe são desferidos, com ares titânicos, no mundo evangélico, como doloridas picadas de joaninha. Enquanto isso, o estrago aprofunda-se: é incalculável o número de cristãos que deixaram de crer ou passaram a crer na Bíblia com reservas, por causa do naturalismo, que assume nomes pomposos como modernismo, ao ingressar e fazer escola na seara teológica; e o número de vocações que se perdem para a causa de Cristo não é menor.
Não devemos ficar excessivamente preocupados com cada nova heresia que surge, nos supermercados e shopping centers da fé, porém esta heresia é especial: ela frustra o avanço do evangelho, retira-lhe a escala que o seu progresso deve ostentar. A restauração do crescimento extrínseco, a segunda coluna a que nos referimos, terá de tratar desses problemas, se tiver de se efetuar. Ela terá de combater a heresia do naturalismo e removê-la do caminho. Para Cristo reinar, para ele vir sobre o cavalo branco, no fim dos tempos, o naturalismo terá de deixar de reinar.
Em História da graça (56), ocupo-me deste assunto. Trata-se de um texto escrito contra o naturalismo, mas que tem por característica apresentar as Escrituras de maneira assimilável pelos que professam aquela doutrina. Só oferecendo algo superior às pessoas, podemos levá-las a abandonar o que é inferior. Afinal, se não somos capazes de demonstrar claramente a superioridade dos nossos pontos de vista, como podemos continuar a afirmar que nos assiste razão?
O naturalismo deve ser combatido pela igreja como heresia que é, não como ciência ou filosofia. A igreja não se preocupa com as coisas profundas do mundo enquanto sistema autônomo. O campo em que lhe cabe combater o naturalismo é o da teologia. No terreno teológico é que o combate ao naturalismo deve ser travado pela igreja cristã.
Creio que a revelação de que mais carecemos hoje não é de algum ponto fundamental da verdade ou da fé, mas do modo prático de prover testemunho dos valores cristãos,num mundo cujas estruturas foram profundamente transformadas. A necessidade maior do nosso tempo é prática, não abstrata. É hora de vislumbrarmos o caminho para essa meta e de o cruzarmos intrepidamente.
As quatro colunas da obra avançada da restauração, que aqui apresentamos, constituem um resumo do caminho prático mencionado acima. Resumo não se confunde com desenvolvimento exaustivo. Não passa de apresentação geral, com a indicação de direções a seguir. Para mais detalhes a respeito de pontos específicos aqui mencionados, devo remeter os interessados à História da graça e outras obras em que trato deles, assim como um recente opúsculo sobre a unidade da igreja (57).
3. O aperfeiçoamento da unidade
A terceira coluna da restauração é o aperfeiçoamento da unidade cristã. Desde os Irmãos Unidos, uma posição foi tomada por cristãos preocupados com a unidade da igreja. Os Irmãos tornaram-se conhecidos por terem deixado de se reunir nas igrejas oficiais de sua época, vale dizer, na Igreja Anglicana e nas denominações protestantes (58). Nesse campo, eles deram um passo adicional ao dos reformadores, que haviam abandonado a Igreja Católica.A preocupação fundamental dos Irmãos foi com a unidade da igreja, na base única e exclusiva do amor fraternal, independentemente de opiniões em questões secundárias de fé.
É verdade que os Irmãos também se envolveram em sérios problemas de divisão. Parece que eles não conseguiram manter o rol de doutrinas essenciais suficientemente enxuto para receber os que creem em Cristo sem dificuldades. Então, uma nova obra do Espírito de Deus, em prol da unidade, foi erguida na China. Na década de 30 deste século (59), Watchman Nee e os cristãos a ele associados passaram a utilizar o princípio uma cidade - uma igreja para promover a unidade entre os cristãos. Assim como no tempos dos primeiros apóstolos não havia Igrejas Presbiterianas, Batistas, Pentecostais, Episcopais etc., mas apenas a igreja em Jerusalém (uma cidade), em Éfeso (idem), em Corinto (idem), os cristãos atuais devem viver em unidade no interior das cidades (60).
Essa sucessão de acontecimentos mostra os avanços alcançados na restauração da unidade cristã. Em João 17:23, Jesus orou para que Seus discípulos de então e de todas as eras fossem “aperfeiçoados na unidade”. Alguém só pode se aperfeiçoar no que ainda não é perfeito. A unidade cristã não foi conquistada de uma vez por todas, mas deve ser fruto de um progressivo aperfeiçoamento. A História da Igreja tornou evidente que esse aperfeiçoamento continua até o dia de hoje.
Infelizmente, muitas outras coisas têm sido aperfeiçoadas no meio cristão, em lugar da unidade. A tradição, formas exteriores como o batismo, a pregação em lugares fechados e abertos têm todas sido aperfeiçoadas. A unidade pela qual Cristo orou é a que mais permanece carente de aperfeiçoamento. Devemo-nos conscientizar de que novos passos precisam ser dados nessa experiência. No texto A unidade da igreja, tratamos detidamente desse assunto. Mostramos particularmente que a genuína unidade surge no seio de uma grande variedade de entendimentos, interpretações, ministérios, obras, linhas de atuação e tudo o que possa ser positivo.
A própria natureza nos ensina que a multiplicação depende do pluralismo. O frio e o ressecamento do inverno costumam brotar de frentes localizadas de ar polar. Porém, o florescimento da primavera é totalmente descentralizado. Se uma necessidade do nosso tempo é a expansão e multiplicação, certamente precisamos de uma primavera, de um aprofundamento da pluralidade no interior da unidade.
A diversidade de que precisamos, por certo, é muito maior que a que praticamos. E por incrível que possa parecer, há entre nós tendências a aumentar ainda mais a centralização da obra. Claro que essas tendências só poderão produzir resultados funestos e perigosos (61). Por isso, creio que a necessidade de avanço da unidade entre nós está mais no aprofundamento da diversidade do que da centralização. Não me refiro à diversidade do Protestantismo oficial, que não raro esmiúça a unidade, ou à diversidade de Babilônia, mas à diversidade compatível com a unidade, à diversidade de Jerusalém e Judá, que é um verdadeiro crisol para a unidade. Nessa unidade nutrida por forte diversidade, a comunhão anula as distâncias físicas e espirituais entre os homens.
4. O sacerdócio integral dos santos
Por fim, a quarta coluna da obra avançada da restauração é a prática do sacerdócio universal e integral dos santos, com a abolição dos costumes de autoridade ostensiva na igreja. Martinho Lutero pregou o retorno à prática do sacerdócio universal, no século XVI. Para ele, esse sacerdócio significava que todos os cristãos são iguais diante de Deus, sem diferenciação de classes ou ordens. Porém, a visão de Lutero e dos outros reformadores, a esse respeito, encontrou cerrada oposição. Ela foi traída, na maior parte do meio cristão, e só avançou, entre muitas dificuldades, por meio de remanescentes que a aprofundaram.
Só na época dos Irmãos Unidos, as práticas clericais foram abolidas. Mesmo assim, a prática do sacerdócio universal, entre os Irmãos, limitou-se ao oferecimento de igual oportunidade para os cristãos ministrarem a palavra de Deus e experimentarem os meios da graça (práticas espirituais). Entraves ao desenvolvimento de outros aspectos do sacerdócio continuaram a existir.
A nova situação gerada, a partir dos Irmãos Unidos, pode ser resumida na afirmação de que o sacerdócio universal passou a ser experimentado, porém não o integral. Sacerdócio universal é aquele em que cada cristão é um ministro, portanto exerce o seu ministério em alguma medida. Sacerdócio integral é aquele no qual cada um exerce o seu ministério sem entraves e de maneira plena.
É possível se ter o sacerdócio universal e não o integral. Essa foi a situação prática implantada pelos Irmãos Unidos e é também a situação no nosso meio. No entanto, esse estado do sacerdócio cristão não cumpre plenamente a revelação do Novo Testamento. Para que isso ocorra, é preciso que cada cristão seja preparado para exercer o sacerdócio como pai de família, mãe, profissional, compositor musical, escritor, estudante e assim por diante. Cada crente deve ter ampla liberdade e ser aperfeiçoado para exercer ao máximo esses aspectos do sacerdócio. Essa é a visão que nos deve animar.
A igreja é edificada pela função de todos os membros, não de uns poucos. Porém, entenda-se: pelo pleno funcionamento de cada membro. O Senhor afirmou, em Mateus 16:18, que Ele mesmo edificaria a Sua igreja, mas Efésios 4:12,16 indicam claramente que a igreja edifica a si mesma. Por isso também, Paulo disse que quem profetiza “edifica” a igreja e que, nas reuniões públicas, tudo deve ser realizado para edificação (1 Co 14:4,26).
Profissionais contratados podem ser úteis para uma série de objetivos. Não, porém, para se alcançar a prática do sacerdócio neotestamentário. A solução mundana do pastor contratado ou do padre mantido pela instituição religiosa tende a dificultar ou impedir o desenvolvimento das habilidades dos membros, portanto a frustrar a edificação da igreja, “pela justa cooperação de cada parte” (Ef 4:16).
O clericalismo (62) se opõe à doutrina bíblica do sacerdócio universal. Porém, nem sempre ele assume a forma de uma hierarquia como a católica ou de uma tirania visível. Às vezes, as práticas clericais são muito mais variadas e sutis. O grau máximo de sutileza ocorre quando as classes se estabelecem sem a formalização de papeis: sem a nomeação de líderes, a criação de cargos ou a atribuição de nomes a eles. Isso tende a produzir um sistema clerical sem pastores ou padres. Infelizmente, tal forma de clericalismo estabeleceu-se no nosso meio.
Sempre que a autoridade é exercida de modo notório, pelos líderes da igreja, os demais membros deixam de exercitar determinadas funções. É claro que, às vezes, isso é necessário. Porém, quando se torna um hábito, o sacerdócio universal é prejudicado, já que o hábito oposto (de não atuar) é contraído pela maioria dos crentes. Por mais que não se tenha essa intenção, todas as vezes em que se golpeia o prego com o martelo, ele entra mais na parede, mais encravado fica e mais difícil se torna retirá-lo dali. Essa é uma lei, que a boa vontade não pode aplacar.
Autoridade notória ou ostensiva não é o mesmo que dominação. Porém, ainda mais do que esta, ela costuma produzir passividade nos liderados.Quanto mais essa autoridade é exercida, mais as pessoas retraem-se. O prego entra mais na parede. Isso é inevitável, em qualquer congregação. Quando o fato se torna habitual, ainda que num contexto informal, nada mais falta para se atingir a realidade clerical.
Os hábitos de autoridade ostensiva não foram de modo algum extirpados das igrejas (63). Pelo contrário, eles estão fortemente impressos no clericalismo informal instalado entre nós. É claro que não posso estender essa afirmação a toda a Restauração. Limito minhas afirmações, neste ponto, às áreas que tenho observado diretamente. Não há como negar que hábitos de autoridade ostensiva estão bastante arraigados nessas áreas.
Não deve ser assim, no Corpo de Cristo. Paulo empregou a figura de um organismo para representar a igreja, nas suas epístolas. Num organismo, não se percebe o exercício da autoridade. Quando alguém compartilha o seu sentimento com os outros, numa reunião, não dizemos que a sua boca disse isso ou aquilo, mas que a pessoa o disse. O que se expressa não é a liderança de um membro, mas o corpo. Embora a boca tenha assumido a liderança ao falar, ela o fez sem ostensividade, de modo que o corpo expressou-se.
No corpo de Cristo, apenas a cabeça tem posição de destaque. Só ela está posta acima dos outros membros. Não raro, estes são dispostos em pares, para que nenhum receba destaque. De modo que há liderança entre os membros do corpo, mas liderança oculta e não ostensiva.
A eliminação do clericalismo informal envolve a abolição dos hábitos de autoridade ostensiva. É claro que o gradualismo é sempre recomendável, no tratamento de um mal tão inveterado. Toda obra de Deus, tem um lado divino e outro humano. Este último pede a implantação gradual de mudanças, para não se comprometer a coesão das pessoas. Não convém despejarmos o vinho novo em odres velhos, aos gritos de aleluia, sob pena de ambos se perderem (64). Melhor é buscarmos odres novos, onde preservar o vinho novo que o Senhor nos tem dado. Portanto, não basta atentarmos para o vinho; precisamos atentar também para os odres.
Essas quatro colunas devem ser erguidas,em conformidade com o princípio da comunhão, nunca de modo individualista. Para ter alguma força, a obra cristã deve ser coletiva. Precisamos do perguntar e responder, do ir e vir de sentimentos e da cooperação de muitas partes, não de umas poucas, para atingirmos nossos fins comuns. Confiemos isso ao Senhor e à Sua misericórdia.
CAPÍTULO 3
No primeiro capítulo, apresentamos a situação da restauração da igreja; no segundo, propusemos o remédio para alguns dos seus males; no terceiro, pretendemos discutir a maneira como o remédio deve ser administrado, segundo a nossa percepção pessoal e limitada das coisas. Nada temos de especial a alegar, para embasar nossas ponderações, mas ousamos apresentá-las com base no princípio de que todo cristão tem o direito, quando não o dever de expor o que é útil para a edificação da igreja.
Como implantar as quatro colunas da restauração? Se não obtivermos luz a esse respeito, toda a reflexão anterior permanecerá vã. Claro que nenhuma prática isolada é suficiente para realizar um valor espiritual. Precisamos de várias práticas e não de uma só, para promover cada coluna. Porém, devido à minha capacidade limitada, proporei uma única prática para a promoção de cada coluna. Com isso, mostrarei apenas um pouco do que se pode fazer, em prol da proposta do presente escrito. Medidas mais profundas ficarão para a busca de cada um diante do Senhor.
1. Vida da igreja de casa em casa
Por vida da igreja de casa em casa queremos dizer não um tipo de reunião a mais, mas a centralização de toda a vida da igreja nas casas dos crentes. Esse é um objetivo a ser alcançado gradativamente. Não convém implantarmos qualquer mudança brusca, no tocante ao espaço primário que a igreja deve ocupar (as casas ou os templos), já que ela poderia se desgovernar se o fizéssemos. Só não devemos estagnar ou andar em círculos, na caminhada para a necessária centralização da vida da igreja nas casas. Tampouco devemos nos limitar a promover reuniões de casa como um tipo de reunião a mais, enquanto a vida da igreja permanece centrada nas grandes reuniões.
Pode-se argumentar que Atos dos Apóstolos fala de grandes e de pequenas reuniões. Porém, naquela época, a vida da igreja estava mais centrada nas reuniões menores, até porque os cristãos geralmente não dispunham de centros nos quais pudessem realizar reuniões públicas. Além disso, em algumas cidades, como Jerusalém, havia milhares de cristãos: como eles poderiam dispensar os cuidados de que cada membro individual necessitava,nas grandes reuniões?
Infelizmente, os fatos indicam que retrocedemos muito, em relação a esse ponto do estado primitivo da igreja. No nosso meio, com algumas exceções, a vida da igreja de casa em casa não é algo real. Não é preciso que seja assim. Podemos, no mínimo, implantar alguns módulos, laboratórios dessa experiência, se as igrejas não estiverem prontas para praticá-la extensamente. Pelo menos isso. Mas não o fazemos a não ser em casos excepcionais e por iniciativas mais ou menos isoladas.
Não nos basta, porém, continuar a ter reuniões de casa como um tipo de reunião a mais, mesmo afirmando que são as reuniões principais ou a base prática da igreja. Com nossas obras, negamos o que professamos. Uma coisa são reuniões de casa como um tipo de reunião a mais; outra coisa é a vida da igreja centrada nas casas.
Não estamos a diminuir a importância das grandes reuniões. Estamos a colocá-las no devido lugar. Os grandes ajuntamentos são muito importantes, mas não devem constituir a base da vida da igreja. qual é a cena entre nós? Não é o roubo da cena pelas grandes reuniões? Não é a estruturação até das pequenas reuniões com base nas grandes? Nossas reuniões de casa não têm sido dominadas por práticas provenientes das grandes reuniões? Estas não permanecem a base indesafiável de toda a nossa vida coletiva?
Precisamos das grandes reuniões como o outro lado, o contrapeso necessário às reuniões de casa, para que alguns não façam da igreja a ideia de meia dúzia de pessoas. Precisamos delas para que o ensino dos membros especialmente dotados por Deus não se perca. Porém, não precisamos delas como a base ou o princípio governante da vida da igreja.
Não há como deixar de passar pelo estágio das reuniões de casa em dias determinados, para se alcançar o estágio mais avançado das reuniões domésticas todos os dias. Porém, se não promovermos esse desenvolvimento, as reuniões de casa afundarão no segundo plano; se não lhes concedermos espaço e ênfase, elas não crescerão além de limites muito acanhados.
De quanta liberdade as reuniões de casa precisam! De quanta vida elas necessitam! Liberdade e vida são o oxigênio das reuniões de casa. Soltemo-las, pois, mas o façamos realmente, libertando-as das grandes reuniões, seus modos e obrigações. Enchamo-nos da palavra de Deus, e as reuniões de casa renascerão com força divina e indômita.
Nosso sonho de comunhão tem muito a ver com isso. No sentido mais prático, a vida da igreja precisa ser entendida como viver Cristo nas casas. Só isso produz uma nova vida cristã coletiva, uma vida distinta daquela centrada nas grandes reuniões. Só desse modo se pode mexer com estruturas antigas e enferrujadas, promovendo-se a comunhão e o viver de Cristo em nós. Só desse modo, o sonho pode fazer-se realidade.
Essa é a melhor prática possível da comunhão dos apóstolos, a primeira e principal coluna da restauração avançada. É ao mesmo tempo o meio mais eficiente de se extirpar o clericalismo. Devemos combater toda possibilidade de aparecimento de líderes ostensivos, nas reuniões domésticas e na vida da igreja de casa em casa. Porém, só o fato de se ter várias reuniões domésticas num dia já constitui limite extraordinário ao fermento clerical. Como ser “o pastor” de um grupo tão pequeno, que se reúne todos os dias, em lugar e horários variados, não raro com pessoas novas e de modo aberto à participação de todos?
Com essa prática, a comunhão há de brotar como nunca, e o mundo crerá que Jesus foi enviado pelo Pai, não como simples artigo de fé, mas como algo da dimensão prática, portanto impossível de ser negado. Pela prática da vida da igreja de casa em casa, o núcleo do evangelho cristão tenderá a se tornar patente e irrefutável.
Precisamos disso. Com isso sonhamos. O velho vício de um crente tentar ser maior do que outro e de ambos manterem um relacionamento formal ou convencional será assim extirpado. A igreja constituir-se-á em testemunho da igualdade que reina entre os crentes e do frescor do paraíso de Deus.
Por natureza, a igreja não é uma instituição. Ela pode usar instituições e até se institucionalizar, em pequena medida, porém a forma institucional não compõe a sua essência mais íntima, até porque a igreja pode-se despojar dessa forma, assim como o homem retira o manto que o cobre. No Novo Testamento, a igreja não tinha nome, classes de crentes, regimento ou credo. Até mesmo a família, uma das mais informais instituições humanas, tem nome, papeis a serem cumpridos e normas. Porém, a igreja não os tem. Ela não chega a ser uma instituição.
Se a igreja não é uma instituição, sua vida prática deve expressar esse fato. Ela não deve ser controlada por certas pessoas, de acordo com certas regras. Tampouco precisa cumprir certas formalidades. Claro que um certo nível de institucionalização é inevitável para que a igreja se sedimente no mundo, mas ele deve atender mais a necessidades humanas do que a demandas da natureza interior da própria igreja. Assim como o reino de Deus não é comida nem bebida (Rm 14:17), a igreja não são edifícios, equipamentos, livros, estúdios. Ela não é uma instituição visível, mas um amálgama do Espírito de Deus com homens e mulheres (1 Co 6:17).
Os membros da igreja realizam a obra ministerial com ajuda de instrumentos e instituições, mas não podem permitir que estes se confundam com ela ou a traguem. A História mostra que não se deve ir longe demais com a institucionalização da igreja. Todas as vezes em que se permitiu o crescimento das instituições cristãs além de certos limites, a pureza espiritual foi perdida.
Precisamos, portanto, usar a institucionalização, mas tomar o cuidado de realmente a usar e não nos deixar usar por meio delas. Após ter servido os propósitos práticos por que foi criada, toda instituição cristã deve ser reduzida ou desativada, antes que seus efeitos nocivos venham a sobrepujar os positivos. As instituições não devem ser perenes, pois não pertencem à natureza da igreja. É necessário darmos cabo delas antes que deem de nós. É necessário que editoras (65), estúdios, centrais, empresas sejam ao menos reestruturados, com vistas à parcial desativação, antes que seus efeitos negativos comecem a se fazer notar além da conta.
Isso prova se o coração das pessoas envolvidas na obra cristã está em Cristo ou nas instituições, já que uma diferença inegável de natureza existe entre os dois. Deus sempre haverá de prover meios orgânicos e não institucionais, para darmos continuidade ao encargo espiritual à origem de uma instituição.
Temos de ser drásticos com a instituição ou ela será drástica conosco. Se formos ingênuos, se a defendermos além da medida, cedo ou tarde, ela se tornará uma fonte de corrupção. Devemos saber usar as instituições, mas também saber desativá-las, orando para que o Senhor nos mostre o momento certo para o fazermos, assim como pedimos que ele nos mostrasse o mais propício para as iniciarmos. Quem conhece o começo das coisas, deve conhecer o seu fim. De acordo com o livro bíblico que mais se detém nos princípios da vida humana, o fim é melhor que o começo (Ec 7:8).
Não estou a combater os benefícios que podemos haurir de alguma institucionalização do trabalho cristão, mas a alertar para os males que dela resultam. Os benefícios devem ser salvaguardados, sua continuidade deve ser garantida num outro contexto prático, quando a instituição se desativar. Mas é preciso que esta conheça limites claros.
Olhemos para a História da Igreja, e este discurso será imediatamente justificado. A institucionalização ilimitada sempre produziu a degradação da fé. Todos os movimentos genuinamente inspirados pelo Espírito de Deus corromperam-se ao se institucionalizar em excesso. Que denominação perdida na tradição não começou com um avivamento? Que grande obra carcomida por disputas carnais não se iniciou com oração? Infelizmente, quando a sistematização humana conduz da experiência espiritual à carnal, toda sorte de vício se instala. Esdras foi um escriba da lei de Deus, mas quando Jesus surgiu em Israel os escribas haviam-se tornado chefes do legalismo e opositores do Espírito de Deus.
É a instituição má em si mesma? De modo nenhum. Como ideia, a instituição é tão justa e boa quanto a lei. O problema é que, também como a lei, ela não pode ser usada sem fazer aflorar o pecado. Embora boa, a instituição faz aparecer no homem os seus males. Por isso é preciso tomar cuidado com ela. Ainda que os muito dotados possam manter-se puros, em contato com a instituição ao longo de anos, o Corpo é formado de membros dessemelhantes: uns fortes, outros fracos. Nem todos resistem de modo igual.
