Ao longo da História, pensadores, cientistas e inventores realizaram uma longa série de descobertas que revolucionaram a vida na face da Terra. Não muitos deles foram filósofos, e os que o foram não realizaram as suas descobertas com base na Filosofia. É o caso de Aristóteles, que referiu as regras do pensamento lógico ao conhecimento comum, e de Kant, cuja hipótese sobre a origem do sistema solar deve tanto ao saber filosófico quanto as descobertas genéticas do frade Mendel à Teologia.
Essa constatação não retira o brilho da Filosofia, nem anula o fato de tantos filósofos serem arrolados, com justiça, entre os maiores pensadores da História. Sugere, porém, uma mudança no enfoque que damos à Filosofia, na medida em que exige que não a concebamos como fonte de descobertas e avanços do conhecimento.
Em tudo o que diz respeito à produção de conhecimentos novos, a Filosofia é um saber pouco relevante. Não que os filósofos não tenham proposto concepções geniais e revolucionárias sobre o Universo e o homem. Eles provavelmente o fizeram mais que os representantes de todas as outras disciplinas do saber humano. Porém, quase nunca, as concepções revolucionárias dos filósofos foram provadas e, assim, convertidas em descobertas. Enfim, é como se os mundos que os filósofos descobriram fossem mundos possíveis, imaginados e imaginários, não partes do mundo real.
Não é possível afirmar o mesmo da Filosofia enquanto crítica de outros saberes. Nesse sentido, a Filosofia tem sido mais bem-sucedida. Ela sempre foi usada, com considerável sucesso, para desintegrar outros conhecimentos. Mas é preciso reconhecer que, ao fazê-lo, ela nunca nos legou descobertas, nem forneceu provas ou confirmações de teorias rivais das que desintegrou.
Essa constatação leva-nos a indagar se a Filosofia não é um saber instrumental, que não produz resultados sozinho, mas aliado a outros saberes. Se o for, será preciso mostrar de que modo esse saber funciona: quais os métodos que permitem desenvolver todo o seu potencial e colocá-lo em relação fecunda com outros saberes.
Para buscarmos conclusões como essas, é fundamental darmos um passo atrás e lembrarmos o que, em essência, constitui o conhecimento humano. Quase todos os pensadores admitem que o conhecimento é uma relação sujeito-objeto. De fato o é, embora o objeto de certos conhecimentos seja extremamente tênue. Porém, o conhecimento é mais do que isso. Para ser funcional, ele tem de ser também preciso ou, pelo menos, regular.
No âmbito dos conceitos fundamentais, a precisão do conhecimento manifesta-se como simples regularidade. É o que acontece com as categorias da experiência, que se distinguem por desempenhar sempre as funções idênticas ou semelhantes em diversos campos do conhecimento, nas mais heterogêneas sociedades. Porém, conforme passamos das operações básicas a níveis cada vez mais complexos de cognição, o critério da regularidade se especializa, assumindo feições cada vez mais sofisticadas: identidade, não contradição, terceiro excluído e uma miríade de regras materiais em que nos pautamos ao pensar objetos das mais variadas áreas do conhecimento.
Não me parece que os filósofos tenham conseguido demonstrar que, nesse imenso processo de particularização e especialização das regras lógicas, o critério da regularidade tenha sido jamais revogado ou substituído por outros critérios. A falta dessa demonstração constitui o enigma nuclear de toda a Gnoseologia. Indica que o primado da regularidade não foi refutado. E a não refutação dele implica a sua confirmação, se a falseabilidade aplicar-se à Teoria do Conhecimento.
Chego, assim, ao resultado fundamental da reflexão aqui realizada: se as categorias são verdadeiras na medida em que regulares, é inevitável concluirmos que a verdade de qualquer conhecimento identifica-se com a regularidade categorial. E, se esta assume a feição de uma série de critérios secundários, como a não contradição e as regras lógicas materiais, é possível concluir que a regularidade mantém o seu jugo sobre o conhecimento sob as formas da precisão e da exatidão do conhecimento.
É usual considerarmos nossos conhecimentos tão mais verdadeiros quanto mais rigorosamente se moldam às regras das diversas ciências. Essa obediência é o que permite determinar o grau de precisão ou de exatidão dos saberes. Mas, se todo conhecimento se funda em categorias como em critérios supremos de verdade, segue-se que a precisão do conhecimento nada mais é que a regularidade categorial sob outra roupagem.
Seja o caso do conhecimento dos sentidos. Vimos que a sua conexão com o que os antigos filósofos chamavam eflúvios dos objetos e dos órgãos sensoriais não pode ser rompida. E, se assim é, a regularidade que define as categorias da experiência deve ser determinada por algo proveniente dos objetos (seus eflúvios). Não somos capazes de definir exatamente como essa determinação acontece, nem de a refutar, uma vez que as evidências a seu favor são maciças.
Temos, pois, de considerar que, até prova em contrário, as categorias da experiência são substancial-mente determinadas pelo sujeito e também pelos objetos. E temos de concluir, também, que a regularidade das categorias particulariza-se numa série de regras que governam as diversas áreas do conhecimento.
Essas regras não são isentas de contrariedades e contradições. É que a vida está repleta de relações em que os objetos colocam-se em oposição maior ou menor uns com os outros. Posto que as regras das lógicas setoriais moldam-se ao modo como as relações se travam nos seus respectivos setores, não é possível evitar que contrariedades e contradições pululem no conhecimento.
Assim, um conhecimento é verdadeiro na medida em que consoante com a regularidade categorial, que se manifesta, nos diversos ramos do conhecimento, como obediência mais ou menos exata às regras que os regem, as quais não excluem contrariedades e contradições. Trata-se de deter-minar como cada ramo do conhecimento realiza isso. Neste texto, interessa-me, particularmente o modo como a Filosofia e as ciências sociais o fazem.
Penso que ambas derivam sua precisão do uso que fazem dos signos linguísticos. Da crença mais primitiva à mais adiantada ciência, todo conhecimento se desenvolve num universo simbólico complexo e dotado de considerável precisão intrínseca. O mesmo vale para os saberes instrumentais, que se dividem em ciências formais (Gramática, Lógica e Matemática), técnicas (Cirurgia, Retórica etc.) e saberes especulativos (Filosofia e Teologia).
Dentre os saberes instrumentais, o mais alto grau de precisão cabe às disciplinas formais, as técnicas vêm a seguir, e os saberes especulativos por último. Mas, por constituírem conhecimentos, todas as categorias do saber instrumental são dotadas de precisão. Nenhuma é imprecisa. Se o fosse, não seria conhecimento, posto que este não é só uma relação sujeito-objeto, mas uma relação precisa, isto é, referida à regularidade categorial. Não é diferente com a Filosofia e a Teologia.
A questão é entender de que parte essas disciplinas abstratas e problemáticas extraem sua precisão. Certa-mente elas não a derivam dos objetos a que se dedicam (o ser, o conhecer, Deus, os valores etc.), que estão entre os mais problemáticos de todo o conhecimento. Penso que a Filosofia e a Teologia haurem a sua precisão não do objeto, mas da linguagem. Na medida em que elucidam o significado das palavras e apenas nessa medida, é que aquelas disciplinas cumprem a alta missão de viabilizar o conhecimento dos objetos a que se aplicam.
Sejam-nos permitidos alguns exemplos. As ciências naturais foram erguidas sobre os escombros de conceitos como os de éter, flogisto e dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar). A Filosofia desempenhou um papel relevante tanto na afirmação quanto na dissolução desses conceitos, ao realizar a crítica deles e de outras ideias concorrentes.
Nos textos patrísticos, encontramos uma comparação meticulosa da cosmologia grega e materialista dos quatro elementos com a ideia de criação ex nihilo. Orígenes, Basílio, Gregório de Nissa, Ambrósio e Agostinho analisam, modificam e fundem meticulosamente a física dos quatro elementos à ideia bíblica da criação ex nihilo. Por outro lado, a doutrina da Trindade só adquiriu a forma estabilizada nos Credos quando pôde ser formulada, ao mesmo tempo, em termos dos universos simbólicos judeu e grego, o que equivale a dizer em termos teológicos e filosóficos.
Em todos esses casos, a Filosofia e a Teologia desenvolveram as suas realizações mediante a elucidação de termos. Para que a Astronomia Moderna se constituísse, a partir de Copérnico, foi preciso desconstruir a complicada trama de conceitos e termos de Ptolomeu e Aristóteles que proveu a explicação mais aceita do Universo físico durante séculos. E, para a Química erguer-se como ciência, a terminologia de Aristóteles e dos escolásticos sobre a matéria também teve de ser desconstruída.
