sábado, 11 de abril de 2015

Filosofia e direito (15): A Justiça Natural em Aristóteles


Aristóteles
O objetivo desta série é compendiar os pensamentos que tenho desenvolvido sobre o direito, o que se pode assemelhar a uma tarefa egocêntrica, mas é, no fundo e mais, um movimento de extroversão, de saída de mim mesmo. Isso porque as ideias que me esforço para extrair da memória e apresentar de forma organizada foram laboriosamente acumuladas ao longo de mais de 30 anos de estudos da Filosofia do Direito e teriam caído em desuso, se não me desse ao trabalho de as evocar e transmitir. O desuso já estava, aliás, consumado em parte, pois tinha esquecido várias ideias aqui retomadas, outras havia guardado, ainda outras ministrado em sala de aula e jamais revisto e só uma pequena parte havia sido publicada em forma de textos, por sinal esgotados. Assim, se o trabalho de compendiar minhas ideias é em parte centrado em mim mesmo, por outro lado, ele se traduz num movimento para fora de mim e em direção ao leitor.
Porém, se me dou a tarefa de escrever tal compêndio, como hei de fazê-lo? Por que método hei de amealhar ideias, em geral, tão antigas, numerosas e diversificadas? Como meu esforço nesse sentido haverá de se tornar compreensível e proveitoso ao leitor? Questões como essas envolvem o problema do método. E não posso deixar de observar que, para os fins da presente coletânea, o método mais adequado e eficiente parece ser o histórico.
Argumentar sem antes traçar o histórico de uma discussão é pedir ao interlocutor que adote certas conclusões sem conhecer as alternativas oferecidas a ela ao longo dos séculos. É argumentar de maneira ilegítima e quase trapacear. Inversamente, arrazoar a partir da História é nada pedir para si, uma vez que o esforço reflexivo se volta à apresentação de uma variedade de teorias sobre a questão discutida, mais do que de ideias próprias.
Devo, por isso, historiar muito bem e sem pressa a questão central de que pretendo tratar nesta série. Temos visto que essa questão é a tensão entre as metateorias do jusnaturalismo e do positivismo jurídico. Porém, como a composição que me parece mais adequada dos argumentos dessas correntes atribui um peso maior ao direito natural, devo discutir também os textos que, ao longo da História, mais influenciaram a formação e a evolução do jusnaturalismo.
Começarei pela discussão do conceito de justiça natural em Aristóteles. Embora Cícero seja em geral considerado o primeiro filósofo do direito da História, por ter utilizado conhecimentos jurídicos especializados para expor suas ideias filosóficas, Platão e Aristóteles foram os primeiros a desenvolver discussões profundas e exaustivas sobre a justiça, aquele nos Livros I e II de A república, este no Livro V da Ética a Nicômaco, entre outras obras.
Para Aristóteles, tudo o que existe deve ser explicado por suas causas material, formal, eficiente e final. A causa material da justiça são relações humanas regidas por leis. Ninguém começa a entender a justiça política sem saber isso. Nas palavras do nosso filósofo, “a justiça só existe entre homens cujas relações recíprocas são governadas por leis” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro V, Capítulo 6, p. 382). 
No contexto do pensamento de Aristóteles, o estabelecimento da causa material remete, porém, imediatamente, à pergunta sobre a causa formal da justiça. A questão há de ser respondida como todas as que indagam o significado das virtudes. Para Aristóteles, toda virtude é o meio-termo entre dois vícios. Não é diferente com a justiça, que deve ser considerada "o ponto intermediário entre agir injustamente e ser tratado com injustiça”. 
Essa concepção formal da justiça calha com o dito evangélico que manda fazer aos outros o que queremos que nos façam (e, consequentemente, não fazer o que não queremos que nos seja feito), máxima conhecida como regra de ouro. Nos tempos em que Jesus a proferiu, a máxima tinha um conteúdo determinado e bem conhecido. Hoje, ela é interpretada como um mandamento formal, destituído de conteúdo, pois, diferentemente da Antiguidade, o consenso sobre o que se deve e não se deve fazer aos outros estreitou-se bastante, com a multiplicação das interpretações disponíveis do bom e do honesto.