Não é à toa que o Novo Testamento contribui para descaracterizar a igreja como instituição, embora não lhe negue uma organização interna. Jesus veio, chamou Seus discípulos, viveu com eles, ensinou-os, realizou a redenção e depois ordenou-lhes: “Ide e pregai o evangelho”. Ele jamais formou uma grande instituição (66).
Nesse nível básico de organização e instituição, é que a fé cristã está situada. A vida da igreja nas casas é a expressão por excelência de tal realidade. Enquanto o hábito de grandes reuniões favorece a institucionalização, a centralização da vida da igreja nas casas neutraliza e compensa os efeitos nocivos dela, sem prejudicar os positivos.Não creio que haja meio melhor, para a igreja se manter livre da institucionalização nociva, do que a sua centralização nas pequenas reuniões domésticas. É o que temos proposto.
2. Visitas e contatos
A segunda prática que propomos é o costume de visitas e contatos com os não convertidos, para pregação do evangelho, e com os recém-convertidos, para sua confirmação na fé. Claro que os crentes antigos também precisam ser visitados, mas já nos referimos a essa necessidade quando falamos da intensa comunhão de casa em casa. Aqui, pretendemos enfatizar particularmente a necessidade de visitação e contatos com pessoas novas.
O hábito de visitação tem por finalidade promover o estabelecimento da segunda coluna: o crescimento extrínseco da igreja. Precisamos de outros meios que promovam essa coluna, assim como o já mencionado combate ao naturalismo, mas o ponto fundamental é o hábito de visitação e contato, já que, por meio dela, todos podem tomar parte ativa na expansão do evangelho.
Deus deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2:4). Não nos devemos contentar apenas com a experiência de salvação incial das pessoas, mas preocupar-nos também com o seu crescimento espiritual e confirmação no Senhor, a fim de apresentar todo homem perfeito em Cristo (Cl 1:28), nada menos do que isso.
Deus visa “todo homem” (Cl 1:28-29). A deslumbrante cidade santa, a nova Jerusalém, tem portas voltadas para todos os lados da terra: oriente, ocidente, norte e sul, a fim de que pessoas provenientes de todos os quadrantes possam entrar. O número de portas é o mesmo: três ao norte, três ao sul, três ao leste, três ao oeste (Ap 21:13), já que o desejo divino por “todo homem” não admite a menor acepção. E como se não bastasse o texto ainda diz que nenhuma porta se fecha em momento algum (Ap 21:25). Portanto, os que se achegam a essa cidade luminosa têm igual oportunidade de salvação.
Uma vida da igreja bem-sucedida numa só camada social é expressão por demais imperfeita da Nova Jerusalém. As chamadas Igrejas Históricas (Anglicana, Presbiteriana, Batista, Metodista, Luterana, Episcopal etc.), não raro, apresentam-se como fenômenos de classe média, as Igrejas Pentecostais e Neopentecostais, como fenômenos das classes baixas. Dir-se-á que a soma de todas essas organizações realiza a Nova Jerusalém, mas temo que as coisas não sejam tão simples. Temo que o raciocínio econômico que encontra nessas igrejas as portas da nova cidade desconsidera os gravames profundamente distintos, não raro até mesmo injustos, que elas colocam no bem (o evangelho) que oferecem a todos. Se é para sermos sinceros (e práticos), esses gravames tornam o evangelho coisa bastante distinta para as distintas classes: para um pentecostal típico, o preço do evangelho envolve largar o cigarro e incendiar o último maço; já o crente de classe alta pode falar do seu Deus de trás da fumaça do seu cachimbo. Será que, em posturas tão diferentes há igual oportunidade de salvação?
As denominações especializaram-se em trabalhar com as classes resultantes da estratificação econômica da sociedade. Porém, com o estrato não econômico da elite intelectual praticamente ninguém trabalha, dada a sua impermeabilidade e, em alguns casos, até a sua hostilidade ao evangelho. E quando alguma atenção especial é devotada a esse meio, ela costuma ser dispensada por pessoas uniformizadas (no sentido das vestimentas ou da alma). Desconheço maior violação do que essa ao princípio da Nova Jerusalém. Necessário é combatermos tal mal.
O evangelho é questão de prontidão. Devemos ter os pés calçados, portanto estar prontos para ir e anunciá-lo (Ef 6:15). Os que vivem assim não têm raízes nesta terra, que lhe roubem a disponibilidade ou o desejo de ir aonde o Senhor enviar. Costumamos atribuir essas características pessoais aos grandes missionários, mas não podemos nos esquecer de que o nível básico em que elas se devem manifestar é o de uma vida comum de visitas e contatos. Não é raro os missionários se transformarem em clérigos. Mas Deus não deseja um cristianismo clerical. Por isso, a expressão fundamental da prontidão para anunciar o evangelho da paz, sobre a Terra, deve vir da prática de contatos e visitas.
Essa vida não significa que todo cristão deva ser uma espécie de andarilho, um remaking ou versão nostálgica dos Jesus’ people. Não é preciso negar as estruturas da sociedade civil, para pregar o evangelho da paz. Pelo contrário, a estabilidade propiciada por essas estruturas e a presença em posições-chave da sociedade podem subsidiar a pregação do evangelho. Para sermos o sal da terra e a luz do mundo, precisamos estar na terra e no mundo.
O necessário, o fundamental é que, onde estivermos, aproveitemos as oportunidades, não com palavras duras, mas agradáveis, temperadas com sal e cuidadosamente adequadas à situação de cada um (Cl 4:5-6). Uma vida assim deve começar com oração (Cl 4:2).
3. Produção descentralizada de escritos e músicas
A verdade não se impõe pela disseminação de contendas, mas por uma produção positiva. Este é um princípio por demais fundamental. Tem sido assim, com toda obra abençoada de Deus até hoje. A Reforma foi levada a cabo, por uma divulgação prolífera de literatura e música. Há quem afirme que, por vários séculos, não se imprimiu tanto na Alemanha quanto na época da Reforma.
Porém, para alcançarmos produção tão prolífera, precisamos de uma autêntica primavera literária e musical. É claro que por primavera não quero dizer pura loquacidade ou tiroteios de opiniões, ainda que sejam a respeito da Bíblia. Porém, é preciso produzir e produzir. A terceira coluna da restauração da igreja trata dessa primavera plural no interior da unidade. Creio já ter embasado bastante essa proposta na Bíblia e na História da Igreja. O fundamental é que escritos, poemas, músicas e outras produções se multipliquem, assim como a própria educação artística(67). Se isso não ocorrer, permaneceremos no plano do simples discurso, sem a necessária prática da pluralidade.
É claro que enfrentaremos dificuldade, se quisermos viver essa pluralidade. É enorme a crise de vocação literária na sociedade em geral. Por um defeito de educação e até por desvios culturais, as novas gerações estão distantes de dominar a técnica da escrita e rejeitam sistematicamente o trabalho árduo de pensamento e crítica (68).
Outro óbice a uma primavera literária é a falta de meios para a publicação descentralizada de textos (69). Porém, a limitação não nos deve sugerir desistência. Devemos usar mais sabiamente os meios disponíveis, orar e buscar novos meios. Se almejamos fins descentralizados, mas nos faltam meios descentralizados, busquemo-los em oração e comunhão, e Deus nô-los proverá.
Há abundância de motivos e inspiração para escritos, canções e outras obras, nesta nova fase da restauração da igreja. Por que não termos uma primavera de escritos, músicas e outras produções artísticas e literárias? A necessidade de novos hinos é gritante. Quase todas as composições musicais que utilizamos, em nossas reuniões e na adoração particular, seguem o mesmo padrão (70). Novas letras e por que não novos gêneros de música se fazem necessários. Não precisamos introduzir música estranha aos ritmos psicológicos da adoração cristã, porém nada impede que os nossos músicos trabalhem com uma série de outros gêneros ou criem, eles próprios, ainda outros. Nada impede que se criem também melodias e letras sobre contatos evangelísticos, conversas, pregações, viagens, textos e outras experiências que o Espírito e as Escrituras nos fornecerem.
Quando o Senhor levantou John Wesley, na Inglaterra, muita gente não compreendia a sua mensagem, mas apreciava a música de seu irmão Charles. Para muita gente, na Alemanha, a única Reforma compreendida foram músicas como o Castelo Forte, de Martinho Lutero. Quantas conversões, quantas mudanças de vida foram produzidas, naqueles meios, a partir da música e por causa dela? Nós, que escrevemos, cansamos as pessoas; os músicos tocam-nas.
O princípio da restauração é: “Então se levantaram os cabeças de famílias de Judá e de Benjamin, e os sacerdotes, e os levitas, com todos aqueles cujo espírito Deus despertou, para subirem e edificar a Casa do Senhor, a qual está em Jerusalém” (Ed 1:5). O coração deve ser tocado, e o espírito, movido, para que a obra se inicie. Não nos cabe substituir a moção do espírito pela do braço humano. Até mesmo “o espírito de Ciro, rei da Pérsia” foi despertado pelo Senhor, para que conclamasse os judeus a reedificar a casa de Deus em Jerusalém (Ed 1:1-2). Assim deve continuar a ser.
Não luto pelos “meus” escritos. Sequer me refiro a eles, quando prego essa primavera, até porque não me é necessário, nem atende a necessidade muito mais ampla da restauração. Precisamos de tantas fontes que seria mesquinho lutar por uma única. Tanto mais pelo próprio nome. Ninguém me tome por demagogo ao dizê-lo.
Meus escritos não valem o sacrifício (71) desta exortação. São modestos, indoutos e miseráveis demais para o merecerem. Ninguém o desminta, a menos que ignore o valor verdadeiro de tudo o que, de alguma maneira, procede do homem. Pode-se, é claro, lembrar o outro lado desta questão, o lado da graça de Deus e do seu chamamento, mas isso é lá outra coisa e é com Deus. Graça é dom, que não nasce de quem o recebe. Tampouco revoga o aspecto humano do vaso, no qual o dom é depositado.
Deus nos conceda o espírito dos cabeças das famílias de Judá e Benjamin. Oxalá no seu povo todos fossem profetas, e o Senhor derramasse o seu Espírito em todos (Nm 11:29). No auge do combate que travou com Erasmo de Roterdã, Lutero não deixou de expressar (72): “Confesso que és um grande homem: onde foi que, com maior saber, inteligência ou habilidade nos teremos jamais encontrado, quer falando, quer escrevendo? Quanto a mim, nada disso possuo, e só há uma coisa de onde posso tirar qualquer glória: sou cristão. Possa Deus elevar-te infinitamente acima de mim no conhecimento do Evangelho, para que me venhas a ultrapassar nesse respeito tanto quanto já o fizeste em todos os outros terrenos”.
Oxalá Deus levante pessoas mais providas de dons ou menos providas de limitações do que eu, a fim de dizer melhor do que sou capaz o que é preciso dizer. A fim de pregar Números 11:29 de todas as formas e por todos os meios. Faço minhas as palavras de Philip Jacob Spener, no seu livrinho Pia desideria: “Reconheço minhas limitações. Não sou presunçoso a ponto de me julgar com mais dons especiais do que outros, para chamar atenção aos males que nos afetam [...] Por isso, do fundo do coração, desejo que homens mais talentosos, mais iluminados, com maior entendimento e experiência, levem adiante essa tarefa, no temor do Senhor. Disponho-me a colocar no papel aquilo que considero ser útil e necessário para a edificação da igreja, o que abre oportunidade para que outros, mais iluminados e influentes nessas coisas, possam pensar melhor sobre o assunto, acrescentar o que desejarem ou, se a minha proposta não for praticável, sugerir coisas melhores. Desejo ardentemente que alguém me mostre algo melhor e mais vantajoso para o cumprimento de minhas tarefas pastorais, para a edificação da igreja. Eu lhe seria enormemente agradecido. Tudo é obra de Deus, não nossa, e Ele é livre para abençoar o que quiser, venha de quem vier.”
Deus é o grande repartidor. Não é sábio, nem conveniente discutirmos as porções repartidas. O que tenho a declarar sobre a primavera pluralista é que é o ambiente da verdadeira unidade. Assim como não há glória ou valor algum, em uma pessoa se converter a Cristo por imposição de outra, não há valor algum na unidade imposta por ameaças e inculcação.
Fundamental é não confundirmos pluralidade com divisão. A verdadeira unidade subsiste no interior de gigantesca pluralidade. Quando o Senhor orou a respeito do aperfeiçoamento da unidade, em João 17, isso estava implícito. A conclusão da oração (“para que o mundo creia que tu me enviaste”) resulta do aperfeiçoamento da unidade no crisol da pluralidade. Há um poder ingente, uma força descomunal nesses fatos, que o mundo deve experimentar. A oração sacerdotal de Jesus será cabalmente cumprida.
4. Ofício próprio
Por fim, a quarta prática que propomos é o desenvolvimento de ofícios seculares como ponto de apoio para a obra da restauração. “Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados, do próprio templo se alimentam; e quem serve ao altar, do altar tira o seu sustento? Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam do evangelho” (1 Co 9:14); “aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as cousas boas aquele que o instrui” (Gl 6:6). Essas duas passagens ecoam o fundo do pensamento de Paulo. Como a revelação bíblica é prática, o ministro da palavra deve tirar seu sustento do altar e viver do evangelho, o que significa aceitar as contribuições voluntárias dos que recebem o seu ministério.
Porém, o homem que escreveu essas palavras foi o mesmo que fabricou tendas(73) para se sustentar e não ser financeiramente pesado às pessoas a quem ministrava. Na realidade, o ofício próprio parece ter sido tão importante para Paulo quanto a cidadania romana. No nível da vida humana, a fabricação de tendas deve ter sido a própria base do seu ministério.
A restauração é uma obra espiritual, que demanda suporte financeiro no nível humano. Abstrair esse aspecto dela é cometer equívoco tão grave quanto o de quem se recusa a trabalhar ou da seita que proíbe o casamento. Jesus afirmou que os filhos do mundo são mais hábeis que os da luz, pois utilizam a riqueza injusta para estender sua influência (Lc 16:8-9).
O coração fala muito, mas o coração está onde está o tesouro (Mt 6:21). Não adianta espiritualizarmos. Devemos confiar no Senhor, para o nosso sustento, e desenvolver ao mesmo tempo um meio de autofinanciamento. O trabalho é o mais importante instrumento com que contamos para isso. Assim devemos encará-lo, já que, para os crentes, o trabalho não tem função mais elevada que esta.
Todo modo medieval de encarar a questão do trabalho (74) e do sustento material pode transformar-se num jeito sutil de atrasar a obra divina. O trabalho é um apoio santo e muito importante, que não deve ser subestimado, nem subutilizado. Todos devem aprender a trabalhar bem, a se profissionalizar plenamente, pois essa é a vontade de Deus revelada nas Escrituras, inclusive para o obreiro cristão.
A abolição do clericalismo implica que os que se dedicam ao ministério da palavra ou ao serviço da igreja em tempo integral não gozam de qualquer superioridade em relação às outras pessoas. Isso se aplica tanto às coisas espirituais como às materiais. A graça invisível de Deus, não o serviço em tempo integral, é o que torna a pessoa santa. Semelhantemente, o serviço no altar não dispensa a pessoa do desenvolvimento de um ofício secular. Essa é uma obrigação decorrente da condição humana, portanto extensiva a todos (75).
POSFÁCIO (76)
Um sonho de comunhão tem todas as características do que, em biografias de autores, se costuma denominar escrito de juventude. O idealismo da idade juvenil palpita em cada palavra. O motivo é evidente: “nada do que é humano me é estranho” (77). Porém, ao mesmo tempo, um sopro de perenidade atravessa o texto. Refiro-me à propriedade do que é estranhamente capaz de resistir ao tempo e que, a meu ver, constitui o elemento principal do escrito.
Esse elemento estranho nos faz ler Um sonho de comunhão, com emoção e interesse, mais de vinte anos depois do pequeno terremoto que o texto causou. E nos leva a considerar úteis as práticas que propõe. Úteis não quer dizer indispensáveis, mas revestidas de certa importância e valor. A avaliação mais exata dessa importância, à luz das críticas e das propostas do escrito, é o que nos cabe realizar agora.
O ponto central do texto é a convicção de que a igreja cristã tem de passar por um amplo processo de restauração, na sua História. Esse processo é o tempo todo tomado como verdade estabelecida, posto que o texto é interlocução com pessoas que o aceitavam. Porém, para o leitor situado num outro meio, ele pode parecer estranho e pedir maior elucidação. Afinal, na Cristandade, o único argumento amplamente aceito a favor de uma restauração parece ser a degradação da Igreja no período medieval. Nenhum cristão minimamente informado duvida de que aquela degradação demandou uma restauração.
Porém, a ideia básica de restauração não deriva, em primeiro lugar, da História da Igreja, ou do Antigo Testamento, embora ambos forneçam certa sustentação a ela. A restauração é, antes de tudo, uma ideia neotestamentária. Em 1ª a Timóteo 4:1, o autor inspirado escreveu: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios”. Apostasia pressupõe um estado anterior de bênção. Os apóstolos nunca afirmaram que os gentios do mundo romano eram apóstatas, pois eles haviam nascido no politeísmo. Pelo contrário, Paulo afirmou, mais de uma vez, que Deus permitiu e desconsiderou os tempos de ignorância deles (At 14:16; 17:30). Porém, a apostasia que a Epístola a Timóteo aponta é diferente. Ela pressupõe um estado anterior de bênção, perdido pelo movimento apóstata.
Mais do que isso, o texto comentado de Timóteo se segue a um outro, em que o mistério da piedade é apresentado e a igreja é denominada coluna e baluarte da verdade. O autor não poderia ter escolhido palavras mais fortes e positivas para exprimir a relação da igreja com a verdade. Ele não afirmou que a igreja é sustentada pela verdade, mas que ela a sustenta: é a sua coluna e baluarte. E então, passou a descrever o que o Espírito predisse expressamente que haveria de ocorrer, isto é, que alguns apostatariam da fé. Quem são esses alguns? São pessoas do número dos que receberam o mistério da piedade e se fizeram coluna e baluarte da verdade.
A interpretação amplamente majoritária da apostasia de 1ª a Timóteo 4 liga-a com a heresia gnóstica, a respeito da qual o bispo de Lião, Ireneu, escreveu no segundo século: “Afirmam eles [os gnósticos Saturnino, Menandro e seus seguidores] [...] que casar e procriar é diabólico e muitos dos seus discípulos se abstêm de comer carnes” (LIÃO, Ireneu de. Contra as heresias. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1995. I Livro, 24,2, p. 102). E novamente: “Os [gnósticos] que se chamam encratitas, que se inspiram em Saturnino e Marcião, proclamam a abstenção do casamento, condenando a primitiva instituição divina e acusando falsamente Aquele que fez o homem e a mulher ordenados à procriação. Introduziram o celibato dos chamados espirituais [...] Taciano [...] como os discípulos de Valentim, conta a história dos Éões invisíveis, como Marcião e Saturnino, tacha o casamento de corrupção e fornicação, e no que lhe é próprio nega a salvação de Adão. Outros ainda, baseando-se em Basílides e Carpócrates, introduzem o amor livre e a poligamia” (idem. nº 28, p. 111).
Vemos que a apostasia predita em Timóteo coincide com as crenças dos gnósticos. Porém, apesar das coincidências, o cumprimento da apostasia nessa seita (na realidade, foram incontáveis seitas) apresenta vários problemas. O primeiro deles é que, dos gnósticos, não se pode afirmar que viveram num estado de bênção do qual decaíram. Eles foram sempre hereges. Viveram sempre apartados da comunhão com a igreja. Por isso, a palavra apostasia não lhes cai bem. Teria sido muito fácil e muito melhor o autor sagrado ter usado outro termo para identificá-los, se de fato pretendesse referir-se a eles.
O segundo problema da interpretação é que dispomos de provas da existência de ascetas gnósticos, como os mencionados em Timóteo, por volta do ano 50 d. C. Tudo indica que as Epístolas a Timóteo foram escritas depois desse ano. Portanto, é estranho a primeira delas afirmar que a apostasia ainda viria, se já estava presente no mundo.
Por fim, o terceiro problema da interpretação comum da grande apostasia é o fato de esse movimento de degeneração ser expressamente associado a Anticristo, em 2ª aos Tessalonicenses 2:2-3: “Não vos demovais da vossa mente [...] supondo tenha chegado o dia do Senhor. Ninguém de nenhum modo vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição [Anticristo]”.
Os gnósticos não antecederam imediatamente a vinda de Anticristo. Eles foram uma terrível heresia, mas não “a apostasia” mencionada por Paulo. Claro que sempre há a possibilidade de Tessalonicenses referir-se a uma apostasia, e Timóteo a outra, mas não parece ser esse o caso. A palavra apostasia é forte demais para ser usada várias vezes. E não podemos descurar que as duas epístolas expressam o mesmo pensamento geral (o de Paulo), no qual a apostasia indica o movimento que antecede a vinda de Anticristo.
É hora de o dizermos, pois, abertamente: a apostasia prevista ajusta-se melhor ao grande movimento de corrupção, que se iniciou na Igreja por volta do nono século e durou até a Reforma do décimo-sexto. Esse longo período de sete séculos foi, sem dúvida, o mais negro de toda a História da Igreja, o que justifica o denominarmos “a apostasia”. Ele também se verificou no seio de uma genuína igreja cristã, que vivera em estado de bênção especial, a saber: a Igreja Católica do início da Idade Média.
Embora a promiscuidade sexual tenha grassado em Roma, durante esse período tenebroso, a observância do celibato era exigida dos clérigos no mundo todo. O mesmo pode ser dito da abstenção de alimentos nos dias santos, que era obrigatória e não facultativa. 1ª a Timóteo 4:3 refere-se ao erro dos que “exigem” (é o termo empregado) “abstinência de alimentos”. Essas palavras não se aplicam ao jejum voluntário, que é recomendado em tantos passagens da Bíblia. Ao contrário, elas transparecem uma simples mortificação inaceitável à mentalidade judaica e cristã, na qual a preservação do gênero humano pela alimentação e procriação constituía um dever central de todos perante Deus. Dever agravado ainda mais pela pobreza e extrema dificuldade de sobrevivência que Israel sempre enfrentou em sua História. Nesse contexto, a abstenção do casamento e de alimentos constituía um requinte de espiritualidade que atentava contra a existência do povo de Deus.
É importante recordar a solenidade com que o escritor anunciou o advento desse grande desvio: “O Espírito afirma expressamente”. Essas palavras são o equivalente neotestamentário da expressão "Assim diz o Senhor", no Antigo Testamento. Marcam, pois, o início solene do oráculo sobre um acontecimento de imensa importância da História da Igreja.