A desconstrução filosófica dessas ideias foi essencialmente um trabalho realizado sobre palavras e seus significados. O mesmo se deu com a teologia da criação, assentada, tijolo a tijolo, por reflexões sobre vocábulos dos dois primeiros capítulos de Gênesis em hebraico, grego e latim, e com a doutrina da Trindade, delineada mediante a discussão de palavras como ousia, hyposthasis, e seus correspondentes em latim. Do exame desses termos a Teologia hauriu o que nela existe de precisão e que lhe permite constituir um ramo do conhecimento humano.
Quando transitamos das disciplinas instrumentais às ciências naturais e sociais, muita coisa muda. O conhecimento da natureza e dos mundos sociais são fins e não meios para a construção de outros saberes. Serve-se de instrumentos formais (gramaticais, lógicos e matemáticos), técnicos e especulativos (filosóficos e teológicos), para desenvolver descrições comparáveis ao referencial objetivo do mundo e não apenas usadas como instrumentos de outros saberes. Enfim, as ciências naturais e sociais alcançam objetivos cuja consecução as disciplinas instrumentais apenas preparam.
Essa arquitetura geral do conhecimento, funda-da na colocação das disciplinas instrumentais a serviço das ciências naturais e sociais, seria mais bem-sucedida, se curto-circuitos não se multiplicassem, principalmente no campo das ciências sociais, por vários motivos. Primeiro porque os objetos dessas ciências são, eles próprios, quase tão problemáticos quanto os da Filosofia e da Teologia. E, em segundo lugar, porque as disciplinas sociais valem-se de instrumentos filosóficos e teológicos (também problemáticos)em maior medida do que as ciências naturais.
Isso faz com que o estado das ciências sociais, quando analisado com a indispensável dose de realismo, pa-reça desanimador e que reflexos disso projetem-se no campo do Direito. Faz ainda com que, no centro geométrico do preocupante quadro, garbosamente instalado, encontre-se o dissenso sobre a justiça. Que é a justiça? Quais as suas espécies? Que concepções foram propostas sobre cada uma delas? São, tais concepções, realizáveis? Não há como negar que essas questões, em sua problematicidade, desafiem e ameacem o nosso saber sobre a sociedade.
Questões relacionadas à justiça não podem ser enfrentadas com sucesso, enquanto não nos damos conta da natureza problemática das ciências sociais e problemática ao quadrado das disciplinas instrumentais (Filosofia e Teologia) que elas utilizam. Por isso também, enquanto não reconhecermos que o desafio colocado por essa dupla complexidade (referente ao objeto e ao instrumental) é incontornável para as ciências sociais, não seremos capazes de desenvolvê-las com a precisão característica dos saberes bem-sucedidos.
O pressuposto para o desenvolvimento das disciplinas sociais é, portanto, a formação de uma consciência profunda sobre a natureza delas. Se as ciências sociais derivam sua essência não só da relação que mantêm com o seu objeto, mas também da precisão com que o tratam, cabe-lhes, antes de tudo, aprofundar essa precisão e eliminar os motivos de imprecisão no trato com o seu objeto.
Chegamos, assim, ao cerne da nossa questão. Qual é a causa da precisão das ciências sociais? Assim como no caso da Filosofia e da Teologia, também no das ciências sociais, essa causa é a linguagem. E que linguagens aquelas ciências usam, além da gramatical e da lógica? Elas utilizam a linguagem filosófica e a teológica. Isso mostra que o caminho para o desenvolvimento das ciências sociais passa pelo uso mais apurado não só da Gramática e da Lógica, mas também da Filosofia e da Teologia. Até porque a sociedade e a cultura, que aquelas ciências estudam, desconhecem os preconceitos acadêmicos, por isso fundam-se na transcendência. Gostemos ou não.
Avanços de linguagem é, pois, do que precisa-mos, a fim de que as ciências sociais se alcem a um patamar de precisão superior ao atual. Avanços que ajudem a exprimir, em linguagem filosófica e teológica, os dilemas sobre o social.
Voltemos ao problema da justiça. São Tomás a explicou com base no binômio constituído pelos primeiros princípios e as consequências dos primeiros princípios do direito natural. Dentre as consequências dos primeiros princípios, umas são próximas, outras, remotas. Mais que doutrinas, essas noções constituem elementos de uma linguagem, o que é fácil de ver.
Em que termos melhores que os de Tomás posso expressar a importância da justiça para a sistematização do direito? Em que termos posso tornar mais claro que a justiça não é só uma questão de valor, de princípio, mas também de sistematização normativa e, portanto, de viabilização do ordenamento jurídico? Não é, o direito das instituições, de alto a baixo, inseparável da ideia de justiça? Essa ideia não motiva os atos jurídicos e justifica as decisões jurisdicionais? Se assim é, de algum modo, as ideias mais amplas e elevadas de justiça que concebemos devem particularizar-se ao ponto de capilarizar e irrigar o direito todo. Ninguém disse isso melhor que Tomás. E, se a ciências problemáticas não convém assentar dogmas, sem ter como os comprovar, resta-lhes a alternativa de comunicar com precisão o pensamento sobre a justiça por meio de noções como as de primeiros princípios, suas consequências próximas e remotas.
Tantas vezes, numa ciência, o “como” é mais vital que o “quê”! Tantas vezes afirmar que algo é reduz-se a pedir que creiamos que é! Por isso, mais importante do que afirmá-lo é mostrar como vem a ser. A justiça se constitui a partir dos seus primeiros princípios, que são a liberdade e a igualdade. Estas têm por consequências próximas os subprincípios que, em cada povo, especificam diferentes regimes de liberdade e igualdade. E não é menos possível afirmar que os subprincípios dão origem a normas mais específicas que eles, conquanto ainda gerais, como a que fixa determinado tributo, e estas, a regras de todo específicas, a exemplo da que manda Fulano pagar tanto a título de tal tributo.
Princípios e consequências, princípios primeiros e derivados, consequências próximas e remotas são todos termos cuja elucidação é melhor conduzida com ajuda da Filosofia. Elucidá-los é imprimir precisão ao conhecimento filosófico e, por meio dele, às ciências sociais.
Não ousei, até aqui, empregar a palavra exatidão como sinônimo de precisão. É que ela foi tombada pela Matemática e outras ciências que a utilizam, com todo direito, em sentido particular. Mas faz diferença dizer exatidão, em sentido mais amplo, em lugar de precisão? Talvez, a exatidão seja mais que a precisão. Talvez ela caiba à Física e à Matemática, e a precisão fique bem às ciências sociais. Mas isso depende tanto do contexto! Em certos contextos, exatidão soa como precisão absoluta, e precisão, como exatidão aproximada. Seja. Mas discriminar a tal ponto entre os termos pode ser um cuidado que prescreveu no dia em que adotamos a palavra ciência, que evoca o exato, para designar o confuso e precário saber que temos das nossas sociedades. Para nós, que dizemos ciência com tanto exagero, que adotamos tão augusto nome para tão problemático saber, pode ser mais consistente chamar precisão o ideal do nosso conhecimento e conformar-nos com realizá-lo mais na linguagem do que nos fatos.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2015
sábado, 31 de outubro de 2015
Filosofia e Direito (36): A Maior Revolução
Uma característica do neoateísmo radical dos nossos dias é atribuir-se
tarefas irrealizáveis, ocultando o seu desconhecimento do sentido histórico das
transformações que engendraram a cultura cristã sob a denúncia das contradições
produzidas em dois mil anos de Cristianismo.
Penso
que as críticas do neoaiteísmo só podem ser bem sopesadas se as olharmos do
ponto de vista histórico e que, para isso, é indispensável entendermos como a
civilização cristã substituiu a triunfante cultura gestada na Grécia e em
Roma.
Não
foi pequeno o fascínio exercido por essa cultura em todas as épocas, mas
especialmente nos séculos XIV a XVI, quando as obras artísticas e literárias da
Grécia e de Roma foram maciçamente reestudadas, reproduzidas e disseminadas,
durante o Renascimento e o Humanismo. E os homens daqueles séculos não foram
os únicos a atribuírem valor elevado à Antiguidade: ainda hoje, temos a cultura
clássica em tal estima que é comum associarmos os ramos recentes do
conhecimento a descobertas e intuições da Grécia e de Roma Antigas.
Todavia,
se os méritos da cultura clássica justificam a veneração que lhe devotamos,
que dizer da civilização constituída pelo contato dela com o Cristianismo, que
fez recuar a religião grecorromana e quase extinguir-se o colosso de crenças,
costumes, literatura, Filosofia, História e ciência da Antiguidade Clássica? Nenhum
reconhecimento histórico é tão verdadeiro quanto o de que a força vital do
Cristianismo penetrou a tal ponto no Império Romano e entrecoseu-se com as
culturas ali existentes de tal maneira que o fim da religião pagã e o recuo da
cultura clássica fizeram-se inevitáveis.
Precisamos
acrescentar, aqui, uma distinção: se as tradições mais confiáveis de que
dispomos estiverem corretas, Roma era uma irmã cultural da Grécia. O parentesco
associou aqueles povos estreitamente, muito antes de Roma abraçar a cultura grega.
