Orígenes de Alexandria |
Como todas as perguntas que evocam assuntos muito amplos, a especulação sobre quem teria sido o maior pensador da Antiguidade é
praticamente indecidível. Mas nem por isso é inútil, visto que tange um
tema fecundo e convida à reflexão comparativa de obras sobreexcelentes escritas ao longo de muitos séculos.
O
mais longe que se pode ir, na questão proposta, sem abandonar a preocupação com
a justiça na escolha do príncipe dos pensadores e com critérios objetivos em que
fundamentá-la, é colher opiniões abalizadas a respeito dela. Se a
questão me fosse formulada, preferiria fornecer uma lista de pensadores, em vez de um
único nome. Assim, a resposta perderia em termos de
definição, mas ganharia em convicção, pois minha lista se apoiaria em considerável grau de certeza.
Eu
elegeria dois filósofos gregos (Platão e Aristóteles), dois teólogos
patrísticos (Orígenes e Agostinho) e, entre eles, situaria o romano Cícero.
Assim comporia minha lista, mantendo um grau de indefinição, mas aumentando
muito a convicção de que dei a resposta certa, à luz de tudo o que me foi possível investigar do pensamento antigo até hoje.
Claro
que a minha lista exclui os autores bíblicos, que devem ser colocados numa categoria incomparável. Exclui também os precursores das ciências naturais, como
Arquimedes, pois, embora altamente reflexivo, o trabalho deles prendia-se de
tal maneira ao empírico que a reflexão abstrata resultava de algum modo
limitada, ao menos em comparação com os pensadores da minha lista. Excluí ainda os historiadores, por um motivo não muito distinto. É que, na Antiguidade, a
arte da narrativa obedecia a regras e métodos que não permitiam a um Tucídides, um
Plutarco ou um Tácito igualar as realizações reflexivas dos filósofos e
teólogos. Não só isso: devo admitir que
excluí também os poetas e dramaturgos gregos e romanos. A essa imputação posso responder somente que o fiz sem preconceito, visto que tenho as artes imaginativas,
a exemplo da poesia, da pintura e da dramaturgia, como atividades superiores à
reflexão racional, mas nem por isso concluo que a reflexão que elas contêm sobrepuja a dos maiores filósofos e teólogos.
Por
fim, devo esclarecer que não fiz constar na mina lista alguns pensadores que se destacaram
sobremaneira na reflexão pura, como Sócrates e Euclides. Sócrates não foi deixado fora por falta de gênio, é claro, mas por conhecermos o seu
pensamento apenas pelo testemunho de terceiros. Por mais qualificados
que tenham sido esses terceiros, do que ninguém duvida, quando consideramos as
convenções que regiam a reprodução de discursos alheios na Antiguidade,
compreendemos que não é possível comparar obras autênticas com discursos
reconstituídos. Quanto a Euclides, não foi incluído em razão do caráter
mais restrito da Matemática como ciência, em comparação com a Filosofia e a Teologia, e por eu não me arvorar em bom entendedor da sua obra.
Fico,
assim, com meus cinco pensadores: Platão, Aristóteles, Cícero, Orígenes e
Agostinho. E o que falta de definição de um único nome a essa lista sobra em
convicção de que dei a resposta mais exata possível à pergunta formulada, tanto à luz da minha
formação quanto do meu senso de justiça.
A lista, na verdade, é citada, aqui, para transmitir, de maneira justa e equilibrada, o valor da
obra de Orígenes de Alexandria.
Esse pensador do terceiro século foi, sem favor, o maior hermeneuta e o mais hábil crítico textual da
Antiguidade. Está ainda entre os maiores filósofos patrísticos, o que, em dias de
ceticismo descontrolado, como os de hoje, pode parecer pouco, mas nada tem de
irrelevante. Basta lembrar que a Filosofia Antiga divide-se em duas partes: uma
dedicada ao estudo dos pensadores gregos (e romanos) e outra, aos patrísticos.
