Na primeira postagem desta série, vimos que um paradigma ou modelo interpretativo da criação foi elaborado, pelos pais da igreja cristã, e aceito por séculos a fio. Esse paradigma emergiu da desconfiança para com a interpretação literal dos textos que descreviam o Universo como um semicírculo dividido em camadas, que repousavam sobre colunas. Porém, embora relativizasse o sentido literal desses versículos, o paradigma patrístico interpretava literalmente os capítulos 1 e 2 de Gênesis.
Com o desenvolvimento da Teoria da Evolução, por Charles Darwin, eruditos e intérpretes das Escrituras, como G. H. Pember, promoveram a primeira grande releitura de Gênesis 1, com base em novas evidências científicas. Dessa releitura emergiu um segundo modelo interpretativo, que não abandonou a exegese do Período Patrístico, mas lhe acrescentou um ou outro dado novo, assim como o intervalo entre Gênesis 1:1 e 1:2 ou a interpretação dos seis dias como eras. Porém, o conhecimento de um número cada vez maior de fatos sobre as origens tem provocado um desgaste tão grande desse segundo modelo quanto do primeiro.
Não é possível, nos limites desta série de postagens, apresentar o desgaste em detalhes. Vou-me limitar a mostrar como ele se manifesta na interpretação de Gênesis 1 apresentada por Pember. A quantidade de vezes que esse autor menciona os fósseis, no clássico As eras mais primitivas da Terra, mostra como a sua releitura de Gênesis 1 foi motivada pelo desenvolvimento das ciências naturais. Nas suas próprias palavras, “Vemos, então, que Deus criou os céus e a terra no princípio, de um modo lindo e perfeito [...] Conforme os resíduos de fósseis claramente mostram, não houve apenas doença e morte [nesse período] – companheiros inseparáveis do pecado então predominante entre as criaturas vivas da terra – mas até mesmo ferocidade e matança” (ob. cit. São Paulo: Editora dos Clássicos, 2002. Tomo 1, pp. 59-60). Se os fósseis mencionados são de plantas e animais mortos, a morte e até mesmo a violência já exerciam o seu império na criação primitiva, o que Pember aceitou e explicou muito bem por meio do intervalo.
Porém, em quase todos os outros pontos, a interpretação que ele nos transmitiu reafirma o modelo patrístico. Vejamos por quê. Para Pember, antes da queda, “o espírito que Deus soprara dentro de [Adão e Eva] guardava total poder e vigor [...] e brilhando pela forma física, projetava uma auréola lustrosa ao redor de ambos” (idem. p. 152). Essa é uma nítida reafirmação da ideia patrística de que os corpos de Adão e Eva eram etéreos e distintos dos nossos. Ao referir-se à tentação de Eva pela serpente, o autor inglês afirmou: “A serpente se aproximou e dirigiu-se a ela. O fato de ela não se ter assustado parece indicar a existência de uma comunicação inteligente entre o homem e as criaturas inferiores antes da queda” (idem. p. 140). Aqui, o texto de Pember admite a interpretação literal da comunicação da serpente com Eva. Dessa comunicação sobreveio o pecado, “o feito fatal, que, aproximadamente seis mil anos não foram suficientes para obliterar” (idem. p. 146). As palavras seis mil anos deixam claro que os acontecimentos do Jardim do Éden devem ser situados nesse tempo. Sobre o Dilúvio, ele declarou: “O mundo tremeu com os rápidos pingos de chuva que caíam, os primeiros que eles já tinham contemplado” (idem. p. 217). Neste ponto, é reafirmada a interpretação literal de Gênesis 2:5-6, que dizem que o Senhor ainda não fizera chover sobre a terra.
Por esses exemplos se vê que G. H. Pember aderiu fortemente ao modelo antigo de interpretação literal de Gênesis. A esse quadro, por si já bastante problemático, ele ainda acrescentou dificuldades novas. Por exemplo, o cataclisma que destruiu o planeta, resultando no quadro de Gênesis 1:2, foi descrito da seguinte maneira: “A terra arruinada [...] foi inundada pelas águas do oceano; seu sol havia-se extinguido, as estrelas não eram mais vistas, suas nuvens e atmosfera, não tendo força de atração para mantê-las em suspensão, haviam descido” (idem. p. 101). Pember comparou esse acontecimento com o Dilúvio de Noé, quando “a arca flutuava sobre as águas, e a terra foi mais uma vez, quase como havia sido antes dos seis dias de restauração, coberta, até o pico mais elevado, pelo oceano” (idem. p. 217). Contra essa descrição do cataclisma universal, milita o fato de não haver o menor indício de inundações totais da Terra, nos últimos três bilhões de anos, muito menos há seis mil. Há ainda a passagem de As eras mais primitivas que afirma que o cataclisma levou a Terra a "um estado de completa desolação, ficando totalmente sem vida. Não apenas seus lugares frutíferos se tornaram um deserto, e todas as suas cidades foram destruídas" (idem. p. 59). Nesse trecho de sua famosa obra, Pember supôs a existência de verdadeiras cidades, quando o cataclisma desabou sobre a Terra.
Portanto, analisada amplamente, a teoria de Pember (como as da maioria dos outros autores que acrescentaram algum tipo de remendo à interpretação literal antiga) está longe de cumprir o que ele pretendeu ao escrevê-la (1876). As afirmações do livro de Pember não explicam um bom número de fatos e se chocam com outros ainda mais numerosos. Necessário é, portanto, buscar um terceiro modelo interpretativo de Gênesis 1. Mais do que isso: para que o novo modelo alcance o que se propõe, é preciso fazê-lo negar amplamente, não apenas num ponto ou outro, a interpretação literal. Isso não significa negar que o relato bíblico formule afirmações sobre a História Natural. É exatamente isso que ele faz, como mostrarei nesta série. Todavia, é bom lembrar que a Bíblia o faz num quadro geral de seis dias com tardes e manhãs metafóricas.
Essa primeira metáfora, que emoldura o capítulo 1 de Gênesis, cria um importante precedente para a interpretação alegórica de ainda outros textos sobre a criação. Por que não entendermos Gênesis 2 nos termos propostos por Orígenes de Alexandria, no século III: “O jardim e a maneira como se diz que Deus o plantou ‘no Éden, no Oriente’, e que em seguida fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal [...] tudo isto pode, sem inconveniência, ser interpretado em sentido figurado” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 318)?
Mesmo assim, a contribuição de Pember à exegese de Gênesis 1 é inestimável. Sua teoria do intervalo permanece atual e válida, embora possa (e a meu ver deva) ser compatibilizada com a interpretação dos seis dias como eras. Porém, ao harmonizarmos as teorias, é útil apararmos os excessos da exegese literal, que Pember herdou do modelo patrístico de interpretação. Não estamos mais no século III ou IV, nem no século de Pember, para reincidirmos em tal erro. Estamos no século XXI e é nele que Deus quer que estejamos. Ou será que a exegese literal da criação se ajusta ao século em que vivemos?