Karen
Armstrong propôs que as populações paleolíticas devem ter desenvolvido a noção
rudimentar de uma divindade única com atributos positivos associados à calma e
beleza celestes e negativos ligados às tempestades, trovões e outros fenômenos
cataclísmicos. De acordo com ela, essas ideias devem ter surgido até mesmo
antes do culto politeísta:
“Alguns
dos mitos mais antigos, provavelmente datados do período Paleolítico, estavam
associados ao céu, que aparentemente deu às pessoas a primeira noção do divino.
Quando olhavam para o céu infinito, remoto, existindo totalmente separado de
suas vidas insignificantes – as pessoas passavam por uma experiência religiosa.
O céu pairava acima de todos, inconcebivelmente imenso, inacessível e eterno.
Era a própria essência do transcendental e da alteridade. Os seres humanos nada
podiam fazer que o afetasse. O drama interminável dos relâmpagos, eclipses,
tempestades, arco-íris e meteoros indicava uma outra dimensão permanentemente
ativa, dotada de vida própria. Contemplar o céu enchia as pessoas de pavor e
regozijo, de deslumbramento e medo.
[...]
A certa altura – não sabemos exatamente quando isso ocorreu – as pessoas de
diversas partes do mundo, isoladas entre si, passaram a representar o céu.
Começaram a contar histórias sobre um ‘Deus celeste’ ou ‘Deus das Alturas’, que
criou sozinho o céu e a terra, a partir do nada. Esse monoteísmo primitivo
quase certamente data do período Paleolítico” (ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Cia.
das Letras, 2005. pp. 21-23).
O estudo da linguagem religiosa provê confirmação
surpreendente para a afirmativa de Armstrong. É que a
transcendência do divino sempre constituiu um forte estímulo para que palavras fossem
empregadas em sentidos diversos do consagrado pelo uso comum. Isso deve ter
acontecido com expressões como a mão divina, a face de Deus e outras
semelhantes, que podem ter sido empregadas bem cedo em sentidos diversos daqueles
consagrados pelo uso comum.
Esse dado sugere que o emprego de um vocabulário com sentido figurado, em acréscimo aos termos com significado literal usados no dia a dia, pode ter começado no âmbito da religião. Mas não deve ter sido fácil para o uso simbólico se impor de maneira clara, pois ele demanda não só capacidade de abstração, mas também a de concentrar a atenção nas frases, nas orações, nos períodos e nos parágrafos em que a linguagem escrita se desdobra.
Enquanto o analfabetismo imperou, nos povos que utilizavam a escrita, e enquanto a barreira de comunicação entre as classes instruídas e as iletradas não pôde ser quebrada, não deve ter sido possível à maior parte das pessoas absorver os sentidos não literais das palavras. Assim, durante milênios, a linguagem deve ter permanecido amplamente restrita aos sentidos literais dos termos.
Imagino que o monoteísmo a que Karen Armstrong se refere e o politeísmo que a ele se seguiu, em quase toda parte, tenham exercido influências muito distintas sobre esse estado de subdesenvolvimento linguístico. É que o único Deus é concebido como tão transcendente que os termos do dia a dia não parecem adequados para exprimi-lo. Necessário é, portanto, empregar esses termos em sentidos novos e figurados. Dessa maneira devem ter surgido expressões como a mão do Criador e o rosto de Deus.
Esse dado sugere que o emprego de um vocabulário com sentido figurado, em acréscimo aos termos com significado literal usados no dia a dia, pode ter começado no âmbito da religião. Mas não deve ter sido fácil para o uso simbólico se impor de maneira clara, pois ele demanda não só capacidade de abstração, mas também a de concentrar a atenção nas frases, nas orações, nos períodos e nos parágrafos em que a linguagem escrita se desdobra.
Enquanto o analfabetismo imperou, nos povos que utilizavam a escrita, e enquanto a barreira de comunicação entre as classes instruídas e as iletradas não pôde ser quebrada, não deve ter sido possível à maior parte das pessoas absorver os sentidos não literais das palavras. Assim, durante milênios, a linguagem deve ter permanecido amplamente restrita aos sentidos literais dos termos.
Imagino que o monoteísmo a que Karen Armstrong se refere e o politeísmo que a ele se seguiu, em quase toda parte, tenham exercido influências muito distintas sobre esse estado de subdesenvolvimento linguístico. É que o único Deus é concebido como tão transcendente que os termos do dia a dia não parecem adequados para exprimi-lo. Necessário é, portanto, empregar esses termos em sentidos novos e figurados. Dessa maneira devem ter surgido expressões como a mão do Criador e o rosto de Deus.