Por fim, Orígenes, Agostinho e Jerônimo são geralmente reconhecidos como os
maiores teólogos da Antiguidade.
Por dois ou três séculos, Orígenes foi o pensador mais influente do mundo ocidental. A
penetração do seu pensamento só foi sustada pelas condenações póstumas que sofreu, primeiro por teólogos isolados, como Jerônimo, e mais tarde, no Sínodo de Constantinopla (544) e no Segundo Concílio de
Constantinopla (553). No entanto, qualquer um sabe que não é possível julgar,
definitivamente, o valor das ideias de alguém, com base em condenações
dogmáticas. Ainda mais quando os vereditos aplicam retroativamente regras inexistentes na época do pensador condenado e o fazem sem que lhe seja concedido direito
de defesa, como no caso de Orígenes. Parece, de fato, que os pratos da balança foram muito desequilibrados nos julgamentos ocorridos: num deles encontramos uma das obras mais importantes da História da Igreja; no outro, duas condenações dogmáticas proferidas sem direito de defesa, com base na retroação de normas. Nada mais justo, por isso, do que Orígenes vir a ser reabilitado pela Igreja.
Não direi, aqui, da importância de Orígenes como filósofo. Sobre esse tema, já me
pronunciei em outro artigo. E como a história da igreja que tento contar não é uma
narrativa de fatos, mas um relato através dos textos, tratarei apenas dos escritos teológicos do nosso pensador.
A
contribuição de Orígenes para a Teologia não pode ser exposta em tão poucas páginas.
Limitar-me-ei a analisá-la num dos textos mais
significativos do alexandrino, a saber: a obra que ele escreveu para refutar a
primeira crítica extensa de um filósofo pagão à fé cristã. A obra intitula-se Contra Celso e realiza tão completamente
o propósito de refutar o livro intitulado Discurso verdadeiro, do qual não restou um só exemplar, que
este se tornou conhecido, na íntegra, por meio das citações de
Orígenes. Não é difícil, pois, entender que Contra
Celso constitui uma refutação palavra por palavra do Discurso verdadeiro.
Dentre
os muitos tópicos em que Orígenes se detém, na obra aludida, selecionarei
um para desenvolver: o que explicita o método teológico do pensador cristão. Todos
os que são versados em Teologia sabem que Orígenes se celebrizou por aplicar o
método alegórico da Escola de Alexandria à interpretação das Sagradas Escrituras. Em Contra Celso, ele explicou esse método
da seguinte maneira:
“Se
a palavra da lei ‘dominarás muitas nações, mas nunca serás dominado’ (Dt 15,6;
28,12) fora tão-somente, sem uma significação mais profunda, a promessa [de]
que eles seriam poderosos [...] isto se deu depois da vinda de Jesus, mas por
assim dizer como um efeito da cólera de Deus [contra os judeus] e não
propriamente de sua bênção. Além disso, se na promessa se diz aos judeus que
massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos
termos revelem que uma interpretação literal é impossível. Bastará por ora
tirar dos salmos estas palavras colocadas na boca do justo: ‘A cada manhã eu
exterminava todos os pecadores da terra, para extirpar da cidade do Senhor
todos os malfeitores’ (Sl 100,8). Levando em consideração os termos e a
intenção do autor, será possível que, depois de ter lembrado seus feitos que qualquer
pessoa pode facilmente ler, ele acrescente o que pode ser extraído do texto
literalmente: que em nenhum outro momento do dia a não ser de manhã ele destruiu
‘todos os pecadores da terra’ sem deixar sobreviver nenhum deles, e que de fato
ele exterminasse sem exceção de Jerusalém todo homem que cometesse a
iniquidade? Podemos ainda encontrar na lei muitos exemplos como este: ‘A
ninguém deixamos escapar vivo’ (cf. Dt 2,34; Nm 21,35)” (ALEXANDRIA, Orígenes
de. Contra Celso. São Paulo: Paulus,
2004. p. 555).