Roscoe Pound interpreta corretamente o pensamento de Aristóteles à luz das convenções vigentes na Antiguidade, ao afirmar que o filósofo “acreditava que o homem, isolado do Estado, se tornava o animal mais maligno e perigoso entre todos, de sorte que somente lhe era dado realizar o próprio destino moral no Estado” (POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2ª ed., São Paulo: Ibrasa, 1976. pp. 4-5). Mas, como o Estado antigo era a cristalização de uma ordem sobrecarregada de desequilíbrios, “a lei levava em conta, em primeiro lugar, relações de desigualdade, nas quais se tratam indivíduos em proporção ao que valem, e só secundariamente relações de igualdade. A bem conhecida exortação de São Paulo, em que convoca a todos para que se esforcem por cumprir os deveres na classe em que se encontram, põe em relevo essa ideia”. Em suma, “a filosofia grega adotava a ideia de lei como meio de preservar o status quo social” (idem). E é preciso não perder de vista que essa mesma ideia de lei foi aceita, igualmente, na Idade Média (idem. p. 21).
Assim, no contexto em que Aristóteles desenvolveu suas ideias, o ponto médio (mesótes) entre dois vícios, que define a justiça particular, não podia ser compreendido como consequência de um desacordo a respeito do bom e do honesto semelhante ao que assinala o nosso tempo. Tentemos, pois, entender o que o conceito significava para Aristóteles, pois só assim poderemos compreender também as espécies da justiça civil, que nos propomos a sondar e que ele identifica como o justo natural e o legal ou convencional.
Vimos que, para Aristóteles, os vícios entre os quais a justiça se localiza são o hábito de fazer o mal e o de sofrê-lo. Se, para nós, esses conceitos estão sujeitos a discussões extremamente amplas, no contexto da Antiguidade, não era assim. Bem e mal, naquele tempo, eram o que o Estado reconhecia como tais, ainda que o reconhecimento servisse para justificar desigualdades flagrantes, como a escravidão, uma vez que, fora do Estado, só restava a depravação. Assim, bem e mal eram aproximadamente o mesmo para todos, pois o mesmo Estado os definia. As variações possíveis desses valores eram muito mais devidas a falhas na compreensão e expressão das suas definições do que dados da realidade.
No arcabouço dessas ideias é que o pensamento de Aristóteles sobre a justiça natural e legal se ajusta. Recordemos os exatos termos em que ele descreve as modalidades do justo: “Da justiça política [também chamada particular e civil] uma parte é natural, outra parte, legal. Natural é a que possui a mesma força em todo lugar e que não existe porque as pessoas pensam isso ou aquilo. Justiça legal, por sua vez, é a que, a princípio, é indiferente, mas se faz relevante a partir de quando é instituída” (ARISTÓTELES. Ob. cit. Livro V, Cap. 7, p. 382).
É notável como, em nenhum momento, Aristóteles se refere a uma justiça ideal ou abstrata, mas à justiça efetivamente implantada na pólis. Parte dessa justiça, para ele, é natural e parte, legal ou convencional. Portanto, a justiça natural não emana de relações ideias, mas profundamente marcadas pela desigualdade, como eram as relações entre reis e súditos, possuidores de escravos e plebeus, na pólis.
Bobbio atribui a Aristóteles a utilização do fogo como exemplo de justiça natural (BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico – lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999. p. 17). Porém, uma leitura atenta do trecho em que o filósofo grego alude a esse exemplo permite entender que ele não é adotado sem restrições. Logo após descrever a justiça legal, na Ética a Nicômaco, o Estagirita escreveu: “Alguns pensam que a justiça é dessa espécie [legal], porque o que é por natureza imutável tem a mesma força em todo lugar (como o fogo queima aqui e na Pérsia), ao passo que eles enxergam mudanças nas coisas reconhecidas como justas. Isso, porém, não é verdadeiro de modo geral” (ARISTÓTELES. Ob. cit. Loc. cit.).
As palavras “isso não é verdadeiro” referem-se à afirmativa anterior, que Aristóteles não emite como sua, mas atribui aos pensadores (principalmente sofistas) que entendiam que "a justiça [inteira] é dessa espécie [legal]”. Os sofistas por ele mencionados é que usavam o exemplo do fogo, a fim de negar a existência de uma justiça imutável e, assim, igualavam toda a justiça à modalidade legal ou convencional.
Aristóteles não escreveu o Livro V da sua obra para apoiar essas ideias, mas para as combater. Ele as refutou, claramente, ao declarar que a concepção segundo a qual toda a justiça é mutável, “no que diz respeito aos deuses, talvez nada tenha de verdadeira”. De fato, muitos gregos e romanos pensavam que o divino não estava sujeito a mudanças. Mas isso não é tudo: “No que diz respeito a nós [ou seja, no nível humano da realidade]", continua o texto, "há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”. 