O mesmo não se passou no caso da cristianização do mundo grecorromano. A
religião judaico-cristã, de origem semítica, vinha de outra cepa. Como tudo o
que emergia de Israel, naquele tempo, ela foi, a princípio, considerada bárbara
pelos romanos. Mesmo assim, virou o altar pagão e derrubou a pirâmide
grecorromana.
Não
é incorreto considerar que o processo que conduziu à substituição da cultura clássica
pela cristã constituiu a maior revolução do conhecimento humano em todos os
tempos. A revolução daquela época só encontrou um termo de comparação à altura muito
tempo depois, com o advento da Revolução Científica. Ainda assim, a transformação
cultural produzida pelo Cristianismo suplanta a científica, senão pelo mérito
intrínseco das façanhas que a constituíram, pelo papel muito mais fundamental reservado
à religião na cultura humana.
Nenhuma
das revoluções do conhecimento até hoje propostas parece à altura dessas duas.
Por isso, é em função do Cristianismo e da ciência que devemos medir os demais avanços
do conhecimento. Consideremos a primeira dessas revoluções. No início da
Modernidade, após mais de um milênio de cultura cristã medieval, a Europa
fervia com aspirações opostas. Primeiro o Renascimento, depois o Humanismo propuseram
o retorno à Antiguidade Clássica. A eles opuseram-se, em parte, os nominalistas
e o luteranos que tinham maiores reservas em relação à herança clássica e pareciam
almejar a superação simultânea da cultura clássica e de suas versões cristianizadas.
A
oposição entre essas correntes de pensamento envolveu a Europa num vórtice que
terminou numa série de guerras. A resolução dos impasses culturais pelo derramamento
de sangue tornou-se então inevitável, o que demonstrou o despreparo de ambos
os lados para resolvê-los por meios pacíficos.
E
a agravar a falta de análise metódica das divergências militava o baixíssimo
teor empírico das filosofias e teologias que se digladiavam. A ideias com
conteúdo empírico tão reduzido quanto o tomismo e o calvinismo faltava o
potencial heurístico necessário para propor soluções alternativas para os
conflitos. Não pode haver descobertas, onde não há observação do que realmente
acontece. Por isso, na Europa embriagada com o vinho da oposição de papistas e
luteranos, tomistas, occkhamistas e calvinistas, não foi possível encontrar
soluções racionais e pacíficas para os antagonismos, de sorte que a
brutalidade acabou invocada como juiz supremo deles.
Claro
que papistas, luteranos e calvinistas, em seus arraiais, cogitavam soluções
científicas para os embates da época. Porém, sacavam-nas do fundo de suas
metafísicas, o que nunca permitiu que qualquer dos lados convencesse os espíritos
lúcidos. Fato é que a História incumbiu-se de sacrificar todas aquelas
soluções, descobertas e provas com a mesma facilidade com que o carrasco põe
termo ao drama do condenado.
Restou-nos
o saldo em lições do triste derramamento de sangue dos séculos XVI e XVII. E, entre
as lições que o passado nos legou a esse respeito, destaca-se uma de cunho eminentemente
epistemológico cujo aprendizado é urgente ainda hoje: não é possível transformar
uma filosofia em ciência ou erigir uma visão teológica em desco-berta empírica
sem produzir desastres. A Filosofia e a Teologia não são disciplinas
heurísticas. Por isso, se por ciência entendermos um saber capaz de realizar
descobertas e fazer avançar o conhecimento, concluiremos que nem a Filosofia,
nem a Teologia são ciências.
Infelizmente,
a lição epistemológica não foi bem assimilada pelos filósofos que, ainda hoje,
tentam extrair descobertas revolucionárias da sua disciplina. Não me refiro aos
filósofos tomistas ou nominalistas, mas aos existencialistas, aos filósofos da
linguagem e aos partidários de outras mil correntes em que o pensamento filosófico
contemporâneo se capilarizou. Refiro-me ao espírito da Filosofia atual como o
cultivamos. Um espírito que se inchou de soberba por causa de mil descobertas nulas
que realizou e propaga, às vezes de si para si e em linguagem ininteligível.
Esse mal sempre acompanhou a Filosofia. Sempre
a levou a perder-se no orgulho causado por descobertas ocas. Que pretenderam
os nominalistas, a não ser revolucionar o conhecimento antigo? Que explica as
extensas e laboriosas críticas deles a todas as partes daquele saber, sem
exceção alguma, a não ser a intenção de alterá-las profundamente? Por que os
nominalistas foram os primeiros em vários séculos a proporem alterações
substanciais na Física aristotélica? No entanto, apesar dos méritos de que se
cobriram e da justa admiração que conquistaram, os nominalistas fracassaram de
modo retumbante nessa missão, tanto quanto outros filósofos tinham fracassado
antes deles e ainda outros falharam, depois, ao tentar revolucionar o
conhecimento com descobertas altamente abstratas e metafísicas.
Ante
tais fatos, é justo perguntar se a Filosofia não tem maior relação com a
linguagem do que com o conteúdo do conhecimento. E se a sua relação mais
estreita com a linguagem do que com os fatos não constituiu um importante motivo
do fracasso das escolas que tentaram revolucionar o conhecimento humano.
Essas
perguntas levam-me a ainda outras: se quisermos encontrar o que de melhor foi
produzido sobre a linguagem, não o devemos buscar nas ciências que se dedicam
a ela e também na Filosofia? Por outro lado, se pretendermos achar o que de
mais relevante pode ser afirmado a respeito do mundo concreto, não devemos
realizar fechar confiadamente os livros de Filosofia e buscá-lo em outra parte?Mais
do que isso, se quisermos aprender sobre o mundo em todas as suas dimensões,
teremos de lançar mão não apenas dos livros de ciência, mas também (e ainda que
a contragosto) dos de Teologia. Pois, se esta não é capaz de produzir
descobertas empíricas, por outro lado, a História demonstra que a Teologia
sempre liderou o processo de adiantamento das culturas e, por meio disso,
influenciou a História. O triunfo da civilização cristã não constitui
demonstração desprezível disso.
Infelizmente,
no hemisfério ocidental, perdemos a consciência que um dia possuímos do
potencial revolucionário da Teologia. Por isso, ao refletir sobre o conhecimento,
é importante nos pormos em busca da consciência perdida. Foi o que tentei
realizar, nos dois primeiros livros que publiquei, nos quais propus que o
Direito tem tanto a lucrar com a proximidade da Teologia quanto em relação à ciência.
Recordo-me
de não o ter proposto em duas ou três linhas, mas de ter transformado essa na
tese central de minhas primeiras obras. Implícita ou explícita nelas estava a
ideia de que a Teologia e a ciência, de modos muito distintos, dizem-nos,
ambas, coisas bastante relevantes sobre a realidade.
A atribuição de um papel como esse à Teologia, após o
advento das ciências naturais, costuma causar mal-estar em algumas pessoas
cultas. Mas, para que a atribuição se justifique, não precisamos reconhecer
àquela disciplina um papel distinto do que compete à Filosofia, ou seja, o
papel de uma reflexão sobre a linguagem.
Parte do mal-estar a respeito da
Teologia desvanece quando a pensamos não como verdade indesafiável, mas como
linguagem, portanto como uma disciplina passível de verdade e de erro, a qual
desempenha a sua função na medida em que serve a transmissão de um discurso. A
única diferença entre a Filosofia e a Teologia, nesse ponto, é que a linguagem teológica
é sobre Deus.
Na
condição que reivindica para si de linguagem acerca de Deus é que a Teologia deve
ser avaliada. Desse ponto de vista é que a contribuição que ela oferece ao
conhecimento há de ser julgada. Se não possuir valor linguístico, a Teologia será
tão incapaz de dizer algo sobre o real quanto uma filosofia desprovida de linguagem
precisa. Por isso, tanto uma como a outra dessas disciplinas deriva o seu valor
da linguagem.
Coube
à Filosofia Patrística fornecer a linguagem, por meio da qual a revolução cristã
se deu. Essa líinguagem foi o que permitiu a absorção da cultura clássica no
arcabouço do pensamento cristão. Não entendemos a Antiguidade Tardia sem dominar
essa linguagem e perceber que, que, por meio dela, o Cristianismo desafiou ao mesmo
tempo em que assimilou a cultura clássica.
A superação da cultura clássica não pode ser
compreendida mediante o estudo da Filosofia Grega ou do Direito Romano. Para
entendê-la é preciso penetrar no pensamento patrístico, no qual a grande superação
se tramou. E o que encontramos, em primeiro lugar, nesse pensamento, é a
linguagem não apenas bíblica, mas também filosófica que permitiu a superação.
O Cristianismo é, antes
de tudo, um discurso de Deus. É um longo encadeamento de palavras atribuídas a
Deus. Santo Agostinho lia a Bíblia como quem ouve Deus, uma vez que tomava o
Cristianismo como uma religião revelada. Uma religião da palavra e palavra
divina.
