A descoberta de uma grande verdade faz nascer no espírito um deslumbramento tão singular que excede toda verbalização. Essa experiência, talvez semelhante à do garimpeiro ao divisar o brilho intenso do diamante resgatado do seio da terra, não depende tanto do conteúdo do conhecimento cuja descoberta a produz quanto do modo como ele se constroi. Pode ser tão bem produzida por uma plácida visão religiosa quanto por uma complexa elaboração filosófica.
Mas exatamente por isso o descortinar-se da verdade aos olhos extasiados de quem se despoja de todos os outros bens para possuí-la é essencialmente inefável. Não pode ser enunciada, explicada ou traduzida. Como dizer a sensação que assalta o espírito ao descer à mais funda gruta ou subir ao mais alto cume do mundo para adquirir um sistema de conhecimentos ou uma simples verdade solitária? Tentar pôr em verso ou em prosa o que então se sente é como cantar o inefável e reduzir a termo o indizível.
O aspecto monumental da obra de Kant infunde veneração semelhante a essa. Faz germinar na mente aquela sensação de deslumbramento ante a beleza dos panoramas que vislumbra. Mas, confirmando que a experiência aludida é de todo inefável e não relacionada ao conteúdo da descoberta, notamos que o sistema de Kant assevera que a estrutura da descoberta de uma verdade pode, sim, ser descrita.
Dirão que o que Kant se dispõe a descrever não é o encanto da descoberta da verdade, mas sua estrutura lógica. Pergunto se as duas coisas podem mesmo ser separadas. Se não são tão indissociáveis que a tentativa de descrever um dos seus aspectos sem o outro resulta na mais oca verbalização.
Como a razão não seria capaz de dizer totalmente e bem o que ela, sozinha e por métodos próprios, cria? Não faz sentido supô-lo. Por isso, na sua Lógica Transcendental, Kant arrisca-se a descrever a estrutura da experiência de estremecer ante o brilho de uma verdade. E, não satisfeito, oferece-nos, em outras obras, dois sistemas complementares, a fim de enunciar o que a verdade total é para o espírito: a Metafísica da Natureza e a dos Costumes.
A confiança indispensável para empreender trabalho tão hercúleo, Kant a retira da inesgotável fonte da sua descoberta da razão pura, da razão como sistema fechado capaz de engendrar os seus conteúdos como o demiurgo forja os seus mundos. E o instrumento com o qual a razão cria os seus mundos, são as formas da sensibilidade e do entendimento.
Tanto quanto me é dado entendê-la, a descoberta de Kant parece-me inteiramente válida, porém limitada e circunscrita. Não é a descoberta do sistema da verdade inteiro, como às vezes parece ser. O sistema integral da verdade permanece inapreensível, incompreensível e, por isso, inefável. E, se assim realmente é, a pretensão básica da Lógica Transcendental e das Metafísicas deve ser resistida.
Por Metafísica dos Costumes Kant entende um sistema de princípios tão absolutamente a priori que não podem ser derivados da experiência como os juízos sintéticos a priori da ciência natural. Para traçar os contornos do contraste entre esses dois sistemas de princípios, o da ciência natural e o da moralidade, Kant recorda que a física newtoniana deriva da experiência a lei da ação e reação e que os químicos extraem da observação as leis de transformação das substâncias. Acrescenta que não é absolutamente assim com as leis morais, que são conhecidas totalmente à parte da experiência e, como tais, são absolutas.
A fim de enunciar as leis morais, discutir-lhes o sentido e descrever-lhes o sistema, a Metafísica dos Costumes parte do fundamento em que elas repousam e que é tão indemonstrável e, ao mesmo tempo, tão certo quanto os primeiros princípios da razão prática a que São Tomás se refere. Identifica esse fundamento com a liberdade e a ele se refere como única lei inata da razão prática:
"A liberdade [...] é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes. Este princípio de liberdade inata implica as seguintes competências: [...] igualdade inata, isto é, independência de ser obrigado por outros mais do que se pode, por sua vez, obrigá-los; daí uma qualidade humana de ser o seu próprio senhor (sui iuris), bem como ser um ser humano irrepreensível (iusti), visto que, antes de realizar qualquer ato que afete direitos, não causou dano algum a ninguém; e, finalmente, está autorizado a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não reduza o que é deles" (KANT, Emmanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003. pp. 83-84).
Essa liberdade, que Kant considera “completamente suprassensível” (idem. p. 85), é a base absoluta do meritório (virtude), do devido (direito) e do culpável (delito) (idem. p. 70). Porém, assim como “nenhuma dedução teórica pode ser dada à possibilidade desse conceito de liberdade”, os princípios jurídicos que dele deduzimos “se perdem no inteligível e não representam ampliação alguma do conhecimento” (idem. p. 93).
A liberdade na qual o direito e a ética se fundam não é a que constitui um princípio regulativo da razão especulativa, que não tem significado algum em termos de realidade (idem. 64). A liberdade a que a razão prática se refere “não pode ser apresentada teoricamente como noumeno” (idem. p. 69), no entanto
"prova sua realidade através de princípios práticos, que são leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha, independentemente de quaisquer condições empíricas (da sensibilidade em geral) e revelam uma vontade pura em nós" (idem. 64).
Embora seja possível extrair consequências diversas do princípio original de liberdade, este não é deduzido de qualquer outro conhecimento. Por isso, em direito e moral, não é possível produzir qualquer conhecimento novo. Tudo o que se enuncia permanece um desdobramento do princípio original da liberdade.
Mas isso não significa que o dever não tenha uma ordenação, como o ser tem a sua, embora nem um, nem outro sistema tenha o seu conteúdo determinado pelas coisas em si. “No que tange à ciência natural, a qual diz respeito a objetos sensorialmente externos, é preciso contar com princípios a priori e é possível, com efeito necessário, preestabelecer um sistema desses princípios” (idem. p. 57). Portanto, a ciência da natureza é um sistema. E, semelhantemente, “a doutrina do direito deseja estar certa de que aquilo que pertence a cada um foi determinado (com precisão matemática)”, embora precisão semelhante “não possa constituir expectativa da doutrina da virtude, a qual não pode recusar algum espaço para exceções” (idem. p. 79).
Ao menos a doutrina do direito é tão certa e determinada quanto a ciência da natureza, com sua precisão matemática. Nesse sentido é que Kant reconhece, naquela doutrina, um sistema de direito natural. Reconhece nela também, de maneira expressa, uma metafísica.