Desse exercício de interpretação Orígenes extrai as seguintes regras,
que sintetizam seu método hermenêutico: “Para nós, a lei tem dois sentidos: um
literal e outro espiritual, como já foi indicado acima. No sentido literal ela
é qualificada, menos por nós do que por Deus, exprimindo em um dos profetas,
‘julgamentos que não são bons’ e ‘prescrições que não são boas’ (Ez 10,25.11);
no sentido espiritual ela é qualificada pelo mesmo profeta, em nome de Deus,
‘julgamentos bons’ e 'prescrições boas’. Está claro, portanto, que o profeta
não diz coisas contraditórias na mesma passagem. Com ele concorda Paulo segundo
o qual ‘a letra mata’, que equivale ao sentido literal, e ‘o espírito vivifica’
(2 Co 3,6), que equivale ao sentido espiritual” (idem. p. 556).
Comecemos
pela segunda parte da citação. Nela, Orígenes reafirma o cânon central da
Escola de Alexandria, segundo o qual os textos contêm um sentido literal,
imediato, e outro espiritual, mais profundo. Esse cânon não pode ser tomado como
coisa de somenos importância, visto que revolucionou não só a História da
Teologia, mas também a das Ideias, como explicarei adiante.
Tornemos da primeira parte da citação, na qual Orígenes demonstra o
procedimento lógico que permite extrair as regras do método alegórico como ele o utilizava. Prestemos
atenção no período em que afirma: “se na promessa se diz aos judeus que
massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos
termos revelem que uma interpretação literal é impossível”. Esse período indica que
Orígenes não extraía o sentido figurado do texto da sua imaginação, mas da constatação de que a
interpretação literal é impossível. Em outras palavras, ele propõe que a interpretação alegórica só seja utilizada quando a literal não funcionar.
No caso de Deuteronômio 15:6; 28:12, Orígenes retira a impossibilidade da interpretação literal do paralelo que traça com Salmo 100:8, Números 21:35 e Deuteronômio 21:35. Todos esses versos
afirmam que os judeus massacraram populações de maneira tal que não deixaram uma
só pessoa escapar com vida. Orígenes considerava o massacre, em quaisquer condições ou mencionado em qualquer texto, tão
absurdo quanto afirmar que “a cada manhã eu exterminava todos os pecadores da
terra” (Sl 100:8). É tão irracional promover massacres gerais de pecadores a cada manhã quanto em períodos maiores de tempo. Por isso, todas as passagens e não apenas o Salmo 100:8 devem ser interpretadas alegoricamente.
Vemos
que, para Orígenes, o que dirige a interpretação alegórica não é o arbítrio, a
preferência ou a imaginação do intérprete. É, antes, uma característica
objetiva do texto. Poderíamos dar uma mancheia de exemplos bíblicos de que Jesus e Paulo construíram as suas interpretações figuradas exatamente dessa maneira.
Como
já disse, o método hermenêutico da Escola de Alexandria não alterou apenas a
Teologia. Modificou, ao mesmo tempo, o modo de pensar e de se comunicar da
humanidade. Sabemos que o analfabetismo imperou em todos os lugares do mundo, por
muitos séculos. Na verdade, isso ocorreu durante 99,99% da história das línguas
humanas. Podemos supor validamente que, enquanto esse nível de analfabetismo
prevaleceu, o vocabulário comum dos povos permaneceu reduzido ao significado
literal das palavras, pois as tentativas de utilizar a linguagem em sentido figurado
reduziam ou impossibilitavam a comunicação da maior parte das pessoas, que não eram
capazes de lidar com eles. Não era diferente na época de Orígenes, porém o desenvolvimento do método alegórico que ele favoreceu foi fundamental para reduzir a hegemonia da interpretação literal ao longo do tempo.
