sábado, 18 de abril de 2015

Filosofia e Direito (16): O Direito Natural Segundo Cícero

Cícero em atividade no Senado
Cícero conhecia o pensamento de Aristóteles sobre a justiça, do qual derivou a sua fundamentação do direito natural com base na filosofia estoicaPor possuir ampla formação jurídica e também filosófica e por tê-las utilizado vastamente em obras como De legibus e De republica, Cícero é, em geral, considerado o fundador da Filosofia do Direito.
Nada disso implica que o seu pensamento jurídico fosse original. Porém, ainda assim, a fundamentação sólida e expandida que proveu às ideias de Aristóteles e dos estoicos, no De legibusfez desse diálogo o mais importante texto de direito natural em toda a Antiguidade.
Não é possível compreender o fio da argumentação de Cícero, na sua obra jurídica fundamental, sem perceber que ele parte do vocábulo pelo qual a desenvolve. Examina-o em grego e explica, em seguida, o motivo da escolha do termo latino lex para traduzi-lo: “A palavra grega para lei (nomos) deriva do verbo nemo, distribuir, que traduz a natureza do objeto indicado, a saber: dar a cada um o que é seu. De minha parte, imagino que a essência moral da lei exprime-se melhor por meio do vocábulo em latim (lex), que transmite a ideia de escolha ou discriminação. Em síntese, para os gregos, o termo implica uma distribuição equitativa de bens, ao passo que, para os romanos, aponta para uma discriminação equitativa entre o bem e o mal” (CÍCERO. De legibus. Livro I, nº 34. Disponível em ww.oll.libertyfund.org/titles/545).
Cícero não hesita em usar o termo lex para exprimir, em latim, o que os estoicos queriam dizer ao se referirem a um nomos que vigora em toda parte, sem mudança alguma. Esse nomos, Cícero o chama lex naturalis. A arqueologia do termo, ele a fornece sucintamente, por um raciocínio eclético, pois associa à ideia estoica de lei natural o que os filósofos da primeira Academia, entre os quais arrola Aristóteles (idem. nº 44), pensavam sobre o fundamento da Ética.
A associação não é, de modo algum fácil ou natural, mas Cícero a desenvolve com segurança: “Todos os filósofos que floresceram na antiga Academia, com Euspesipo, Xenócrates e Polemon, ou aqueles que seguiram Aristóteles e Teofrasto, concordando com os primeiros na doutrina, embora diferissem no método, a exemplo também de Zenão [de Cítio], preservaram os mesmos princípios, mas alteraram os termos da exposição” (idem). Nesse período complexo e um pouco obscuro de sua obra, Cícero agrupa os representantes da antiga Academia em dois grupos, que convergiam na doutrina e diferiam no método. Não contente, ele ainda estende a convergência parcial a Zenão de Cítio, considerado fundador do estoicismo. É, sem dúvida, uma posição bastante eclética.
Porém, essa complexa aproximação de escolas e pensadores, que outros expositores afastariam com decisão, é exatamente o que Cícero quer, pois, alguns parágrafos depois, reafirma: “Não vejo muita dificuldade em harmonizar os pontos de vista da antiga Academia e dos estoicos” (idem). E explica: “Os antigos acadêmicos eram unânimes em afirmar que o bem consiste na concordância com a natureza e a ordem natural. Os estoicos, por sua vez, não reconhecem qualquer outro bem além da honra e da virtude [...] Assim, embora os primeiros afirmassem que a honra era o bem supremo e o seu oposto, o maior mal, enquanto Zenão e os estoicos sustentam que ela é o único bem, e seu oposto, o único mal, posto ainda que os acadêmicos considerassem as riquezas, a saúde, a beleza e outros bens como vantagens, comodidades e conveniências, e a pobreza, a tristeza e a dor como inconveniências, na verdade, os estoicos concordam com [os acadêmicos] Xenócrates e Aristóteles, embora expressem sua opinião em termos diferentes” (idem).