2ª a Timóteo desenvolve ainda mais esse acontecimento: “Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis; pois os homens serão egoístas, avarentos”. Segue-se uma longa lista de pecados e vícios, como é típico do estilo de Paulo. Por fim, o texto conclui: “tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2 Tm 3:1-2,5). Em 1ª a Timóteo, a apostasia ocorre no seio da igreja; na segunda epístola, ela incide no meio “dos homens”, ou seja, no mundo. Porém, em ambos os casos, o processo de corrupção é o mesmo: a forma da piedade, a aparência de culto a Deus, é mantida, enquanto a eficácia da fé se esvai.
Não há motivos para crer que o grande desvio mencionado em 2ª a Timóteo seja distinto da apostasia do quarto capítulo da primeira epístola. Embora se estenda ao mundo, ele brota do interior da igreja, assim como o do primeiro texto. É o que o último capítulo afirma: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Tm 4:2-4). A quem Timóteo devia pregar, corrigir, repreender, exortar, a não ser à igreja? No entanto, a epístola prossegue: “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina”. Os que não suportarão a sã doutrina são legítimos sucessores daqueles a quem Timóteo devia pregar e exortar, isto é, a igreja. A afirmação expressa do Novo Testamento, portanto, é de que a igreja cristã passaria por um amplo processo de corrupção.
Em nenhuma época da História, fábulas como as que o versículo 4:4 menciona foram tão abundantes e tomaram conta da mentalidade das pessoas na mesma medida em que o fizeram entre os séculos IX e XVI. Foi o tempo da perseguição às bruxas, que se acreditava piamente voarem sobre vassouras etc. Documentos oficiais da Igreja, naquela época, mencionavam a necessidade de se exterminar lobisomens como óbvias encarnações de espíritos malignnos. Na realidade, a Inquisição foi criada para combater heresias, mas só matou tanta gente porque os cristãos passaram a ver “o próprio demônio”, e não só heresias, em tudo.
É, pois, perfeitamente possível interpretar a apostasia de 1ª e 2ª a Timóteo como um processo que divide a História da Igreja em duas partes. A primeira parte é marcada por uma situação regular e de bênção espiritual. A segunda transcorre sob efeito da grande apostasia. A restauração é um vasto movimento de reforma da igreja cristã, ocorrido nesse segundo período tanto no meio católico como no protestante, tanto nas comunidades como em instituições religiosas. Porém, ela não é suficiente para eliminar por completo os efeitos da apostasia, até o final dos tempos.
A ideia de restauração é consequência direta da crença em que Deus não pode permitir que a expressão visível da igreja, na Terra, permaneça em ruínas para sempre. Se ele firmou aliança com a descendência de Noé, após a de Adão se haver extraviado, se chamou Abraão, quando os descendentes de Noé passaram a adorar outros deuses, retirou os israelitas do Egito, apesar das tendências idólatras deles, e os trouxe de volta de Babilônia, por que Deus não restauraria a igreja em que se congregam os que foram comprados com o sangue de Jesus Cristo?
A restauração é uma ideia clara no Novo Testamento. Só não é uma ideia mais desenvolvida, porque a degradação ainda não começara no primeiro século. É importante estabelecer esse ponto, já que, se ele não permanecer de pé, o escrito inteiro desmoronará. Por outro lado, se a ideia de restauração tiver fundamento sólido, a busca do seu estado de perfeição estará justificada.
No fundo, Um sonho de comunhão discute se o estado de perfeição da restauração existe e deve ser buscado. Ele está para a perfeição da restauração como a vida de John Wesley está para a perfeição cristã em geral. Sabemos que Wesley dedicou a sua vida a mostrar que a alma pode alcançar um estado de perfeição diante de Deus. Ele foi perseguido, por tê-lo feito num tempo e lugar em que o calvinismo ensinava o contrário. Não encontro como explicar totalmente meu escrito de 1991, a não ser lembrando que ele discute, defende e espera a perfeição da restauração.
Vejamos, porém, que papel as práticas criticadas em Um sonho de comunhão tiveram no processo de corrupção da igreja e por que, tanto tempo depois do início da Reforma, elas ainda permaneciam arraigadas no meio cristão. Eram aquelas práticas: as restrições sistemáticas à comunhão por motivos ministeriais, a centralização da vida da igreja nas grandes reuniões, os excessos de institucionalização, a indiferença para com o naturalismo e a secularização, o desenvolvimento de uma unidade sem diversidade e os hábitos de autoridade ostensiva.
Claro que o retrato da primeira parte do escrito foi tirado num setor muito reduzido da igreja de Cristo e se refere, basicamente, a ele. Quando o texto alarga a abordagem de modo a abranger outros setores da igreja, eles são, via de regra, mencionados. É, pois, importante não estendermos a aplicação do texto além desses limites, não porque eles não padecessem dos mesmos males, mas porque não foi minha intenção, à época, abordá-los.
Os cinco problemas mencionados são vistos como remanescentes de dimensões nada reduzidas da decadência histórica da igreja. Hoje mais que na época, vejo esse processo de decadência concentrado nos sete séculos que mencionei, aos quais se segue a Reforma da Igreja. Esta não é, de maneira alguma, um movimento apenas protestante ou apenas católico. É católico-protestante, pois se dá em ambos os setores da igreja ocidental.
A Reforma ou restauração, como preferi escrever no texto, é um movimento continuado, porém não destituído de momentos em que se concentra e se intensifica extraordinariamente. Pouca disputa há sobre o fato de que o século XVI foi o primeiro desses momentos privilegiados da restauração. Muitos pontos doutrinários e práticos foram restaurados, tanto no campo católico como no protestante, nesse primeiro período, mas o principal foi a devolução da Bíblia ao povo, pela tradução nas várias línguas e a restauração do seu uso.
Vejo o século XIX como o segundo maior momento da restauração da igreja, pois a partir dele, o livre exame da Bíblia entregue ao povo começou a ser praticado em maior escala. Lutero e outros reformadores pregaram, sem dúvida, esse livre exame. Porém, o que se viu, em seguida, foi a continuidade do hábito de as instituições eclesiásticas e uns poucos líderes responsáveis pela sua condução definirem a interpretação bíblica a ser seguida por todos. Os cristãos que se tornaram conhecidos como Irmãos de Plymouth foram particularmente importantes para que o livre exame se fortalecesse e disseminasse, na prática, uma vez que lhes coube fixar o exemplo e definir um padrão a ser praticado nesse tocante.
Para que o livre exame se tornasse realidade, no meio cristão, foi necessário que se atribuísse radical autonomia à igreja local. Para garantir essa autonomia, no século XIX, os Irmãos aboliram toda organização centralizada de igrejas, no seu meio comunitário. Assim, os cristãos foram libertados em maior medida dos constrangimentos hermenêuticos exercidos pelas instituições eclesiásticas.
Nenhuma lei externa exige que o Espírito de Deus trabalhe de modos fixos, na História. Em 1991, eu esperava que, em poucos grupos cristãos, o progresso nas práticas positivas que sugeri viessem a substituir as cinco criticadas no escrito. Hoje, encontro-o mais difuso. Muitos pequenos grupos espalhados por muitos lugares, com ou sem relação organizacional uns com os outros, os têm experimentado. E isso tanto no meio católico como no protestante, volto a repetir, pois a Reforma é essencialmente católica e protestante, católico-protestante.
Na realidade, nenhuma lei é mais fundamental do que esta: o Espírito sopra onde quer; ouvimos a sua voz, mas não sabemos de onde vem ou para onde vai. O mesmo se aplica, e da mesma maneira, aos que são nascidos do Espírito. A obra do Espírito, somente ela, produz a perfeição a que me referi em Um sonho de comunhão. Só a renovação constante do homem interior permite enxergar os diferentes lugares e modos pelos quais o Espírito continua a soprar, hoje, para colocar em movimento o sonho.
NOTAS
(1) O manuscrito deste texto foi publicado em 3 de novembro de 2011, por meio do Blog Direto da Toca, com a seguinte nota: “Escrevi Um sonho de comunhão em meados de 1991. Provavelmente, o texto foi lido, na íntegra, por não mais que umas 10 ou 20 pessoas. Mesmo assim, causou considerável alvoroço entre as Igrejas Locais sob o ministério de Dong Yu Lan e iniciou um processo que terminou com o envio de uma carta a essas Igrejas, denominando-me pessoa nefasta e perigosa. Curioso é que a censura assim imposta pretendeu e conseguiu retirar de circulação um escrito que, além de expressar a fé de seu autor, era um produto cultural brasileiro. Produto cultural que foi censurado por um chinês, não na China, mas no Brasil.” Nesta data, o texto é republicado, em formato revisto e acrescido de notas. Vale recordar que ele está relacionado a dois outros, também publicados neste blog: "A unidade da igreja", que o antecedeu de alguns meses, e "Canção de Protesto", publicado em setembro de 1994 sob o título "Crianças à luz da manhã".
(2) Um dado que ajuda a entender Um sonho de comunhão é a condição que então possuía de funcionário da Editora Árvore da Vida e diácono da primeira Igreja Local, no Brasil, a igreja em São Paulo. Também tinha participação na obra de difusão do movimento, em nível supralocal. Como a Editora era o centro dessa obra, no continente sulamericano, a situação em que então me encontrava pesou muito para que o escrito mantivesse o tom impessoal que o caracteriza. Por me sentir responsável para com as pessoas envolvidas tanto na igreja como no movimento, não atribuí os problemas que então enfrentávamos a quaisquer indivíduos. Olhando retrospectivamente os fatos, confesso não me arrepender dessa atitude. Nenhum líder da igreja, naquele momento, havia assumido a defesa dos erros que eu apontei no texto. Os erros eram, é claro, consequência de atos de certas pessoas, mas o mal não atingira o estágio da defesa aberta de equívocos que eu e outras pessoas então pressentíamos. Por isso, a não referência a pessoas ainda hoje me parece a atitude mais responsável nas circunstâncias de 1991. Para maiores referências a esse ponto, vide nota 43 abaixo.
(3) A positividade do trabalho de Deus é retratada, na Bíblia, pela figura da edificação de Jerusalém e do Templo, que se opõe à destruição da cidade e do santuário por Nabucodonosor, em 587 a. C. Se a destruição constituiu episódio profundamente negativo da História de Israel, a edificação, seu contrário, não pode incluir o menor elemento negativo. Quando Paulo utiliza a figura da edificação (1 Co 14:4,17, 26), no Novo Testamento, essa radical positividade está implicada.
(4) Note-se a aberta admissão de que o texto pretende tratar de coisas negativas.
(5) Falando em geral, não apenas na primeira pessoa.
(6) A proibição deriva de textos como 1ª a Timóteo 1:3-4: “Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas, a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que, antes, promovem discussões do que o serviço de Deus, na fé”. O texto deixa claro que discussões intermináveis opõem-se à fé.
(7) A autoria paulina das Epístolas a Timóteo e a Tito é controvertida. Porém, independentemente da posição a ser adotada no assunto, é provável que elas reflitam o pensamento de Paulo.
(8) Por constituir uma atividade externa à igreja.
(9) “Lucro para o evangelho”, vale dizer, avanço da pregação e da fé cristã no mundo.
(10) Referência inequívoca a problemas das Igrejas Locais, na época do escrito (1991). O texto especificará esses problemas, sem localizá-los nessa ou naquela região do globo, já que, segundo a metáfora de Paulo, a debilidade ou o mau funcionamento de um órgão indicam a doença do corpo todo.
(11) A referência a “nós, na restauração do Senhor” não tem significado exclusivo, uma vez que o texto indica que a restauração se iniciou na época da Reforma do décimo-sexto século. Portanto, continua em ramos diversos da igreja cristã. A peculiaridade das Igrejas Locais sob os ministérios de Watchman Nee e Witness Lee, é ter-se autodenominado “restauração”. Desde então, tornou-se costumeiro designar o movimento por esse epíteto.
(12) Indicando que o mal-estar decorrente dos problemas tratados no texto havia sido sentido muito tempo antes.
(13) Deus não deseja tratar os problemas de uma dispensação somente em outra.
(14) Entenda-se da necessidade revelada de acordo com a Bíblia.
(15) A contraposição da necessidade de Deus à comodidade humana atribui toda desobediência à revelação divina ao interesse pessoal do homem.
(16) De acordo com o pensamento repetidamente exposto, no Evangelho de João, Deus não introduz os seus tempos repentinamente ou aos solavancos. É comum o tempo de uma determinada obra estar por vir e já ter chegado: “Vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”e “Eis que vem a hora e já é chegada, em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só”(Jo 4:23; 16:32).
(17) O tempo de falar, assim como o próprio falar sãointroduzidos pelos acontecimentos. Eles vêm montados na História. Portanto, não são propriedade particular de pessoas e não podem ser manipulados por elas.
(18) Como num procedimento terapêutico.
(19) Vide nota 16 acima.
(20) A referência é ao sofrimento dos que estavam sob a opressão dos líderes mais exaltados das Igrejas Locais, no Brasil. Várias dessas pessoas haviam revelado o seu sofrimento ao autor.
(21) A expressão “vantagem de Satanás” é bastante forte. Indica que os problemas então presentes não eram pouco graves.
(22) Devido à conexão das questões mencionadas.
(23) Indicando que, assim como o tempo de tratar dos assuntos advém gradualmente, os modos de tratamento devem variar de etapa a etapa.
(24) LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da igreja”. In Martinho Lutero – obras selecionadas. Vol. 2. Porto Alegre: Ed. Sinodal, 1990 [nota de 1991).
(25) A história comprova que as cidades e os muros de Jerusalém foram os últimos itens restaurados, sob a liderança de Neemias e outros, muito após a ordem de Ciro [para que os cativos retornassem], o fim do cativeiro e a restauração básica do templo (Ne 1;3; 2:3,5). De 445 a. C., quando se iniciam as setenta semanas (ANDERSON, Robert. The coming Prince), até o ministério de Malaquias, o último dos profetas mencionados na Bíblia, passaram-se os quarenta e nove anos das primeiras sete semanas de Daniel” [nota de 1991].
(26) Indicando que começou com ela.
(27) O texto supõe que o estágio denominacional das igrejas protestantes realiza somente uma parte da restauração necessária à igreja.
(28) Contrastando com a visão eufórica e ufanista de que as Igrejas Locais tinham ido muito mais longe.
(29) A referência éà etapa inicial do movimento das Igrejas Locais, quando muitos cristãos experimentaram um genuíno despertamento espiritual, sob inspiração dos ministérios de Watchman Nee e Witness Lee.
(30) Indicando que o estado espiritual das Igrejas Locais não podia constituir o cumprimento das etapas finais da restauração no Antigo Testamento.
(31) A afirmação singulariza o espírito do restaurador, que consiste em não se aferrar aos avanços obtidos, a fim de buscar outros novos.
(32) A ideia do texto é de que a restauração, no Antigo Testamento, começou pelo núcleo da capital da nação (o Templo e os muros de Jerusalém) e se completou com a recuperação progressiva da diversidade da vida nacional, nas aldeias e vilas, mais ou menos como as cores de uma imagem acentuam-se quando ajustamos o controle do aparelho. Não é lógico pensar que a restauração da igreja seja diferente. Também ela tem de começar no núcleo cristão vital (a entrega das Escrituras ao povo e a retomada do seu livre exame) e se completar pelo desabrochamento da diversidade.
(33) Referência a um conhecido hino das Igrejas Locais.
(34) Comparação da utilização de sucessivos servos, por Deus, com uma corrida de revezamento, em que um atleta entrega o bastão ao seguinte.
(35) Reafirmando a relação da restauração com a Reforma.
(36) Se a igreja é entregue à mundanidade, como Israel foi entregue ao domínio estrangeiro, necessário é que a sua restauração repercuta no mundo secular como ondas sísmicas.
(37) O Cristianismo hiperinstitucionalizado, incluindo os seus segmentos católicos, ortodoxos e protestantes.
(38) A afirmação reiterada de que o texto exprime os meus pontos de vista, literariamente desnecessária, tinha por objetivo afirmar claramente que o “sonho de comunhão” não era a afirmação de verdades indesafiáveis ou imperfectíveis.
(39) Apesar de o texto referir-se às Igrejas Locais como um todo, minha inserção e contato constante com o setor sulamericano do movimento tornam as observações mais particularmente aplicáveis às Igrejas nesse continente. Nos mais de 20 anos transcorridos desde Um sonho de comunhão, os frutos produzidos pelo movimento na América do Sul tornaram evidente que a tendência a condicionar a comunhão cristã à aceitação de ministérios tornou as Igrejas Locais ultrassectárias.
(40) É nítida a oposição, neste escrito, entre a afirmação reiterada de princípios e a sua aplicação prática. Um sonho de comunhão rompe com essa espécie de contradição.
(41) A ênfase na falibilidade intrínseca do que escrevi contrasta com as pretensões muito mais vastas dos líderes do movimento na época.
(42) O texto exprime o esforço constante de assumir posição prática. Nessa medida, rejeita o mascaramento da realidade mediante o discurso ora complexo e rebuscado, ora simples, mas fortemente paralisante das faculdades de julgamento. Em lugar desse discurso, exigem-se frutos. Portanto, a tomada de posição prática.
(43) Um sonho de comunhão não exprime somente minha concordância com a orientação dos líderes históricos das Igrejas Locais (Watchman Nee e Witness Lee), mas adota essa orientação como ponto de partida e fundamento para as mudanças práticas que apregoa. Minha idade, na época em que redigi o documento (27 anos), somada aos motivos mencionados na nota 2 acima, ajuda a entender o porquê dessa posição inequívoca e até mesmo dócil. No entanto, os fatos posteriores evidenciaram que o espírito do texto não era o dos cooperadores que estavam sob a liderança de Witness Lee na época. Em alguns casos, a incompatibilidade atingiu grau extremo, pois alguns líderes consideraram que falar mal do escrito para as igrejas do país inteiro era uma missão espiritual que lhes cabia cumprir. De certo modo, a atitude dessas pessoas foi um dos primeiros sinais que permitiram identificar quem defendia publicamente os erros que o escrito condena.
(44) A gravidade dos problemas práticos, nas Igrejas Locais, não poderia ser mais realçada do que por essa expressão.
(45) A referência é a tradução de Atos 2:42 na Versão Restauração editada pelo Living Stream Ministry: “E perseveravam no ensinamento e na comunhão dos apóstolos, no partir do pão e nas orações”. Por ser comumente utilizada, nas reuniões das Igrejas Locais, a Versão Restauração era considerada portadora de autoridade semelhante à das Versões João Ferreira de Almeida no meio evangélico brasileiro. Daí o escrito não discutir a propriedade da tradução peculiar de Atos 2:42, na Versão Restauração, mas tomá-la como uma das compreensões possíveis do versículo bíblico.
(46) Enquanto substantivo, comunhão denota um fato no mundo do ser, porém não um fato consumado. Muito menos uma realidade estática e sim dinâmica. A comunhão dos apóstolos é antes um ter comunhão constante com Deus e com o homem do que uma estrutura estabelecida. Por isso, ela se assemelha a um fluir suave e constante. Como fluir espiritual, a comunhão deve ser identificada com a própria essência da vida da igreja.
(47) Em 1991, as barreiras à comunhão nas Igrejas Locais eram resultantes de hábitos cada vez mais comuns de se condicionar o relacionamento dos crentes à aceitação de determinados ministérios e à adoção de práticas justificadas como “o mover atual de Deus”.
(48) Referência ao novo tipo de viver prático recomendado e pregado por Witness Lee às Igrejas Locais, a partir de 1984 (vide menção ao novo caminho no fim do Capítulo 1). Entre outras coisas, o novo caminho tinha o objetivo de corrigir erros práticos sedimentados nas Igrejas Locais.
(49) As cinco fases da restauração apontadas no texto mostram que esta não é experiência exclusiva de um grupo. Dos reformadores aos ramos posteriores da Reforma, assim como dos Irmãos Unidos e das Igrejas Locais, na China, ao resto do mundo, a restauração irradiou-se a partir de centros, para depois se capilarizar pelo mundo todo.
(50) Opressão católica foi o domínio da Igreja de Roma sobre as demais igrejas cristãs, a partir das alianças dos Papas com os reis francos Pepino e Carlos Magno, no final do século VIII e início do IX. Antes dessas alianças, Roma tinha a pretensão de exercer domínio sobre outras igrejas, mas as condições políticas indispensáveis à sua implantação não estavam dadas. Os soberanos lombardos da Itália, por exemplo, nunca permitiram que o Papa reinasse à vontade no seu território. De modo que a proteção imperial se fez necessária para que o Papado surgisse. Só após o oferecimento dessa proteção, o domínio do Papa estendeu-se às igrejas e até aos Estados da época (inclusive os que protegiam a Sé Romana). Esse desenvolvimento específico da tirania papal proveu as condições negativas indispensáveis para o início da restauração da igreja.
(51) Por “divisões protestantes” não se deve entender as denominações, mas o resultado do espírito sectário no interior delas. A diferenciação é importante, pois as igrejas denominacionais e os cristãos no seu interior podem ou não adotar posturas sectárias. A simples organização de uma igreja, a partir de doutrinas e experiências específicas (Anglicana, Batista, Presbiteriana, Metodista etc.), não basta para a tornar divisiva. Por outro lado, é inegável que o espírito sectário tende a desenvolver-se com o aumento da institucionalização nas igrejas. Um dos mais meticulosos estudos dessa espécie de sectarismo e de outros equívocos protestantes pode ser encontrado na obra de Rubem Alves Religião e repressão (São Paulo, Loyola/Teológica, 2005).
(52) A pregação do evangelho é um testemunho; a do evangelho do reino é um testemunho do reino, que se aperfeiçoa e consuma com a unidade da igreja. Não é possível à igreja dar testemunho do que não vive. Ela não pode dar testemunho do reino de Deus, sem preservar a sua unidade interna.
(53) A penetração das boas-novas de Cristo nas camadas mais altas da sociedade romana é atestada no Novo Testamento. Porém, ela permaneceu um fenômeno limitado, durante o primeiro século, quando as igrejas cristãs foram compostas principalmente por integrantes das classes humildes. Só no final do século II, o número de conversões cresceu significativamente, nas classes altas da sociedade romana. Desde então, o evangelho passou a atrair a atenção de filósofos e intelectuais. A crítica de Celso aos cristãos, respondida meticulosamente por Orígenes de Alexandria, é o exemplo mais antigo de que se tem notícia de uma tentativa de refutação do cristianismo por filósofos.
(54) Pode-se objetar que o naturalismo e o materialismo mencionados no texto não constituem heresias, por não serem doutrinas religiosas. Porém, a secularização das sociedades atuais integra uma apostasia: o abandono da fé cristã pela CIvilização Ocidental. Não há apostasia que não envolva heresia. É importante destacar que, de 1991 até hoje, o naturalismo e o materialismo mencionados em Um sonho de comunhão assumiram dimensões de um verdadeiro tsunami, nas sociedades cristãs secularizadas. Basta lembrar que os índices de ateísmo, em vários países da Europa Ocidental, são hoje de 70% ou 80% da população.