O problema daquela época e dos séculos que se seguiram é que as multidões iletradas não estavam prontas para compreender os sentidos figurados entrelaçados aos signos com significados literais muito mais arraigados. O modo comum de focar a atenção nas palavras, a fim de refletir
mais profundamente sobre elas era e ainda é utilizar sinais escritos. Se não sabiam ler e
escrever, as pessoas tampouco podiam refletir profundamente sobre os signos linguísticos. A
exceção, é claro, eram as pessoas letradas e de gênio inquieto que atribuíam sentidos
novos aos vocábulos, embora sem serem compreendidas por quase pessoa alguma, o que atrasou sobremaneira o desenvolvimento da arte da interpretação.
Podemos, pois, entender que, quando declarou a Nicodemos que precisava “nascer de
novo” e ouviu as perguntas “Como pode um homem nascer, sendo
velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (Jo
3:3-4), Jesus não entabulou uma conversa absurda ou infantil. Muito menos os
dois rabis, o divino e o humano, revelaram despreparo intelectual. A
conversação que lemos nada mais era que um fato comum da linguagem da época.
As
Antiguidades judaicas, de Flávio
Josefo, são a mais completa confirmação de que o diálogo de Jesus com Nicodemos
nada tinha de absurdo, surpreendente ou pueril. No século I d. C., o maior
historiador judeu antigo escreveu a saga de sua nação, de Adão a Floro, num tom literal que choca a mentalidade moderna. Permitiu e permite, com
isso, entender até que ponto a linguagem literal estava disseminada e como ela compunha
não só a base da comunicação entre as pessoas, no dia a dia, mas também a da linguagem culta e a do pensamento mais refinado.
Assim,
quando Jesus e, depois dele, Paulo e a Escola de Alexandria disseminaram a
interpretação alegórica do Antigo Testamento, propondo que Cristo foi
prefigurado pela rocha ferida por Moisés, o Espírito Santo, pela nuvem que
seguia o povo, no deserto, o batismo, pela travessia do Mar Vermelho (1 Co
10:1-4) e outras coisas semelhantes, eles não revolucionaram apenas a interpretação da Bíblia, mas, em certa
medida, também o modo de pensar e de se comunicar da humanidade inteira.
Nem Josefo estava errado ao interpretar o Antigo Testamento
literalmente, nem Jesus, Paulo e os alexandrinos estavam, ao proporem sentidos novos
para aquela coleção sagrada. O primeiro procedia de acordo com convenções
absolutamente arraigadas. Os outros criavam ou obedeciam a parâmetros novos,
mas absolutamente necessários ao desenvolvimento das línguas e do pensamento.
A regra fundamental da arte de interpretar qualquer língua, em qualquer tempo e
lugar, e ainda mais no caso das línguas cultas, é seguir convenções legitimamente
instituídas. Sem elas, não só não existe linguagem como não há comunicação.
Por isso, é mister possuí-las e não é errado as seguir.
A depuração da interpretação alegórica dos excessos a que seu uso foi levado, em todas as épocas, e a enunciação de suas regras foram as contribuições maiores de Orígenes à Teologia. Interpretar o texto bíblico nunca foi outra coisa que somar os sentidos literais prolíficos ao sentido figurado possível das Escrituras. Foi sempre somar a letra que condena e mata ao espírito que vivifica. O difícil continua a ser refrear a paixão por novidade que leva as pessoas a esquecerem o sentido claro e o conservadorismo que as impede de aceitar a novidade do espírito.
A depuração da interpretação alegórica dos excessos a que seu uso foi levado, em todas as épocas, e a enunciação de suas regras foram as contribuições maiores de Orígenes à Teologia. Interpretar o texto bíblico nunca foi outra coisa que somar os sentidos literais prolíficos ao sentido figurado possível das Escrituras. Foi sempre somar a letra que condena e mata ao espírito que vivifica. O difícil continua a ser refrear a paixão por novidade que leva as pessoas a esquecerem o sentido claro e o conservadorismo que as impede de aceitar a novidade do espírito.