Não acontece o mesmo com o politeísmo que, em geral, conduz à representação das figuras divinas por meio de ídolos de pedra, madeira, metais preciosos e outros materiais. A essa concepção materialista do divino o vocabulário comum pode corresponder muito bem, visto que os ídolos facilmente podem ter mãos e faces literais. Portanto, o politeísmo e a idolatria em que tende a degenerar não requerem o emprego de figuras de linguagem para serem expressos.
Em poucas palavras, o politeísmo é uma atividade muito mais econômica, do ponto de vista da linguagem, pois pode ser desenvolvido com o emprego das palavras do dia a dia, sem a necessidade da atribuição de sentidos novos a elas. O monoteísmo, ao contrário, é linguisticamente sofisticado e dispendioso. Requer um desenvolvimento cultural para se impor. Talvez por essa razão (entre outras), os cultos dos diversos panteões tenham proliferado em muito maior medida, ao longo de muitos séculos, do que a religião do Deus único.
Uma condição cultural para o desenvolvimento do monoteísmo é a redução senão da extensão do analfabetismo, ao menos da sua influência sobre o pensamento das pessoas. É que o baixo grau de instrução tende a impedir a proliferação do uso das expressões figuradas a que me referi e que devem ter sido criadas para exprimir atributos divinos muito abstratos, por isso comuns a vários deuses e, ainda por isso, associados a uma ideia da divindade suprema. O resultado líquido disso deve ter sido a idolatria.
Imaginemos que os sacerdotes empregassem determinado número de palavras em sentido diverso do literal, nas fórmulas rituais de um povo remoto. Para que as pessoas compreendessem que o significado daquelas palavras, no bojo das fórmulas rituais, não era o que elas tinham aprendido, era necessário fazer uso da escrita. Só olhando para os signos escritos das palavras, num pedaço de couro ou num rolo, era possível meditar sobre elas o bastante para chegar a entender os sentidos figurados. Do contrário, as pessoas não entenderiam os novos termos.
Em poucas palavras, o politeísmo é uma atividade muito mais econômica, do ponto de vista da linguagem, pois pode ser desenvolvido com o emprego das palavras do dia a dia, sem a necessidade da atribuição de sentidos novos a elas. O monoteísmo, ao contrário, é linguisticamente sofisticado e dispendioso. Requer um desenvolvimento cultural para se impor. Talvez por essa razão (entre outras), os cultos dos diversos panteões tenham proliferado em muito maior medida, ao longo de muitos séculos, do que a religião do Deus único.
Uma condição cultural para o desenvolvimento do monoteísmo é a redução senão da extensão do analfabetismo, ao menos da sua influência sobre o pensamento das pessoas. É que o baixo grau de instrução tende a impedir a proliferação do uso das expressões figuradas a que me referi e que devem ter sido criadas para exprimir atributos divinos muito abstratos, por isso comuns a vários deuses e, ainda por isso, associados a uma ideia da divindade suprema. O resultado líquido disso deve ter sido a idolatria.
Imaginemos que os sacerdotes empregassem determinado número de palavras em sentido diverso do literal, nas fórmulas rituais de um povo remoto. Para que as pessoas compreendessem que o significado daquelas palavras, no bojo das fórmulas rituais, não era o que elas tinham aprendido, era necessário fazer uso da escrita. Só olhando para os signos escritos das palavras, num pedaço de couro ou num rolo, era possível meditar sobre elas o bastante para chegar a entender os sentidos figurados. Do contrário, as pessoas não entenderiam os novos termos.
Por isso, a idolatria deve ter constituído um entrave para a disseminação do
uso de palavras com significado diverso do literal. É que, por mais que
sacerdotes e profetas possam ter inventado e usado figuras de linguagem, o
sentido delas não deve ter sido compreendido adequadamente pelas outras pessoas,
que tomavam os vocábulos figurados no sentido literal e pensavam que os deuses e suas hipóstases eram objetos materiais. É o que
expressões como o braço ou o seio de Deus e outras menos grosseiras, como a ira divina, devem ter parecido a elas. Embora outros fatores certamente tenham contribuído
para a sedimentação da idolatria, nos povos, dificilmente eles atuaram
separadamente do fator linguístico a que me refiro. De sorte que a predominância da linguagem literal deve
ter exercido uma pressão constante para o sucesso do politeísmo desde a
Pré-História.