Ao lado desse direito natural e dessa metafísica, subsiste o direito positivo, que não se confunde, nem é parte integrante do direito natural. Direito positivo, para Kant, é o conjunto de leis regentes do comportamento humano, cuja obrigatoriedade a razão não reconhece a priori, mas somente a posteriori (idem. p. 67). Desse modo, Kant funda o binômio direito natural – direito positivo na diferenciação que enuncia entre a parte do conhecimento que permanece independente e a que depende da experiência.
Essa fundamentação do direito empresta força absoluta não só ao princípio da liberdade, do qual as normas jurídicas derivam, mas a cada uma das suas partes, pois até mesmo as normas do direito positivo, embora dependentes da experiência, se fundam numa “lei natural que [...] estabelece a autoridade do legislador (isto é, a autorização [que ele tem] de obrigar os outros mediante sua mera escolha)” (idem). Desse modo, não apenas o princípio fundamental do sistema (a liberdade) é absolutizado, mas ele todo. Em cada uma de suas partes, o direito reveste-se de validade absoluta, assim como cada postulado da ciência natural é incontrastável e, por isso, não comporta exceções.
Vemos que, sem se reduzir à de São Tomás, a doutrina do direito de Kant é tão metafísica, perfeita e completa quanto ela. Tanto o filósofo medieval como o moderno realizam, de modos diversos, os ideais de racionalidade e completude que permitem elevar o conhecimento jurídico à condição de verdadeira ciência. Daí o atrativo perene dessas filosofias.
Porém, examinada a fundo, a doutrina jurídica de Kant revela-se desprovida de base demonstrativa, posto que a igualdade ou outro valor poderia ser posto tão bem como seu fundamento quanto a liberdade. Além disso, a ciência kantiana do direito permanece distante das instituições e dos próprios costumes. Incorre, por isso, no mesmo equívoco das lógicas cerebrinas e pouco aplicáveis à vida.
De natureza diversa é o direito natural dos romanos e, particularmente, de Cícero. De natureza diversa é o de Santo Agostinho. Aliás, as versões romana e agostiniana do direito natural são uma só quanto ao conteúdo. Diferenciam-se apenas quanto aos efeitos das normas que propugnam, que os romanos entendiam ser sumamente positivos, e Santo Agostinho considerava negativos. Esse direito natural romano e patrístico, embora muito menos abrangente que o escolástico e o kantiano, tem a decisiva vantagem de ser possível e poder ser aplicado por crescer rente à vida.
Com admiração, mas também com energia, devemos, pois, rechaçar as concepções idealizadas e impraticáveis do direito metafísico. Com energia havemos, não menos, de reconhecer que, onde o kantismo se fez influente, a tarefa de conduzir a doutrina do direito ao seu prumo foi dificultada, pela multiplicação de complexidades inteiramente desnecessárias. O velho problema do peso morto da metafísica revela, aqui, sua forma contemporânea e avançada. Não sem os mais nobres motivos intelectuais, é certo. Motivos tão nobres que o peso morto kantiano é até hoje saudado como avanço egrégio, enquanto a metafísica muito mais proporcionada, cujo fio o tempo não embotou, é motivo de risos sarcásticos e dissimulados. Como se, para o homem, o infinito e não a finitude e a modéstia pudesse constituir a medida certa.
domingo, 26 de julho de 2015
quinta-feira, 23 de julho de 2015
Filosofia e Direito (19): O Direito Canônico
Após a queda do Império Romano Ocidental, em 476 d. C., o direito romano continuou a ser cultivado e não raro a vigorar, sob a forma de codificações influentes, como o Corpus juris civilis de Justiniano, ou de fontes esparsas e complementares do direito local.
Um dos casos conspícuos de combinação do direito romano com outras fontes jurídicas, na Idade Média, foi o Direito Canônico. É comum os historiadores atribuírem a primeira codificação desse direito de cunho eminentemente eclesiástico a Graciano, cujo Decreto produzido no século XII serviu a extensão ordenada e mais ou menos enérgica do poder papal a quase todo o mundo ocidental.
Considerado em si mesmo, o direito canônico é de natureza eminentemente metafísica. Não se confunde com o direito comum, porém o inclua. Mais do que isso, para a Igreja como para Tomás, a lei é toda uma só: a de elaboração humana, chamada por ele às vezes também positiva, contém-se na lei natural, e esta, na lei eterna.
Ora, se a lei positiva, com suas nuanças tão numerosas quanto as situações e os contextos que a vida apresenta, está compreendida na lei natural, e a lei natural é uma participação na lei eterna, como Tomás não cansa de enfatizar, não há, no Universo, a não ser uma lei. E a diversidade das normas, de que nossos olhos estão repletos, outra coisa não é que ilusão.
Mas, se a lei é uma só e se funda nos pensamentos pelos quais Deus governa todas as coisas, segue-se que o direito é de índole metafísica, e o que dele afirmamos e as aplicações às vezes contraditórias que lhe damos não podem alterar a sua natureza intrínseca. Quando muito, o que fazem é recobrir e ocultar aquela natureza metafísica.
Consequência sumamente interessante do que acabo de expor são os efeitos do tempo no mundo jurídico. Se a lei humana é parte da lei natural que, por sua vez, integra a lei eterna, toda lei é, no fundo, eterna. Não se cria, nem se revoga, mas permanece imutável em Deus. Assim, o ato de promulgação não constitui propriamente a lei. Limita-se a transportá-la da consciência divina, onde remanesce, às consciências humanas. Semelhantemente, ao ser revogada, a lei não se desconstitui: apenas deixa de ser obrigatória.
Nesse quadro, a crítica às concepções do direito natural que afirmam a existência de normas não imperativas não se justifica, pois os teóricos do direito natural cristão jamais afirmaram que a lei pode ser meramente assertiva. Assertiva é a lei científica, que assevera ou descreve o modo como o Universo físico se comporta. A lei natural no sentido cristão é posta por um ser livre (Deus) a outros que, ao menos de raro em raro, podem deixar de observá-la. Como tal, ela é dotada de algum grau de imperatividade.