(55) Notar que, assim como se refere às Igrejas Locais por meio do pronome nós, o texto alude ao meio cristão em geral pela mesma palavra, o que reforça a sua posição não sectária.
(56) Obra de refutação dos ataques das Críticas Histórica e Literária às Escrituras. Escrevi-a em 1990-1991. Sua publicação, em dois volumes, ocorreu em 1996-1997. Em 2010, História da graça foi ampliada e republicada, como uma série de cinco livros.
(57) A unidade da igreja foi escrito quase simultaneamente a Um sonho de comunhão. O texto modera os excessos da pregação da unidade tendente à uniformidade e ao controle do povo cristão por seus líderes. Como tal, tornou-se complemento fundamental ao presente texto.
(58) Do ponto de vista prático, o abandono das igrejas oficiais assemelha os Irmãos a muitos outros grupos da História da Igreja. Porém, sua contribuição específica para a causa cristã consistiu na combinação dessa atitude ousada com a preservação do relacionamento com o meio evangélico. Essa posição dos Irmãos chocou ainda mais os espíritos, devido à lembrança do avivamento metodista de um século antes. John Wesley despendera esforço descomunal, durante toda sua vida, para manter os membros da sua sociedade (metodista) no interior da Igreja Anglicana. Ele chegou a romper com setores do seu próprio grupo que se desligaram daquela organização. Os Irmãos fizeram exatamente o contrário: conclamaram os cristãos ingleses a se reunirem independentemente das igrejas oficiais. O motivo da sua ousadia foi a consciência que desenvolveram de que a independência da congregação cristã é essencial para a manutenção de ideais como sola Scriptura, sola fide eo livre exame.
(59) Século XX.
(60) Embora o princípio neotestamentário de uma igreja numa cidade tenha sido legitimamente utilizado, no início de seu ministério, por Nee, para promover a unidade dos cristãos chineses e evitar que eles fossem reduzidos à obediência às igrejas oficiais, é inegável que o movimento das Igrejas Locais incidiu em exageros ao adotá-lo. Para uma exposição do princípio da localidade no Novo Testamento, leia-se o Capítulo 2 de A doutrina cristã primitiva (História da graça, Livro 5. São Paulo: Themis, 2010).
(61) Outra advertência clara sobre a gravidade dos problemas observados nas Igrejas Locais e combatidos no presente texto.
(62) Clericalismo é o sistema de classes ou ordens entre os cristãos. No Novo Testamento, não há lugar para esse sistema, já que todos os cristãos são considerados iguais, portanto membros de uma só ordem (Mt 23:8-10; 1 Pe 2:5,9; 4:11; Ap 1:6; 5:10: 20:6). Uma dificuldade que a doutrina do sacerdócio universal envolve é a de determinar que espécie de prática introduz diferenciações de classes e, portanto, o clericalismo. Certamente, o fato de alguém dedicar-se em tempo integral ao serviço da igreja ou ser treinado para exercê-lo não é suficiente para fazer surgir diferentes classes de crentes. Diferenciações só se introduzem, a partir de quando determinadas pessoas assumem prerrogativas distintas das dos outros membros da igreja, sem terem o dever de lhes prestar contas. Quando essas prerrogativas se constituem, seja em matéria de pregação, ensino, publicação, visitação, reuniões, administração dos meios da graça ou em qualquer outra área de atividade da igreja, a realidade clerical se forma.
(63) Locais.
(64) Alusão ao costume de misturar gritos às orações e à pregação da palavra, nas Igrejas Locais.
(65) Nessa afirmação está implícita a referência à editora mantida pela obra das Igrejas Locais no Brasil, na época deste escrito. A editora existe até hoje.
(66) O exemplo de Jesus, por um lado, mostra que a obra de Deus está relacionada à instituição. Ao chamar e ensinar discípulos, escolher 12 e também 70 dentre eles, treiná-los para pregar o evangelho de vila em vila e de cidade em cidade, por um determinado método, ao receber ofertas de um pequeno número de famílias abastadas e manter a administração desses recursos nas mãos de um dos 12, Jesus não só adotou práticas de organização ministerial preexistentes como reproduziu uma verdadeira instituição de Israel: a do rabi seguido por seus discípulos. Esses fatos desfazem o mito de que Jesus não recorreu à organização ou a instituições da sua época. Por outro lado, os mesmos exemplos evidenciam que ele não as levou longe demais. Jesus jamais deu início a uma grande instituição.
(67) No Brasil, a difusão do microcomputador e a revolução da Internet desenvolveram-se entre a redação e a publicação de Um sonho de comunhão, tornando necessário atualizar o texto às mudanças. As redes sociais da Internet têm-se mostrado particularmente relevantes para o desenvolvimento da comunicação entre os cristãos. A incrível diminuição das distâncias, que elas propiciam, favorece a aproximação dos espíritos. É claro que, ao mesmo tempo, elas trazem novos problemas, como os excessos, a utilização criminosa da mídia e o desenvolvimento da comunicação mínima. Porém, a especialização dos sites, o minucioso desenvolvimento das regras que os regem e as características ambíguas da publicidade, que excita e ao mesmo tempo inibe as pessoas, contribuem para a colocação de limites aos mencionados problemas. De forma que a transparência, instantaneidade e disponibilidade muito maior de informações, nas redes sociais, tendem a se transformar em ganhos para os relacionamento baseados em veracidade.
(68) Uma característica do uso da linguagem escrita, pelas novas gerações, já presente em 1991 e que se acentuou extraordinariamente, com a difusão do microcomputador e a revolução da Internet, é o emprego da linguagem mínima. Em termos literários, os jovens plugados na Internet são, antes de tudo, minimalistas. O Twitter é uma das expressões mais bem acabadas dessa tendência que tem suas razões de ser, mas precisa ser equilibrada pela preservação e o desenvolvimento dos hábitos propriamente literários.
(69) As novas tecnologias gráficas resolveram boa parte desse problema, que era bastante agudo em 1991. De modo geral, as condições hoje existentes são muito melhores e mais propícias que as de 1991, para a implantação das propostas de Um sonho de comunhão. A Internet e as redes sociais, em particular, foram responsáveis pela maior parte da mudança de situação.
(70) O padrão a que o texto alude é o dos hinos evangélicos clássicos. Um novo padrão musical surgiu, no mundo cristão brasileiro, a partir dos anos 1970. Muitas igrejas evangélicas passaram a adotá-lo, porém não as Igrejas Locais.
(71) Antevendo as enormes dificuldades e lutas em que o texto viria a envolver-me.
(72) LUTERO, Martinho. Citado em História da Reforma do décimo-sexto século. D’AUBIGNÉ, J. H. Merle. Casa Editora Presbiteriana. Vol. IV, p. 72.
(73) Atos 18:3 indica que Paulo não trabalhou na fabricação de tendas só quando esteve em Corinto. O texto afirma que ele, Áquila e Priscila “eram do mesmo ofício”. Portanto, que Paulo exercera o trabalho em questão muito antes de se encontrar com o casal advindo da Itália. Vale observar que, no contexto do mundo romano, é difícil imaginar que as tendas fabricadas por Paulo não fossem vendidas para o exército imperial, já que as residências de alvenaria estavam disseminadas entre a população civil. Pode ser que a demanda regular de habitações portáteis, pelo exército romano, fosse uma das razões pelas quais Paulo manteve sua produção, já que o seu comprometimento primeiramente com o judaísmo, depois com a pregação do evangelho por certo não lhe permitia depender de trabalhos mais sazonais.
(74) A referência é ao misticismo da época medieval. Encarar questões práticas, como o trabalho, de maneira mística é um grave equívoco. As Escrituras não poderiam colocar os assuntos da vida material mais claramente a salvo de exageros religiosos. Família, criação de filhos, casamento, profissão são plenamente protegidos, por elas, contra os perigos do fanatismo. Aquele que não tem cuidado da própria família tem negado a fé e é pior que o descrente (1 Tm 5:8). A proibição do casamento é fruto de uma consciência cauterizada (1 Tm 4:2-3). Quem não quer trabalhar não deve comer (2 Ts 3:10). Embora não fosse um costume na época, devemos dedicar atenção análoga ao estudo das crianças e jovens. Nessas quatro áreas da vida (família, casamento, estudo e profissão), decide-se o que um ser humano será. Na obra cristã, não devemos menor respeito a essas quatro coisas.
(75) Essa passagem fornece um dos motivos que me levaram a deixar o serviço em tempo integral na obra das Igrejas Locais. Se a minha visão da restauração se tornara tão distinta da que prevalecia entre as Igrejas, era no mínimo honesto eu passar a financiar o meu próprio trabalho cristão. Por isso, no mesmo ano (1991), deixei a Editora Árvore da Vida e comecei a trabalhar como advogado, profissão que exerço até hoje.
(76) O exemplar de Um sonho de comunhão, a partir do qual este texto foi produzido não contém as últimas páginas. Para suprir a ausência de uma conclusão, redigi o Posfácio acima, que não tem o objetivo de substituir as páginas faltantes, mas realizar um balanço do estado em que a prática dos temas abordados se encontra, mais de duas décadas depois. Porém, devido à minha nova inserção no meio cristão, ao contrário do que ocorre no texto anterior, no Posfácio, não tomei as Igrejas Locais como referencial primário para a avaliação da restauração.
(77) Frase atribuída ao poeta romano Terêncio (195-159 a. C.).
CAPÍTULO 1
1. Uma comunhão positiva (1)
* Os números entre parênteses indicam as notas explicativas no final do texto (2)
Cão foi amaldiçoado por haver visto a nudez e embriaguez de seu pai com prazer, enquanto seus dois irmãos foram abençoados por a haverem coberto respeitosamente. Embora seja fora de dúvida que Noé, pai dos três, errara ao se entregar à bebedeira, Deus não se agradou do ato negativo de Cão, mas justificou a atitude de Sem e Jafé, porquanto esta edificou (3) e aquele apenas denegriu.
Toda economia de Deus é positiva. Se devemos rejeitar o mal, condená-lo e o odiar, não é porque Deus dispense atenção a ele. A única atenção, que o Ser puro e imaculado concede, é ao bem, jamais ao mal. O cuidado do mal, mencionado com tanta frequência na Bíblia, não é um envolvimento com ele e sim um bem, já que a condenação e a rejeição do mal são bens. Deus não atenta para o mal ao condená-lo, mas para o bem de o condenar.
Precisamos olhar cuidadosamente para esse ponto. Quando nos vemos diante de uma situação negativa a tratar, como não podemos negar ser o caso neste texto (4), necessitamos aprender a lição dos filhos de Noé. Diante de Deus, a atitude de Cão é execrável. Noé era uma autoridade tanto espiritual quanto natural para ele, como quem lhe comunicara a palavra de Deus e como seu pai. A autoridade é uma das coisas mais positivas e caras a Deus. De modo nenhum, Cão a deveria ter desconsiderado, ou tratado levianamente. Era-lhe possível não aprovar, nem pactuar com o erro de seu pai, sem arranhar a dignidade positiva, que este possuía diante de Deus.
O mal nunca é a preocupação de Deus, que não se ocupa dele, nem deseja que seu povo se ocupe. Por isso, a advertência discorre conosco: sede “sábios para o bem e símplices para o mal” (Rm 16:19). Se lidamos com o mal, é unicamente para o condenarmos e o rejeitarmos. Quão imensa desolação se abate sobre nós, quando as ameaças do mal, os problemas e terríveis opressões que ele introduz ocupam o nosso coração! A igreja é grandemente prejudicada por isso, por não compreender, nem praticar a lição de que Deus jamais perde tempo com o mal, mesmo quando lida com ele.
Por isso, se damos resposta azeda ao azedume de quem se nos opõe (5), é tão-somente com os olhos fitos na doçura do que isso representa. Assim como o sal misturado à laranja azeda torna-a mais doce, o repúdio ao mal é um bem. Não devemos, porém, ir longe demais nesses movimentos. Basta que a mentira não fique sem resposta, e boa resposta. No mais, a prática do bem pelo bem é o que nos incumbe desenvolver.
Polêmica e discussões muito acesas podem ser sustentadas por membros da igreja, mas não no interior dela (6). Enquanto puder produzir dividendos para o evangelho, a polêmica deve ser travada. Paulo o fez extensivamente nas sinagogas, nas praças e nos conselhos, com judeus, gregos, epicureus, estóicos, autoridades ou com quem se apresentasse perante ele. É muito comum o livro de Atos usar o verbo arrazoar para descrever a atividade de Paulo, na pregação aos não convertidos. Entre os convertidos, porém, Paulo rejeitava e proibia com todo rigor a polêmica (Tt 3:9; 1 Tm 1:3-4 ) (7).
A igreja tem a ver com fé, não com polêmica. Discussão é de nossas portas para fora (8), e ainda assim apenas quando possa produzir algum dividendo para o evangelho (9). Não devemos esquecer que a epístola geralmente considerada a mais profunda, entre os escritos paulinos, na qual nenhum problema ou situação negativa é mencionado, a Carta aos Efésios, foi dirigida a testemunhas de um dos mais intensos tiroteios de palavras e doutrinas daquele tempo (1 Tm 1:3-4). Ainda assim, Efésios não menciona esse antecedente. Ela se limita a derramar a sã doutrina, de modo resplandecente, sem críticas, sem ataques, sem insinuações, sem sequer mencionar o mal, deixando-nos entrever que é com a afirmação da verdade, não com pelejas ou repulsas, que se edifica a igreja.
Se nuvens negras sombreiam nosso horizonte e nos preocupam, é tão-só na medida em que sentimos poder extrair delas bens e edificação. Não nos ocupamos com esse negócio por outra razão. Não choramos pelos muros derrubados e as portas queimadas de Jerusalém, a não ser por amarmos as suas muralhas em pé e as suas portas no lugar. Nenhum proveito produz afirmarmos que algo é doce, enquanto outros afirmam que é amargo, repetir que é doce, enquanto repetem que é amargo. Nosso encargo é bem outro, é buscar objetivamente um resultado positivo para todos. O melhor, o único bem que podemos fazer aos irmãos é dispensar-lhes Cristo e nos esmerarmos por falar-lhes a palavra de Deus. Isso é realmente positivo, e desejamos com isso honrá-los neste opúsculo. Deixamos ao Diabo a tarefa de se ocupar com o mal. Não acreditamos que seja pela habilidade de criticar por criticar, de denegrir e destruir, que alguém deva ser reconhecido, mas por comprovar sua habilidade de acrescentar edificação nova aos ouvintes e à igreja de Deus, enquanto trata o que tem de tratar.
2. A situação atual da restauração
As nuvens que divisamos no horizonte como um mal e um perigo (10), na restauração do Senhor (11), deveras nos preocupam. Temo-nos calado longamente(12), porém perguntamos se o tempo de falar não é chegado. Segundo Eclesiastes, “há tempo de estar calado e há tempo de falar” (Ec 3:7). O tempo de falar não falha; vem inexoravelmente. Não creio que o reino milenar será esse tempo (13).
Quando se trata de uma necessidade clara de Deus (14), não devemos declarar: “Ainda não veio o tempo, o tempo em que a casa do Senhor deve ser edificada”, mas perguntar com toda a honestidade: “Acaso é tempo de habitarmos nós em casas apaineladas, enquanto esta casa permanece em ruínas?” (Ag 1:2,4) (15).
Creio que o tempo de falar é chegado e chegará ainda mais (16), se a situação que iremos descrever a seguir continuar (17). É hora de tocar a ferida (18) com grande esperança e cuidado, para contribuirmos, no que nos compete, para as correções necessárias, uma vez comprovado serem elas realmente necessárias.
Desde o início da busca de um novo caminho prático para a vida da igreja, na restauração do Senhor, em 1984, a hora de falar é chegada e tem chegado cada vez mais (19). O povo do Senhor tem clamado, há um anseio mais ou menos claro (20), no coração de muitos, e esse é um sinal de que o tempo da vantagem de Satanás (21)aproxima-se do fim. Êxodo 1 fala que uma pesada opressão foi colocada sobre os filhos de Israel no Egito, mas cala totalmente que eles tenham levantado clamor ao Senhor dos exércitos. Apenas no final do capítulo 2, esse clamor é produzido (Êx 2:23-25). Quando isso ocorre, Deus levanta Moisés, imediatamente, para pôr fim à opressão. Portanto, o clamor do povo de Deus é o sinal de que a opressão está por encerrar-se.
Por mais que Moisés deva passar quarenta anos no deserto, para que seu zelo natural termine e o zelo de Deus possa consumi-lo, o clamor de Israel não pode ser desconsiderado. Quando ele se ergue aos céus, a vantagem de Satanás está terminada e a hora da libertação é chegada. Esse clamor já existe hoje.
É claro que nem todos os assuntos amadurecem ao mesmo tempo. Porém, várias questões latentes desde 1984 amadureceram o bastante para serem tratadas. Algumas já vieram à baila; outras não têm cessado de amadurecer para virem a ser tratadas. Creio que, se o tempo de umas já chegou, o das outras não pode estar longe (22). Cada passo que é dado com sabedoria e sem precipitação, no sentido de torná-las conhecidas, ainda que primeiramente de um círculo menor de pessoas (23), é sinal de que o tempo é chegado, em parte, e está por chegar, por outra parte. Incumbe-nos tratar positivamente dessas questões.
A restauração do Senhor, por que temos estado empenhados, não ocorre de uma vez por todas. Lutero anunciou com clareza estarrecedora, para a época, que a fase de centralização papal da igreja corresponde a um cativeiro babilônico dela (24). De fato, a história do Velho Testamento é um retrato geral do que tem de acontecer com a igreja cristã na nova aliança, na medida em que as coisas antigas são sombras da realidade atual.
Ao cativeiro papal da igreja, deve seguir-se a restauração dela, do modo como ao cativeiro de Judá seguiu-se o retorno dos exilados, a reconstrução do templo, dos muros, da cidade santa e de todo o país. Nesses poucos itens principais consistiu quase toda a restauração do povo outrora levado cativo.
A história do Velho Testamento nos mostra que a restauração não se dá de uma vez. Primeiro, Ciro publicou seu decreto e ocorreu o retorno gradual dos exilados, depois o templo começou a ser construído, a reedificação foi interrompida por dificuldades circunstantes, foi retomada e concluída, os muros de Jerusalém foram reerguidos, e o esplendor, devolvido à capital de Judá.
As setenta semanas de Daniel dividem-se em duas seções até o Cristo (sete mais sessenta e duas semanas), porque as primeiras sete cobrem um período completo da restauração. Daniel meditava sobre a restauração, quando lhe foi transmitida a profecia (Dn 9:2-3). Por isso, a reedificação das praças (a cidade) e das circunvalações (os muros) de Jerusalém é mencionada explicitamente, quando da explicação das duas seções de semanas (Dn 9:25). Elas integram o período inicial da restauração,nas primeiras sete semanas (25).
Isso indica que a restauração da igreja deve ocorrer por fases, não de uma vez. Muitos anos após o fim do cativeiro, o retorno dos exilados e a reconstrução básica do templo, Neemias chorou ao saber a situação de Jerusalém, e não foi de alegria (Ne 1:3). A própria restauração do templo demandou várias etapas. Interrompida por dificuldades circunstantes, ela foi retomada, sob a pregação de Ageu e Zacarias, anos depois. Nos dias de Neemias a construção do templo ainda recebia seus toques finais. Portanto, tudo se deu por etapas.
A restauração da igreja deve seguir esse exemplo. Ela não se completou com a Reforma (26). As denominações protestantes precisam deixar seu orgulho e reconhecer que não realizaram senão uma parte menor dela (27). Ninguém chegou ao fim ou ao ápice. É provável (28) que nós, na restauração do Senhor, tenhamos chegado a uma etapa mais avançada da restauração (29), porém ainda resta caminho considerável a trilhar (30). Não nos devemos impressionar demasiadamente com o que já foi restaurado, entre nós, sem perceber o que há para ser restaurado (31).
A igreja de Deus precisa ser cabalmente restaurada. Por isso, o que ainda resta recobrar nela deve tomar o lugar do nosso interesse pessoal,como o texto de Ageu menciona. Não nos aventuraremos na interpretação de detalhes do quadro tipológico da restauração do povo de Deus no Velho Testamento, mas cremos que não é muito chamar a atenção para a particularidade de que, entre as últimas coisas a serem restauradas na igreja, está a pluralidade no interior da unidade. Assim como o restante da cidade de Jerusalém e o país de Judá como um todo foram restaurados muito depois do templo e dos muros, as várias formas de expressão da vida da igreja (32) ainda estão por ser restauradas.
Um dos passos finais, na restauração da igreja cristã, é o aprofundamento da diversidade no interior da unidade, sem prejuízo desta. Se somos pelo Senhor e a restauração de sua igreja (33), devemos ser também por este ponto. Ou será que não cremos nas indicações da Sua palavra? Não estou a afirmar que a pluralidade no interior da unidade seja a única coisa implicada na restauração final da igreja, mas que ela está incluída ali.
A restauração da igreja, após o seu cativeiro babilônico, dá-se gradualmente. Ela é um processo, como toda obra de Deus. Que obra Deus completou de uma vez e por um único instrumento humano, sem que o bastão tivesse sido passado(34)? Abraão recebeu a ordem de ir para a terra de Canaã, mas apenas a sua posteridade a possuiu; Moisés tirou o povo do Egito, mas Josué o introduziu na boa terra; Davi conquistou o mais amplo território e formou o mais forte Estado hebreu da Antiguidade, porém o apogeu e o templo vieram com Salomão; Isaías e Jeremias se sucederam para completar a mensagem ao povo antes do exílio; Ezequiel e Daniel durante o exílio; Ageu, Zacarias e Malaquias depois; João preparou o caminho que Cristo trilhou, e até mesmo este, embora fosse o Filho, precisou não só da preparação de João, mas também dos apóstolos que o sucederam. Deus se apraz nessa sucessão, nessa expressão da unidade dos Seus servos. Uns ceifam onde não semearam; outros trabalham, e seus sucessores entram no seu trabalho (Jo 4:38).
Não é diferente com a restauração da igreja, que não foi completada por Martinho Lutero (35) ou quaisquer outros cristãos. Ela não está acabada ou a aguardar os retoques finais, antes da volta do glorioso Rei. Há uma obra considerável e substancial a ser realizada. Não que a volta de Cristo esteja distante. O Espírito de Deus pode realizar prodígios, em pouquíssimo tempo, para abreviá-la. Porém, ainda resta uma restauração substancial por realizar-se.