Se traduzirmos essas assertivas
simples em linguagem um pouco mais sofisticada, afirmaremos que o discurso das
Escrituras é proferido por Deus. E que, por isso, a Teologia Cristã vale o que
vale a Filosofia, lida com o que ela lida, transmite o que ela transmite, isto
é, uma linguagem, ainda que a linguagem transmitida por ela seja a de Deus.
O
luteranismo só se pôs como tentativa tão clara de superação da escolástica por
ter adquirido a mais elevada consciência de que a Teologia nada mais é que línguagem
de Deus sobre si e sobre o ser humano. A Teologia é um discurso de Deus sobre
ele mesmo e sobre nós.
Pouca dúvida há de que o colossal
trabalho de tradução do Antigo Testamento a partir do hebraico e do Novo
Testamento grego de Erasmo para o alemão favoreceu amplamente o aprofundamento da
compreensão de Lutero sobre o caráter da Teologia como discurso de Deus lhe permitiu
levar a efeito a sua proposta específica de superação da escolástica.
Pode-se
perguntar se, reduzida à linguagem de Deus, a Teologia não se torna
transracional e desumana? Uma pista para a resposta foi dada pelo poeta John
Milton na explicação que transmitiu do Trivium (Lógica, Gramática e
Retórica) medieval: "De todas as artes [do Trivium], a pri-meira e
mais geral é a lógica, seguida da gramática e, por último, da retórica, uma
vez que pode haver muito uso da razão sem o falar, mas nenhum uso da palavra
sem a razão" (MILTON, John. Artis logicae. In The works of John Milton.
Nova York: Columbus University Press, 1935. Vol. 2. p. 17).
Para
Milton, a Gramática e a Retórica regiam-se pela Lógica. Esse é um modo muito
adequado de compreender o uso das três disciplinas. Como estudo da linguagem
de Deus, a Teologia não é transracional. Sujeita-se, antes, à Lógica e à
Gramática, pelo simples motivo de que pode existir razão sem falar, mas não
palavra de Deus sem razão. É pelos métodos da Lógica (Clássica, já que a
Transcendental e as outras não se firmaram ou possuem aplicação reduzida) e da
Gramática (Geral e Especial) que a Teologia deve ser estudada e exposta.Em A hipótese de Darwin, escrevi:"Se alguma mudança radical ocorreu na maneira de os homens verem o mundo e construírem o seu destino nos últimos séculos, portanto, ela se localizou na passagem à modernidade, não no advento de uma pós-modernidade. A modernidade é uma tentativa de construção de sociedades voltadas à afirmação do indivíduo, em relativa harmonia com forças externas ao mundo dos homens (forças divinas), não um projeto antirreligioso ou uma experiência de desencantamento. [...] A atualidade não é feita pela superação total do passado. Pelo contrário, o desafio específico de cada época é inserir os fios das novidades históricas no tecido que a sua geração recebe dos antepassados. Não é diferente na época em que vivemos (MORAIS, Luís Fernando Lobão. A hipótese de Darwin - a compatibilidade entre Deus e a evolução. São Paulo: Themis, 2008. p. 11, 13)."
Em que parte do quadro da
Modernidade o Direito há de inserir-se? A resposta, expressa ou tácita, é
dada com grande desenvoltura no nosso tempo. Quase todos pensam que o Direito
deve acercar-se da ciência e distanciar-se da Teologia. Falta, porém, a prova
de que essa concepção cultural se justifica. Falta a demonstração de que a
proximidade em relação à ciência impede ou desrecomenda o intercâmbio
frutífero do Direito com teologias bem concebidas.
Os
preconceitos típicos do nosso tempo nos induzem a aceitar a Revolução Científica
e a esquecer o que permanece da outra grande revolução da História, a saber: da
Revolução Cristã. Mais difícil ainda se faz entender que uma transformação não
anula a outra, por incidirem em campos distintos do conhecimento: a revolução
antiga na linguagem de Deus, e a recente, no conhecimento da natureza. Aquela
decretou o fim da cultura clássica e a absorveu; a revolução atual, a julgar
pelos seus mais exaltados defensores, não sabemos a que parte irá levar-nos.
Claro
que há tantas teologias (e teologias cristãs) quantos gostos. Não ocorre o
mesmo com a ciência, cujas variações sobre os mesmos temas são muito menos
numerosas do que o leque infinito dos gostos e idiossincrasias. Não estou a
propor a igual aceitação de todas as teologias, até porque, se o fizesse,
teria de conceder lugar igual a todas as outras formas de crença. Não se
trata, aqui, de afirmar a liberdade de consciência e de credo, mas de
reconhecer, ao mesmo tempo, o valor específico do pensamento judaicocristão e
a miserável consciência que as pessoas têm dele, nos nossos dias. Se, no
passado, a fé foi tomada como sinônimo de alienação, hoje, a falta dela é o
que produz tal efeito. E em que medida o produz!
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
Filosofia e Direito (38): A Falácia Naturalista
O argumento mais contundente já apresentado contra o direito natural é o da falácia naturalista, formulado pela primeira vez por David Hume, nos seguintes termos:
“Em todo sistema moral que encontrei até o dia de hoje, sempre percebi que o autor utiliza o método comum de arrazoamento, de modo a estabelecer a existência de um Deus ou a tecer observações sobre assuntos humanos, durante algum tempo e, então, repentinamente, surpreende-me pela substituição da cópula habitual de proposições ‘é’ ou ‘não é’ por ‘deve’ ou ‘não deve’. Essa mudança imperceptível tem drásticas consequências, posto que 'deve' ou 'não deve' expressa uma relação ou afirmação nova, que deveria ser observada e explicada, assim como uma razão deveria ser fornecida para o que parece inconcebível, a saber: como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente distintas” (HUME, David. Treatise of human nature. Oxford: Oxford University Press, 2000. Livro III, 1, seção 1) .
A história desse argumento, de sua origem na obra de Hume até o dia de hoje, é tão espantosa quanto a das doutrinas do direito natural que o antecederam sem jamais terem aventado tal objeção. Espantosa porque, do ponto de vista do pensador hodierno que se debruça sobre o debate de ideias do passado, é difícil compreender como algo tão básico tenha sido omitido por tanto tempo. Mas não é menos difícil aquilatar como, após formulado, o argumento da falácia foi adotado ou rejeitado sempre de modo peremptório, como se destruísse totalmente ou sequer arranhasse a superfície de qualquer das concepções morais possíveis.
Só um pequeno número de pensadores analisou o argumento de Hume em profundidade, sem o rejeitar totalmente ou sustentar a sua aplicação a todas as doutrinas morais. Curiosamente, o próprio Hume parece ter sido um deles, na medida em que, em seguida à formulação do argumento, escreveu: “Estou persuadido de que a pequena atenção dispensada à transição de 'é' ou 'não é' para 'deve' ou 'não deve' bastaria para subverter todos os sistemas vulgares de moral e nos levar a reconhecer que a distinção entre vício e virtude não se funda meramente na relação entre objetos, nem é percebida pela razão” (idem).
Com essa última afirmação, Hume indicou que nem todos os sistemas morais incorrem na falácia naturalista, mas apenas aqueles que denominou “vulgares”, isto é, apenas os sistemas que seguem o "arrazoamento comum". Com base no contexto, portanto, a crítica dos sistemas morais falaciosos parece dirigir-se não a todos os sistemas possíveis ou em vigor nos povos e sim a ordenamentos concebidos com base no arrazoamento comum.
Embora, na época de Hume, a maioria dos sistemas com essas características se baseasse na lei natural,do modo como formulada, a falácia não foi atrelada ao direito natural, como mais tarde ela foi interpretada. Por exemplo, um positivista que concebe o dever a partir de uma norma fundamental quase sempre supõe que esta é imperativa, quando tal interpretação não é a única possível, o que torna a sua concepção vulnerável à falácia. Se a norma fundamental não for imperativa, nosso positivista não estará a explicar, de qualquer maneira, a origem das proposições do dever a partir da norma (ou dever) fundamental. Isso porque nem toda norma é, em si mesma ou gramaticalmente, imperativa. O que assegura imperatividade à norma é a interpretação que lhe atribuímos e não a sua formulação gramatical. Por exemplo, do ponto de vista gramatical, a norma “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” não está sequer formulada no modo imperativo. Não diz: “Deves amar”, mas “amarás”. Lícito é, pois, interpretá-la como uma espécie de previsão do futuro tanto quanto como a instituição do dever de amar. A escolha entre essas interpretações cabe obviamente ao intérprete. Mesmo quando uma norma contém palavras como deve, “obrigatório” ou “proibido”, não é incomum a imperatividade depender da admissão de um dado não claramente implícito em tais palavras. Tampouco é incomum esse dado ser identificado de diferentes maneiras por diferentes intérpretes.