A crítica mencionada é procedente, portanto, apenas no concernente às formulações específicas do direito natural que o confundem com o princípio do comportamento animal, como a encontrada nas Institutas de Justiniano (JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23). De acordo com Tomás, a lei eterna sujeita-se a duas consagrações: a do hábito e a da razão. A primeira, típica dos animais, consiste na conformação involuntária da conduta à lei. Por não envolver consciência, ela não implica que os animais obedeçam à lei natural. E, se eles não a obedecem, tal lei não é imperativa para eles. Por isso não é correto afirmar que a conformação do comportamento animal à lei eterna envolva a sua sujeição à lei natural.
Tudo considerado, portanto, a promulgação não inaugura a lei, só aumenta a sua imperatividade, a fim de reger as vontades fracas que tendem a se apartar das condutas desejadas pelo legislador. Tomás enfatiza, porém, que a lei promulgada pode embotar-se nas consciências. Quando isso ocorre, ela perde imperatividade e regride ao estado anterior à promulgação.
Por assemelhar-se ao hábito animal, o costume dos povos não é fonte de direito, a não ser quando confirmado por um ato de autoridade. No Brasil, essa confirmação se dá por regras como a do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que prevê a aplicação do costume em casos de lacuna da lei. No Código de Direito Canônico, por sua vez, a elevação do costume à condição de lei está prevista no cânon 23. O cânon 24 acrescenta que ela só ocorre se o costume não contrariar o direito divino, entendido como a parte da lei eterna que não é promulgada por autoridade humana (Código de Direito Canônico. Cânon 1.059). Em suma, o tempo não cria, nem extingue leis, só aumenta ou diminui a sua imperatividade. Esse efeito não se observa apenas no tocante à lei, mas também aos direitos subjetivos que, no direito canônico ou no comum, se sujeitam à prescrição. À diferença do direito comum, porém, no canônico, a prescrição só corre quando as pessoas beneficiadas por ela conduzem-se com boa fé (Código de Direito Canônico. Cânon 198).
Prescrição é a perda de um direito ou de faculdades inerentes a ele pelo decurso do tempo. Os especialistas discutem a diferença entre prescrição e decadência. No Brasil, a matéria foi razoavelmente pacificada pela formação de um amplo consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a prescrição é a perda da pretensão condenatória que nasce da violação de um direito. Prescrito o direito, não pode o seu titular requerer ao juiz a condenação de quem o tiver violado, após transcorrido o prazo prescricional previsto em lei. Decadência, diversamente, é a perda da pretensão de constituir ou desconstituir relações jurídicas como as emanadas do contrato ou da sentença judicial.
Em direito canônico, se o devedor se evadir do credor para não pagar a dívida, ela não prescreverá. Por isso, poderá ser cobrada a qualquer momento. No direito comum, ao contrário, a prescrição ocorrerá independentemente da boa fé ou má fé do devedor. Portanto, a dívida não poderá ser cobrada.
Esse trato da prescrição pelo direito comum pode parecer equivocado. Não se trata, porém, de equívoco, mas de opção. É que o direito comum diferencia a prescrição aquisitiva da extintiva não só por acrescer o patrimônio de seu titular de novo direito, mas também pela boa fé, que é exigida na primeira e não na última. O direito canônico, ao contrário, não cuida da prescrição aquisitiva, embora reconheça os seus efeitos civis.
Assim, em direito comum, a prescrição aquisitiva confere à pessoa um direito pelo decurso de um prazo. A usucapião é o exemplo clássico: por ela, a pessoa conquista a propriedade de um bem por exercer sua posse durante certo tempo. Nem toda posse, porém, dá direito à prescrição aquisitiva. Para que esta se consume, é preciso que a posse seja qualificada por certas características, uma das quais é a boa fé. A propriedade não se adquire, se o exercente da posse não agir de boa fé.
Essa qualidade do ato de posse (a boa fé) não é exigível na prescrição extintiva do direito comum, pois o legislador entende que o credor pode evitar que o devedor de boa ou má fé se beneficie da prescrição, cobrando a ação em juízo. No Brasil, a citação válida do devedor, na ação promovida pelo credor, interrompe a prescrição, que não volta a correr até o trânsito em julgado. Por isso, o legislador não considerou necessário cercar o direito do credor da garantia adicional da imprescritibilidade.
O que o direito canônico tutela, portanto, com a exigência da boa fé para que se opere a prescrição extintiva, não é só o direito do credor, mas a própria boa fé, com o selo da imprescritibilidade. Assim, não só o credor é posto numa posição mais cômoda como a má fé não é coroada com a abolição das dívidas de quem a adota.
Não podemos deixar de observar que, no direito canônico, a lei natural tem sentido mais amplo do que nas obras de Cícero e Santo Agostinho. Se quisermos delimitar perfeitamente o conteúdo do conceito num e noutro caso, teremos de admitir que, para Cícero e Agostinho, o direito natural inclui somente as normas derivadas da lei eterna em situações concretas de vida, enquanto, na filosofia tomista, inclui toda a cadeia de derivação de normas a partir dos primeiros princípios, o que torna o direito natural muito mais metafísico.
Como advogado e jurisconsulto, Cícero não situava a ratio legis nas regiões hiperurânias, mas no interior das instituições do direito romano. Agostinho seguiu-o nesse particular. Assim como Cícero, ele entendeu a lei natural como o feixe limitado de consequências dos primeiros princípios a que se chega mediante contato com as necessidades da vida e as instituições jurídicas.
Por ser racional, o direito não pode passar ao largo dessas consequências. Deve, ao contrário, haurir delas o seu conteúdo essencial. No entanto, a tentativa de ir além desse ponto para atribuir caráter jurídico a toda a cadeia de consequências que vai dos primeiros princípios à ratio particular das instituições faz surgir um peso jurídico inútil. O peso das nebulosidades, do impenetrável e do jamais cogitado pelo homem comum.
Não é o direito a disciplina da própria vida? Se o é, por que nos caberia sobrecarregá-lo com abstrações que o homem comum nunca realiza e que não são necessárias à preservação da ordem social? Nos costumes e nas instituições sociais encontramos o tanto de pensamento e de abstração que o direito há de incorporar. Não é preciso ir além dele. Ao contrário, é preciso resistir à tentação de estender a razão jurídica além dessa fronteira em si já bastante remota. A incapacidade de realizar suficientemente essa tarefa transformou-se no problema específico e mais assinalado do pensamento medieval. É ainda hoje a tentação dos que concebem o direito canônico do ponto de vista estrito da escolástica.