É inegável que Cícero quer mesmo conciliar o platonismo original (de Platão, Euspesipo, Xenócrates, Polemon, Aristóteles e Teofrasto) com o estoicismo e, principalmente, com a doutrina de Zenão de Cítio. Mas o que nos interessa, nessa peculiar harmonização, não são os seus reflexos em outras partes da Filosofia, mas na Filosofia do Direito. A esse respeito, nosso autor é particularmente claro, pois identifica, no uso de sua época, um significado culto e outro popular do termo lei que concordam com a etimologia dos vocábulos em grego e latim:
“A verdadeira definição de lei deve incluir essas duas características [derivadas dos significados originais de nomos e lex como distribuição de bens e discriminação moral]. Se pudermos conceder isso como coisa quase autoevidente, a origem da justiça deverá ser buscada na lei divina da moralidade eterna e imutável. Essa é a verdadeira energia da natureza, a alma e essência da sabedoria, assim como o teste da virtude e do vício. Mas, como toda discussão deve referir-se a um tema encontrado com frequência na linguagem popular, teremos de admitir algumas vezes os termos utilizados pelo vulgo e de nos conformar à terminologia comum que emprega a palavra lei, a fim de indicar todos os regulamentos arbitrários encontrados nas nossas normas escritas, os quais impõem ou proíbem certas condutas” (idem. nº 34).
Esses os dois significados da lei, que Cícero encontra em seu próprio tempo. O primeiro é o significado na linguagem culta dos jurisconsultos, que era da preferência particular do nosso filósofo. O outro é o significado comum e inquinado de contradições que o povo, como conjunto de todos os cidadãos (escravos excluídos), adotava. 
Na língua dos jurisperitos romanos, lei não é qualquer proposição. É “a razão comum à natureza divina e humana, a qual nada mais pode ser do que a razão certa. E, posto que essa razão é o que chamamos Lei, Deus e os homens são por ela consorciados, pois onde há comunhão de Lei há também comunicação de Justiça” (idem. nº 40). Contudo, “práticas corruptas violam cruelmente a razão certa. Pois todos os homens, sem distinção, são aprisionados pela voluptuosidade, que é um vício degradante, embora pareça ter relação com o bem, visto que, por meio de indulgências e luxúrias aprazíveis, o erro insinua-se na mente” (idem).
Essa recta ratio, razão sempre certa, é a mesma em todos os povos, embora, em cada um, possa ser colocada a serviço de fins diferentes. Por isso, Cícero indaga: “Em que nação a bondade, a benignidade, a gratidão e a lembrança dos benefícios recebidos não são recomendados? E em que nação, ao contrário, a arrogância, a malícia, a crueldade e a ingratidão não são reprovadas e abominadas?” (idem). Por isso também, “se a vontade do povo, os decretos do Senado, as decisões dos magistrados fossem suficientes para estabelecer a justiça, bastaria obter sufrágios e os votos da maioria para que a corrupção, a espoliação e a falsa manifestação de vontade se tornassem lícitas [...] transformando o mal em bem, e o bem, em mal” (idem. nº 44).
Cícero propõe que o bem, para ser verdadeiro, tem de ser o que é em si mesmo, independentemente do que qualquer ser humano afirma que ele é. Pois, no momento em que admitimos que o bem e a justiça, como uma de suas formas, dependem de deliberações humanas, tornamos possível que a deliberação converta o mais abjeto mal em bem, assim como o mais elevado bem em mal.
Toda lei verdadeira é expressão do bem e da recta ratio. Esse é um dado inafastável da lex romana, como Cícero a compreende. Sua interpretação da palavra lex e do Direito Romano como um todo pode parecer altamente idealista, mas não se trata só disso. Cícero é idealista, porque o Direito Romano era idealizado. Podemos e devemos entender que a idealização não provinha dele: estava na ordem das coisas, assim como o Estado idealizado a que ele se refere no De republica e no próprio De legibus não era apenas idealizado: era a república romana real elevada à condição de modelo.
Claro que o modelo, por derivar do real, tinha suas limitações. Uma das principais era a baixa publicidade de que as leis romanas gozavam. Não que as leis não fossem publicadas em Roma, mas isso estava longe de garantir mais que um conhecimento quase nulo delas. Não me refiro à familiaridade do povo com as leis, que era praticamente nenhuma, mas ao conhecimento dela pelos magistrados, inclusive os pretores, que administravam a justiça:
“O conhecimento das nossas leis está excessivamente restrito aos copistas [dos textos]. Observo que muitos magistrados ignoram as suas próprias leis, não conhecem delas mais do que os oficiais que os auxiliam resolvem contar-lhes” (idem. nº 171). Não é isento de dúvida se “as suas próprias leis”, a que o texto se refere, são os editos dos magistrados. O sentido claro e imediato da expressão depõe a favor dessa interpretação, posto que os magistrados romanos baixavam editos que eram mais conhecidos do que as leis promulgadas pelo Senado e, mais tarde, pelo Imperador. Na verdade, aqueles editos supriam o baixíssimo grau de conhecimento das leis apontado no texto de Cícero. Portanto, se estiverem indicados pela expressão “suas próprias leis”, teremos de concluir que quem conhecia melhor os editos dos magistrados, na época de Cícero, não eram as autoridades em cujo nome eram publicados, mas os auxiliares delas. E é evidente que, se não conheciam os próprios editos que publicavam, menos ainda os magistrados estavam familiarizados com as outras leis.