Se considerarmos que a noção de dever está umbilicalmente ligada à imperatividade, teremos de concluir que essa característica central é muito mais implícita do que explícita. Depende mais da interpretação da norma, que varia de pessoa para pessoa, do que da norma formulada gramaticalmente, que é igual para todos. Por isso, ao partir da norma, o positivista fundamenta-se mais no que as pessoas pensam a respeito dela do que na norma em si mesma. E o mesmo faz o jusnaturalista ao partir de Deus ou da conduta humana: na verdade, ele extrai normas do que as pessoas pensam acerca de Deus ou do homem.
Nesse nível fundamental, não há diferença metodológica relevante entre as duas grandes escolas do pensamento jusfilosófico. O positivista concebe o dever a partir do que as pessoas pensam a respeito da norma, e o jusnaturalista, a partir do que elas pensam sobre a conduta humana. Em ambos os casos, partem de padrões de interpretação adotados em maior ou menor medida, os quais não podem ser descritos sem algum grau de imprecisão.
Os positivistas alegarão que a sua doutrina é superior ao jusnaturalismo, porque a norma, da qual eles partem, é imperativa, ao passo que a conduta humana não o é. Dirão que, com isso, eles derivam as normas jurídicas do que já é uma norma (fundamental), enquanto os jusnaturalistas derivam normas do que não o é. Duas objeções podem ser postas a esse argumento. Primeiramente, os positivistas não partem de toda ou de qualquer norma, mas do que Kelsen e Hart denominam norma fundamental ou de reconhecimento. Só assim eles são capazes de resolver a petição de princípio implícita na concepção de que o ordenamento jurídico é válido por ser produzido da maneira prescrita por ele próprio. A norma fundamental é invocada, exatamente, para superar essa dificuldade. Ela é entendida como situada fora do ordenamento. Assim, para os positivistas, o ordenamento passa a ser produzido do modo previsto na norma fundamental e não do modo previsto por ele próprio.
O problema é que esse modo de ver as coisas afasta uma petição de princípio e cria uma contradição: afasta a justificação do ordenamento a partir dele próprio, mas introduz uma ideia metafísica (a norma fundamental exterior ao ordenamento real) a fim de eliminar outra ideia metafísica (o direito natural). Pensamos que isso é não resolver o problema da fundamentação racional do direito.
A outra objeção que pode ser oposta ao argumento positivista é a de que o direito natural não tem como foco toda e qualquer conduta humana, mas apenas aquela que se reveste de caráter obrigatório. Alguém pode sentir-se surpreso com a afirmação da existência de condutas que, por si sós, se revistam de obrigatoriedade. Existe de fato uma espécie de comportamento obrigatório? Devemos reconhecer, desde logo, que nem toda conduta humana é obrigatória. A maior parte delas não o é. Porém algumas condutas revestem-se de obrigatoriedade. É o caso do costume e das praxes institucionais, que sempre foram reconhecidos explícita ou implicitamente como fontes do direito. Tanto o costume como a praxe são práticas reiteradas, por isso mesmo concebidas como obrigatórias. Assim, embora constituam práticas, o costume e a praxe não são menos imperativos do que a norma. É nessas condutas dotadas de imperatividade que o jusnaturalismo de boa estirpe fundamenta o dever e o direito. Claro que, com isso, ele faz o dever descansar no mundo do ser (em práticas sociais empíricas), porém não de modo falacioso.
Vemos, por isso, que o argumento da falácia não pode ser aplicado apenas ao jusnaturalismo ou, de modo indiscriminado, a todas as correntes do direito natural e do positivismo. O argumento só é bem utilizado com consideração dos detalhes de cada caso e de cada teoria ao qual se pretende aplicá-lo. Por exemplo, o argumento é corretamente aplicado às doutrinas que estendem o direito natural a toda a realidade, como se fosse um constituinte do mundo humano e não humano, como é o caso da clássica definição de Ulpiano, segundo a qual jus naturale é aquele que o homem compartilha com os animais.
Não há direito algum extensivo a toda a natureza. Mesmo assim, existe um direito natural que concebe corretamente a conduta humana como normativa. A ideia que defenderei, nesta série, é de que esse direito pode ser formulado de modo particularmente adequado ao tempo atual a partir das instituições sociais. A meu ver, a enunciação mais consistente do direito natural é a que o surpreende no funcionamento concreto das instituições, como exporei em outros textos.
Por ora, devo demonstrar com a maior precisão possível a estrutura lógica da noção de direito natural a que me refiro, isto é, do direito natural das instituições. Para isso, partirei do que ficou assentado no texto anterior, vale dizer, de que existe uma natureza humana, embora ela constitua um conceito problemático. Esta particular conclusão é, a meu ver, a mais relevante para a decisão da pendência a respeito do direito natural, embora não seja suficiente para estabelecer todos os contornos desse direito.
Não retornarei à demonstração da natureza humana desenvolvida no texto anterior. Tê-la-ei por assentada ou, ao menos, por admissível, a fim de passar ao ponto seguinte do meu arrazoado, a saber: à orientação de todo direito ao correto. Esse ponto foi estabelecido, de modo bastante aceitável, por Robert Alexy no trecho de sua obra O argumento a partir da injustiça, em que lemos:
“O argumento a partir da correção [...] afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individualmente consideradas quanto o sistema legal como um todo pressupõem a ideia de correção. Um sistema de normas que não pressupõe tal ideia, de maneira explícita ou implícita, não é simplesmente jurídico. Sob esse ponto de vista, a exigência de correção funciona como um critério de classificação. Sistemas jurídicos que formulam tal exigência, mas não a satisfazem são defeituosos [...] Por outro lado, a exigência funciona como critério de qualificação no tocante às normas e decisões jurídicas individualmente consideradas, que se tornam defeituosas quando não formulam ou não satisfazem a exigência de correção” (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 35-36).
E em outro lugar: “A exigência de correção implica a de justificação. Essa exigência não se limita à justificação de uma decisão em termos de qualquer moralidade que permita considerar certa a decisão. Implica a correção da decisão em termos de uma moralidade justificável e, por isso, correta. A conexão necessária entre direito e moral correta é estabelecida pelo fato de a demanda de correção incluir a de correção moral [...] Esse é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica [da norma ou do ordenamento]” (idem. p. 78-79).
Não existe direito onde não vigore o ideal de entender e aplicar suas normas corretamente. A concepção positivista de um sistema de normas que repousam num postulado jurídico fundamental (basic rule) funciona com base no modo de criação das normas (umas a partir das outras). Para ela, direito é o que é criado dessa maneira. O problema é que essa concepção repousa num conceito dogmático de correção. É como se o positivismo fosse correto (satisfizesse o critério da correção) pelo simples fato de o postulado da criação de umas normas em conformidade com outras ser observado. Porém, o próprio postulado pode ser aplicado de modo correto ou incorreto, o que o positivismo despreza, pois considera dogmaticamente correto o seu modo de conceber a nomogênese. Seria melhor afirmar e manter que o caráter jurídico de uma norma ou sistema é garantido pela soma de método de criação e correção. Assim como a aplicação do primeiro critério tem de ser constantemente aferida, o mesmo se passa com o último.
Quero afirmar, com isso, que o direito não é simplesmente a norma, mas a norma tomada de maneira tal que dela derivem interpretações e aplicações corretas. Reencontramos, aqui, a assertiva de Miguel Reale: “O direito é a sua interpretação” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. Parte II, Título X, Cap. XXXVIII, p. 597), porém a reformulamos para que afirme uma que a norma não é ela própria, nem simplesmente a sua interpretação, mas as suas interpretações corretas.
O pressuposto fundamental da interpretação correta não é a letra, mas a recta ratio da norma. Por isso, o direito é, sem dúvida, a norma e a sua interpretação, mas uma e outra entendidas à luz da recta ratio, do espírito ou núcleo doador de sentido às interpretações corretas.
Somemos esta conclusão à que deixáramos antes estabelecida, isto é, à conclusão de que existe uma natureza humana. Se isso for verdadeiro, a recta ratio do ordenamento há de ser consentânea com a natureza humana. E, se a correção houver de ser entendida ao mesmo tempo como conceito lógico e moral, como Alexy exige, podemos utilizar tal critério não só para negar a existência da norma extremamente injusta, mas também para negar perfeição às normas injustas em todos os outros graus. Não é isso que Alexy sugere ao escrever que a “correção moral é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica” (idem. p. 79)?
O mesmo princípio que permite afirmar que a injustiça extrema é antijurídica fundamenta a proposição de que a injustiça em qualquer outro grau é causa de imperfeição jurídica. A última afirmação é um simples corolário da outra. Deve, portanto, segui-la. E, se as duas afirmativas são igualmente corretas, segue-se que o direito natural tende tanto à eliminação da injustiça extrema quanto à correção possível da injustiça em todos os outros graus. O desafio do jurista é encontrar o método que permite a melhor realização possível de uma e de outra tarefa.