é a tentação mais comum no nosso tempo. O ordinário, hoje, é o inverso daquela tentação: não o excesso de metafísica, mas o excesso de rejeição dela. Tentação que os monumentos jurídicos do nosso dia tratam de rechaçar. Por que as Constituições contemporâneas não cuidam de abstrações metafísicas, mas de instituições sociais e jurídicas? Não é porque o constituinte se sinta investido da missão de rejeitar algo (a metafísica), mas porque ele sabe da dívida do nosso tempo com a mais estreita adesão à ordem institucional. O constituinte sabe que o seu dever não é rejeitar ou excluir, mas abraçar e incluir. Por isso, ele tudo inclui sob o pálio da Constituição. Da mais insignificante minoria à prática social mais limítrofe do crime, tudo recebe o matiz liberal da permissão constitucional. Por que conceber que a lógica essencial ao direito estaria excluída? Por que conceber que a modernização dos costumes se dá em prejuízo da racionalidade comum a todas as épocas? Por puro medo da palavra metafísica?
Um dos casos conspícuos de combinação do direito romano com outras fontes jurídicas, na Idade Média, foi o Direito Canônico. É comum os historiadores atribuírem a primeira codificação desse direito de cunho eminentemente eclesiástico a Graciano, cujo Decreto produzido no século XII serviu a extensão ordenada e mais ou menos enérgica do poder papal a quase todo o mundo ocidental.
Considerado em si mesmo, o direito canônico é de natureza eminentemente metafísica. Não se confunde com o direito comum, porém o inclua. Mais do que isso, para a Igreja como para Tomás, a lei é toda uma só: a de elaboração humana, chamada por ele às vezes também positiva, contém-se na lei natural, e esta, na lei eterna.
Ora, se a lei positiva, com suas nuanças tão numerosas quanto as situações e os contextos que a vida apresenta, está compreendida na lei natural, e a lei natural é uma participação na lei eterna, como Tomás não cansa de enfatizar, não há, no Universo, a não ser uma lei. E a diversidade das normas, de que nossos olhos estão repletos, outra coisa não é que ilusão.
Mas, se a lei é uma só e se funda nos pensamentos pelos quais Deus governa todas as coisas, segue-se que o direito é de índole metafísica, e o que dele afirmamos e as aplicações às vezes contraditórias que lhe damos não podem alterar a sua natureza intrínseca. Quando muito, o que fazem é recobrir e ocultar aquela natureza metafísica.
Consequência sumamente interessante do que acabo de expor são os efeitos do tempo no mundo jurídico. Se a lei humana é parte da lei natural que, por sua vez, integra a lei eterna, toda lei é, no fundo, eterna. Não se cria, nem se revoga, mas permanece imutável em Deus. Assim, o ato de promulgação não constitui propriamente a lei. Limita-se a transportá-la da consciência divina, onde remanesce, às consciências humanas. Semelhantemente, ao ser revogada, a lei não se desconstitui: apenas deixa de ser obrigatória.
Nesse quadro, a crítica às concepções do direito natural que afirmam a existência de normas não imperativas não se justifica, pois os teóricos do direito natural cristão jamais afirmaram que a lei pode ser meramente assertiva. Assertiva é a lei científica, que assevera ou descreve o modo como o Universo físico se comporta. A lei natural no sentido cristão é posta por um ser livre (Deus) a outros que, ao menos de raro em raro, podem deixar de observá-la. Como tal, ela é dotada de algum grau de imperatividade.
A crítica mencionada é procedente, portanto, apenas no concernente às formulações específicas do direito natural que o confundem com o princípio do comportamento animal, como a encontrada nas Institutas de Justiniano (JUSTINIANO, Flávio Pedro. Institutas. São Paulo: RT, 2000. Título II, p. 23). De acordo com Tomás, a lei eterna sujeita-se a duas consagrações: a do hábito e a da razão. A primeira, típica dos animais, consiste na conformação involuntária da conduta à lei. Por não envolver consciência, ela não implica que os animais obedeçam à lei natural. E, se eles não a obedecem, tal lei não é imperativa para eles. Por isso não é correto afirmar que a conformação do comportamento animal à lei eterna envolva a sua sujeição à lei natural.
Tudo considerado, portanto, a promulgação não inaugura a lei, só aumenta a sua imperatividade, a fim de reger as vontades fracas que tendem a se apartar das condutas desejadas pelo legislador. Tomás enfatiza, porém, que a lei promulgada pode embotar-se nas consciências. Quando isso ocorre, ela perde imperatividade e regride ao estado anterior à promulgação.
Por assemelhar-se ao hábito animal, o costume dos povos não é fonte de direito, a não ser quando confirmado por um ato de autoridade. No Brasil, essa confirmação se dá por regras como a do artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que prevê a aplicação do costume em casos de lacuna da lei. No Código de Direito Canônico, por sua vez, a elevação do costume à condição de lei está prevista no cânon 23. O cânon 24 acrescenta que ela só ocorre se o costume não contrariar o direito divino, entendido como a parte da lei eterna que não é promulgada por autoridade humana (Código de Direito Canônico. Cânon 1.059). Em suma, o tempo não cria, nem extingue leis, só aumenta ou diminui a sua imperatividade. Esse efeito não se observa apenas no tocante à lei, mas também aos direitos subjetivos que, no direito canônico ou no comum, se sujeitam à prescrição. À diferença do direito comum, porém, no canônico, a prescrição só corre quando as pessoas beneficiadas por ela conduzem-se com boa fé (Código de Direito Canônico. Cânon 198).
Prescrição é a perda de um direito ou de faculdades inerentes a ele pelo decurso do tempo. Os especialistas discutem a diferença entre prescrição e decadência. No Brasil, a matéria foi razoavelmente pacificada pela formação de um amplo consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que a prescrição é a perda da pretensão condenatória que nasce da violação de um direito. Prescrito o direito, não pode o seu titular requerer ao juiz a condenação de quem o tiver violado, após transcorrido o prazo prescricional previsto em lei. Decadência, diversamente, é a perda da pretensão de constituir ou desconstituir relações jurídicas como as emanadas do contrato ou da sentença judicial.
Em direito canônico, se o devedor se evadir do credor para não pagar a dívida, ela não prescreverá. Por isso, poderá ser cobrada a qualquer momento. No direito comum, ao contrário, a prescrição ocorrerá independentemente da boa fé ou má fé do devedor. Portanto, a dívida não poderá ser cobrada.