Vemos que o monoteísmo pressupõe um grau de desenvolvimento prévio
da linguagem figurada para se consolidar e disseminar. É possível que os patriarcas
mencionados no Livro de Gênesis tenham sido adoradores do único Deus cultuado
pelos seus clãs, mas nada está a garantir que o Deus de cada clã fosse rigorosamente igual ao dos demais. Se diferenças entre os
deuses exclusivos dos clãs existiram, é conveniente denominar
henoteístas e não ainda monoteístas os cultos patriarcais.
Talvez o monoteísmo como culto consciente a um só Deus, com base na voga da linguagem figurada, só tenha feito sua aparição, e mesmo assim claudicante, na época de Moisés. Antes disso, o conhecimento de um Deus supremo ou único deve ter-se mantido restrito às classes letradas. Essa deve ter sido uma das razões pelas quais o seu culto nunca se desenvolveu.
É possível
perceber que, nos textos politeístas produzidos por povos em transição ao
monoteísmo ou que mantinham contato com tribos henoteístas, o
uso da linguagem figurada existia, mas era grosseiro e até certo ponto
inconsciente. Exemplos desse emprego revolucionário incipiente da linguagem
encontramos no poema babilônio da criação conhecido como Enuma elish, escrito no século XIV a. C.: Talvez o monoteísmo como culto consciente a um só Deus, com base na voga da linguagem figurada, só tenha feito sua aparição, e mesmo assim claudicante, na época de Moisés. Antes disso, o conhecimento de um Deus supremo ou único deve ter-se mantido restrito às classes letradas. Essa deve ter sido uma das razões pelas quais o seu culto nunca se desenvolveu.
“Quando no alto o céu não se nomeava ainda/ e embaixo a terra firme não recebera nome/ foi Apsu, o iniciante, que os gerou/ a causal Tiamat que a todos deu à luz/ como suas águas se confundiam/ nenhuma morada divina fora construída/ nenhum canavial tinha ainda aparecido” (Enuma elish. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulus, 1990. p. 15).
O deus Apsu é a personificação das águas doces. Tiamat são as águas salgadas. É possível que os criadores desses vocábulos os empregassem em sentidos figurados, porém o refluxo do uso popular sobre os vocábulos produziu a regressão dos sentidos novos aos literais. Assim, Apsu deixou de ser um deus associado aos rios e lagos para ser os próprios rios e lagos. Semelhantemente, Tiamat deixou de ser o deus que controla o mar para ser o próprio mar.
A Epopeia de Gilgamesh costuma ser datada de cerca de 1.750 a. C. Lemos nela que “Utnapishtim disse a Gilgamesh/ ‘Vou revelar-lhe, Gilgamesh, algo oculto/ e o segredo dos deuses, a ti quero contar. Shuruppak, a cidade / esta cidade é antiga/ é lá que estavam os deuses que conheces/ que está situada [à margem] do Eufrates/ suas más disposições levaram os grandes deuses/ a desencadear um dilúvio [...] [o príncipe Ea] repetiu suas propostas na choupana de junco/ choupana, choupana, tabique, tabique/ choupana escuta, tabique esteja atento/ homem de Shuruppak, filho de Ubar-Tutu/ passa a demolir tua casa/ constroi um barco/ renuncia à riqueza e busca a vida/ despreza os bens e conserva a vida” (Epopeia de Gilgamesh. In A criação e o dilúvio – segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulus, 1990. p. 59).
Além de os deuses citados serem partes ou forças da natureza, como os do poema anterior, a epopeia atribui claro caráter literal aos acontecimentos que narra. Utnapishtim e Gilgamesh são homens de carne e osso, Shuruppak é uma cidade histórica, a choupana, o junco, o tabique, a casa, o barco e a riqueza mencionados são os objetos comuns que conhecemos por esses nomes. Portanto, embora se trate de um poema, o uso da linguagem figurada é bastante limitado.
Precisamos lembrar que ambos os poemas foram compostos na Mesopotâmia, onde a Bíblia localiza o culto primitivo a um só Deus. Todos sabem que Abraão morou em Ur, que ficava no sul da Mesopotâmia. E as tribos henoteístas de Gênesis 1 a 11 também parecem ter vivido nos arredores dessa região. De sorte que tanto o Enuma Elish como a Epopeia de Gilgamesh foram produzidos por pessoas que mantiveram contato com culturas henoteístas.
