A concepção de que a humanidade existe há 6.000 anos foi construída a partir de cinco versículos bíblicos: “Este é o livro das gerações de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. Homem e mulher os criou; e os abençoou, e os chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Adão viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e pôs-lhe o nome de Sete. E foram os dias de Adão, depois que gerou a Sete, oitocentos anos; e gerou filhos e filhas. Todos os dias que Adão viveu foram novecentos e trinta anos; e morreu” (Gn 5:1-5).
A interpretação literal desses versos é tão antiga quanto Gênesis. Até mesmo intérpretes atentos e sofisticados, como Agostinho, a adotaram, como se nota na passagem em que ele criticou aqueles que, "não reparando nas lacunas da Escritura, julgaram que Caim teve relação sexual com a mãe, nascendo assima prole ali mencionada. Pensaram que os filhos de Adão não tiveram irmãs, visto que a Escritura silencia aquela passagem, mas depois, recapitulando, apresenta o que omitira, dizendo que Adão gerou filhos e filhas (Gm 5,4).Mas não revela o tempo de seu nascimento nem o número nem seus nomes" (HIPONA, Agostinho de. A natureza e a graça. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2007. p. 154).
Fora da tradição cristã, encontramos constestações das genealogias, como as de Celso (século II) e Porfírio (século III). Porém, o primeiro foi cabalmente refutado por Orígenes de Alexandria, e o último, por Eusébio de Cesareia. Com essas refutações, praticamente encerraram-se as discussões e até mesmo a crítica à verdade histórica da Bíblia, no século IV. O mundo romano inteiro aceitou o Cristianismo não só como religião, mas também como história.
Porém, nada impede refletirmos um pouco mais sobre a idade de Adão. Gênesis divide-se em várias seções iniciadas com as palavras “São estas as gerações de” ou “Esta é a história de”. Hoje, admite-se que tais seções derivam de tradições independentes, que o autor reuniu para compor o primeiro livro bíblico. As expressões citadas foram, simplesmente, a argamassa que ele utilizou para juntá-las.
As seções em que os onze primeiros capítulos de Gênesis se dividem quase sempre começam com um recuo cronológico. A título de exemplo, após o relato dos seis dias da criação, a Escritura afirma: “Havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera”. Em seguida, inicia-se a história do Éden, mediante um recuo ao “dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus” (Gn 2:4).
Semelhantemente, o capítulo 5 traz uma nova história: “Este é o livro das gerações [isto é, dos descendentes] de Adão”. E imediatamente recua até “o dia em que Deus criou o homem” (Gn 5:1). Não citarei os recuos seguintes a esses para não me tornar cansativo, porém é certo que as tradições dos primeiros capítulos de Gênesis foram coladas umas nas outras mediante a técnica do recuo cronológico ou recapitulação.
Assim entendidos, os cinco versículos que parecem afirmar a idade recente de Adão (Gn 5:1-5) começam com um recuo, como todos os que foram usados para grudar as seções de Gênesis 1 a 11 umas nas outras. Mas se é um recuo, a passagem em questão não afirma que o que se encontra nos versículos 3 a 32 (a genealogia de Adão) se inicia com o que está nos versos 1 e 2 (a criação desse patriarca). O autor bíblico recuou à criação, para recapitulá-la, antes de transmitir a genealogia, como fez, de resto, em todas as outras histórias que narrou.
É importante assinalar que, quase sempre, o que se entende ou deve entender como a mensagem de Deus, na Bíblia, coincide com a intenção redacional dos autores. De novo não é diferente no caso de Gênesis, cujo autor pretendeu transmitir as histórias que o livro contém, não os recuos usados para conectá-las. Ou alguém acredita que o recuo à época “em que o Senhor Deus fez a terra e os céus”, em Gênesis 2:4, significa que a história do Éden ocorreu nesse tempo? Só há duas maneiras de entender esse recuo: ou a época em que Deus “criou os céus e a terra” é a do primeiro versículo bíblico (Gn 1:1), ou ela indica o terceiro e o quarto dias da criação, quando os continentes (a terra) e os luzeiros (o céu) foram feitos. Em qualquer das duas hipóteses, estamos diante de um recuo cronológico, maior ou menor. E, em nenhum dos dois períodos, o Jardim do Éden existia. Isso mostra que o recuo de Gênesis 2:4 não deve ser interpretado literalmente, ou seja, que o Jardim do Éden não foi plantado por Deus no mesmo dia em que os céus e a terra foram criados. O mesmo ocorre com todos os outros recuos de Gênesis.
Darwin chocou o mundo ao mostrar que a humanidade não existe há seis mil anos, mas há dezenas de milhares. Da sua época a hoje, as evidências se acumularam no mesmo sentido. Tão longa demonstração não introduziu só uma nova visão da idade de Adão. Como o triunfo da História Bíblica, nos séculos III e IV, antecedeu a cristianização do mundo romano, a demolição do principal fundamento dela (a idade de Adão) desencadeou a descristianização do mundo ocidental. Cabe, porém, indagar: a Evolução realmente demoliu a mensagem histórica das genealogias?
A demolição só poderá ser considerada verdadeira, se o recuo for considerado falso, já que são absolutamente antitéticos. Se considerarmos Gênesis 5:1-2 um recuo com função conectiva, a genealogia de Adão não começará com a sua criação, e ele não terá 6.000 anos. Mas, se não reconhecermos a existência do recuo citado, Adão permanecerá com a sua clássica idade literal. Nesse caso, como sabemos, a fé só poderá ser exercida por uma teimosa obstinação contra fatos científicos sedimentados.