Esse trato da prescrição pelo direito comum pode parecer equivocado. Não se trata, porém, de equívoco, mas de opção. É que o direito comum diferencia a prescrição aquisitiva da extintiva não só por acrescer o patrimônio de seu titular de novo direito, mas também pela boa fé, que é exigida na primeira e não na última. O direito canônico, ao contrário, não cuida da prescrição aquisitiva, embora reconheça os seus efeitos civis.
Assim, em direito comum, a prescrição aquisitiva confere à pessoa um direito pelo decurso de um prazo. A usucapião é o exemplo clássico: por ela, a pessoa conquista a propriedade de um bem por exercer sua posse durante certo tempo. Nem toda posse, porém, dá direito à prescrição aquisitiva. Para que esta se consume, é preciso que a posse seja qualificada por certas características, uma das quais é a boa fé. A propriedade não se adquire, se o exercente da posse não agir de boa fé.
Essa qualidade do ato de posse (a boa fé) não é exigível na prescrição extintiva do direito comum, pois o legislador entende que o credor pode evitar que o devedor de boa ou má fé se beneficie da prescrição, cobrando a ação em juízo. No Brasil, a citação válida do devedor, na ação promovida pelo credor, interrompe a prescrição, que não volta a correr até o trânsito em julgado. Por isso, o legislador não considerou necessário cercar o direito do credor da garantia adicional da imprescritibilidade.
O que o direito canônico tutela, portanto, com a exigência da boa fé para que se opere a prescrição extintiva, não é só o direito do credor, mas a própria boa fé, com o selo da imprescritibilidade. Assim, não só o credor é posto numa posição mais cômoda como a má fé não é coroada com a abolição das dívidas de quem a adota.
Não podemos deixar de observar que, no direito canônico, a lei natural tem sentido mais amplo do que nas obras de Cícero e Santo Agostinho. Se quisermos delimitar perfeitamente o conteúdo do conceito num e noutro caso, teremos de admitir que, para Cícero e Agostinho, o direito natural inclui somente as normas derivadas da lei eterna em situações concretas de vida, enquanto, na filosofia tomista, inclui toda a cadeia de derivação de normas a partir dos primeiros princípios, o que torna o direito natural muito mais metafísico.
Como advogado e jurisconsulto, Cícero não situava a ratio legis nas regiões hiperurânias, mas no interior das instituições do direito romano. Agostinho seguiu-o nesse particular. Assim como Cícero, ele entendeu a lei natural como o feixe limitado de consequências dos primeiros princípios a que se chega mediante contato com as necessidades da vida e as instituições jurídicas.
Por ser racional, o direito não pode passar ao largo dessas consequências. Deve, ao contrário, haurir delas o seu conteúdo essencial. No entanto, a tentativa de ir além desse ponto para atribuir caráter jurídico a toda a cadeia de consequências que vai dos primeiros princípios à ratio particular das instituições faz surgir um peso jurídico inútil. O peso das nebulosidades, do impenetrável e do jamais cogitado pelo homem comum.
Não é o direito a disciplina da própria vida? Se o é, por que nos caberia sobrecarregá-lo com abstrações que o homem comum nunca realiza e que não são necessárias à preservação da ordem social? Nos costumes e nas instituições sociais encontramos o tanto de pensamento e de abstração que o direito há de incorporar. Não é preciso ir além dele. Ao contrário, é preciso resistir à tentação de estender a razão jurídica além dessa fronteira em si já bastante remota. A incapacidade de realizar suficientemente essa tarefa transformou-se no problema específico e mais assinalado do pensamento medieval. É ainda hoje a tentação dos que concebem o direito canônico do ponto de vista estrito da escolástica.
é a tentação mais comum no nosso tempo. O ordinário, hoje, é o inverso daquela tentação: não o excesso de metafísica, mas o excesso de rejeição dela. Tentação que os monumentos jurídicos do nosso dia tratam de rechaçar. Por que as Constituições contemporâneas não cuidam de abstrações metafísicas, mas de instituições sociais e jurídicas? Não é porque o constituinte se sinta investido da missão de rejeitar algo (a metafísica), mas porque ele sabe da dívida do nosso tempo com a mais estreita adesão à ordem institucional. O constituinte sabe que o seu dever não é rejeitar ou excluir, mas abraçar e incluir. Por isso, ele tudo inclui sob o pálio da Constituição. Da mais insignificante minoria à prática social mais limítrofe do crime, tudo recebe o matiz liberal da permissão constitucional. Por que conceber que a lógica essencial ao direito estaria excluída? Por que conceber que a modernização dos costumes se dá em prejuízo da racionalidade comum a todas as épocas? Por puro medo da palavra metafísica?
quarta-feira, 22 de julho de 2015
Filosofia e Direito (18): Princípios da Lei Natural
No século XIV, Duns Escoto e Guilherme de
Ockham afirmaram que o fator decisivo para o mundo ser como é não é a razão de
Deus, mas a sua vontade. Com o tempo, essa opinião, que desafiou as de
Agostinho e Tomás de Aquino, provou-se um dos pontos a partir dos quais o
pensamento humano mais divergiu de suas antigas fontes racionais.
Porém, a brecha aberta pela opinião de Escoto e de Ockham pode ser fechada pela explicação de que o inteiro território do mal, com a vasta importância que lhe é reservada na Teologia Cristã, não procede sequer na mais tênue medida da vontade divina, mas do livre arbítrio das criaturas. Deus não quer, nunca quis o mal, o que desconecta o mundo da sua vontade. Conecta-o, porém, a algo em Deus, posto que o mundo não pode ser obra de Deus sem harmonizar-se com algo nele. Ouso pensar que esse algo, para Agostinho e Tomás, é a razão de Deus, não a nossa, na medida em que não compreendemos por que Deus escolheu um Universo moralmente mais livre e heterogêneo de preferência a outro mais puro e homogêneo. Mas entendemos, com Agostinho e Tomás, que ele o fez por sua razão, sem jamais ter querido o mal por sua vontade.
