terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Evidências da Criação (5): Criar e Fazer

A ideia de criação do Universo e do homem por Deus só assumiu importância decisiva, em Israel, nos últimos séculos antes de Cristo. São dessa época as principais passagens do Antigo Testamento e o versículo de 2º dos Macabeus sobre o tema: “Suplico-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra e para todas as coisas que há neles, e que penses bem que Deus as criou do nada, assim como todos os homens” (2 Mc 7:28).
Em que pese a efervescência da ideia de criação, em Israel, entre os séculos VI e I a. C., não há registros de que a recriação tenha sido discutida ou conhecida, nessa época. Nem Macabeus, nem Flávio Josefo, nem Fílon a mencionam. Como é claro que uma variante tão fundamental de Gênesis quanto essa teria sido registrada, se houvesse sido cogitada, o fato de não existir registro ou sinal dela, na literatura, parece indicar que a ideia permaneceu desconhecida na Antiguidade.
A inserção da recriação, no pano de fundo de Gênesis 1, não contradiz as práticas literárias dos séculos antes de Cristo. Métodos esotéricos (permitam-me utilizar a palavra, não no sentido pejorativo, mas no de ensinamento restrito a poucas pessoas) de composição e transmissão de textos eram muito comuns nesse tempo. Há pouca dúvida de que tenham sido empregados também em Israel, como estratégia de defesa contra os mecanismos de controle ideológico concentrados no Templo de Jerusalém.
Para não ser marginalizado ou perseguido, pelas autoridades religiosas, que viam a criação de outro modo, provavelmente, o autor de Gênesis 1 inseriu a recriação no pano de fundo do texto que redigiu, reservando o primeiro plano para a criação original. Esse pano de fundo não foi percebido, pelo compilador ou editor final de Gênesis, nem pelas pessoas que abordaram o capítulo, desde que foi escrito, por terem mentalidade mais próxima da que o versículo de 2º dos Macabeus exprime.
Uma das melhores maneiras de se comprovar esses planos distintos (o primeiro reservado à criação, o outro, à recriação), no texto de Gênesis 1, é atentar para os significados dos verbos usados. Em As eras mais primitivas da Terra, G. H. Pember diferenciou as palavras bara e asah, usadas pelo escritor sagrado para descrever os atos criadores de Deus. De acordo com ele, bara significa criar sem matéria preexistente, e asah, criar a partir de um material.
Porém, se adotarmos essa diferença, teremos de concluir que ela vigora no capítulo 1, mas não no capítulo 2, pois as aves foram criadas, em 1:21, e formadas da terra, em 2:19. Semelhantemente, a mulher foi criada, em 1:27, e formada a partir da costela do homem, em 2:21-22.
O fato de a diferenciação entre bara e asah estar enraizada no primeiro, mas não no segundo capítulo de Gênesis confirma que o editor final do livro não a percebeu. Se a tivesse notado, no mínimo, ele teria mantido a distinção, no capítulo 2, o que não aconteceu. Mais provável é que a tivesse divulgado e que a doutrina variante houvesse sido registrada, por outros autores, o que vimos não ter ocorrido, pois a literatura antiga não a menciona.
Essas ideias são reforçadas pela atribuição muito comum dos capítulos iniciais da Bíblia a autores distintos, que viveram em épocas também distintas. A atribuição permite explicar por que o capítulo 1 adota a distinção entre os verbos, enquanto o capítulo 2 não o faz. Na verdade, o primeiro texto foi escrito numa época por certo autor, e o outro, numa outra época, por outro autor. Como a doutrina implícita em Gênesis 1 não foi divulgada, a divergência entre os capítulos 1 e 2 não foi corrigida nem debatida.
E. F. Kevan modificou ligeiramente a diferenciação de Pember. Ele afirmou que asah é empregado para atos de criação de seres preexistentes, e bara, para atos de criação de seres totalmente novos. Nas palavras do próprio Kevan: “O principal é sublinhar o significado de bara que apenas supõe a produção dum ser, completamente novo, que antes não existia”.
A observação consta num comentário sucinto do Livro de Gênesis (O Novo Comentário da Bíblia. São Paulo: Vida Nova. Vol. I, p. 83). Não se segue a demonstração de que a diferença apontada é verdadeira. Podemos propor uma demonstração, observando que bara é usado apenas para a criação dos seres que recebem a bênção de Deus. É o caso das aves, das grandes baleias e do homem. A criação de todos os demais seres é descrita por outros verbos.
O princípio subjacente à demonstração é de que Deus não consagra, nem atribui sua bênção em vão. No contexto da criação, ele o faz porque o ser consagrado passou à existência naquele momento. E se for realmente assim, a palavra bara estará a indicar os seres que vieram à existência durante os seis dias, e asah (e outros verbos), a recriação de seres que haviam existido antes. Portanto, para o autor original, criar não é apenas gerar, produzir, mas também abençoar, consagrar. A bênção divina é o que introduz cada tipo de ser na existência. Ela inaugura a espécie.
Uma outra maneira de exprimir essa diferença entre bara e asah consiste em afirmar que os atos de recriação recapitulam a origem dos mesmos seres, numa época anterior, quando eles foram criados e abençoados. O fundamento bíblico dessa recapitulação é o versículo 2:4, que afirma: "Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados".
A palavra gênese (em hebraico, toledot), nesse versículo, significa história. Indica, portanto, a história do capítulo 1 ou a do capítulo 2. Como esta não narra a criação dos céus, mas a de um jardim e de Adão, o verso só se pode referir aos sete dias. E as palavras "quando foram criados" só podem indicar que os sete dias contêm as origens, a formação inicial, dos céus, da terra e dos seres neles existentes. De sorte que os das em que o verbo bara não aparece tratam da recriação, mas recapitulam a criação.
As observações acima permitem-nos identificar duas sequências de atos de criação, que se sobrepõem: uma sequência designada pela palavra asah e outra composta com bara. A sequência de atos indicados por asah inclui a formação do firmamento (v. 7), dos luzeiros (v. 16), dos répteis, dos animais selvagens, dos domésticos (v. 25) e do homem (v. 26). Se quisermos, podemos acrescentar os itens não designados por qualquer dos dois verbos, assim como a luz do primeiro dia, o oceano e as nuvens. A sequência de bara é composta com as aves, as grandes baleias (v. 21) e o homem (v. 27). A primeira é a sequência em que Deus realizou seus atos criadores originais.
Resumindo: deve existir uma diferença entre bara e asah. Do contrário, a cosmogonia de Gênesis não empregaria os dois verbos. No entanto, todas as diferenciações até hoje propostas falharam. A única que resiste às críticas é a que reconhece que bara refere-se a atos criadores originais, e asah, a atos de recriação. Se o autor de Gênesis quis descrever a criação original, mais que a recriação, os atos indicados por asah são os que a representam. Os designados por bara só ocorreram em momento posterior, quando Deus recriou o planeta.