Se adotarmos a concepção institucional do direito natural, as duas tarefas serão grandemente facilitadas. Perceberemos que existem instituições, como a ONU e seus organismos, cuja atuação universal não se limita à edição de normas contrárias à injustiça extrema, como as aplicadas ao genocídio e outros crimes contra a humanidade, mas também de normas tendentes a combater uma infinidade de injustiças muito menores. Essas normas são universalmente aceitas, embora sua aplicação se dê de modos muito diferentes nos diversos lugares do mundo. Dirão que tais normas não são universais por não serem aceitas por absolutamente todas as pessoas? Direi que o são por serem aceitas em toda parte. Uma espécie de universalidade não cancela a outra, exatamente como um sentido de uma palavra não impede outro. E será que normas universais tão abundantes não nos permitem falar de um direito natural institucional?
Em todos os séculos, o modo mais lógico e bem ordenado de pensar o direito natural consistiu em dividir as suas normas em primeiros princípios e consequências dos primeiros princípios. Se isso foi possível em relação às mais cerebrinas formulações do direito universal, por que não o seria no tocante à formulação institucional dele? A divisão nada mais é que um expediente lógico empregado para permitir uma concepção mais clara e, por ela, a realização das tarefas precípuas que cabem ao direito natural.
“Em todo sistema moral que encontrei até o dia de hoje, sempre percebi que o autor utiliza o método comum de arrazoamento, de modo a estabelecer a existência de um Deus ou a tecer observações sobre assuntos humanos, durante algum tempo e, então, repentinamente, surpreende-me pela substituição da cópula habitual de proposições ‘é’ ou ‘não é’ por ‘deve’ ou ‘não deve’. Essa mudança imperceptível tem drásticas consequências, posto que 'deve' ou 'não deve' expressa uma relação ou afirmação nova, que deveria ser observada e explicada, assim como uma razão deveria ser fornecida para o que parece inconcebível, a saber: como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente distintas” (HUME, David. Treatise of human nature. Oxford: Oxford University Press, 2000. Livro III, 1, seção 1) .
A história desse argumento, de sua origem na obra de Hume até o dia de hoje, é tão espantosa quanto a das doutrinas do direito natural que o antecederam sem jamais terem aventado tal objeção. Espantosa porque, do ponto de vista do pensador hodierno que se debruça sobre o debate de ideias do passado, é difícil compreender como algo tão básico tenha sido omitido por tanto tempo. Mas não é menos difícil aquilatar como, após formulado, o argumento da falácia foi adotado ou rejeitado sempre de modo peremptório, como se destruísse totalmente ou sequer arranhasse a superfície de qualquer das concepções morais possíveis.
Só um pequeno número de pensadores analisou o argumento de Hume em profundidade, sem o rejeitar totalmente ou sustentar a sua aplicação a todas as doutrinas morais. Curiosamente, o próprio Hume parece ter sido um deles, na medida em que, em seguida à formulação do argumento, escreveu: “Estou persuadido de que a pequena atenção dispensada à transição de 'é' ou 'não é' para 'deve' ou 'não deve' bastaria para subverter todos os sistemas vulgares de moral e nos levar a reconhecer que a distinção entre vício e virtude não se funda meramente na relação entre objetos, nem é percebida pela razão” (idem).
Com essa última afirmação, Hume indicou que nem todos os sistemas morais incorrem na falácia naturalista, mas apenas aqueles que denominou “vulgares”, isto é, apenas os sistemas que seguem o "arrazoamento comum". Com base no contexto, portanto, a crítica dos sistemas morais falaciosos parece dirigir-se não a todos os sistemas possíveis ou em vigor nos povos e sim a ordenamentos concebidos com base no arrazoamento comum.
Embora, na época de Hume, a maioria dos sistemas com essas características se baseasse na lei natural,do modo como formulada, a falácia não foi atrelada ao direito natural, como mais tarde ela foi interpretada. Por exemplo, um positivista que concebe o dever a partir de uma norma fundamental quase sempre supõe que esta é imperativa, quando tal interpretação não é a única possível, o que torna a sua concepção vulnerável à falácia. Se a norma fundamental não for imperativa, nosso positivista não estará a explicar, de qualquer maneira, a origem das proposições do dever a partir da norma (ou dever) fundamental. Isso porque nem toda norma é, em si mesma ou gramaticalmente, imperativa. O que assegura imperatividade à norma é a interpretação que lhe atribuímos e não a sua formulação gramatical. Por exemplo, do ponto de vista gramatical, a norma “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” não está sequer formulada no modo imperativo. Não diz: “Deves amar”, mas “amarás”. Lícito é, pois, interpretá-la como uma espécie de previsão do futuro tanto quanto como a instituição do dever de amar. A escolha entre essas interpretações cabe obviamente ao intérprete. Mesmo quando uma norma contém palavras como deve, “obrigatório” ou “proibido”, não é incomum a imperatividade depender da admissão de um dado não claramente implícito em tais palavras. Tampouco é incomum esse dado ser identificado de diferentes maneiras por diferentes intérpretes.
Se considerarmos que a noção de dever está umbilicalmente ligada à imperatividade, teremos de concluir que essa característica central é muito mais implícita do que explícita. Depende mais da interpretação da norma, que varia de pessoa para pessoa, do que da norma formulada gramaticalmente, que é igual para todos. Por isso, ao partir da norma, o positivista fundamenta-se mais no que as pessoas pensam a respeito dela do que na norma em si mesma. E o mesmo faz o jusnaturalista ao partir de Deus ou da conduta humana: na verdade, ele extrai normas do que as pessoas pensam acerca de Deus ou do homem.
Nesse nível fundamental, não há diferença metodológica relevante entre as duas grandes escolas do pensamento jusfilosófico. O positivista concebe o dever a partir do que as pessoas pensam a respeito da norma, e o jusnaturalista, a partir do que elas pensam sobre a conduta humana. Em ambos os casos, partem de padrões de interpretação adotados em maior ou menor medida, os quais não podem ser descritos sem algum grau de imprecisão.
Os positivistas alegarão que a sua doutrina é superior ao jusnaturalismo, porque a norma, da qual eles partem, é imperativa, ao passo que a conduta humana não o é. Dirão que, com isso, eles derivam as normas jurídicas do que já é uma norma (fundamental), enquanto os jusnaturalistas derivam normas do que não o é. Duas objeções podem ser postas a esse argumento. Primeiramente, os positivistas não partem de toda ou de qualquer norma, mas do que Kelsen e Hart denominam norma fundamental ou de reconhecimento. Só assim eles são capazes de resolver a petição de princípio implícita na concepção de que o ordenamento jurídico é válido por ser produzido da maneira prescrita por ele próprio. A norma fundamental é invocada, exatamente, para superar essa dificuldade. Ela é entendida como situada fora do ordenamento. Assim, para os positivistas, o ordenamento passa a ser produzido do modo previsto na norma fundamental e não do modo previsto por ele próprio.
O problema é que esse modo de ver as coisas afasta uma petição de princípio e cria uma contradição: afasta a justificação do ordenamento a partir dele próprio, mas introduz uma ideia metafísica (a norma fundamental exterior ao ordenamento real) a fim de eliminar outra ideia metafísica (o direito natural). Pensamos que isso é não resolver o problema da fundamentação racional do direito.
A outra objeção que pode ser oposta ao argumento positivista é a de que o direito natural não tem como foco toda e qualquer conduta humana, mas apenas aquela que se reveste de caráter obrigatório. Alguém pode sentir-se surpreso com a afirmação da existência de condutas que, por si sós, se revistam de obrigatoriedade. Existe de fato uma espécie de comportamento obrigatório? Devemos reconhecer, desde logo, que nem toda conduta humana é obrigatória. A maior parte delas não o é. Porém algumas condutas revestem-se de obrigatoriedade. É o caso do costume e das praxes institucionais, que sempre foram reconhecidos explícita ou implicitamente como fontes do direito. Tanto o costume como a praxe são práticas reiteradas, por isso mesmo concebidas como obrigatórias. Assim, embora constituam práticas, o costume e a praxe não são menos imperativos do que a norma. É nessas condutas dotadas de imperatividade que o jusnaturalismo de boa estirpe fundamenta o dever e o direito. Claro que, com isso, ele faz o dever descansar no mundo do ser (em práticas sociais empíricas), porém não de modo falacioso.
Vemos, por isso, que o argumento da falácia não pode ser aplicado apenas ao jusnaturalismo ou, de modo indiscriminado, a todas as correntes do direito natural e do positivismo. O argumento só é bem utilizado com consideração dos detalhes de cada caso e de cada teoria ao qual se pretende aplicá-lo. Por exemplo, o argumento é corretamente aplicado às doutrinas que estendem o direito natural a toda a realidade, como se fosse um constituinte do mundo humano e não humano, como é o caso da clássica definição de Ulpiano, segundo a qual jus naturale é aquele que o homem compartilha com os animais.