Onde está o sal puro, que preserva a terra e impacta o século com a sua pregação(36)? A influência do Cristianismo degradado (37) não realiza essa imagem. Só o testemunho da igreja restaurada o faz. Onde está a prática plena do sacerdócio universal e o fim do clericalismo? Onde a unidade acrisolada como ouro, numa diversidade interna fortíssima? Onde a expressão não institucional dessas realidades? Mencionarei quatro colunas necessárias, no momento atual da restauração e que compreendem algo do que, no meu entender (38), ainda falta à plena restauração da igreja. As colunas respondem as quatro perguntas acima.
Além das coisas que nunca foram restauradas e conservadas no seu novo estado, há ainda outros males que escurecem o horizonte, em algumas partes do nosso território. Resumo-os em quatro coisas: tendências à centralização universal da obra ou, ao menos, de aspectos dela, riscos de institucionalização excessiva, restrições sistemáticas à comunhão e tendências de esfriamento espiritual. Não estou apto a tratar dessas coisas do ponto de vista da autoridade oficial, nem possuo informação suficiente sobre as igrejas na restauração, para o afirmar de modo muito amplo. Valho-me de observações do nosso irmão Lee e do testemunho da palavra de Deus sobre o assunto, lembrando que todo cristão possui o direito, quando não o dever, de dizer o que julga necessário para não pecar por omissão.
Por outro lado, como disse Philip Jacob Spener, no corpo a dor, a infecção ou a febre de um membro são sinais indicativos do estado de todo o organismo, assim como o remédio administrado a um membro restaura a saúde de todo o corpo. Portanto, mesmo o que observo pessoalmente deve ser o sinal de problemas muito maiores.
Não é preciso explicar melhor cada aspecto das nuvens negras mencionadas. Não é necessário lambuzar as mãos e o corpo com a sujeira; basta indicá-la claramente. Tampouco é preciso apressar o tratamento dos males. Pelo contrário, é preciso deixar que cada semente germine, cresça e dê fruto. Estamos em plena fase de crescimento, quando já é possível discernir a espécie da planta, ou talvez nos primeiros frutos. Somente quando os frutos se tornarem amplamente conhecidos de todos, as coisas se revelarão de modo cristalino e geral. Nossa esperança é de que os frutos das más sementes possam vir a ser compensados pelo arrependimento (39).
Sei por experiência pessoal que discussões de princípios (40) são de pouca utilidade na igreja, de modo que, ao conteúdo das ponderações deste texto, espero ver um dia somada a prática delas, para que, por frutos reais e não apenas princípios , possamos contribuir para uma comunhão mais plena e o avanço da restauração.
Não há qualquer intenção ou germe faccioso, que eu saiba, em se desejar isso. Pelo contrário, se alguém discerne os acontecimentos, deve compreender que o meu objetivo e o dos que veem as coisas de maneira semelhante é promover a unidade e a comunhão. Temos um assunto de comunhão a tratar com os irmãos que estão à frente entre nós e com os santos de maneira geral. Sabemos em quem temos crido e que o Senhor é poderoso para nô-lo conceder.
Não propomos algo particular, individual ou restrito. Propomos uma vida da igreja integral. Nada além disso e nada menos do que isso. Para ser ainda mais claro: não buscamos algo com ênfase intelectual, como a pregação do evangelho nas Universidades. O centro da obra de Deus é a igreja; portanto, é a vida da igreja integral que almejamos.
Daí o título do presente opúsculo: um sonho de comunhão. Tenho um sonho e espero a sua realização no Senhor. Busco a comunhão no sentido mais prático de intercâmbio de sentimentos e revelações, em prol da restauração do Senhor. Oro para que Deus torne possível conversarmos um dia, sobre o conteúdo destas páginas, mais o que o Espírito Santo queira acrescentar, menos o que Ele queira retirar (41), com o fito de novos avanços na restauração que é do Senhor e de ninguém mais.
Infelizmente, do modo como as coisas vão, só é possível conversar e ter esperança de correção, sobre frutos bastante clamorosos (42). A força e o trunfo estão na prática. Que Deus nos abençoe e abra o caminho para a necessária prática destes princípios.
CAPÍTULO 2
A partir de 1984, o irmão Witness Lee passou a falar da necessidade do que denominou um novo caminho na restauração da igreja. Não de um novo caminho referente à verdade ou à experiência interior de Cristo, pois essas coisas são por natureza imutáveis na restauração, mas de um novo caminho concernente à prática concreta da vida da igreja. Desde então, Lee tem exposto como essa prática sofreu certo envelhecimento espiritual e estagnação, ao menos nas igrejas mais antigas.
Diante disso (43), nosso encargo é apresentar quatro colunas que a obra de restauração reclama. Já não é possível seguirmos da maneira prática que adotamos, em dias passados, com uma alteração aqui, outra ali. Chegamos a um ponto crítico, em que ou mudamos radicalmente, ou nos degradamos (44). Reitero que a radical mudança necessária não é nas grandes verdades bíblicas ou na experiência de vida interior com Deus, mas na prática concreta da vida da igreja.
Obviamente, não é possível descer aos detalhes de uma programação prática para o novo caminho. Se o fizéssemos, estaríamos a suprimir a necessidade e o próprio trabalho do Espírito Santo. O que se faz necessário é procurarmos juntos as diretrizes principais, repito: principais e não secundárias da obra da restauração do ponto atual em diante. Precisamos vislumbrar claramente o rumo geral a ser seguido e não desenhar um mapa com todos os acidentes do percurso futuro. Para isso, portanto, para buscar o rumo da obra da restauração avançada de Deus, é que passarei a discorrer sobre as quatro colunas.
1. A comunhão dos apóstolos (45)
Os grandes pontos da fé cristã referentes à verdade e à vida não são passíveis de alteração. Pelo contrário, conservá-los e obter novos progressos no conhecimento deles deve ser sempre o nosso primeiro e maior encargo. Quando falamos das quatro colunas da restauração avançada da igreja, a preservação desses pontos e o progresso no seu conhecimento aparecem logo como a primeira e principal coluna. Qualquer retrocesso, nesse terreno, importa o perigo de desnaturação da experiência cristã e um tipo de degradação.
De modo nenhum, devemos negociar nesse campo. A comunhão dos apóstolos, na qual estão incluídas todas as riquezas de verdade e de vida que possuímos, é normativa na igreja. Ela é a regra que estabelece o que deve ser considerado cristão. Por isso, a primeira coluna da restauração avançada consiste em preservar e progredir no conhecimento da inestimável herança que recebemos dos primeiros apóstolos.
A comunhão dos apóstolos não envolve apenas ensinamentos objetivos, mas também experiências subjetivas. Toda a experiência do Cristo subjetivo é um tipo de comunhão, um ir e vir constante, um relacionamento com Deus. Assim como toda a vida da igreja é um relacionamento com Deus e os homens, um ir e vir de sentimentos, revelações, desfrute, consolação, admoestação etc.
Comunhão é um trânsito ou fluir (46). No momento em que esse fluir para, perde-se a comunhão. Quando o ir e vir encontra barreiras, algo se instala sorrateiramente em lugar da comunhão. Outro tipo de relacionamento aparece, que não é mais a comunhão ou ao menos não a “comunhão dos apóstolos”. Esta é a comunhão sem obstáculos, que se estabelece uma vez respeitadas as bases de fé mencionadas antes. De modo que qualquer relacionamento com obstáculos tem algo diferente dessa comunhão.
Para frutificarem, as verdades e experiências que recebemos de Deus devem produzir a comunhão com Deus e com os outros homens. Atos 2:42 nos ensina que o resultado final da herança que recebemos dos apóstolos é essa comunhão, esse ir e vir sem barreiras com Deus e com os homens.
Que nada nos leve a perder seja a direção do verdadeiro ensinamento bíblico, seja o ir e vir sem barreiras que dele resulta. Tenho arrepios quando percebo barreiras reticentes, quase costumeiras,a se erguerem no meio do nosso ir e vir (47). Deus nos livre desse mal.
2. O crescimento extrínseco da igreja
O novo caminho (48) poderá vir a constituir uma etapa inteiramente nova de restauração da igreja. Depois das etapas dos reformadores, dos primeiros herdeiros da Reforma, da restauração original com os Irmãos Unidos na Inglaterra, da retomada da restauração na China e da difusão dela pelos sete continentes (49), os fatos indicam que estamos no início de um novo período da restauração da igreja.
Desde que a restauração da unidade perdida com a opressão católica (50) e as divisões protestantes (51) passou a ser um objetivo prioritário, na época dos Irmãos Unidos,o crescimento extrínseco (numérico) da igreja foi cada vez menos enfatizado. Não que a pregação do evangelho tenha deixado de se desenvolver, nos períodos em que a restauração da unidade se tornou a palavra de ordem, porém a ênfase dessas etapas foi na situação interna da igreja. Muitíssimo se adiantou, assim, o desenvolvimento intrínseco da vida da igreja, enquanto o seu crescimento extrínseco (entenda-se a expansão numérica) foi por assim dizer reduzido.
A restauração completa da igreja, porém, inclui os dois aspectos: tanto o crescimento da vida interior quanto a multiplicação exterior. Para que Cristo possa voltar, é necessário que o evangelho do reino (com ênfase coletiva) seja pregado a toda nação (Mt 42:14). Do contrário, por mais que cresçamos interiormente em vida, o propósito divino não será alcançado.
Essa expansão específica (da igreja após a restauração da unidade) está relacionada à administração das eras por Deus e à segunda vinda de Cristo. Quem pode negar a importância dela? A finalização da economia de Deus, na presente era, pressupõe a expansão mundial das boas-novas, na base na oração sacerdotal de Jesus em João 17 (“a fim de que sejam um e o mundo creia que tu me enviaste”) (52).
Esse é o crescimento extrínseco da igreja, que deve contrabalançar o notável crescimento intrínseco experimentado onde a unidade cristã encontrou terreno fértil. A restauração completa inclui a recuperação do impacto da sua pregação, a partir da experiência de uma genuína unidade. Na época dos apóstolos, a igreja possuía sumo impacto: a pregação de Pedro e de Paulo ganhava multidões, sem recorrer a artifícios (At 2:41,47; 4:4,32; 5:13-14; 13:44; 14:18; 17:4,6; 21:20). Representantes de todas as camadas sociais, desde pessoas de alta posição (53) até as classes humildes, engrossavam o cortejo do evangelho. Hoje, porém, a pregação baseada numa vida da igreja mais pura (não excessivamente institucional), está reduzida a um impacto bastante diminuto.
Compare-se o efeito da obra primitiva da Reforma, que conquistou nações inteiras e derreteu o coração de reis, com a bem menos difundida obra inicial dos Irmãos Unidos, na Inglaterra, ou com a restauração entre as Igrejas Locais no período áureo. A sensação que nos invade, ao realizar as comparações, é de que a restauração perdeu impacto extrínseco.
Por isso, é necessária a recuperação do impacto que exprime a natureza dinâmica da igreja e do evangelho. Não se trata de uma grandiosidade desvirtuada, como a do Catolicismo Romano, que acrescentou elementos mundanos e até idólatras ao evangelho. Trata-se de mostrar ao mundo que, sem se desnaturar, a igreja é algo tremendamente dinâmico.
É um fato que a diminuição do crescimento extrínseco da igreja está em razão direta do avanço do naturalismo no mundo. Naturalismo é a noção de que as coisas e os fatos são suficientemente explicados por causas naturais e não sobrenaturais. A história da piedade, no mundo, é resumida na experiência do seu patriarca: “Creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gn 15:6); no entanto, a fé tem enfraquecido, onde o naturalismo avança. Nem sempre, ideias materialistas substituíram diretamente o evangelho, porém elas expediram a licença para que a tendência natural da carne afastasse as pessoas de Cristo.
Esse fato tão óbvio não demanda ulteriores explicações. O naturalismo e o materialismo tornaram-se os maiores inimigos do crescimento extrínseco da igreja. Trata-se de duas ou de uma mesma heresia (54) básica que, espantosamente, suscita pouca resposta no meio cristão hoje em dia. Nosso (55) estarrecedor silêncio indica que nos acostumamos com o mal ou não sabemos como o refutar. Lutero declarou que heresias devem ser combatidas com escritos, mas a triste verdade é: que escritos cristãos têm-se erguido à altura do naturalismo para desbancá-lo? Que espada tem sido sacada para o combater? O espantoso silêncio dos cristãos é a prova da sua derrota, do seu recuo, da sua incapacidade de reagir à onda naturalista. Finjimos que não ligamos, quando no fundo, ah, como ligamos!
É claro que a alienação é um modo de seguir adiante. Porém, é um modo satisfatório? Que cristãos de outras eras recuaram, tão completamente, diante de um mal, quando seus efeitos se erguiam aos céus? Em que outra época os piedosos, chamados coluna e baluarte da verdade (1 Tm 3:15), calaram-se e se omitiram tanto?
Nem tomo em consideração a reação muito tímida e indouta, que se encontra aqui e ali, na literatura evangélica contra o naturalismo. Sua incompetência é o atestado de seu fracasso. Contra ela discorre ela mesma. Seu discurso é uma sentença condenatória. O naturalismo acusa os golpes que lhe são desferidos, com ares titânicos, no mundo evangélico, como doloridas picadas de joaninha. Enquanto isso, o estrago aprofunda-se: é incalculável o número de cristãos que deixaram de crer ou passaram a crer na Bíblia com reservas, por causa do naturalismo, que assume nomes pomposos como modernismo, ao ingressar e fazer escola na seara teológica; e o número de vocações que se perdem para a causa de Cristo não é menor.
Não devemos ficar excessivamente preocupados com cada nova heresia que surge, nos supermercados e shopping centers da fé, porém esta heresia é especial: ela frustra o avanço do evangelho, retira-lhe a escala que o seu progresso deve ostentar. A restauração do crescimento extrínseco, a segunda coluna a que nos referimos, terá de tratar desses problemas, se tiver de se efetuar. Ela terá de combater a heresia do naturalismo e removê-la do caminho. Para Cristo reinar, para ele vir sobre o cavalo branco, no fim dos tempos, o naturalismo terá de deixar de reinar.
Em História da graça (56), ocupo-me deste assunto. Trata-se de um texto escrito contra o naturalismo, mas que tem por característica apresentar as Escrituras de maneira assimilável pelos que professam aquela doutrina. Só oferecendo algo superior às pessoas, podemos levá-las a abandonar o que é inferior. Afinal, se não somos capazes de demonstrar claramente a superioridade dos nossos pontos de vista, como podemos continuar a afirmar que nos assiste razão?
O naturalismo deve ser combatido pela igreja como heresia que é, não como ciência ou filosofia. A igreja não se preocupa com as coisas profundas do mundo enquanto sistema autônomo. O campo em que lhe cabe combater o naturalismo é o da teologia. No terreno teológico é que o combate ao naturalismo deve ser travado pela igreja cristã.
Creio que a revelação de que mais carecemos hoje não é de algum ponto fundamental da verdade ou da fé, mas do modo prático de prover testemunho dos valores cristãos,num mundo cujas estruturas foram profundamente transformadas. A necessidade maior do nosso tempo é prática, não abstrata. É hora de vislumbrarmos o caminho para essa meta e de o cruzarmos intrepidamente.
As quatro colunas da obra avançada da restauração, que aqui apresentamos, constituem um resumo do caminho prático mencionado acima. Resumo não se confunde com desenvolvimento exaustivo. Não passa de apresentação geral, com a indicação de direções a seguir. Para mais detalhes a respeito de pontos específicos aqui mencionados, devo remeter os interessados à História da graça e outras obras em que trato deles, assim como um recente opúsculo sobre a unidade da igreja (57).
3. O aperfeiçoamento da unidade
A terceira coluna da restauração é o aperfeiçoamento da unidade cristã. Desde os Irmãos Unidos, uma posição foi tomada por cristãos preocupados com a unidade da igreja. Os Irmãos tornaram-se conhecidos por terem deixado de se reunir nas igrejas oficiais de sua época, vale dizer, na Igreja Anglicana e nas denominações protestantes (58). Nesse campo, eles deram um passo adicional ao dos reformadores, que haviam abandonado a Igreja Católica.A preocupação fundamental dos Irmãos foi com a unidade da igreja, na base única e exclusiva do amor fraternal, independentemente de opiniões em questões secundárias de fé.
É verdade que os Irmãos também se envolveram em sérios problemas de divisão. Parece que eles não conseguiram manter o rol de doutrinas essenciais suficientemente enxuto para receber os que creem em Cristo sem dificuldades. Então, uma nova obra do Espírito de Deus, em prol da unidade, foi erguida na China. Na década de 30 deste século (59), Watchman Nee e os cristãos a ele associados passaram a utilizar o princípio uma cidade - uma igreja para promover a unidade entre os cristãos. Assim como no tempos dos primeiros apóstolos não havia Igrejas Presbiterianas, Batistas, Pentecostais, Episcopais etc., mas apenas a igreja em Jerusalém (uma cidade), em Éfeso (idem), em Corinto (idem), os cristãos atuais devem viver em unidade no interior das cidades (60).
Essa sucessão de acontecimentos mostra os avanços alcançados na restauração da unidade cristã. Em João 17:23, Jesus orou para que Seus discípulos de então e de todas as eras fossem “aperfeiçoados na unidade”. Alguém só pode se aperfeiçoar no que ainda não é perfeito. A unidade cristã não foi conquistada de uma vez por todas, mas deve ser fruto de um progressivo aperfeiçoamento. A História da Igreja tornou evidente que esse aperfeiçoamento continua até o dia de hoje.
Infelizmente, muitas outras coisas têm sido aperfeiçoadas no meio cristão, em lugar da unidade. A tradição, formas exteriores como o batismo, a pregação em lugares fechados e abertos têm todas sido aperfeiçoadas. A unidade pela qual Cristo orou é a que mais permanece carente de aperfeiçoamento. Devemo-nos conscientizar de que novos passos precisam ser dados nessa experiência. No texto A unidade da igreja, tratamos detidamente desse assunto. Mostramos particularmente que a genuína unidade surge no seio de uma grande variedade de entendimentos, interpretações, ministérios, obras, linhas de atuação e tudo o que possa ser positivo.
A própria natureza nos ensina que a multiplicação depende do pluralismo. O frio e o ressecamento do inverno costumam brotar de frentes localizadas de ar polar. Porém, o florescimento da primavera é totalmente descentralizado. Se uma necessidade do nosso tempo é a expansão e multiplicação, certamente precisamos de uma primavera, de um aprofundamento da pluralidade no interior da unidade.
A diversidade de que precisamos, por certo, é muito maior que a que praticamos. E por incrível que possa parecer, há entre nós tendências a aumentar ainda mais a centralização da obra. Claro que essas tendências só poderão produzir resultados funestos e perigosos (61). Por isso, creio que a necessidade de avanço da unidade entre nós está mais no aprofundamento da diversidade do que da centralização. Não me refiro à diversidade do Protestantismo oficial, que não raro esmiúça a unidade, ou à diversidade de Babilônia, mas à diversidade compatível com a unidade, à diversidade de Jerusalém e Judá, que é um verdadeiro crisol para a unidade. Nessa unidade nutrida por forte diversidade, a comunhão anula as distâncias físicas e espirituais entre os homens.
4. O sacerdócio integral dos santos
Por fim, a quarta coluna da obra avançada da restauração é a prática do sacerdócio universal e integral dos santos, com a abolição dos costumes de autoridade ostensiva na igreja. Martinho Lutero pregou o retorno à prática do sacerdócio universal, no século XVI. Para ele, esse sacerdócio significava que todos os cristãos são iguais diante de Deus, sem diferenciação de classes ou ordens. Porém, a visão de Lutero e dos outros reformadores, a esse respeito, encontrou cerrada oposição. Ela foi traída, na maior parte do meio cristão, e só avançou, entre muitas dificuldades, por meio de remanescentes que a aprofundaram.
Só na época dos Irmãos Unidos, as práticas clericais foram abolidas. Mesmo assim, a prática do sacerdócio universal, entre os Irmãos, limitou-se ao oferecimento de igual oportunidade para os cristãos ministrarem a palavra de Deus e experimentarem os meios da graça (práticas espirituais). Entraves ao desenvolvimento de outros aspectos do sacerdócio continuaram a existir.
A nova situação gerada, a partir dos Irmãos Unidos, pode ser resumida na afirmação de que o sacerdócio universal passou a ser experimentado, porém não o integral. Sacerdócio universal é aquele em que cada cristão é um ministro, portanto exerce o seu ministério em alguma medida. Sacerdócio integral é aquele no qual cada um exerce o seu ministério sem entraves e de maneira plena.
É possível se ter o sacerdócio universal e não o integral. Essa foi a situação prática implantada pelos Irmãos Unidos e é também a situação no nosso meio. No entanto, esse estado do sacerdócio cristão não cumpre plenamente a revelação do Novo Testamento. Para que isso ocorra, é preciso que cada cristão seja preparado para exercer o sacerdócio como pai de família, mãe, profissional, compositor musical, escritor, estudante e assim por diante. Cada crente deve ter ampla liberdade e ser aperfeiçoado para exercer ao máximo esses aspectos do sacerdócio. Essa é a visão que nos deve animar.
A igreja é edificada pela função de todos os membros, não de uns poucos. Porém, entenda-se: pelo pleno funcionamento de cada membro. O Senhor afirmou, em Mateus 16:18, que Ele mesmo edificaria a Sua igreja, mas Efésios 4:12,16 indicam claramente que a igreja edifica a si mesma. Por isso também, Paulo disse que quem profetiza “edifica” a igreja e que, nas reuniões públicas, tudo deve ser realizado para edificação (1 Co 14:4,26).
Profissionais contratados podem ser úteis para uma série de objetivos. Não, porém, para se alcançar a prática do sacerdócio neotestamentário. A solução mundana do pastor contratado ou do padre mantido pela instituição religiosa tende a dificultar ou impedir o desenvolvimento das habilidades dos membros, portanto a frustrar a edificação da igreja, “pela justa cooperação de cada parte” (Ef 4:16).
O clericalismo (62) se opõe à doutrina bíblica do sacerdócio universal. Porém, nem sempre ele assume a forma de uma hierarquia como a católica ou de uma tirania visível. Às vezes, as práticas clericais são muito mais variadas e sutis. O grau máximo de sutileza ocorre quando as classes se estabelecem sem a formalização de papeis: sem a nomeação de líderes, a criação de cargos ou a atribuição de nomes a eles. Isso tende a produzir um sistema clerical sem pastores ou padres. Infelizmente, tal forma de clericalismo estabeleceu-se no nosso meio.
Sempre que a autoridade é exercida de modo notório, pelos líderes da igreja, os demais membros deixam de exercitar determinadas funções. É claro que, às vezes, isso é necessário. Porém, quando se torna um hábito, o sacerdócio universal é prejudicado, já que o hábito oposto (de não atuar) é contraído pela maioria dos crentes. Por mais que não se tenha essa intenção, todas as vezes em que se golpeia o prego com o martelo, ele entra mais na parede, mais encravado fica e mais difícil se torna retirá-lo dali. Essa é uma lei, que a boa vontade não pode aplacar.