A situação se altera, quando passamos aos poemas monoteístas mais antigos de que dispomos, a exemplo do cântico de Moisés, em Êxodo, e do de Débora, inserido no Livro de Juízes. Ambos os textos fundadores do culto judaico têm sentido figurado mais denso. O primeiro deles lê: “Iahweh é homem de guerra/ Iahweh é o seu nome/ Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército/ e os seus capitães afogaram-se no Mar Vermelho/ Os vagalhões os cobriram/ desceram às profundezas como pedra/ A tua destra, ó Iahweh, é gloriosa em poder/ a tua destra, ó Iahweh, despedaça o inimigo” (Êx 15:3-6).
A declaração “Iahweh é homem de guerra” não é apenas poética, mas claramente figurada. Como fundador do monoteísmo, Moisés não desejaria transmitir que Deus fosse literalmente um homem. Do mesmo modo, a destra de Iahweh é também uma expressão figurada, pois não implica que Deus tenha um par de mãos. Porém, todo o restante do poema de Moisés é vazado em palavras literais, simples, toscas, como era próprio para um povo como o que saiu do Egito com ele.
O Cântico de Débora, também muito antigo, mas possivelmente posterior ao de Moisés, faz uso de linguagem simbólica ainda mais refinada:
“Ouvi, reis, dai ouvidos, príncipes/
eu, eu mesma cantarei a Iahweh/ salmodiarei a Iahweh, Deus de Israel/ Saindo
tu, ó Iahweh, de Seir/ marchando desde o campo de Edom/ os céus gotejaram/ sim,
até as nuvens gotejaram águas/ Os montes vacilaram diante de Iahweh/ lá o Sinai
diante de Iahweh, Deus de Israel [...] Desde os céus pelejaram as estrelas
contra Sísera/ Desde a sua órbita o fizeram/ O ribeiro Quisom os arrastou/
Quisom, o ribeiro das batalhas/ Avante, ó minha alma, firme!/ Então as unhas
dos cavalos socavam pelo galopar/ o galopar dos seus guerreiros/ Amaldiçoai a
Meroz, diz o Anjo de Iahweh/ amaldiçoai duramente os seus moradores/ porque não
vieram em socorro de Iahweh [...] Assim, ó Senhor, pereçam todos os teus
inimigos/ porém os que te amam brilham como o sol quando se levanta no seu
esplendor” (Jz 5:3-5. 20-23, 31).
Este texto não se refere
apenas à destra de Iahweh: afirma que os moradores de Meroz não saíram em
socorro de Deus. Naturalmente, a autora não considerava que Iahweh precisasse
de ajuda humana. Portanto, ela se referiu ao socorro dos homens numa figura de
ironia. Atribuiu aos moradores de Meroz a crença de que Iahweh só triunfaria
por meio do auxílio deles. E estendeu suas metáforas não só a Deus, mas
até aos homens quando desejou que os que o amam “brilhem como o sol”.
O caráter progressivamente complexo
das figuras de linguagem empregadas nos textos produzidos nos povos em que se
deu a transição do politeísmo ao culto ao Deus único e nos cânticos da época de
fundação do monoteísmo confirma a tese de que a idolatria e o culto a múltiplos
deuses podem ter sido consequência da corrupção do sentido de termos figurados
sobre o único Deus, que tinham sido criados pelos sacerdotes em tempos muito
remotos. Se tiver sido assim, a História da Religião ficará iluminada por um
facho de luz nova, que permitirá compreender, mais adequadamente, por que
os primeiros lampejos de um sentimento desenvolvido de piedade foram inspirados pela ideia do Deus supremo, à qual os sacerdotes da época deram
desenvolvimento por meio de expressões figuradas, que outras pessoas
corromperam e empregaram em sentidos literais e referiram à matéria.O desenvolvimento do culto ao Deus único, do henoteísmo patriarcal ao judaísmo, o cristianismo e o islamismo, não mostra outra coisa: sempre que o emprego da linguagem figurada foi chancelado e pôde crescer livremente, no culto religioso, de modo a gerar ideias cada vez mais sofisticadas e abstratas, o monoteísmo e com ele a linguagem adquiriram um quilate intelectual inteiramente novo. Porém, onde o apego ao sentido literal das palavras se fortaleceu, como no fundamentalismo judeu, cristão e muçulmano, ele regrediu imperceptivelmente a cultos muito mais primitivos.