Não há direito algum extensivo a toda a natureza. Mesmo assim, existe um direito natural que concebe corretamente a conduta humana como normativa. A ideia que defenderei, nesta série, é de que esse direito pode ser formulado de modo particularmente adequado ao tempo atual a partir das instituições sociais. A meu ver, a enunciação mais consistente do direito natural é a que o surpreende no funcionamento concreto das instituições, como exporei em outros textos.
Por ora, devo demonstrar com a maior precisão possível a estrutura lógica da noção de direito natural a que me refiro, isto é, do direito natural das instituições. Para isso, partirei do que ficou assentado no texto anterior, vale dizer, de que existe uma natureza humana, embora ela constitua um conceito problemático. Esta particular conclusão é, a meu ver, a mais relevante para a decisão da pendência a respeito do direito natural, embora não seja suficiente para estabelecer todos os contornos desse direito.
Não retornarei à demonstração da natureza humana desenvolvida no texto anterior. Tê-la-ei por assentada ou, ao menos, por admissível, a fim de passar ao ponto seguinte do meu arrazoado, a saber: à orientação de todo direito ao correto. Esse ponto foi estabelecido, de modo bastante aceitável, por Robert Alexy no trecho de sua obra O argumento a partir da injustiça, em que lemos:
“O argumento a partir da correção [...] afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individualmente consideradas quanto o sistema legal como um todo pressupõem a ideia de correção. Um sistema de normas que não pressupõe tal ideia, de maneira explícita ou implícita, não é simplesmente jurídico. Sob esse ponto de vista, a exigência de correção funciona como um critério de classificação. Sistemas jurídicos que formulam tal exigência, mas não a satisfazem são defeituosos [...] Por outro lado, a exigência funciona como critério de qualificação no tocante às normas e decisões jurídicas individualmente consideradas, que se tornam defeituosas quando não formulam ou não satisfazem a exigência de correção” (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 35-36).
E em outro lugar: “A exigência de correção implica a de justificação. Essa exigência não se limita à justificação de uma decisão em termos de qualquer moralidade que permita considerar certa a decisão. Implica a correção da decisão em termos de uma moralidade justificável e, por isso, correta. A conexão necessária entre direito e moral correta é estabelecida pelo fato de a demanda de correção incluir a de correção moral [...] Esse é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica [da norma ou do ordenamento]” (idem. p. 78-79).
Não existe direito onde não vigore o ideal de entender e aplicar suas normas corretamente. A concepção positivista de um sistema de normas que repousam num postulado jurídico fundamental (basic rule) funciona com base no modo de criação das normas (umas a partir das outras). Para ela, direito é o que é criado dessa maneira. O problema é que essa concepção repousa num conceito dogmático de correção. É como se o positivismo fosse correto (satisfizesse o critério da correção) pelo simples fato de o postulado da criação de umas normas em conformidade com outras ser observado. Porém, o próprio postulado pode ser aplicado de modo correto ou incorreto, o que o positivismo despreza, pois considera dogmaticamente correto o seu modo de conceber a nomogênese. Seria melhor afirmar e manter que o caráter jurídico de uma norma ou sistema é garantido pela soma de método de criação e correção. Assim como a aplicação do primeiro critério tem de ser constantemente aferida, o mesmo se passa com o último.
Quero afirmar, com isso, que o direito não é simplesmente a norma, mas a norma tomada de maneira tal que dela derivem interpretações e aplicações corretas. Reencontramos, aqui, a assertiva de Miguel Reale: “O direito é a sua interpretação” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. Parte II, Título X, Cap. XXXVIII, p. 597), porém a reformulamos para que afirme uma que a norma não é ela própria, nem simplesmente a sua interpretação, mas as suas interpretações corretas.
O pressuposto fundamental da interpretação correta não é a letra, mas a recta ratio da norma. Por isso, o direito é, sem dúvida, a norma e a sua interpretação, mas uma e outra entendidas à luz da recta ratio, do espírito ou núcleo doador de sentido às interpretações corretas.
Somemos esta conclusão à que deixáramos antes estabelecida, isto é, à conclusão de que existe uma natureza humana. Se isso for verdadeiro, a recta ratio do ordenamento há de ser consentânea com a natureza humana. E, se a correção houver de ser entendida ao mesmo tempo como conceito lógico e moral, como Alexy exige, podemos utilizar tal critério não só para negar a existência da norma extremamente injusta, mas também para negar perfeição às normas injustas em todos os outros graus. Não é isso que Alexy sugere ao escrever que a “correção moral é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica” (idem. p. 79)?
O mesmo princípio que permite afirmar que a injustiça extrema é antijurídica fundamenta a proposição de que a injustiça em qualquer outro grau é causa de imperfeição jurídica. A última afirmação é um simples corolário da outra. Deve, portanto, segui-la. E, se as duas afirmativas são igualmente corretas, segue-se que o direito natural tende tanto à eliminação da injustiça extrema quanto à correção possível da injustiça em todos os outros graus. O desafio do jurista é encontrar o método que permite a melhor realização possível de uma e de outra tarefa.
Se adotarmos a concepção institucional do direito natural, as duas tarefas serão grandemente facilitadas. Perceberemos que existem instituições, como a ONU e seus organismos, cuja atuação universal não se limita à edição de normas contrárias à injustiça extrema, como as aplicadas ao genocídio e outros crimes contra a humanidade, mas também de normas tendentes a combater uma infinidade de injustiças muito menores. Essas normas são universalmente aceitas, embora sua aplicação se dê de modos muito diferentes nos diversos lugares do mundo. Dirão que tais normas não são universais por não serem aceitas por absolutamente todas as pessoas? Direi que o são por serem aceitas em toda parte. Uma espécie de universalidade não cancela a outra, exatamente como um sentido de uma palavra não impede outro. E será que normas universais tão abundantes não nos permitem falar de um direito natural institucional?
Em todos os séculos, o modo mais lógico e bem ordenado de pensar o direito natural consistiu em dividir as suas normas em primeiros princípios e consequências dos primeiros princípios. Se isso foi possível em relação às mais cerebrinas formulações do direito universal, por que não o seria no tocante à formulação institucional dele? A divisão nada mais é que um expediente lógico empregado para permitir uma concepção mais clara e, por ela, a realização das tarefas precípuas que cabem ao direito natural.
domingo, 30 de agosto de 2015
Filosofia e Direito (37): A Natureza Humana
Ao longo da História Ocidental, o direito natural sempre foi um dos mais importantes fundamentos da ética. Só nos últimos três séculos, as críticas à indeterminação do jus naturale fez surgir o anseio de uma fundamentação imanente do direito, o que, em não poucos casos, levou à negação pura e simples do direito natural e, em outros, à identificação parcial dele com o positivo.
Um dos porta-vozes mais antigos da identificação dos direitos natural e positivo foi Thomas Hobbes, que escreveu, numa obra clássica: “Toda lei pode ser dividida, primeiramente, em função da diversidade de seus autores, em divina e humana. A divina, por sua vez, se bifurca em natural (ou moral) e positiva, segundo os modos pelos quais Deus deu a conhecer sua vontade aos homens” (HOBBES, Thomas. De cive. Cap. 14, 4). Essa é a divisão clássica do direito. Porém, após tê-la estabelecido, Hobbes fez a lei natural coincidir parcialmente com a positiva ao afirmar que “a lei da natureza nos ordena observar todas as leis civis, pois nos obriga a obedecer-lhes antes mesmo de conhecermos o que nos será ordenado [...] Disso se segue que nenhuma lei civil [...] pode ser contrária à lei da natureza” (idem. Cap. 14, 10).
Em Liberdade e direito, publicado em 2000, citei esse texto de Hobbes como um dos primeiros casos de limitação posta pelo direito positivo ao conteúdo da lei natural na História (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 374-375). Mas, se o pioneirismo de Hobbes nesse sentido é inegável, é necessário que nos detenhamos no modo como ele pensou que o direito positivo é capaz de limitar o conteúdo possível do direito natural.
Esse modo está claramente exposto na sua obra: “Embora a lei da natureza proíba o roubo, o adultério etc., se a lei civil nos ordenar invadir algo, a invasão não constituirá roubo, adultério etc.” (HOBBES, Thomas. Ob. cit. Cap. 14, 10). Nosso autor fornece um exemplo histórico claro do que afirma: “Quando as leis dos antigos lacedemônios permitiam que os seus jovens tomassem os bens de outras pessoas, elas na verdade ordenavam que aqueles bens não fossem considerados de outras pessoas, mas dos jovens que os deviam tomar” (idem).