Porém, a brecha aberta pela opinião de Escoto e de Ockham pode ser fechada pela explicação de que o inteiro território do mal, com a vasta importância que lhe é reservada na Teologia Cristã, não procede sequer na mais tênue medida da vontade divina, mas do livre arbítrio das criaturas. Deus não quer, nunca quis o mal, o que desconecta o mundo da sua vontade. Conecta-o, porém, a algo em Deus, posto que o mundo não pode ser obra de Deus sem harmonizar-se com algo nele. Ouso pensar que esse algo, para Agostinho e Tomás, é a razão de Deus, não a nossa, na medida em que não compreendemos por que Deus escolheu um Universo moralmente mais livre e heterogêneo de preferência a outro mais puro e homogêneo. Mas entendemos, com Agostinho e Tomás, que ele o fez por sua razão, sem jamais ter querido o mal por sua vontade.
Para Agostinho não menos
do que para Tomás, não há brecha no modo racional de Deus governar o mundo.
Nada há, no Universo, que se deva à vontade sem dever-se também à razão divina.
Por isso, a diferença primordial entre os dois luminares do pensamento cristão,
no tocante ao papel da razão, não se põe no plano divino, mas no humano. Tanto
Agostinho quanto Tomás aceitam a doutrina da pecaminosidade humana depois da
queda. Porém o primeiro leva-a mais longe ao estender os efeitos da rejeição de
Adão a toda obra humana, inclusive as de índole racional, ao passo que Tomás,
ao recepcionar integralmente o aristotelismo em assuntos terrenos, abre exceção
ao que a razão é capaz de descobrir sem erro.
Essa diferença sutil
entre as antropologias de Agostinho e de Tomás, mais do que a aproximação
filosófica do primeiro em relação a Platão e de Tomás, a Aristóteles, explica
as dessemelhanças fundamentais entre o agostinismo e o tomismo. E o que nos
interessa particularmente é que a diferença antropológica mencionada repercute
no campo do direito mais do que qualquer outro aspecto do pensamento dos dois
filósofos cristãos.
Vimos que a impotência
do direito para preservar a civilização romana desempenhou papel decisivo no
pensamento de Santo Agostinho. Vimos também que essa conclusão foi confirmada,
de maneira espantosa, pelos acontecimentos do quarto século. O que nos arrasta
à constatação de que, na época de Tomás, em contraste com a de Agostinho, a
Cristandade pareceu ter conseguido realizar o que os romanos não foram capazes
de produzir, a saber: uma civilização culta, estável e temente a Deus. Essas
constatações contribuíram para inclinar o pensamento de Tomás numa direção
diferente e até mesmo oposta àquela de Santo Agostinho.
Pareceu a Tomás que a concepção otimista da lei natural de Aristóteles moldava-se perfeitamente a esse novo contexto histórico. Sua principiologia adaptava-se à crença medieval no triunfo da civilização cristã. Parecia até mesmo talhada para explicá-la. Não se passava o mesmo com a ideia de direito de Santo Agostinho, que supunha uma radical diferença entre a cidade terrena e a de Deus.
Pareceu a Tomás que a concepção otimista da lei natural de Aristóteles moldava-se perfeitamente a esse novo contexto histórico. Sua principiologia adaptava-se à crença medieval no triunfo da civilização cristã. Parecia até mesmo talhada para explicá-la. Não se passava o mesmo com a ideia de direito de Santo Agostinho, que supunha uma radical diferença entre a cidade terrena e a de Deus.
Essas diferenças
marcantes de contexto histórico e de inspiração filosófica refletiu-se no conceito
de lei natural de Agostinho e Tomás. Para o primeiro, a lei, natural ou humana,
tem sentido prático negativo, pois serve para tornar o homem culpável diante de
Deus. Essa conclusão Agostinho extrai-a do uso que o apóstolo Paulo dá à lei
natural, em Romanos, onde ela é apontada como causa da culpabilidade do homem,
conheça ele ou não os mandamentos de Moisés.
Em Tomás, ao contrário,
a lei natural tem sentido positivo, por constituir inclinação para um ato e um
fim adequados (AQUINO, Tomás de. Suma teológica. “Tratado sobre a lei”. 2ª ed., 4ª impr., Chicago:
Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 18. Questão 91, art. 2, p. 209).
É, a lei natural, a mais alta participação possível na lei eterna, pela qual
Deus rege todas as coisas e cujo conteúdo só ele conhece.
Divide-se a lei natural
nos seus primeiros princípios e nas conclusões extraídas deles. Tais
conclusões são incontáveis, pois não há termo para o processo de particularização
da lei natural, a fim de atender as diversificadas necessidades da vida humana.
Quanto mais longe vai o processo, mais a lei natural se particulariza. E
quanto mais variadas as necessidades que o ditam, mais ela se diversifica, a
fim de atendê-las.
Daí Tomás afirmar que,
por constituir uma medida, a lei deve ser homogênea àquilo que mede, isto é, o
justo e o injusto humanos (Idem. Questão 96, art. 2, p. 231). Mas a
lei só pode alcançar essa plasticidade, só pode moldar-se à variada matéria da
vida humana ao submeter-se ao processo de particularização mencionado acima.
Esse processo realiza-se
mediante a contínua promulgação das leis pelo poder soberano. No entanto, por
vasto que seja e por mais que as conclusões atingidas ao longo dele se distanciem
dos primeiros princípios, elas não se desnaturam, enquanto se limitam a
particularizá-los como é devido. Assim, o resultado prodigioso da
particularização dos primeiros princípios da lei natural chega a ser o imenso
sistema do justo humano, com suas leis, decisões e execuções.
Esse sistema tão
diversificado quanto as situações que a vida apresenta tem, para Tomás, uma só
natureza da primeira à última norma e da primeira à última aplicação delas, a
saber: a natureza do justo. É, por isso, essencialmente bom. Esta a concepção
geral de direito de Tomás de Aquino.
A diferença entre ela e
a concepção de Agostinho só pode ser considerada sutil na aparência. Tomada em
profundidade, ela avulta extraordinariamente. Torna-se tão imensa quanto a
distinção que vigora entre o bem do mal. Para Tomás, com efeito, a lei é boa,
assim como muitos dos atos humanos medidos por ela, ou então não seria capaz de
medi-los, e o sistema legal inteiro não teria razão de ser.
Agostinho não destoa da
descrição que Tomás fornece do impressionante processo de particularização do
justo a partir dos seus primeiros princípios. Também ele concebe o direito
como sistema produzido a partir dos primeiros princípios da lei natural.