Autoridade notória ou ostensiva não é o mesmo que dominação. Porém, ainda mais do que esta, ela costuma produzir passividade nos liderados.Quanto mais essa autoridade é exercida, mais as pessoas retraem-se. O prego entra mais na parede. Isso é inevitável, em qualquer congregação. Quando o fato se torna habitual, ainda que num contexto informal, nada mais falta para se atingir a realidade clerical.
Os hábitos de autoridade ostensiva não foram de modo algum extirpados das igrejas (63). Pelo contrário, eles estão fortemente impressos no clericalismo informal instalado entre nós. É claro que não posso estender essa afirmação a toda a Restauração. Limito minhas afirmações, neste ponto, às áreas que tenho observado diretamente. Não há como negar que hábitos de autoridade ostensiva estão bastante arraigados nessas áreas.
Não deve ser assim, no Corpo de Cristo. Paulo empregou a figura de um organismo para representar a igreja, nas suas epístolas. Num organismo, não se percebe o exercício da autoridade. Quando alguém compartilha o seu sentimento com os outros, numa reunião, não dizemos que a sua boca disse isso ou aquilo, mas que a pessoa o disse. O que se expressa não é a liderança de um membro, mas o corpo. Embora a boca tenha assumido a liderança ao falar, ela o fez sem ostensividade, de modo que o corpo expressou-se.
No corpo de Cristo, apenas a cabeça tem posição de destaque. Só ela está posta acima dos outros membros. Não raro, estes são dispostos em pares, para que nenhum receba destaque. De modo que há liderança entre os membros do corpo, mas liderança oculta e não ostensiva.
A eliminação do clericalismo informal envolve a abolição dos hábitos de autoridade ostensiva. É claro que o gradualismo é sempre recomendável, no tratamento de um mal tão inveterado. Toda obra de Deus, tem um lado divino e outro humano. Este último pede a implantação gradual de mudanças, para não se comprometer a coesão das pessoas. Não convém despejarmos o vinho novo em odres velhos, aos gritos de aleluia, sob pena de ambos se perderem (64). Melhor é buscarmos odres novos, onde preservar o vinho novo que o Senhor nos tem dado. Portanto, não basta atentarmos para o vinho; precisamos atentar também para os odres.
Essas quatro colunas devem ser erguidas,em conformidade com o princípio da comunhão, nunca de modo individualista. Para ter alguma força, a obra cristã deve ser coletiva. Precisamos do perguntar e responder, do ir e vir de sentimentos e da cooperação de muitas partes, não de umas poucas, para atingirmos nossos fins comuns. Confiemos isso ao Senhor e à Sua misericórdia.
CAPÍTULO 3
No primeiro capítulo, apresentamos a situação da restauração da igreja; no segundo, propusemos o remédio para alguns dos seus males; no terceiro, pretendemos discutir a maneira como o remédio deve ser administrado, segundo a nossa percepção pessoal e limitada das coisas. Nada temos de especial a alegar, para embasar nossas ponderações, mas ousamos apresentá-las com base no princípio de que todo cristão tem o direito, quando não o dever de expor o que é útil para a edificação da igreja.
Como implantar as quatro colunas da restauração? Se não obtivermos luz a esse respeito, toda a reflexão anterior permanecerá vã. Claro que nenhuma prática isolada é suficiente para realizar um valor espiritual. Precisamos de várias práticas e não de uma só, para promover cada coluna. Porém, devido à minha capacidade limitada, proporei uma única prática para a promoção de cada coluna. Com isso, mostrarei apenas um pouco do que se pode fazer, em prol da proposta do presente escrito. Medidas mais profundas ficarão para a busca de cada um diante do Senhor.
1. Vida da igreja de casa em casa
Por vida da igreja de casa em casa queremos dizer não um tipo de reunião a mais, mas a centralização de toda a vida da igreja nas casas dos crentes. Esse é um objetivo a ser alcançado gradativamente. Não convém implantarmos qualquer mudança brusca, no tocante ao espaço primário que a igreja deve ocupar (as casas ou os templos), já que ela poderia se desgovernar se o fizéssemos. Só não devemos estagnar ou andar em círculos, na caminhada para a necessária centralização da vida da igreja nas casas. Tampouco devemos nos limitar a promover reuniões de casa como um tipo de reunião a mais, enquanto a vida da igreja permanece centrada nas grandes reuniões.
Pode-se argumentar que Atos dos Apóstolos fala de grandes e de pequenas reuniões. Porém, naquela época, a vida da igreja estava mais centrada nas reuniões menores, até porque os cristãos geralmente não dispunham de centros nos quais pudessem realizar reuniões públicas. Além disso, em algumas cidades, como Jerusalém, havia milhares de cristãos: como eles poderiam dispensar os cuidados de que cada membro individual necessitava,nas grandes reuniões?
Infelizmente, os fatos indicam que retrocedemos muito, em relação a esse ponto do estado primitivo da igreja. No nosso meio, com algumas exceções, a vida da igreja de casa em casa não é algo real. Não é preciso que seja assim. Podemos, no mínimo, implantar alguns módulos, laboratórios dessa experiência, se as igrejas não estiverem prontas para praticá-la extensamente. Pelo menos isso. Mas não o fazemos a não ser em casos excepcionais e por iniciativas mais ou menos isoladas.
Não nos basta, porém, continuar a ter reuniões de casa como um tipo de reunião a mais, mesmo afirmando que são as reuniões principais ou a base prática da igreja. Com nossas obras, negamos o que professamos. Uma coisa são reuniões de casa como um tipo de reunião a mais; outra coisa é a vida da igreja centrada nas casas.
Não estamos a diminuir a importância das grandes reuniões. Estamos a colocá-las no devido lugar. Os grandes ajuntamentos são muito importantes, mas não devem constituir a base da vida da igreja. qual é a cena entre nós? Não é o roubo da cena pelas grandes reuniões? Não é a estruturação até das pequenas reuniões com base nas grandes? Nossas reuniões de casa não têm sido dominadas por práticas provenientes das grandes reuniões? Estas não permanecem a base indesafiável de toda a nossa vida coletiva?
Precisamos das grandes reuniões como o outro lado, o contrapeso necessário às reuniões de casa, para que alguns não façam da igreja a ideia de meia dúzia de pessoas. Precisamos delas para que o ensino dos membros especialmente dotados por Deus não se perca. Porém, não precisamos delas como a base ou o princípio governante da vida da igreja.
Não há como deixar de passar pelo estágio das reuniões de casa em dias determinados, para se alcançar o estágio mais avançado das reuniões domésticas todos os dias. Porém, se não promovermos esse desenvolvimento, as reuniões de casa afundarão no segundo plano; se não lhes concedermos espaço e ênfase, elas não crescerão além de limites muito acanhados.
De quanta liberdade as reuniões de casa precisam! De quanta vida elas necessitam! Liberdade e vida são o oxigênio das reuniões de casa. Soltemo-las, pois, mas o façamos realmente, libertando-as das grandes reuniões, seus modos e obrigações. Enchamo-nos da palavra de Deus, e as reuniões de casa renascerão com força divina e indômita.
Nosso sonho de comunhão tem muito a ver com isso. No sentido mais prático, a vida da igreja precisa ser entendida como viver Cristo nas casas. Só isso produz uma nova vida cristã coletiva, uma vida distinta daquela centrada nas grandes reuniões. Só desse modo se pode mexer com estruturas antigas e enferrujadas, promovendo-se a comunhão e o viver de Cristo em nós. Só desse modo, o sonho pode fazer-se realidade.
Essa é a melhor prática possível da comunhão dos apóstolos, a primeira e principal coluna da restauração avançada. É ao mesmo tempo o meio mais eficiente de se extirpar o clericalismo. Devemos combater toda possibilidade de aparecimento de líderes ostensivos, nas reuniões domésticas e na vida da igreja de casa em casa. Porém, só o fato de se ter várias reuniões domésticas num dia já constitui limite extraordinário ao fermento clerical. Como ser “o pastor” de um grupo tão pequeno, que se reúne todos os dias, em lugar e horários variados, não raro com pessoas novas e de modo aberto à participação de todos?
Com essa prática, a comunhão há de brotar como nunca, e o mundo crerá que Jesus foi enviado pelo Pai, não como simples artigo de fé, mas como algo da dimensão prática, portanto impossível de ser negado. Pela prática da vida da igreja de casa em casa, o núcleo do evangelho cristão tenderá a se tornar patente e irrefutável.
Precisamos disso. Com isso sonhamos. O velho vício de um crente tentar ser maior do que outro e de ambos manterem um relacionamento formal ou convencional será assim extirpado. A igreja constituir-se-á em testemunho da igualdade que reina entre os crentes e do frescor do paraíso de Deus.
Por natureza, a igreja não é uma instituição. Ela pode usar instituições e até se institucionalizar, em pequena medida, porém a forma institucional não compõe a sua essência mais íntima, até porque a igreja pode-se despojar dessa forma, assim como o homem retira o manto que o cobre. No Novo Testamento, a igreja não tinha nome, classes de crentes, regimento ou credo. Até mesmo a família, uma das mais informais instituições humanas, tem nome, papeis a serem cumpridos e normas. Porém, a igreja não os tem. Ela não chega a ser uma instituição.
Se a igreja não é uma instituição, sua vida prática deve expressar esse fato. Ela não deve ser controlada por certas pessoas, de acordo com certas regras. Tampouco precisa cumprir certas formalidades. Claro que um certo nível de institucionalização é inevitável para que a igreja se sedimente no mundo, mas ele deve atender mais a necessidades humanas do que a demandas da natureza interior da própria igreja. Assim como o reino de Deus não é comida nem bebida (Rm 14:17), a igreja não são edifícios, equipamentos, livros, estúdios. Ela não é uma instituição visível, mas um amálgama do Espírito de Deus com homens e mulheres (1 Co 6:17).
Os membros da igreja realizam a obra ministerial com ajuda de instrumentos e instituições, mas não podem permitir que estes se confundam com ela ou a traguem. A História mostra que não se deve ir longe demais com a institucionalização da igreja. Todas as vezes em que se permitiu o crescimento das instituições cristãs além de certos limites, a pureza espiritual foi perdida.
Precisamos, portanto, usar a institucionalização, mas tomar o cuidado de realmente a usar e não nos deixar usar por meio delas. Após ter servido os propósitos práticos por que foi criada, toda instituição cristã deve ser reduzida ou desativada, antes que seus efeitos nocivos venham a sobrepujar os positivos. As instituições não devem ser perenes, pois não pertencem à natureza da igreja. É necessário darmos cabo delas antes que deem de nós. É necessário que editoras (65), estúdios, centrais, empresas sejam ao menos reestruturados, com vistas à parcial desativação, antes que seus efeitos negativos comecem a se fazer notar além da conta.
Isso prova se o coração das pessoas envolvidas na obra cristã está em Cristo ou nas instituições, já que uma diferença inegável de natureza existe entre os dois. Deus sempre haverá de prover meios orgânicos e não institucionais, para darmos continuidade ao encargo espiritual à origem de uma instituição.
Temos de ser drásticos com a instituição ou ela será drástica conosco. Se formos ingênuos, se a defendermos além da medida, cedo ou tarde, ela se tornará uma fonte de corrupção. Devemos saber usar as instituições, mas também saber desativá-las, orando para que o Senhor nos mostre o momento certo para o fazermos, assim como pedimos que ele nos mostrasse o mais propício para as iniciarmos. Quem conhece o começo das coisas, deve conhecer o seu fim. De acordo com o livro bíblico que mais se detém nos princípios da vida humana, o fim é melhor que o começo (Ec 7:8).
Não estou a combater os benefícios que podemos haurir de alguma institucionalização do trabalho cristão, mas a alertar para os males que dela resultam. Os benefícios devem ser salvaguardados, sua continuidade deve ser garantida num outro contexto prático, quando a instituição se desativar. Mas é preciso que esta conheça limites claros.
Olhemos para a História da Igreja, e este discurso será imediatamente justificado. A institucionalização ilimitada sempre produziu a degradação da fé. Todos os movimentos genuinamente inspirados pelo Espírito de Deus corromperam-se ao se institucionalizar em excesso. Que denominação perdida na tradição não começou com um avivamento? Que grande obra carcomida por disputas carnais não se iniciou com oração? Infelizmente, quando a sistematização humana conduz da experiência espiritual à carnal, toda sorte de vício se instala. Esdras foi um escriba da lei de Deus, mas quando Jesus surgiu em Israel os escribas haviam-se tornado chefes do legalismo e opositores do Espírito de Deus.
É a instituição má em si mesma? De modo nenhum. Como ideia, a instituição é tão justa e boa quanto a lei. O problema é que, também como a lei, ela não pode ser usada sem fazer aflorar o pecado. Embora boa, a instituição faz aparecer no homem os seus males. Por isso é preciso tomar cuidado com ela. Ainda que os muito dotados possam manter-se puros, em contato com a instituição ao longo de anos, o Corpo é formado de membros dessemelhantes: uns fortes, outros fracos. Nem todos resistem de modo igual.
Não é à toa que o Novo Testamento contribui para descaracterizar a igreja como instituição, embora não lhe negue uma organização interna. Jesus veio, chamou Seus discípulos, viveu com eles, ensinou-os, realizou a redenção e depois ordenou-lhes: “Ide e pregai o evangelho”. Ele jamais formou uma grande instituição (66).
Nesse nível básico de organização e instituição, é que a fé cristã está situada. A vida da igreja nas casas é a expressão por excelência de tal realidade. Enquanto o hábito de grandes reuniões favorece a institucionalização, a centralização da vida da igreja nas casas neutraliza e compensa os efeitos nocivos dela, sem prejudicar os positivos.Não creio que haja meio melhor, para a igreja se manter livre da institucionalização nociva, do que a sua centralização nas pequenas reuniões domésticas. É o que temos proposto.
2. Visitas e contatos
A segunda prática que propomos é o costume de visitas e contatos com os não convertidos, para pregação do evangelho, e com os recém-convertidos, para sua confirmação na fé. Claro que os crentes antigos também precisam ser visitados, mas já nos referimos a essa necessidade quando falamos da intensa comunhão de casa em casa. Aqui, pretendemos enfatizar particularmente a necessidade de visitação e contatos com pessoas novas.
O hábito de visitação tem por finalidade promover o estabelecimento da segunda coluna: o crescimento extrínseco da igreja. Precisamos de outros meios que promovam essa coluna, assim como o já mencionado combate ao naturalismo, mas o ponto fundamental é o hábito de visitação e contato, já que, por meio dela, todos podem tomar parte ativa na expansão do evangelho.
Deus deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2:4). Não nos devemos contentar apenas com a experiência de salvação incial das pessoas, mas preocupar-nos também com o seu crescimento espiritual e confirmação no Senhor, a fim de apresentar todo homem perfeito em Cristo (Cl 1:28), nada menos do que isso.
Deus visa “todo homem” (Cl 1:28-29). A deslumbrante cidade santa, a nova Jerusalém, tem portas voltadas para todos os lados da terra: oriente, ocidente, norte e sul, a fim de que pessoas provenientes de todos os quadrantes possam entrar. O número de portas é o mesmo: três ao norte, três ao sul, três ao leste, três ao oeste (Ap 21:13), já que o desejo divino por “todo homem” não admite a menor acepção. E como se não bastasse o texto ainda diz que nenhuma porta se fecha em momento algum (Ap 21:25). Portanto, os que se achegam a essa cidade luminosa têm igual oportunidade de salvação.
Uma vida da igreja bem-sucedida numa só camada social é expressão por demais imperfeita da Nova Jerusalém. As chamadas Igrejas Históricas (Anglicana, Presbiteriana, Batista, Metodista, Luterana, Episcopal etc.), não raro, apresentam-se como fenômenos de classe média, as Igrejas Pentecostais e Neopentecostais, como fenômenos das classes baixas. Dir-se-á que a soma de todas essas organizações realiza a Nova Jerusalém, mas temo que as coisas não sejam tão simples. Temo que o raciocínio econômico que encontra nessas igrejas as portas da nova cidade desconsidera os gravames profundamente distintos, não raro até mesmo injustos, que elas colocam no bem (o evangelho) que oferecem a todos. Se é para sermos sinceros (e práticos), esses gravames tornam o evangelho coisa bastante distinta para as distintas classes: para um pentecostal típico, o preço do evangelho envolve largar o cigarro e incendiar o último maço; já o crente de classe alta pode falar do seu Deus de trás da fumaça do seu cachimbo. Será que, em posturas tão diferentes há igual oportunidade de salvação?
As denominações especializaram-se em trabalhar com as classes resultantes da estratificação econômica da sociedade. Porém, com o estrato não econômico da elite intelectual praticamente ninguém trabalha, dada a sua impermeabilidade e, em alguns casos, até a sua hostilidade ao evangelho. E quando alguma atenção especial é devotada a esse meio, ela costuma ser dispensada por pessoas uniformizadas (no sentido das vestimentas ou da alma). Desconheço maior violação do que essa ao princípio da Nova Jerusalém. Necessário é combatermos tal mal.
O evangelho é questão de prontidão. Devemos ter os pés calçados, portanto estar prontos para ir e anunciá-lo (Ef 6:15). Os que vivem assim não têm raízes nesta terra, que lhe roubem a disponibilidade ou o desejo de ir aonde o Senhor enviar. Costumamos atribuir essas características pessoais aos grandes missionários, mas não podemos nos esquecer de que o nível básico em que elas se devem manifestar é o de uma vida comum de visitas e contatos. Não é raro os missionários se transformarem em clérigos. Mas Deus não deseja um cristianismo clerical. Por isso, a expressão fundamental da prontidão para anunciar o evangelho da paz, sobre a Terra, deve vir da prática de contatos e visitas.
Essa vida não significa que todo cristão deva ser uma espécie de andarilho, um remaking ou versão nostálgica dos Jesus’ people. Não é preciso negar as estruturas da sociedade civil, para pregar o evangelho da paz. Pelo contrário, a estabilidade propiciada por essas estruturas e a presença em posições-chave da sociedade podem subsidiar a pregação do evangelho. Para sermos o sal da terra e a luz do mundo, precisamos estar na terra e no mundo.
O necessário, o fundamental é que, onde estivermos, aproveitemos as oportunidades, não com palavras duras, mas agradáveis, temperadas com sal e cuidadosamente adequadas à situação de cada um (Cl 4:5-6). Uma vida assim deve começar com oração (Cl 4:2).
3. Produção descentralizada de escritos e músicas
A verdade não se impõe pela disseminação de contendas, mas por uma produção positiva. Este é um princípio por demais fundamental. Tem sido assim, com toda obra abençoada de Deus até hoje. A Reforma foi levada a cabo, por uma divulgação prolífera de literatura e música. Há quem afirme que, por vários séculos, não se imprimiu tanto na Alemanha quanto na época da Reforma.
Porém, para alcançarmos produção tão prolífera, precisamos de uma autêntica primavera literária e musical. É claro que por primavera não quero dizer pura loquacidade ou tiroteios de opiniões, ainda que sejam a respeito da Bíblia. Porém, é preciso produzir e produzir. A terceira coluna da restauração da igreja trata dessa primavera plural no interior da unidade. Creio já ter embasado bastante essa proposta na Bíblia e na História da Igreja. O fundamental é que escritos, poemas, músicas e outras produções se multipliquem, assim como a própria educação artística(67). Se isso não ocorrer, permaneceremos no plano do simples discurso, sem a necessária prática da pluralidade.
É claro que enfrentaremos dificuldade, se quisermos viver essa pluralidade. É enorme a crise de vocação literária na sociedade em geral. Por um defeito de educação e até por desvios culturais, as novas gerações estão distantes de dominar a técnica da escrita e rejeitam sistematicamente o trabalho árduo de pensamento e crítica (68).
Outro óbice a uma primavera literária é a falta de meios para a publicação descentralizada de textos (69). Porém, a limitação não nos deve sugerir desistência. Devemos usar mais sabiamente os meios disponíveis, orar e buscar novos meios. Se almejamos fins descentralizados, mas nos faltam meios descentralizados, busquemo-los em oração e comunhão, e Deus nô-los proverá.
Há abundância de motivos e inspiração para escritos, canções e outras obras, nesta nova fase da restauração da igreja. Por que não termos uma primavera de escritos, músicas e outras produções artísticas e literárias? A necessidade de novos hinos é gritante. Quase todas as composições musicais que utilizamos, em nossas reuniões e na adoração particular, seguem o mesmo padrão (70). Novas letras e por que não novos gêneros de música se fazem necessários. Não precisamos introduzir música estranha aos ritmos psicológicos da adoração cristã, porém nada impede que os nossos músicos trabalhem com uma série de outros gêneros ou criem, eles próprios, ainda outros. Nada impede que se criem também melodias e letras sobre contatos evangelísticos, conversas, pregações, viagens, textos e outras experiências que o Espírito e as Escrituras nos fornecerem.
Quando o Senhor levantou John Wesley, na Inglaterra, muita gente não compreendia a sua mensagem, mas apreciava a música de seu irmão Charles. Para muita gente, na Alemanha, a única Reforma compreendida foram músicas como o Castelo Forte, de Martinho Lutero. Quantas conversões, quantas mudanças de vida foram produzidas, naqueles meios, a partir da música e por causa dela? Nós, que escrevemos, cansamos as pessoas; os músicos tocam-nas.
O princípio da restauração é: “Então se levantaram os cabeças de famílias de Judá e de Benjamin, e os sacerdotes, e os levitas, com todos aqueles cujo espírito Deus despertou, para subirem e edificar a Casa do Senhor, a qual está em Jerusalém” (Ed 1:5). O coração deve ser tocado, e o espírito, movido, para que a obra se inicie. Não nos cabe substituir a moção do espírito pela do braço humano. Até mesmo “o espírito de Ciro, rei da Pérsia” foi despertado pelo Senhor, para que conclamasse os judeus a reedificar a casa de Deus em Jerusalém (Ed 1:1-2). Assim deve continuar a ser.
Não luto pelos “meus” escritos. Sequer me refiro a eles, quando prego essa primavera, até porque não me é necessário, nem atende a necessidade muito mais ampla da restauração. Precisamos de tantas fontes que seria mesquinho lutar por uma única. Tanto mais pelo próprio nome. Ninguém me tome por demagogo ao dizê-lo.
Meus escritos não valem o sacrifício (71) desta exortação. São modestos, indoutos e miseráveis demais para o merecerem. Ninguém o desminta, a menos que ignore o valor verdadeiro de tudo o que, de alguma maneira, procede do homem. Pode-se, é claro, lembrar o outro lado desta questão, o lado da graça de Deus e do seu chamamento, mas isso é lá outra coisa e é com Deus. Graça é dom, que não nasce de quem o recebe. Tampouco revoga o aspecto humano do vaso, no qual o dom é depositado.