Se acrescentarmos a isso que o pequeno conhecimento que o povo e, em parte, até os magistrados tinham das leis era cheio de contradições, como Cícero esclarece, teremos um quadro bastante vívido da extensão da ignorância legal que vigorava naquele tempo. E olhem que falamos do povo em que o espírito do direito mais se desenvolveu.
Nesse contexto de amplo desconhecimento da lei emanada do Estado, era natural que a palavra lex, no uso comum, fosse impregnada até a medula do significado de norma particular. Por muito tempo, para o cidadão comum, a palavra lex, significou as cláusulas de um contrato e coisas semelhantes. Por isso também, para o jurista Othon Sidou, “num balanço histórico, observa-se que [em Roma] as normas de direito público emanaram ordinariamente dos comícios centuriatos, enquanto as de direito privado foram produto dos concílios da plebe” (SIDOU, J. M. Othon. In Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. Verbete Lex – I. Vol. 49, p. 303).
A dualidade é explicada pelo pequeno interesse do povo nas leis estatais e explica, por outro lado, o sentido derivado de atos particulares que a palavra lex ostentou por tanto tempo. O próprio Cícero declara que “as leis devem ser propostas com sucessivas alegações e cláusulas” (idem. nº 167). As leis do nosso tempo, emanadas que são do Estado, dividem-se em artigos, parágrafos etc. As do tempo de Cícero dividiam-se em alegações (assertivas) e cláusulas.
Todos esses significados estavam impregnados no conceito de lex naturalis de Cícero. Claro que, ao contribuir para consagrar a expressão, o filósofo romano escolheu elevá-la às alturas do uso culto da palavra lex. Mas ele nunca separou esse uso do outro, comum e popular, antes reconheceu que as duas acepções do vocábulo deviam ser reunidas para perfazer o sentido total da lei. Num esforço de síntese, podemos concluir que o direito natural, para Cícero, era sempre universal, pois em momento nenhum ele admitiu, como Aristóteles, uma lei natural mutável e particular. Porém, na sua universalidade, estava compreendida a gama de significados destoantes das leis profusas e essencialmente diversificadas dos povos.
De modo nenhum, aquelas variações apagavam o caráter universal da lei ou eram apagadas por ele. As duas coisas conviviam. Ou será que o grande advogado, o erudito em leis, o orador experimentado não tinha noção da abundância de disposições entrelaçadas, algumas conflitantes, que o Direito Romano continha?
Mas, se assim era, por que Cícero depositava tanta ênfase no caráter racional, universal e imutável do direito em sua essência? Ele o fazia porque, como vimos no texto sobre a justiça em Aristóteles, o homem antigo concebia a profusa diversidade das leis e dos costumes sob a força unificadora do Estado. Sabia que muitas divergências subsistiam nos sistemas legais, mas as considerava sob a ótica da atuação das instituições e das normas estatais sobre elas.
Enxergar a lei desse modo era inescapável também para Cícero, que considerava que o homem à parte do Estado tende à sua natureza bestial e à pura violência. Por isso, a única alternativa possível à sociedade provida de Estado é a condição bruta que Hobbes mais tarde chamaria estado de natureza e descreveria como a luta de todos contra todos. Mas Cícero não admitia que a justiça e o direito universalizados fossem concebidos do ponto de vista da violência ou reduzidos à força bruta dos Estados. Daí ao direito natural não faltava mais do que um passo. Para transitar da ordem universal do direito das gentes (jus gentium) ao jus naturale, basta substituir a força pela razão. Foi o que Cícero fez. E, ao fazê-lo, brindou-nos para sempre com um novo ramo da Filosofia e a mais completa fundamentação do direito natural que encontramos na Antiguidade.