sábado, 2 de maio de 2015

História Hipotética da Igreja (6): Orígenes e a Interpretação da Lei

Orígenes de Alexandria
Como todas as perguntas que evocam assuntos muito amplos, a especulação sobre quem teria sido o maior pensador da Antiguidade é praticamente indecidível. Mas nem por isso é inútil, visto que tange um tema fecundo e convida à reflexão comparativa de obras sobreexcelentes escritas ao longo de muitos séculos.
O mais longe que se pode ir, na questão proposta, sem abandonar a preocupação com a justiça na escolha do príncipe dos pensadores e com critérios objetivos em que fundamentá-la, é colher opiniões abalizadas a respeito dela. Se a questão me fosse formulada, preferiria fornecer uma lista de pensadores, em vez de um único nome. Assim, a resposta perderia em termos de definição, mas ganharia em convicção, pois minha lista se apoiaria em considerável grau de certeza.
Eu elegeria dois filósofos gregos (Platão e Aristóteles), dois teólogos patrísticos (Orígenes e Agostinho) e, entre eles, situaria o romano Cícero. Assim comporia minha lista, mantendo um grau de indefinição, mas aumentando muito a convicção de que dei a resposta certa, à luz de tudo o que me foi possível investigar do pensamento antigo até hoje.
Claro que a minha lista exclui os autores bíblicos, que devem ser colocados numa categoria incomparável. Exclui também os precursores das ciências naturais, como Arquimedes, pois, embora altamente reflexivo, o trabalho deles prendia-se de tal maneira ao empírico que a reflexão abstrata resultava de algum modo limitada, ao menos em comparação com os pensadores da minha lista. Excluí ainda os historiadores, por um motivo não muito distinto. É que, na Antiguidade, a arte da narrativa obedecia a regras e métodos que não permitiam a um Tucídides, um Plutarco ou um Tácito igualar as realizações reflexivas dos filósofos e teólogos. Não só isso: devo admitir que excluí também os poetas e dramaturgos gregos e romanos. A essa imputação posso responder somente que o fiz sem preconceito, visto que tenho as artes imaginativas, a exemplo da poesia, da pintura e da dramaturgia, como atividades superiores à reflexão racional, mas nem por isso concluo que a reflexão que elas contêm sobrepuja a dos maiores filósofos e teólogos. 
Por fim, devo esclarecer que não fiz constar na mina lista alguns pensadores que se destacaram sobremaneira na reflexão pura, como Sócrates e Euclides. Sócrates não foi deixado fora por falta de gênio, é claro, mas por conhecermos o seu pensamento apenas pelo testemunho de terceiros. Por mais qualificados que tenham sido esses terceiros, do que ninguém duvida, quando consideramos as convenções que regiam a reprodução de discursos alheios na Antiguidade, compreendemos que não é possível comparar obras autênticas com discursos reconstituídos. Quanto a Euclides, não foi incluído em razão do caráter mais restrito da Matemática como ciência, em comparação com a Filosofia e a Teologia, e por eu não me arvorar em bom entendedor da sua obra.
Fico, assim, com meus cinco pensadores: Platão, Aristóteles, Cícero, Orígenes e Agostinho. E o que falta de definição de um único nome a essa lista sobra em convicção de que dei a resposta mais exata possível à pergunta formulada, tanto à luz da minha formação quanto do meu senso de justiça.
A lista, na verdade, é citada, aqui, para transmitir, de maneira justa e equilibrada, o valor da obra de Orígenes de Alexandria. Esse pensador do terceiro século foi, sem favor, o maior hermeneuta e o mais hábil crítico textual da Antiguidade. Está ainda entre os maiores filósofos patrísticos, o que, em dias de ceticismo descontrolado, como os de hoje, pode parecer pouco, mas nada tem de irrelevante. Basta lembrar que a Filosofia Antiga divide-se em duas partes: uma dedicada ao estudo dos pensadores gregos (e romanos) e outra, aos patrísticos. Por fim, Orígenes, Agostinho e Jerônimo são geralmente reconhecidos como os maiores teólogos da Antiguidade.
Por dois ou três séculos, Orígenes foi o pensador mais influente do mundo ocidental. A penetração do seu pensamento só foi sustada pelas condenações póstumas que sofreu, primeiro por teólogos isolados, como Jerônimo, e mais tarde, no Sínodo de Constantinopla (544) e no Segundo Concílio de Constantinopla (553). No entanto, qualquer um sabe que não é possível julgar, definitivamente, o valor das ideias de alguém, com base em condenações dogmáticas. Ainda mais quando os vereditos aplicam retroativamente regras inexistentes na época do pensador condenado e o fazem sem que lhe seja concedido direito de defesa, como no caso de Orígenes. Parece, de fato, que os pratos da balança foram muito desequilibrados nos julgamentos ocorridos: num deles encontramos uma das obras mais importantes da História da Igreja; no outro, duas condenações dogmáticas proferidas sem direito de defesa, com base na retroação de normas. Nada mais justo, por isso, do que Orígenes vir a ser reabilitado pela Igreja.