Deus nos conceda o espírito dos cabeças das famílias de Judá e Benjamin. Oxalá no seu povo todos fossem profetas, e o Senhor derramasse o seu Espírito em todos (Nm 11:29). No auge do combate que travou com Erasmo de Roterdã, Lutero não deixou de expressar (72): “Confesso que és um grande homem: onde foi que, com maior saber, inteligência ou habilidade nos teremos jamais encontrado, quer falando, quer escrevendo? Quanto a mim, nada disso possuo, e só há uma coisa de onde posso tirar qualquer glória: sou cristão. Possa Deus elevar-te infinitamente acima de mim no conhecimento do Evangelho, para que me venhas a ultrapassar nesse respeito tanto quanto já o fizeste em todos os outros terrenos”.
Oxalá Deus levante pessoas mais providas de dons ou menos providas de limitações do que eu, a fim de dizer melhor do que sou capaz o que é preciso dizer. A fim de pregar Números 11:29 de todas as formas e por todos os meios. Faço minhas as palavras de Philip Jacob Spener, no seu livrinho Pia desideria: “Reconheço minhas limitações. Não sou presunçoso a ponto de me julgar com mais dons especiais do que outros, para chamar atenção aos males que nos afetam [...] Por isso, do fundo do coração, desejo que homens mais talentosos, mais iluminados, com maior entendimento e experiência, levem adiante essa tarefa, no temor do Senhor. Disponho-me a colocar no papel aquilo que considero ser útil e necessário para a edificação da igreja, o que abre oportunidade para que outros, mais iluminados e influentes nessas coisas, possam pensar melhor sobre o assunto, acrescentar o que desejarem ou, se a minha proposta não for praticável, sugerir coisas melhores. Desejo ardentemente que alguém me mostre algo melhor e mais vantajoso para o cumprimento de minhas tarefas pastorais, para a edificação da igreja. Eu lhe seria enormemente agradecido. Tudo é obra de Deus, não nossa, e Ele é livre para abençoar o que quiser, venha de quem vier.”
Deus é o grande repartidor. Não é sábio, nem conveniente discutirmos as porções repartidas. O que tenho a declarar sobre a primavera pluralista é que é o ambiente da verdadeira unidade. Assim como não há glória ou valor algum, em uma pessoa se converter a Cristo por imposição de outra, não há valor algum na unidade imposta por ameaças e inculcação.
Fundamental é não confundirmos pluralidade com divisão. A verdadeira unidade subsiste no interior de gigantesca pluralidade. Quando o Senhor orou a respeito do aperfeiçoamento da unidade, em João 17, isso estava implícito. A conclusão da oração (“para que o mundo creia que tu me enviaste”) resulta do aperfeiçoamento da unidade no crisol da pluralidade. Há um poder ingente, uma força descomunal nesses fatos, que o mundo deve experimentar. A oração sacerdotal de Jesus será cabalmente cumprida.
4. Ofício próprio
Por fim, a quarta prática que propomos é o desenvolvimento de ofícios seculares como ponto de apoio para a obra da restauração. “Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados, do próprio templo se alimentam; e quem serve ao altar, do altar tira o seu sustento? Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam do evangelho” (1 Co 9:14); “aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as cousas boas aquele que o instrui” (Gl 6:6). Essas duas passagens ecoam o fundo do pensamento de Paulo. Como a revelação bíblica é prática, o ministro da palavra deve tirar seu sustento do altar e viver do evangelho, o que significa aceitar as contribuições voluntárias dos que recebem o seu ministério.
Porém, o homem que escreveu essas palavras foi o mesmo que fabricou tendas(73) para se sustentar e não ser financeiramente pesado às pessoas a quem ministrava. Na realidade, o ofício próprio parece ter sido tão importante para Paulo quanto a cidadania romana. No nível da vida humana, a fabricação de tendas deve ter sido a própria base do seu ministério.
A restauração é uma obra espiritual, que demanda suporte financeiro no nível humano. Abstrair esse aspecto dela é cometer equívoco tão grave quanto o de quem se recusa a trabalhar ou da seita que proíbe o casamento. Jesus afirmou que os filhos do mundo são mais hábeis que os da luz, pois utilizam a riqueza injusta para estender sua influência (Lc 16:8-9).
O coração fala muito, mas o coração está onde está o tesouro (Mt 6:21). Não adianta espiritualizarmos. Devemos confiar no Senhor, para o nosso sustento, e desenvolver ao mesmo tempo um meio de autofinanciamento. O trabalho é o mais importante instrumento com que contamos para isso. Assim devemos encará-lo, já que, para os crentes, o trabalho não tem função mais elevada que esta.
Todo modo medieval de encarar a questão do trabalho (74) e do sustento material pode transformar-se num jeito sutil de atrasar a obra divina. O trabalho é um apoio santo e muito importante, que não deve ser subestimado, nem subutilizado. Todos devem aprender a trabalhar bem, a se profissionalizar plenamente, pois essa é a vontade de Deus revelada nas Escrituras, inclusive para o obreiro cristão.
A abolição do clericalismo implica que os que se dedicam ao ministério da palavra ou ao serviço da igreja em tempo integral não gozam de qualquer superioridade em relação às outras pessoas. Isso se aplica tanto às coisas espirituais como às materiais. A graça invisível de Deus, não o serviço em tempo integral, é o que torna a pessoa santa. Semelhantemente, o serviço no altar não dispensa a pessoa do desenvolvimento de um ofício secular. Essa é uma obrigação decorrente da condição humana, portanto extensiva a todos (75).
POSFÁCIO (76)
Um sonho de comunhão tem todas as características do que, em biografias de autores, se costuma denominar escrito de juventude. O idealismo da idade juvenil palpita em cada palavra. O motivo é evidente: “nada do que é humano me é estranho” (77). Porém, ao mesmo tempo, um sopro de perenidade atravessa o texto. Refiro-me à propriedade do que é estranhamente capaz de resistir ao tempo e que, a meu ver, constitui o elemento principal do escrito.
Esse elemento estranho nos faz ler Um sonho de comunhão, com emoção e interesse, mais de vinte anos depois do pequeno terremoto que o texto causou. E nos leva a considerar úteis as práticas que propõe. Úteis não quer dizer indispensáveis, mas revestidas de certa importância e valor. A avaliação mais exata dessa importância, à luz das críticas e das propostas do escrito, é o que nos cabe realizar agora.
O ponto central do texto é a convicção de que a igreja cristã tem de passar por um amplo processo de restauração, na sua História. Esse processo é o tempo todo tomado como verdade estabelecida, posto que o texto é interlocução com pessoas que o aceitavam. Porém, para o leitor situado num outro meio, ele pode parecer estranho e pedir maior elucidação. Afinal, na Cristandade, o único argumento amplamente aceito a favor de uma restauração parece ser a degradação da Igreja no período medieval. Nenhum cristão minimamente informado duvida de que aquela degradação demandou uma restauração.
Porém, a ideia básica de restauração não deriva, em primeiro lugar, da História da Igreja, ou do Antigo Testamento, embora ambos forneçam certa sustentação a ela. A restauração é, antes de tudo, uma ideia neotestamentária. Em 1ª a Timóteo 4:1, o autor inspirado escreveu: “Ora, o Espírito afirma expressamente que, nos últimos tempos, alguns apostatarão da fé, por obedecerem a espíritos enganadores e a ensinos de demônios”. Apostasia pressupõe um estado anterior de bênção. Os apóstolos nunca afirmaram que os gentios do mundo romano eram apóstatas, pois eles haviam nascido no politeísmo. Pelo contrário, Paulo afirmou, mais de uma vez, que Deus permitiu e desconsiderou os tempos de ignorância deles (At 14:16; 17:30). Porém, a apostasia que a Epístola a Timóteo aponta é diferente. Ela pressupõe um estado anterior de bênção, perdido pelo movimento apóstata.
Mais do que isso, o texto comentado de Timóteo se segue a um outro, em que o mistério da piedade é apresentado e a igreja é denominada coluna e baluarte da verdade. O autor não poderia ter escolhido palavras mais fortes e positivas para exprimir a relação da igreja com a verdade. Ele não afirmou que a igreja é sustentada pela verdade, mas que ela a sustenta: é a sua coluna e baluarte. E então, passou a descrever o que o Espírito predisse expressamente que haveria de ocorrer, isto é, que alguns apostatariam da fé. Quem são esses alguns? São pessoas do número dos que receberam o mistério da piedade e se fizeram coluna e baluarte da verdade.
A interpretação amplamente majoritária da apostasia de 1ª a Timóteo 4 liga-a com a heresia gnóstica, a respeito da qual o bispo de Lião, Ireneu, escreveu no segundo século: “Afirmam eles [os gnósticos Saturnino, Menandro e seus seguidores] [...] que casar e procriar é diabólico e muitos dos seus discípulos se abstêm de comer carnes” (LIÃO, Ireneu de. Contra as heresias. 2ª ed., São Paulo: Paulus, 1995. I Livro, 24,2, p. 102). E novamente: “Os [gnósticos] que se chamam encratitas, que se inspiram em Saturnino e Marcião, proclamam a abstenção do casamento, condenando a primitiva instituição divina e acusando falsamente Aquele que fez o homem e a mulher ordenados à procriação. Introduziram o celibato dos chamados espirituais [...] Taciano [...] como os discípulos de Valentim, conta a história dos Éões invisíveis, como Marcião e Saturnino, tacha o casamento de corrupção e fornicação, e no que lhe é próprio nega a salvação de Adão. Outros ainda, baseando-se em Basílides e Carpócrates, introduzem o amor livre e a poligamia” (idem. nº 28, p. 111).
Vemos que a apostasia predita em Timóteo coincide com as crenças dos gnósticos. Porém, apesar das coincidências, o cumprimento da apostasia nessa seita (na realidade, foram incontáveis seitas) apresenta vários problemas. O primeiro deles é que, dos gnósticos, não se pode afirmar que viveram num estado de bênção do qual decaíram. Eles foram sempre hereges. Viveram sempre apartados da comunhão com a igreja. Por isso, a palavra apostasia não lhes cai bem. Teria sido muito fácil e muito melhor o autor sagrado ter usado outro termo para identificá-los, se de fato pretendesse referir-se a eles.
O segundo problema da interpretação é que dispomos de provas da existência de ascetas gnósticos, como os mencionados em Timóteo, por volta do ano 50 d. C. Tudo indica que as Epístolas a Timóteo foram escritas depois desse ano. Portanto, é estranho a primeira delas afirmar que a apostasia ainda viria, se já estava presente no mundo.
Por fim, o terceiro problema da interpretação comum da grande apostasia é o fato de esse movimento de degeneração ser expressamente associado a Anticristo, em 2ª aos Tessalonicenses 2:2-3: “Não vos demovais da vossa mente [...] supondo tenha chegado o dia do Senhor. Ninguém de nenhum modo vos engane, porque isto não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia, e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição [Anticristo]”.
Os gnósticos não antecederam imediatamente a vinda de Anticristo. Eles foram uma terrível heresia, mas não “a apostasia” mencionada por Paulo. Claro que sempre há a possibilidade de Tessalonicenses referir-se a uma apostasia, e Timóteo a outra, mas não parece ser esse o caso. A palavra apostasia é forte demais para ser usada várias vezes. E não podemos descurar que as duas epístolas expressam o mesmo pensamento geral (o de Paulo), no qual a apostasia indica o movimento que antecede a vinda de Anticristo.
É hora de o dizermos, pois, abertamente: a apostasia prevista ajusta-se melhor ao grande movimento de corrupção, que se iniciou na Igreja por volta do nono século e durou até a Reforma do décimo-sexto. Esse longo período de sete séculos foi, sem dúvida, o mais negro de toda a História da Igreja, o que justifica o denominarmos “a apostasia”. Ele também se verificou no seio de uma genuína igreja cristã, que vivera em estado de bênção especial, a saber: a Igreja Católica do início da Idade Média.
Embora a promiscuidade sexual tenha grassado em Roma, durante esse período tenebroso, a observância do celibato era exigida dos clérigos no mundo todo. O mesmo pode ser dito da abstenção de alimentos nos dias santos, que era obrigatória e não facultativa. 1ª a Timóteo 4:3 refere-se ao erro dos que “exigem” (é o termo empregado) “abstinência de alimentos”. Essas palavras não se aplicam ao jejum voluntário, que é recomendado em tantos passagens da Bíblia. Ao contrário, elas transparecem uma simples mortificação inaceitável à mentalidade judaica e cristã, na qual a preservação do gênero humano pela alimentação e procriação constituía um dever central de todos perante Deus. Dever agravado ainda mais pela pobreza e extrema dificuldade de sobrevivência que Israel sempre enfrentou em sua História. Nesse contexto, a abstenção do casamento e de alimentos constituía um requinte de espiritualidade que atentava contra a existência do povo de Deus.
É importante recordar a solenidade com que o escritor anunciou o advento desse grande desvio: “O Espírito afirma expressamente”. Essas palavras são o equivalente neotestamentário da expressão "Assim diz o Senhor", no Antigo Testamento. Marcam, pois, o início solene do oráculo sobre um acontecimento de imensa importância da História da Igreja.
2ª a Timóteo desenvolve ainda mais esse acontecimento: “Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis; pois os homens serão egoístas, avarentos”. Segue-se uma longa lista de pecados e vícios, como é típico do estilo de Paulo. Por fim, o texto conclui: “tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2 Tm 3:1-2,5). Em 1ª a Timóteo, a apostasia ocorre no seio da igreja; na segunda epístola, ela incide no meio “dos homens”, ou seja, no mundo. Porém, em ambos os casos, o processo de corrupção é o mesmo: a forma da piedade, a aparência de culto a Deus, é mantida, enquanto a eficácia da fé se esvai.
Não há motivos para crer que o grande desvio mencionado em 2ª a Timóteo seja distinto da apostasia do quarto capítulo da primeira epístola. Embora se estenda ao mundo, ele brota do interior da igreja, assim como o do primeiro texto. É o que o último capítulo afirma: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres, segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas” (2 Tm 4:2-4). A quem Timóteo devia pregar, corrigir, repreender, exortar, a não ser à igreja? No entanto, a epístola prossegue: “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina”. Os que não suportarão a sã doutrina são legítimos sucessores daqueles a quem Timóteo devia pregar e exortar, isto é, a igreja. A afirmação expressa do Novo Testamento, portanto, é de que a igreja cristã passaria por um amplo processo de corrupção.
Em nenhuma época da História, fábulas como as que o versículo 4:4 menciona foram tão abundantes e tomaram conta da mentalidade das pessoas na mesma medida em que o fizeram entre os séculos IX e XVI. Foi o tempo da perseguição às bruxas, que se acreditava piamente voarem sobre vassouras etc. Documentos oficiais da Igreja, naquela época, mencionavam a necessidade de se exterminar lobisomens como óbvias encarnações de espíritos malignnos. Na realidade, a Inquisição foi criada para combater heresias, mas só matou tanta gente porque os cristãos passaram a ver “o próprio demônio”, e não só heresias, em tudo.
É, pois, perfeitamente possível interpretar a apostasia de 1ª e 2ª a Timóteo como um processo que divide a História da Igreja em duas partes. A primeira parte é marcada por uma situação regular e de bênção espiritual. A segunda transcorre sob efeito da grande apostasia. A restauração é um vasto movimento de reforma da igreja cristã, ocorrido nesse segundo período tanto no meio católico como no protestante, tanto nas comunidades como em instituições religiosas. Porém, ela não é suficiente para eliminar por completo os efeitos da apostasia, até o final dos tempos.
A ideia de restauração é consequência direta da crença em que Deus não pode permitir que a expressão visível da igreja, na Terra, permaneça em ruínas para sempre. Se ele firmou aliança com a descendência de Noé, após a de Adão se haver extraviado, se chamou Abraão, quando os descendentes de Noé passaram a adorar outros deuses, retirou os israelitas do Egito, apesar das tendências idólatras deles, e os trouxe de volta de Babilônia, por que Deus não restauraria a igreja em que se congregam os que foram comprados com o sangue de Jesus Cristo?
A restauração é uma ideia clara no Novo Testamento. Só não é uma ideia mais desenvolvida, porque a degradação ainda não começara no primeiro século. É importante estabelecer esse ponto, já que, se ele não permanecer de pé, o escrito inteiro desmoronará. Por outro lado, se a ideia de restauração tiver fundamento sólido, a busca do seu estado de perfeição estará justificada.
No fundo, Um sonho de comunhão discute se o estado de perfeição da restauração existe e deve ser buscado. Ele está para a perfeição da restauração como a vida de John Wesley está para a perfeição cristã em geral. Sabemos que Wesley dedicou a sua vida a mostrar que a alma pode alcançar um estado de perfeição diante de Deus. Ele foi perseguido, por tê-lo feito num tempo e lugar em que o calvinismo ensinava o contrário. Não encontro como explicar totalmente meu escrito de 1991, a não ser lembrando que ele discute, defende e espera a perfeição da restauração.
Vejamos, porém, que papel as práticas criticadas em Um sonho de comunhão tiveram no processo de corrupção da igreja e por que, tanto tempo depois do início da Reforma, elas ainda permaneciam arraigadas no meio cristão. Eram aquelas práticas: as restrições sistemáticas à comunhão por motivos ministeriais, a centralização da vida da igreja nas grandes reuniões, os excessos de institucionalização, a indiferença para com o naturalismo e a secularização, o desenvolvimento de uma unidade sem diversidade e os hábitos de autoridade ostensiva.
Claro que o retrato da primeira parte do escrito foi tirado num setor muito reduzido da igreja de Cristo e se refere, basicamente, a ele. Quando o texto alarga a abordagem de modo a abranger outros setores da igreja, eles são, via de regra, mencionados. É, pois, importante não estendermos a aplicação do texto além desses limites, não porque eles não padecessem dos mesmos males, mas porque não foi minha intenção, à época, abordá-los.
Os cinco problemas mencionados são vistos como remanescentes de dimensões nada reduzidas da decadência histórica da igreja. Hoje mais que na época, vejo esse processo de decadência concentrado nos sete séculos que mencionei, aos quais se segue a Reforma da Igreja. Esta não é, de maneira alguma, um movimento apenas protestante ou apenas católico. É católico-protestante, pois se dá em ambos os setores da igreja ocidental.
A Reforma ou restauração, como preferi escrever no texto, é um movimento continuado, porém não destituído de momentos em que se concentra e se intensifica extraordinariamente. Pouca disputa há sobre o fato de que o século XVI foi o primeiro desses momentos privilegiados da restauração. Muitos pontos doutrinários e práticos foram restaurados, tanto no campo católico como no protestante, nesse primeiro período, mas o principal foi a devolução da Bíblia ao povo, pela tradução nas várias línguas e a restauração do seu uso.
Vejo o século XIX como o segundo maior momento da restauração da igreja, pois a partir dele, o livre exame da Bíblia entregue ao povo começou a ser praticado em maior escala. Lutero e outros reformadores pregaram, sem dúvida, esse livre exame. Porém, o que se viu, em seguida, foi a continuidade do hábito de as instituições eclesiásticas e uns poucos líderes responsáveis pela sua condução definirem a interpretação bíblica a ser seguida por todos. Os cristãos que se tornaram conhecidos como Irmãos de Plymouth foram particularmente importantes para que o livre exame se fortalecesse e disseminasse, na prática, uma vez que lhes coube fixar o exemplo e definir um padrão a ser praticado nesse tocante.
Para que o livre exame se tornasse realidade, no meio cristão, foi necessário que se atribuísse radical autonomia à igreja local. Para garantir essa autonomia, no século XIX, os Irmãos aboliram toda organização centralizada de igrejas, no seu meio comunitário. Assim, os cristãos foram libertados em maior medida dos constrangimentos hermenêuticos exercidos pelas instituições eclesiásticas.
Nenhuma lei externa exige que o Espírito de Deus trabalhe de modos fixos, na História. Em 1991, eu esperava que, em poucos grupos cristãos, o progresso nas práticas positivas que sugeri viessem a substituir as cinco criticadas no escrito. Hoje, encontro-o mais difuso. Muitos pequenos grupos espalhados por muitos lugares, com ou sem relação organizacional uns com os outros, os têm experimentado. E isso tanto no meio católico como no protestante, volto a repetir, pois a Reforma é essencialmente católica e protestante, católico-protestante.
Na realidade, nenhuma lei é mais fundamental do que esta: o Espírito sopra onde quer; ouvimos a sua voz, mas não sabemos de onde vem ou para onde vai. O mesmo se aplica, e da mesma maneira, aos que são nascidos do Espírito. A obra do Espírito, somente ela, produz a perfeição a que me referi em Um sonho de comunhão. Só a renovação constante do homem interior permite enxergar os diferentes lugares e modos pelos quais o Espírito continua a soprar, hoje, para colocar em movimento o sonho.
NOTAS
(1) O manuscrito deste texto foi publicado em 3 de novembro de 2011, por meio do Blog Direto da Toca, com a seguinte nota: “Escrevi Um sonho de comunhão em meados de 1991. Provavelmente, o texto foi lido, na íntegra, por não mais que umas 10 ou 20 pessoas. Mesmo assim, causou considerável alvoroço entre as Igrejas Locais sob o ministério de Dong Yu Lan e iniciou um processo que terminou com o envio de uma carta a essas Igrejas, denominando-me pessoa nefasta e perigosa. Curioso é que a censura assim imposta pretendeu e conseguiu retirar de circulação um escrito que, além de expressar a fé de seu autor, era um produto cultural brasileiro. Produto cultural que foi censurado por um chinês, não na China, mas no Brasil.” Nesta data, o texto é republicado, em formato revisto e acrescido de notas. Vale recordar que ele está relacionado a dois outros, também publicados neste blog: "A unidade da igreja", que o antecedeu de alguns meses, e "Canção de Protesto", publicado em setembro de 1994 sob o título "Crianças à luz da manhã".
(2) Um dado que ajuda a entender Um sonho de comunhão é a condição que então possuía de funcionário da Editora Árvore da Vida e diácono da primeira Igreja Local, no Brasil, a igreja em São Paulo. Também tinha participação na obra de difusão do movimento, em nível supralocal. Como a Editora era o centro dessa obra, no continente sulamericano, a situação em que então me encontrava pesou muito para que o escrito mantivesse o tom impessoal que o caracteriza. Por me sentir responsável para com as pessoas envolvidas tanto na igreja como no movimento, não atribuí os problemas que então enfrentávamos a quaisquer indivíduos. Olhando retrospectivamente os fatos, confesso não me arrepender dessa atitude. Nenhum líder da igreja, naquele momento, havia assumido a defesa dos erros que eu apontei no texto. Os erros eram, é claro, consequência de atos de certas pessoas, mas o mal não atingira o estágio da defesa aberta de equívocos que eu e outras pessoas então pressentíamos. Por isso, a não referência a pessoas ainda hoje me parece a atitude mais responsável nas circunstâncias de 1991. Para maiores referências a esse ponto, vide nota 43 abaixo.