Porém, Agostinho diverge
de maneira egrégia de São Tomás ao atribuir caráter negativo ao processo acima
descrito de produção do direito. Ou antes Tomás destoa de Santo Agostinho, ao
reconhecer no homem uma aptidão natural para a virtude. De qualquer modo, aqui,
um dos dois deve estar errado, pois afirmam coisas opostas sob o mesmo ponto de
vista. Pode parecer que Agostinho labora em erro, pois Tomás argumenta a partir
da lógica essencial ao pensamento jurídico. Porém, a um exame mais
aprofundado, Agostinho parece partir do que crê constituir a lógica de Deus
exposta nas Sagradas Escrituras.
Para Agostinho, de fato,
questões de dever-ser, diferentemente de questões sobre o ser, não dependem da
lógica humana, mas da consideração de Deus e da interpretação que ele lhes dá.
Agostinho encontra essa interpretação nos textos bíblicos que afirmam que Deus
considera pecados as boas ações não nascidas da graça divina, por sua fraqueza
inerente e pelo modo como seus autores vivem a oscilar entre o bom e o mau e
entre o mau e o pior.
Essas divergências entre
Agostinho e Tomás podem parecer destituídas de importância prática. Mas é preciso
lembrar que a opinião de Agostinho tem a seu favor a importância dos fatos que
a confirmam. Proporcionalmente ao ponto do qual surgiu, o primitivo seio da
loba, Roma talvez tenha sido a mais prodigiosa civilização de todos os tempos. Mas
caiu fragorosamente, ante Alarico e o olhar atônito do bispo de Hipona. Caiu
apesar de tudo o que ergueu e das virtualidades do seu sistema jurídico. E, por
serem engendradas pelas mesmas forças, cairão depois dela todas as outras
civilizações. Esta parece ter sido a aposta de Agostinho, ao considerar todas
as civilizações, todas as cidades, uma só cidade. Tomás dobrou decididamente a aposta.
A quem caberá a sorte ou, se houver diferença, a razão?
terça-feira, 21 de julho de 2015
Filosofia e Direito (17): A Lei Natural em Santo Agostinho
Os estoicos e os peripatéticos (seguidores de Aristóteles) associavam a lei natural à razão divina, o que os fazia diferir, nesse ponto, apenas em razão do modo como concebiam Deus. Para os
estoicos e Cícero, Deus era uma inteligência difusa e impessoal. Para os peripatéticos,
ele era dotado de atributos pessoais.
Embora os peripatéticos derivassem sua ideia de inteligência divina de Aristóteles, cujas obras rarearam até quase desaparecerem do Ocidente, nos primeiros séculos da era cristã, a concepção de Deus que eles preservaram foi absorvida por pensadores de outras escolas, a exemplo de Orígenes e Santo Agostinho. Por isso também, a noção aristotélica da inteligência divina foi transmitida aos primeiros filósofos cristãos mais pelos peripatéticos do que por meio das obras do próprio Aristóteles.
Embora os peripatéticos derivassem sua ideia de inteligência divina de Aristóteles, cujas obras rarearam até quase desaparecerem do Ocidente, nos primeiros séculos da era cristã, a concepção de Deus que eles preservaram foi absorvida por pensadores de outras escolas, a exemplo de Orígenes e Santo Agostinho. Por isso também, a noção aristotélica da inteligência divina foi transmitida aos primeiros filósofos cristãos mais pelos peripatéticos do que por meio das obras do próprio Aristóteles.
O modelo de pensador
cristão da Antiguidade foi Santo Agostinho, em quem a influência grecorromana e
as tendências do pensamento patrístico se harmonizam no mais alto grau. Ao
longo da sua vida, Agostinho foi o protótipo do homem romano tanto quanto o do
pensador cristão. Por isso, nele se reúnem o melhor da cultura clássica e da
tradição judaicocristã.
Tão vasta é a recepção da
cultura clássica, e particularmente de Cícero, percebida nas obras de Santo
Agostinho que não parece provável que o De
legibus ou o De republica não tenham
sido absorvidos por ele. Cícero é uma influência fortíssima em Santo Agostinho.
Tão forte que é temerário admiti-la apenas nos anos que antecederam e sucederam
imediatamente a conversão de Agostinho.
Não é possível afirmar o
mesmo da influência de Aristóteles sobre Santo Agostinho. O desaparecimento do corpus aristotélico do mundo latino, no
fim do século IV, impediu que Agostinho assimilasse Aristóteles na intensidade
e profundidade em que absorveu a obra de Cícero. E esse diferencial de
assimilação sugere que o santo concebeu a lei natural mais em termos
ciceronianos do que aristotélicos.
Isso implica entender a ratio legis mais à maneira prática dos
romanos do que à moda especulativa dos gregos. Mais conforme Cícero que segundo
Aristóteles. E muito mais no interior das instituições de direito do que nas
regiões do supraempírico.
Para Cícero, a ratio legis era mais do que uma lógica
formal. Era o método pelo qual as instituições jurídi-cas funcionavam
efetivamente. Assim, por exemplo, uma relação de filiação ou de compra e venda
tinha a sua ratio própria. As
interpretações das normas que as definiam podia variar, no entanto os advogados
e os jurisperitos enfrentavam as questões de interpretação com base na mesma
lógica de natureza material e não formal.
Ainda hoje, a lógica
geral do direito é a mesma. Por isso, é possível ilustrar o funcionamento dela
não só não só em instituições dos antigos romanos como dos povos modernos. Por
exemplo, a concessão de serviços públicos, no nosso tempo, não obedece apenas
às regras da Lógica Formal, mas também e principalmente a ratio material do instituto. O mesmo sucede com a função social da
propriedade, cuja interpretação mais restrita ou extensa é intensamente debatida,
sem que se discuta que, no direito brasileiro, por exemplo, ela coexiste com a propriedade
privada. Portanto que a lógica jurídica, ao aplicar-se no campo da
propriedade, está sujeita a esse limite de ordem material.
Podemos, assim, fazer a
lógica do direito coincidir com a ratio
legis de Cícero e Santo Agostinho, o que importa entendê-las não em termos
formais, mas materiais. Claro que nem em Cícero, nem em Agostinho os princípios
da Lógica Formal estão excluídos. Pelo contrário, a Lógica Jurídica resulta de
mutações a que a Lógica Formal é sujeita em razão dos limites materiais a que o
pensamento se sujeita no campo particular do direito.