Que quer dizer “há coisas que são justas por natureza e, no entanto, são inteiramente mutáveis”? A meu ver, essa declaração implica que uma parte da justiça natural é mutável. Portanto, o exemplo do fogo não se aplica indiscriminadamente a todos os atos justos por natureza. Essa conclusão é confirmada, na sequência do texto, quando Aristóteles afirma ser “evidente quais coisas, dentre as que podem ser de modo diverso [portanto são mutáveis], são por natureza e quais não o são”.
Com essas derradeiras palavras, o filósofo claramente reafirma que há coisas justas por natureza que são mutáveis. Porém, como o trecho se refere exclusivamente às coisas mutáveis, não está excluído que, em outro contexto, as imutáveis sejam o que são por natureza. Portanto, que haja um justo por natureza imutável e universal.
Para encontrarmos exemplos de leis naturais, precisamos fechar a Ética a Nicômaco, a fim de buscá-los em outras obras. Achamos alguns na Retórica, mas não são de Aristóteles e sim de escritores outros. Vamos a eles: "A personagem Antígona refere-se à lei da Natureza, numa obra de Sófocles, quando afirma que o enterro de Polinice era justo, apesar de ter sido proibido por um decreto. Antígona quis dizer que o enterro era justo por natureza: 'Essa justiça não nasceu hoje ou ontem/ Vive desde sempre: seu parto não pode ser datado' [SÓFOCLES, Antígona. 456, 7]. E Empédocles, quando nos diz para não matar qualquer criatura, declara que fazê-lo não é justo para alguns e injusto para outros, pois 'uma lei que a todos abrange, sob todas as partes do céu/ Inviolável se estende sobre a imensidão da terra' [EMPÉDOCLES. 380]" (ARISTÓTELES. Retórica. In Great books of the western world. 2ª ed., Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1993. Vol. 8, Livro I, Cap. 13. p. 617). 
Em O drama do direito, referi-me a "juízos inquestionáveis, assim como a regra universal de que a quem empresta cinco é justo restituir cinco, a menos que outras transações venham a compensar os valores" (MORAIS, Luís Fernando Lobão. O drama do direito - teoria e prática de uma visão jusfilosófica. Campinas: Julex, 1991. p. 107). Premissa desse juízo é a equação matemática que iguala as cinco unidades de moeda tomadas em empréstimo às cinco devolvidas. Trata-se de uma verdade tão universal quanto a lei que governa a combustão do fogo. Porém, quando aplicada às relações jurídicas, a igualdade matemática sofre alterações ditadas por circunstâncias não convencionais, como a passagem do tempo, que pode ser tomada como causa da cobrança de juros razoáveis e, assim, implica a obrigação de devolver mais do que cinco unidades. É o que está implícito, embora não claramente, na parte da citação que diz "a menos que outras transações venham a compensar os valores". 
A devolução das cinco unidades, sem acréscimo de juros, se não tiver escoado um tempo relevante, ou de mais de cinco, se houver, são exemplos de atos justos por natureza. Podemos afirmar que, no primeiro caso, a justiça implicada é universal e imutável, pois, se não decorrer tempo algum, o valor a ser devolvido será sempre igual a cinco. No segundo caso, porém, a justiça imanente à transação, sem deixar de ser natural, sofre mutação devida a uma circunstância não convencional, nem voluntária (a passagem do tempo). Por essas razões, parece-me correto fazer referência a uma justiça natural imutável e a outra sujeita a mudanças. 
Desse modo, Aristóteles desmembrou a justiça política numa parte natural e outra convencional. E acrescentou que nem tudo o que é justo por natureza é imutável. Portanto, há uma justiça natural imutável, à qual o exemplo do fogo se aplica, e outra mutável, à qual ele não se aplica em absoluto. Essa ideia primordial foi, depois, quase inteiramente abandonada, visto que o jusnaturalismo se desenvolveu como a doutrina de um direito ideal e imutável.
A lição quase universalmente repetida, hoje, é a de que o justo natural, em Aristóteles, é sempre e apenas universal. Ninguém menos que Bobbio o ratificou (BOBBIO, Norberto. Ob. cit. p. 22). Ao olharmos a Ética a Nicômaco de perto, percebemos, porém, que a justiça por natureza pode também ser mutável. E, ao nos voltarmos para o quadro atual das discussões jusfilosóficas, com essa informação em vista, ocorre-nos quanto a admissão de um direito natural mutável é de importância vital, eu diria até mesmo crítica, para a sobrevivência e o possível triunfo do jusnaturalismo. Foi o que concluímos no texto sobre o jusnaturalismo integral, ao perceber que cada ordenamento jurídico possui um núcleo lógico distinto não apenas das normas que o integram, mas também dos núcleos de outros ordenamentos. A norma fundamental de Kelsen não é o pior exemplo desse elemento central e decisivo do direito.