(3) A positividade do trabalho de Deus é retratada, na Bíblia, pela figura da edificação de Jerusalém e do Templo, que se opõe à destruição da cidade e do santuário por Nabucodonosor, em 587 a. C. Se a destruição constituiu episódio profundamente negativo da História de Israel, a edificação, seu contrário, não pode incluir o menor elemento negativo. Quando Paulo utiliza a figura da edificação (1 Co 14:4,17, 26), no Novo Testamento, essa radical positividade está implicada.
(4) Note-se a aberta admissão de que o texto pretende tratar de coisas negativas.
(5) Falando em geral, não apenas na primeira pessoa.
(6) A proibição deriva de textos como 1ª a Timóteo 1:3-4: “Quando eu estava de viagem, rumo da Macedônia, te roguei permanecesses ainda em Éfeso para admoestares a certas pessoas, a fim de que não ensinem outra doutrina, nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que, antes, promovem discussões do que o serviço de Deus, na fé”. O texto deixa claro que discussões intermináveis opõem-se à fé.
(7) A autoria paulina das Epístolas a Timóteo e a Tito é controvertida. Porém, independentemente da posição a ser adotada no assunto, é provável que elas reflitam o pensamento de Paulo.
(8) Por constituir uma atividade externa à igreja.
(9) “Lucro para o evangelho”, vale dizer, avanço da pregação e da fé cristã no mundo.
(10) Referência inequívoca a problemas das Igrejas Locais, na época do escrito (1991). O texto especificará esses problemas, sem localizá-los nessa ou naquela região do globo, já que, segundo a metáfora de Paulo, a debilidade ou o mau funcionamento de um órgão indicam a doença do corpo todo.
(11) A referência a “nós, na restauração do Senhor” não tem significado exclusivo, uma vez que o texto indica que a restauração se iniciou na época da Reforma do décimo-sexto século. Portanto, continua em ramos diversos da igreja cristã. A peculiaridade das Igrejas Locais sob os ministérios de Watchman Nee e Witness Lee, é ter-se autodenominado “restauração”. Desde então, tornou-se costumeiro designar o movimento por esse epíteto.
(12) Indicando que o mal-estar decorrente dos problemas tratados no texto havia sido sentido muito tempo antes.
(13) Deus não deseja tratar os problemas de uma dispensação somente em outra.
(14) Entenda-se da necessidade revelada de acordo com a Bíblia.
(15) A contraposição da necessidade de Deus à comodidade humana atribui toda desobediência à revelação divina ao interesse pessoal do homem.
(16) De acordo com o pensamento repetidamente exposto, no Evangelho de João, Deus não introduz os seus tempos repentinamente ou aos solavancos. É comum o tempo de uma determinada obra estar por vir e já ter chegado: “Vem a hora e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”e “Eis que vem a hora e já é chegada, em que sereis dispersos, cada um para sua casa, e me deixareis só”(Jo 4:23; 16:32).
(17) O tempo de falar, assim como o próprio falar sãointroduzidos pelos acontecimentos. Eles vêm montados na História. Portanto, não são propriedade particular de pessoas e não podem ser manipulados por elas.
(18) Como num procedimento terapêutico.
(19) Vide nota 16 acima.
(20) A referência é ao sofrimento dos que estavam sob a opressão dos líderes mais exaltados das Igrejas Locais, no Brasil. Várias dessas pessoas haviam revelado o seu sofrimento ao autor.
(21) A expressão “vantagem de Satanás” é bastante forte. Indica que os problemas então presentes não eram pouco graves.
(22) Devido à conexão das questões mencionadas.
(23) Indicando que, assim como o tempo de tratar dos assuntos advém gradualmente, os modos de tratamento devem variar de etapa a etapa.
(24) LUTERO, Martinho. Do cativeiro babilônico da igreja”. In Martinho Lutero – obras selecionadas. Vol. 2. Porto Alegre: Ed. Sinodal, 1990 [nota de 1991).
(25) A história comprova que as cidades e os muros de Jerusalém foram os últimos itens restaurados, sob a liderança de Neemias e outros, muito após a ordem de Ciro [para que os cativos retornassem], o fim do cativeiro e a restauração básica do templo (Ne 1;3; 2:3,5). De 445 a. C., quando se iniciam as setenta semanas (ANDERSON, Robert. The coming Prince), até o ministério de Malaquias, o último dos profetas mencionados na Bíblia, passaram-se os quarenta e nove anos das primeiras sete semanas de Daniel” [nota de 1991].
(26) Indicando que começou com ela.
(27) O texto supõe que o estágio denominacional das igrejas protestantes realiza somente uma parte da restauração necessária à igreja.
(28) Contrastando com a visão eufórica e ufanista de que as Igrejas Locais tinham ido muito mais longe.
(29) A referência éà etapa inicial do movimento das Igrejas Locais, quando muitos cristãos experimentaram um genuíno despertamento espiritual, sob inspiração dos ministérios de Watchman Nee e Witness Lee.
(30) Indicando que o estado espiritual das Igrejas Locais não podia constituir o cumprimento das etapas finais da restauração no Antigo Testamento.
(31) A afirmação singulariza o espírito do restaurador, que consiste em não se aferrar aos avanços obtidos, a fim de buscar outros novos.
(32) A ideia do texto é de que a restauração, no Antigo Testamento, começou pelo núcleo da capital da nação (o Templo e os muros de Jerusalém) e se completou com a recuperação progressiva da diversidade da vida nacional, nas aldeias e vilas, mais ou menos como as cores de uma imagem acentuam-se quando ajustamos o controle do aparelho. Não é lógico pensar que a restauração da igreja seja diferente. Também ela tem de começar no núcleo cristão vital (a entrega das Escrituras ao povo e a retomada do seu livre exame) e se completar pelo desabrochamento da diversidade.
(33) Referência a um conhecido hino das Igrejas Locais.
(34) Comparação da utilização de sucessivos servos, por Deus, com uma corrida de revezamento, em que um atleta entrega o bastão ao seguinte.
(35) Reafirmando a relação da restauração com a Reforma.
(36) Se a igreja é entregue à mundanidade, como Israel foi entregue ao domínio estrangeiro, necessário é que a sua restauração repercuta no mundo secular como ondas sísmicas.
(37) O Cristianismo hiperinstitucionalizado, incluindo os seus segmentos católicos, ortodoxos e protestantes.
(38) A afirmação reiterada de que o texto exprime os meus pontos de vista, literariamente desnecessária, tinha por objetivo afirmar claramente que o “sonho de comunhão” não era a afirmação de verdades indesafiáveis ou imperfectíveis.
(39) Apesar de o texto referir-se às Igrejas Locais como um todo, minha inserção e contato constante com o setor sulamericano do movimento tornam as observações mais particularmente aplicáveis às Igrejas nesse continente. Nos mais de 20 anos transcorridos desde Um sonho de comunhão, os frutos produzidos pelo movimento na América do Sul tornaram evidente que a tendência a condicionar a comunhão cristã à aceitação de ministérios tornou as Igrejas Locais ultrassectárias.
(40) É nítida a oposição, neste escrito, entre a afirmação reiterada de princípios e a sua aplicação prática. Um sonho de comunhão rompe com essa espécie de contradição.
(41) A ênfase na falibilidade intrínseca do que escrevi contrasta com as pretensões muito mais vastas dos líderes do movimento na época.
(42) O texto exprime o esforço constante de assumir posição prática. Nessa medida, rejeita o mascaramento da realidade mediante o discurso ora complexo e rebuscado, ora simples, mas fortemente paralisante das faculdades de julgamento. Em lugar desse discurso, exigem-se frutos. Portanto, a tomada de posição prática.
(43) Um sonho de comunhão não exprime somente minha concordância com a orientação dos líderes históricos das Igrejas Locais (Watchman Nee e Witness Lee), mas adota essa orientação como ponto de partida e fundamento para as mudanças práticas que apregoa. Minha idade, na época em que redigi o documento (27 anos), somada aos motivos mencionados na nota 2 acima, ajuda a entender o porquê dessa posição inequívoca e até mesmo dócil. No entanto, os fatos posteriores evidenciaram que o espírito do texto não era o dos cooperadores que estavam sob a liderança de Witness Lee na época. Em alguns casos, a incompatibilidade atingiu grau extremo, pois alguns líderes consideraram que falar mal do escrito para as igrejas do país inteiro era uma missão espiritual que lhes cabia cumprir. De certo modo, a atitude dessas pessoas foi um dos primeiros sinais que permitiram identificar quem defendia publicamente os erros que o escrito condena.
(44) A gravidade dos problemas práticos, nas Igrejas Locais, não poderia ser mais realçada do que por essa expressão.
(45) A referência é a tradução de Atos 2:42 na Versão Restauração editada pelo Living Stream Ministry: “E perseveravam no ensinamento e na comunhão dos apóstolos, no partir do pão e nas orações”. Por ser comumente utilizada, nas reuniões das Igrejas Locais, a Versão Restauração era considerada portadora de autoridade semelhante à das Versões João Ferreira de Almeida no meio evangélico brasileiro. Daí o escrito não discutir a propriedade da tradução peculiar de Atos 2:42, na Versão Restauração, mas tomá-la como uma das compreensões possíveis do versículo bíblico.
(46) Enquanto substantivo, comunhão denota um fato no mundo do ser, porém não um fato consumado. Muito menos uma realidade estática e sim dinâmica. A comunhão dos apóstolos é antes um ter comunhão constante com Deus e com o homem do que uma estrutura estabelecida. Por isso, ela se assemelha a um fluir suave e constante. Como fluir espiritual, a comunhão deve ser identificada com a própria essência da vida da igreja.
(47) Em 1991, as barreiras à comunhão nas Igrejas Locais eram resultantes de hábitos cada vez mais comuns de se condicionar o relacionamento dos crentes à aceitação de determinados ministérios e à adoção de práticas justificadas como “o mover atual de Deus”.
(48) Referência ao novo tipo de viver prático recomendado e pregado por Witness Lee às Igrejas Locais, a partir de 1984 (vide menção ao novo caminho no fim do Capítulo 1). Entre outras coisas, o novo caminho tinha o objetivo de corrigir erros práticos sedimentados nas Igrejas Locais.
(49) As cinco fases da restauração apontadas no texto mostram que esta não é experiência exclusiva de um grupo. Dos reformadores aos ramos posteriores da Reforma, assim como dos Irmãos Unidos e das Igrejas Locais, na China, ao resto do mundo, a restauração irradiou-se a partir de centros, para depois se capilarizar pelo mundo todo.
(50) Opressão católica foi o domínio da Igreja de Roma sobre as demais igrejas cristãs, a partir das alianças dos Papas com os reis francos Pepino e Carlos Magno, no final do século VIII e início do IX. Antes dessas alianças, Roma tinha a pretensão de exercer domínio sobre outras igrejas, mas as condições políticas indispensáveis à sua implantação não estavam dadas. Os soberanos lombardos da Itália, por exemplo, nunca permitiram que o Papa reinasse à vontade no seu território. De modo que a proteção imperial se fez necessária para que o Papado surgisse. Só após o oferecimento dessa proteção, o domínio do Papa estendeu-se às igrejas e até aos Estados da época (inclusive os que protegiam a Sé Romana). Esse desenvolvimento específico da tirania papal proveu as condições negativas indispensáveis para o início da restauração da igreja.
(51) Por “divisões protestantes” não se deve entender as denominações, mas o resultado do espírito sectário no interior delas. A diferenciação é importante, pois as igrejas denominacionais e os cristãos no seu interior podem ou não adotar posturas sectárias. A simples organização de uma igreja, a partir de doutrinas e experiências específicas (Anglicana, Batista, Presbiteriana, Metodista etc.), não basta para a tornar divisiva. Por outro lado, é inegável que o espírito sectário tende a desenvolver-se com o aumento da institucionalização nas igrejas. Um dos mais meticulosos estudos dessa espécie de sectarismo e de outros equívocos protestantes pode ser encontrado na obra de Rubem Alves Religião e repressão (São Paulo, Loyola/Teológica, 2005).
(52) A pregação do evangelho é um testemunho; a do evangelho do reino é um testemunho do reino, que se aperfeiçoa e consuma com a unidade da igreja. Não é possível à igreja dar testemunho do que não vive. Ela não pode dar testemunho do reino de Deus, sem preservar a sua unidade interna.
(53) A penetração das boas-novas de Cristo nas camadas mais altas da sociedade romana é atestada no Novo Testamento. Porém, ela permaneceu um fenômeno limitado, durante o primeiro século, quando as igrejas cristãs foram compostas principalmente por integrantes das classes humildes. Só no final do século II, o número de conversões cresceu significativamente, nas classes altas da sociedade romana. Desde então, o evangelho passou a atrair a atenção de filósofos e intelectuais. A crítica de Celso aos cristãos, respondida meticulosamente por Orígenes de Alexandria, é o exemplo mais antigo de que se tem notícia de uma tentativa de refutação do cristianismo por filósofos.
(54) Pode-se objetar que o naturalismo e o materialismo mencionados no texto não constituem heresias, por não serem doutrinas religiosas. Porém, a secularização das sociedades atuais integra uma apostasia: o abandono da fé cristã pela CIvilização Ocidental. Não há apostasia que não envolva heresia. É importante destacar que, de 1991 até hoje, o naturalismo e o materialismo mencionados em Um sonho de comunhão assumiram dimensões de um verdadeiro tsunami, nas sociedades cristãs secularizadas. Basta lembrar que os índices de ateísmo, em vários países da Europa Ocidental, são hoje de 70% ou 80% da população.
(55) Notar que, assim como se refere às Igrejas Locais por meio do pronome nós, o texto alude ao meio cristão em geral pela mesma palavra, o que reforça a sua posição não sectária.
(56) Obra de refutação dos ataques das Críticas Histórica e Literária às Escrituras. Escrevi-a em 1990-1991. Sua publicação, em dois volumes, ocorreu em 1996-1997. Em 2010, História da graça foi ampliada e republicada, como uma série de cinco livros.
(57) A unidade da igreja foi escrito quase simultaneamente a Um sonho de comunhão. O texto modera os excessos da pregação da unidade tendente à uniformidade e ao controle do povo cristão por seus líderes. Como tal, tornou-se complemento fundamental ao presente texto.
(58) Do ponto de vista prático, o abandono das igrejas oficiais assemelha os Irmãos a muitos outros grupos da História da Igreja. Porém, sua contribuição específica para a causa cristã consistiu na combinação dessa atitude ousada com a preservação do relacionamento com o meio evangélico. Essa posição dos Irmãos chocou ainda mais os espíritos, devido à lembrança do avivamento metodista de um século antes. John Wesley despendera esforço descomunal, durante toda sua vida, para manter os membros da sua sociedade (metodista) no interior da Igreja Anglicana. Ele chegou a romper com setores do seu próprio grupo que se desligaram daquela organização. Os Irmãos fizeram exatamente o contrário: conclamaram os cristãos ingleses a se reunirem independentemente das igrejas oficiais. O motivo da sua ousadia foi a consciência que desenvolveram de que a independência da congregação cristã é essencial para a manutenção de ideais como sola Scriptura, sola fide eo livre exame.
(59) Século XX.
(60) Embora o princípio neotestamentário de uma igreja numa cidade tenha sido legitimamente utilizado, no início de seu ministério, por Nee, para promover a unidade dos cristãos chineses e evitar que eles fossem reduzidos à obediência às igrejas oficiais, é inegável que o movimento das Igrejas Locais incidiu em exageros ao adotá-lo. Para uma exposição do princípio da localidade no Novo Testamento, leia-se o Capítulo 2 de A doutrina cristã primitiva (História da graça, Livro 5. São Paulo: Themis, 2010).
(61) Outra advertência clara sobre a gravidade dos problemas observados nas Igrejas Locais e combatidos no presente texto.
(62) Clericalismo é o sistema de classes ou ordens entre os cristãos. No Novo Testamento, não há lugar para esse sistema, já que todos os cristãos são considerados iguais, portanto membros de uma só ordem (Mt 23:8-10; 1 Pe 2:5,9; 4:11; Ap 1:6; 5:10: 20:6). Uma dificuldade que a doutrina do sacerdócio universal envolve é a de determinar que espécie de prática introduz diferenciações de classes e, portanto, o clericalismo. Certamente, o fato de alguém dedicar-se em tempo integral ao serviço da igreja ou ser treinado para exercê-lo não é suficiente para fazer surgir diferentes classes de crentes. Diferenciações só se introduzem, a partir de quando determinadas pessoas assumem prerrogativas distintas das dos outros membros da igreja, sem terem o dever de lhes prestar contas. Quando essas prerrogativas se constituem, seja em matéria de pregação, ensino, publicação, visitação, reuniões, administração dos meios da graça ou em qualquer outra área de atividade da igreja, a realidade clerical se forma.
(63) Locais.
(64) Alusão ao costume de misturar gritos às orações e à pregação da palavra, nas Igrejas Locais.
(65) Nessa afirmação está implícita a referência à editora mantida pela obra das Igrejas Locais no Brasil, na época deste escrito. A editora existe até hoje.
(66) O exemplo de Jesus, por um lado, mostra que a obra de Deus está relacionada à instituição. Ao chamar e ensinar discípulos, escolher 12 e também 70 dentre eles, treiná-los para pregar o evangelho de vila em vila e de cidade em cidade, por um determinado método, ao receber ofertas de um pequeno número de famílias abastadas e manter a administração desses recursos nas mãos de um dos 12, Jesus não só adotou práticas de organização ministerial preexistentes como reproduziu uma verdadeira instituição de Israel: a do rabi seguido por seus discípulos. Esses fatos desfazem o mito de que Jesus não recorreu à organização ou a instituições da sua época. Por outro lado, os mesmos exemplos evidenciam que ele não as levou longe demais. Jesus jamais deu início a uma grande instituição.
(67) No Brasil, a difusão do microcomputador e a revolução da Internet desenvolveram-se entre a redação e a publicação de Um sonho de comunhão, tornando necessário atualizar o texto às mudanças. As redes sociais da Internet têm-se mostrado particularmente relevantes para o desenvolvimento da comunicação entre os cristãos. A incrível diminuição das distâncias, que elas propiciam, favorece a aproximação dos espíritos. É claro que, ao mesmo tempo, elas trazem novos problemas, como os excessos, a utilização criminosa da mídia e o desenvolvimento da comunicação mínima. Porém, a especialização dos sites, o minucioso desenvolvimento das regras que os regem e as características ambíguas da publicidade, que excita e ao mesmo tempo inibe as pessoas, contribuem para a colocação de limites aos mencionados problemas. De forma que a transparência, instantaneidade e disponibilidade muito maior de informações, nas redes sociais, tendem a se transformar em ganhos para os relacionamento baseados em veracidade.
(68) Uma característica do uso da linguagem escrita, pelas novas gerações, já presente em 1991 e que se acentuou extraordinariamente, com a difusão do microcomputador e a revolução da Internet, é o emprego da linguagem mínima. Em termos literários, os jovens plugados na Internet são, antes de tudo, minimalistas. O Twitter é uma das expressões mais bem acabadas dessa tendência que tem suas razões de ser, mas precisa ser equilibrada pela preservação e o desenvolvimento dos hábitos propriamente literários.
(69) As novas tecnologias gráficas resolveram boa parte desse problema, que era bastante agudo em 1991. De modo geral, as condições hoje existentes são muito melhores e mais propícias que as de 1991, para a implantação das propostas de Um sonho de comunhão. A Internet e as redes sociais, em particular, foram responsáveis pela maior parte da mudança de situação.
(70) O padrão a que o texto alude é o dos hinos evangélicos clássicos. Um novo padrão musical surgiu, no mundo cristão brasileiro, a partir dos anos 1970. Muitas igrejas evangélicas passaram a adotá-lo, porém não as Igrejas Locais.
(71) Antevendo as enormes dificuldades e lutas em que o texto viria a envolver-me.
(72) LUTERO, Martinho. Citado em História da Reforma do décimo-sexto século. D’AUBIGNÉ, J. H. Merle. Casa Editora Presbiteriana. Vol. IV, p. 72.
(73) Atos 18:3 indica que Paulo não trabalhou na fabricação de tendas só quando esteve em Corinto. O texto afirma que ele, Áquila e Priscila “eram do mesmo ofício”. Portanto, que Paulo exercera o trabalho em questão muito antes de se encontrar com o casal advindo da Itália. Vale observar que, no contexto do mundo romano, é difícil imaginar que as tendas fabricadas por Paulo não fossem vendidas para o exército imperial, já que as residências de alvenaria estavam disseminadas entre a população civil. Pode ser que a demanda regular de habitações portáteis, pelo exército romano, fosse uma das razões pelas quais Paulo manteve sua produção, já que o seu comprometimento primeiramente com o judaísmo, depois com a pregação do evangelho por certo não lhe permitia depender de trabalhos mais sazonais.
(74) A referência é ao misticismo da época medieval. Encarar questões práticas, como o trabalho, de maneira mística é um grave equívoco. As Escrituras não poderiam colocar os assuntos da vida material mais claramente a salvo de exageros religiosos. Família, criação de filhos, casamento, profissão são plenamente protegidos, por elas, contra os perigos do fanatismo. Aquele que não tem cuidado da própria família tem negado a fé e é pior que o descrente (1 Tm 5:8). A proibição do casamento é fruto de uma consciência cauterizada (1 Tm 4:2-3). Quem não quer trabalhar não deve comer (2 Ts 3:10). Embora não fosse um costume na época, devemos dedicar atenção análoga ao estudo das crianças e jovens. Nessas quatro áreas da vida (família, casamento, estudo e profissão), decide-se o que um ser humano será. Na obra cristã, não devemos menor respeito a essas quatro coisas.
(75) Essa passagem fornece um dos motivos que me levaram a deixar o serviço em tempo integral na obra das Igrejas Locais. Se a minha visão da restauração se tornara tão distinta da que prevalecia entre as Igrejas, era no mínimo honesto eu passar a financiar o meu próprio trabalho cristão. Por isso, no mesmo ano (1991), deixei a Editora Árvore da Vida e comecei a trabalhar como advogado, profissão que exerço até hoje.
(76) O exemplar de Um sonho de comunhão, a partir do qual este texto foi produzido não contém as últimas páginas. Para suprir a ausência de uma conclusão, redigi o Posfácio acima, que não tem o objetivo de substituir as páginas faltantes, mas realizar um balanço do estado em que a prática dos temas abordados se encontra, mais de duas décadas depois. Porém, devido à minha nova inserção no meio cristão, ao contrário do que ocorre no texto anterior, no Posfácio, não tomei as Igrejas Locais como referencial primário para a avaliação da restauração.
(77) Frase atribuída ao poeta romano Terêncio (195-159 a. C.).
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