Não direi, aqui, da importância de Orígenes como filósofo. Sobre esse tema, já me pronunciei em outro artigo. E como a história da igreja que tento contar não é uma narrativa de fatos, mas um relato através dos textos, tratarei apenas dos escritos teológicos do nosso pensador. 
A contribuição de Orígenes para a Teologia não pode ser exposta em tão poucas páginas. Limitar-me-ei a analisá-la num dos textos mais significativos do alexandrino, a saber: a obra que ele escreveu para refutar a primeira crítica extensa de um filósofo pagão à fé cristã. A obra intitula-se Contra Celso e realiza tão completamente o propósito de refutar o livro intitulado Discurso verdadeiro, do qual não restou um só exemplar, que este se tornou conhecido, na íntegra, por meio das citações de Orígenes. Não é difícil, pois, entender que Contra Celso constitui uma refutação palavra por palavra do Discurso verdadeiro.
Dentre os muitos tópicos em que Orígenes se detém, na obra aludida, selecionarei um para desenvolver: o que explicita o método teológico do pensador cristão. Todos os que são versados em Teologia sabem que Orígenes se celebrizou por aplicar o método alegórico da Escola de Alexandria à interpretação das Sagradas Escrituras. Em Contra Celso, ele explicou esse método da seguinte maneira:
“Se a palavra da lei ‘dominarás muitas nações, mas nunca serás dominado’ (Dt 15,6; 28,12) fora tão-somente, sem uma significação mais profunda, a promessa [de] que eles seriam poderosos [...] isto se deu depois da vinda de Jesus, mas por assim dizer como um efeito da cólera de Deus [contra os judeus] e não propriamente de sua bênção. Além disso, se na promessa se diz aos judeus que massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos termos revelem que uma interpretação literal é impossível. Bastará por ora tirar dos salmos estas palavras colocadas na boca do justo: ‘A cada manhã eu exterminava todos os pecadores da terra, para extirpar da cidade do Senhor todos os malfeitores’ (Sl 100,8). Levando em consideração os termos e a intenção do autor, será possível que, depois de ter lembrado seus feitos que qualquer pessoa pode facilmente ler, ele acrescente o que pode ser extraído do texto literalmente: que em nenhum outro momento do dia a não ser de manhã ele destruiu ‘todos os pecadores da terra’ sem deixar sobreviver nenhum deles, e que de fato ele exterminasse sem exceção de Jerusalém todo homem que cometesse a iniquidade? Podemos ainda encontrar na lei muitos exemplos como este: ‘A ninguém deixamos escapar vivo’ (cf. Dt 2,34; Nm 21,35)” (ALEXANDRIA, Orígenes de. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004. p. 555).
 Desse exercício de interpretação Orígenes extrai as seguintes regras, que sintetizam seu método hermenêutico: “Para nós, a lei tem dois sentidos: um literal e outro espiritual, como já foi indicado acima. No sentido literal ela é qualificada, menos por nós do que por Deus, exprimindo em um dos profetas, ‘julgamentos que não são bons’ e ‘prescrições que não são boas’ (Ez 10,25.11); no sentido espiritual ela é qualificada pelo mesmo profeta, em nome de Deus, ‘julgamentos bons’ e 'prescrições boas’. Está claro, portanto, que o profeta não diz coisas contraditórias na mesma passagem. Com ele concorda Paulo segundo o qual ‘a letra mata’, que equivale ao sentido literal, e ‘o espírito vivifica’ (2 Co 3,6), que equivale ao sentido espiritual” (idem. p. 556).
Comecemos pela segunda parte da citação. Nela, Orígenes reafirma o cânon central da Escola de Alexandria, segundo o qual os textos contêm um sentido literal, imediato, e outro espiritual, mais profundo. Esse cânon não pode ser tomado como coisa de somenos importância, visto que revolucionou não só a História da Teologia, mas também a das Ideias, como explicarei adiante.
Tornemos da primeira parte da citação, na qual Orígenes demonstra o procedimento lógico que permite extrair as regras do método alegórico como ele o utilizava. Prestemos atenção no período em que afirma: “se na promessa se diz aos judeus que massacrem seus inimigos, é preciso que uma leitura e um estudo cuidadosos dos termos revelem que uma interpretação literal é impossível”. Esse período indica que Orígenes não extraía o sentido figurado do texto da sua imaginação, mas da constatação de que a interpretação literal é impossível. Em outras palavras, ele propõe que a interpretação alegórica só seja utilizada quando a literal não funcionar.