No direito de muitos
países, é vedado pensar que a propriedade não tenha função social ou que a
função social dela exclua o feixe de faculdades que a propriedade privada assegura.
A função social da propriedade e as faculdades inerentes à propriedade privada
não são apenas mandamentos do legislador. São ao mesmo tempo princípios que
informam a Lógica Jurídica. E ouso pensar que isso pouco mudou do Direito
Romano a esta parte.
Precisamos entender que,
embora ressaltasse a relação da lei humana
com a ordem imutável do cosmos, Cícero não ia ao ponto de afirmar, com
Aristóteles, que ela existisse à parte das instituições sociais. Pelo contrário,
para ele, a ratio legis derivava de
escolhas práticas do legislador.
Por isso, ao abraçar a
concepção de direito de Cícero, Agostinho não lhe imprimiu a coloração
metafísica que tinha em Aristóteles. Lei humana, para Agostinho como para
Cícero, não era um dado natural. Não derivava da ordem das coisas, mas de
escolhas sociais e políticas. Era criação do costume e do legislador, conforme
o direito natural, ou então a lei não seria lei. Mas criação e não descoberta.
Essa diferença entre o
conceito de lei humana de Cícero e Agostinho e o de Aristóteles aprofunda-se
ainda mais, conforme o santo vincula a ratio
legis ao Deus cristão e não à ordem das coisas. Por originar-se de Deus, a
razão jurídica é concebida como um reflexo, embora esmaecido, da lei divina. Consequência
prática disso é que ela é mais negativa do que positiva, visto que a função da lei,
no pensamento apostólico, é reavivar o pecado.
Nesse ponto, a concepção
de direito de Santo Agostinho afasta-se da de Cícero.Como reflexo da lei divina na consciência, a lei humana não promove a bondade, antes estabelece a culpabilidade do homem. Esse ponto de vista jurídico é o que, sobretudo, autoriza Agostinho a pronunciar a sentença sobre o mundo romano encontrada em A cidade de Deus. De acordo com a sentença agostiniana, a ratio legis não foi capaz de conduzir os pagãos a outro destino que não a ruína. Por isso, embora benigna, a queda do homem a tornou tão frágil que ela permanece incapaz de prover os povos de bens duradouros.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é a meu ver inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa no insofismável curso dos acontecimentos da sua época. Os ratos da História roeram Roma inteira e não só a roupa do seu rei, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.
Essa fundamentação da tese central de A cidade de Deus, derivada da ideia agostiniana de direito, é a meu ver inequívoca. Prende-se de tal maneira ao entorno de Santo Agostinho que se torna uma só coisa com os fatos. Diferentemente do que acontece à concepção jurídica de Aristóteles, a de Santo Agostinho repousa no insofismável curso dos acontecimentos da sua época. Os ratos da História roeram Roma inteira e não só a roupa do seu rei, na medida em que a causa do intenso brilho daquela civilização, sua adesão à ratio legis, provou-se impotente para salvá-la.
E o fragoroso fracasso
do direito romano não é casual. Tem, em Agostinho, uma motivação perfeitamente
clara: "Considerações de justiça à parte,
que são reinos a não ser grandes bandos de salteadores? E que são bandos de
salteadores, senão pequenos reinos? O bando é formado por homens. Governa-o um
príncipe. Sua coesão é mantida por um pacto de solidariedade, e os despojos são
divididos com base na lei consentida por todos. E, se, pela incorporação de
homens abandonados, esse domínio cruel se expande a ponto de possuir casas,
cidades e povos, passa a chamar-se reino" (HIPONA, Agostinho de. The city of God.
In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia
Britannica, 1993. Vol. 16, p. 231).
A
glória de um reino e o esplendor extraordinário dos maiores deles não anula o
fato de um reino não ser outra coisa que a hipertrofia de um mal, de uma
injustiça. E o fundamento desse modo de ver os reinos e o direito, não o
podemos negar, pelo menos em Agostinho, é a doutrina cristã do pecado original.
Para o santo de Hipona, o direito é destituído da força necessária para
cumprir sua augusta função civilizatória, porque o homem é fraco. E o homem é
fraco, porque sobre ele pesa a sentença de Deus em razão do pecado.
Claro que a fonte de uma
doutrina não se confunde com a prova de sua verdade. A fonte da concepção de
direito de Santo Agostinho é a doutrina do homem, mas o que a coroa e lhe imprime
o timbre da veracidade é a confirmação dos fatos. E que fatos: a queda do mais
glorioso império da História, eis o que presta confirmação à ideia agostiniana
de que a mais consistente adesão à racionalidade da lei é incapaz levar a
qualquer resultado prático que não seja a completa ruína!
Duas, portanto, e não
uma são as doutrinas básicas do direito natural que os tempos prestigiaram mais
do que outras: uma, a de Cícero, reinou nos últimos séculos da Antiguidade;
outra, a de Santo Agostinho, triunfou da queda de Roma ao fim da Alta Idade
Média. Uma terceira concepção, a de São Tomás, será proposta no século XIII e
regerá o pensamento jusnaturalista, ao menos em parte, no resto da Idade Média e
no Período Moderno.
A voga das ideias de
Tomás só não foi maior, porque o direito natural foi colocado em bases totalmente
novas por Kant e seus seguidores, o que reduziu a influência da concepção
tomista. Mas temos boas razões para desconfiar da solidez da revolução kantiana
nesse terreno, como procurei demonstrar nos capítulos anteriores. E, se as três
ou quatro opções a que acabo de me referir representam um balanço das discussões
ocorridas em torno do direito natural, ao longo da História, é indispensável manter
consciência delas ao tomar o partido dos que se colocam a favor ou contra essa
doutrina.
Pode parecer que, ao fazer
o jusnaturalismo depender da conexão entre direito e moral, e o juspositivismo
da separação entre eles, Alexy põe o problema diferentemente de mim (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivismo. New
York: Oxford, 2002. pp. 3-4
). Mas não
creio tratar-se realmente disso. Em sentido especulativo profundo, a querela do
jusnaturalismo com o positivismo é, de fato, uma questão de conexão ou
separação entre direito e moral. Porém, em sentido prático, que é o que mais me
interessa, o problema resolve-se no reconhecimento de que a conexão ou
separação põem-se no plano da ratio das
instituições jurídicas e dos costumes, mais que no dos valores. O que está longe de ser destituído de consequências filosóficas.
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