No caso de Deuteronômio 15:6; 28:12, Orígenes retira a impossibilidade da interpretação literal do paralelo que traça com Salmo 100:8, Números 21:35 e Deuteronômio 21:35. Todos esses versos afirmam que os judeus massacraram populações de maneira tal que não deixaram uma só pessoa escapar com vida. Orígenes considerava o massacre, em quaisquer condições ou mencionado em qualquer texto, tão absurdo quanto afirmar que “a cada manhã eu exterminava todos os pecadores da terra” (Sl 100:8). É tão irracional promover massacres gerais de pecadores a cada manhã quanto em períodos maiores de tempo. Por isso, todas as passagens e não apenas o Salmo 100:8 devem ser interpretadas alegoricamente.
Vemos que, para Orígenes, o que dirige a interpretação alegórica não é o arbítrio, a preferência ou a imaginação do intérprete. É, antes, uma característica objetiva do texto. Poderíamos dar uma mancheia de exemplos bíblicos de que Jesus e Paulo construíram as suas interpretações figuradas exatamente dessa maneira.
Como já disse, o método hermenêutico da Escola de Alexandria não alterou apenas a Teologia. Modificou, ao mesmo tempo, o modo de pensar e de se comunicar da humanidade. Sabemos que o analfabetismo imperou em todos os lugares do mundo, por muitos séculos. Na verdade, isso ocorreu durante 99,99% da história das línguas humanas. Podemos supor validamente que, enquanto esse nível de analfabetismo prevaleceu, o vocabulário comum dos povos permaneceu reduzido ao significado literal das palavras, pois as tentativas de utilizar a linguagem em sentido figurado reduziam ou impossibilitavam a comunicação da maior parte das pessoas, que não eram capazes de lidar com eles. Não era diferente na época de Orígenes, porém o desenvolvimento do método alegórico que ele favoreceu foi fundamental para reduzir a hegemonia da interpretação literal ao longo do tempo. 
O problema daquela época e dos séculos que se seguiram é que as multidões iletradas não estavam prontas para compreender os sentidos figurados entrelaçados aos signos com significados literais muito mais arraigados. O modo comum de focar a atenção nas palavras, a fim de refletir mais profundamente sobre elas era e ainda é utilizar sinais escritos. Se não sabiam ler e escrever, as pessoas tampouco podiam refletir profundamente sobre os signos linguísticos. A exceção, é claro, eram as pessoas letradas e de gênio inquieto que atribuíam sentidos novos aos vocábulos, embora sem serem compreendidas por quase pessoa alguma, o que atrasou sobremaneira o desenvolvimento da arte da interpretação.
Podemos, pois, entender que, quando declarou a Nicodemos que precisava “nascer de novo” e ouviu as perguntas “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?” (Jo 3:3-4), Jesus não entabulou uma conversa absurda ou infantil. Muito menos os dois rabis, o divino e o humano, revelaram despreparo intelectual. A conversação que lemos nada mais era que um fato comum da linguagem da época.
As Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo, são a mais completa confirmação de que o diálogo de Jesus com Nicodemos nada tinha de absurdo, surpreendente ou pueril. No século I d. C., o maior historiador judeu antigo escreveu a saga de sua nação, de Adão a Floro, num tom literal que choca a mentalidade moderna. Permitiu e permite, com isso, entender até que ponto a linguagem literal estava disseminada e como ela compunha não só a base da comunicação entre as pessoas, no dia a dia, mas também a da linguagem culta e a do pensamento mais refinado.
Assim, quando Jesus e, depois dele, Paulo e a Escola de Alexandria disseminaram a interpretação alegórica do Antigo Testamento, propondo que Cristo foi prefigurado pela rocha ferida por Moisés, o Espírito Santo, pela nuvem que seguia o povo, no deserto, o batismo, pela travessia do Mar Vermelho (1 Co 10:1-4) e outras coisas semelhantes, eles não revolucionaram apenas a interpretação da Bíblia, mas, em certa medida, também o modo de pensar e de se comunicar da humanidade inteira.
Nem Josefo estava errado ao interpretar o Antigo Testamento literalmente, nem Jesus, Paulo e os alexandrinos estavam, ao proporem sentidos novos para aquela coleção sagrada. O primeiro procedia de acordo com convenções absolutamente arraigadas. Os outros criavam ou obedeciam a parâmetros novos, mas absolutamente necessários ao desenvolvimento das línguas e do pensamento. A regra fundamental da arte de interpretar qualquer língua, em qualquer tempo e lugar, e ainda mais no caso das línguas cultas, é seguir convenções legitimamente instituídas. Sem elas, não só não existe linguagem como não há comunicação. Por isso, é mister possuí-las e não é errado as seguir.
A depuração da interpretação alegórica dos excessos a que seu uso foi levado, em todas as épocas, e a enunciação de suas regras foram as contribuições maiores de Orígenes à Teologia. Interpretar o texto bíblico nunca foi outra coisa que somar os sentidos literais prolíficos ao sentido figurado possível das Escrituras. Foi sempre somar a letra que condena e mata ao espírito que vivifica. O difícil continua a ser refrear a paixão por novidade que leva as pessoas a esquecerem o sentido claro e o conservadorismo que as impede de aceitar a novidade do espírito.