Hobbes não esvazia, nem retira autoridade ao direito natural, apenas fixa, de maneira nova, a autoridade do direito positivo em relação à dele. Nada a admirar, se o objetivo geral de Hobbes era afirmar o poder absoluto do rei. Na doutrina tradicional da Igreja, o conteúdo do direito positivo era fixado (e restringido) em função do direito natural. Hobbes propôs uma modificação. Propôs que as disposições do direito positivo fossem utilizadas não para restringir, mas para esclarecer o sentido do direito natural em situações específicas.
Notem que, em momento nenhum, o consagrado filósofo afirmou que o direito dos lacedemônios ou qualquer outro povo impõe mudanças no direito natural. Este continua a ser o que sempre foi, independentemente de as leis positivas dos povos afirmarem isto ou aquilo. Porém, segundo Hobbes, devemos excluir a possibilidade de conflito entre as condutas impostas por lei e o direito natural.
Em poucas palavras, Hobbes quis sustentar que “o direito civil inteiro é natural”. Foi a conclusão que extraí do De cive em meu livro publicado em 2000 (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 375) e que continuo a extrair ainda hoje, pois não me parece que o teórico do absolutismo tenha pretendido outra coisa. Porém, naquela ocasião, citei Hobbes como ponto de partida para a reflexão que pretendia realizar sobre o conceito de natureza humana. Parecia-me, então, como ainda me parece, que a noção de natureza humana, tantas vezes citada como indeterminável, podia ser estabelecida com base nas emoções. Por isso afirmei que “todos os atos humanos são movidos por emoções. A criação do direito não é exceção. Também ela é causada por emoções. Como as emoções são fenômenos naturais, todo direito é inegavelmente natural” (idem).
A intenção dessas considerações era dupla: por um lado, era admitir que a tendência da filosofia recente a negar a determinação necessária do direito positivo pelo natural podia ser aceita; por outro lado, desejava indicar que a natureza humana (e o direito natural) podia(m) ser concebida(os) com base nas emoções instintivas. Porém, a associação dos atos humanos aos instintos não fornece mais que um acesso parcial ao conteúdo da natureza humana. Se assentasse apenas nas emoções básicas, a natureza do homem seria assimilada à do animal, o que não é obviamente apropriado. O homem não é só instinto. Sua natureza é também racional. Quando afirmamos que o direito positivo deriva do natural, não estamos a propor que ambos emanam do instinto, mas da razão. A pedra de toque do direito não é a irracionalidade, mas o modo racional de dar voz às demandas da natureza humana. O que quis enfatizar, em 2000, e me parece devido reafirmar hoje, é apenas que o conteúdo da nossa natureza, que a razão reivindica, é instintivo.
Essa concepção de natureza humana simultaneamente racional e instintiva, a que cheguei em Liberdade e direito, permite não alargar a identificação do direito positivo com o natural proposta por Hobbes, a ponto de eliminar a dicotomia entre eles. Se a nossa natureza fosse só instintiva, a identificação entre os direitos natural e humano seria, de fato, total, e a dicotomia restaria eliminada. Porém, ao mesmo tempo em que é instintiva, a natureza do homem é também racional, com a única ressalva de que, no homem, em regra, a razão serve o impulso e não o contrário.
Dirão que derrubo o cânon cristão segundo o qual a razão inclina o homem às coisas espirituais e eternas, não às instintivas e terrenas. Mas só o nego aparentemente. No fundo, não há negação alguma. Apenas tomo a inclinação racional como uma segunda natureza (natura secunda), que coexiste ou pode coexistir com a natureza terrena do homem, a depender da orientação da sua vida. Creio ser esse o sentido do ensinamento cristão de que o homem animal e carnal pode "nascer de novo", o que não a implica a eliminação da sua natureza animal e terrena ou a redução dela a algo menos que uma natureza governante, mas a coexistência da natureza instintiva com a natureza segunda, pela qual o homem passa a distinguir-se ainda mais do animal.
Nem todas essas conclusões foram lançadas em Liberdade e direito, por não caberem numa tese doutoral. Mas, certamente, a investigação da natureza e da ordem ética que empreendi naquela obra permitiu-me concluir que o direito natural e o positivo não podem coincidir totalmente: se “pudéssemos estabelecer o conteúdo do sistema ético de referência de uma sociedade, identificando-o, por exemplo, com a hierarquia de valores adotada pela lei, ainda assim restariam grandes dificuldades teóricas para a doutrina do direito natural. Se o sistema de referência fosse a lei ou os valores da lei, então uma norma seria natural na exata medida em que fosse positiva. Sob este ponto de vista, direito natural e direito positivo coincidiriam completamente” (idem. pp. 379-380).
A linguagem condicional do parágrafo acima indica discordância com a tese da coincidência total dos direitos natural e positivo. Já por isso, a ideia a que cheguei sobre as reivindicações de autonomia radical do direito positivo frente ao natural foi semelhante, mas não idêntica à de Hobbes. Foi a ideia de que os dois coincidem em parte, sem que o direito natural determine necessariamente o conteúdo possível do direito humano.
Essa conclusão cria o problema consistente em estabelecer o sentido que pode ter um direito positivo coincidente, ainda que em parte, com o natural. Entendemos que o direito natural imponha limites à conduta humana. Compreendemos também as demandas que um direito positivo independente do natural coloca. Mas temos dificuldade em entender o porquê, o sentido final, de um direito positivo que coincide com o natural.
Este o dilema em que desemboca toda reflexão sazonada sobre o papel do direito natural num mundo que parece pertencer, cada vez mais completamente, à positividade, ao construído, vale dizer, ao que é posto pelo homem e encontra nas coisas humanas o seu sentido exclusivo. Talvez o melhor caminho para afirmar o papel do direito natural, num mundo reduzido a artefato do homem, seja associar e até derivar o direito natural das instituições. Mas como fazê-lo sem afastar totalmente a possibilidade de as instituições, na historicidade e diversidade que as tipificam, virem a aplicar um direito universal?
Vemos quanto a ideia de um direito universal e anterior ao homem rompe o esquema reducionista consistente em pensar, todo o tempo e de todas as maneiras, que o único sentido real de um mundo cujos sentidos possíveis são tantos é o sentido humano. Mas, para alcançar o direito incoercível de afirmar valores universais, em meio a tanto relativismo e positivismo quanto hoje vigora, é preciso encontrar uma justificação para o direito anterior ao homem e não apenas o professar.
Pareceu-me e ainda me parece que o melhor caminho para isso é partir de um conceito claro de natureza humana como conjunto de impulsos instintivos, cuja satisfação é buscada pela razão. Esse foi o conceito a que cheguei em Liberdade e direito ao reconhecer que “as características mais palpáveis da essência humana são físicas. O homem é um animal com duas pernas, um cérebro, um coração, dois pulmões. Há muito pouco conteúdo ético na essência do humano” (idem. p. 377).
Devo admitir que, ao escrever tais palavras, em 2000, eu tinha em vista uma concepção clara e distinta de natureza humana, mas não vislumbrava como ela podia regular a aplicação de normas tão numerosas e às vezes contraditórias quanto as que constituem os ordenamentos jurídicos do nosso tempo. Permanecia, ao contrário, cético quanto à possibilidade de uma regulação tão ampla da aplicação das normas com base no conceito de natureza humana. Parecia-me que tal pretensão era mais uma das ilusões com que nos divertimos ou assustamos.
Nesse estado de consciência, publiquei A função social do lucro (MORAIS, Luís Fernando Lobão. São Paulo: Themis, 2008), em que expus minhas dúvidas sobre a eficácia não só do conceito de natureza humana, mas também dos princípios e regras que dele dimanam e com ele formam o conjunto amplíssimo de normas que denominamos ordenamento jurídico. Na verdade, eu levava tão longe a prerrogativa de duvidar que duvidava até mesmo da possibilidade de as normas do ordenamento formarem um sistema. E a razão principal do duvidar, que eu entretinha naquele tempo, não eram as oposições de princípios jurídicos, nem os conflitos, às vezes inconciliáveis, de regras com que nos deparamos ao trabalhar com o direito, mas a desconexão ainda mais fundamental que me parecia subsistir entre o conceito de natureza humana e a aplicação das normas do ordenamento.
A meditação contínua sobre a justiça levou-me, porém, a mudar de opinião. O objetivo destes textos sobre Filosofia e Direito é exatamente mostrar em que sentido se deu a mudança. É mostrar que a falta de “conteúdo ético na essência do humano” a que me referi, em 2000, é suprida pelas instituições (ou pelo costume, nas sociedades em que as instituições não se desenvolveram suficientemente), de acordo com as exigências cambiáveis de cada época, com vistas à satisfação da natureza física do ser humano. E o instrumento por excelência que permite suprir tal falta é a razão.
Sei que, a alguns, esse conceito de natureza humana ao mesmo tempo racional e instintiva parecerá pequeno e acanhado demais. Talvez realmente o seja, mas a pedra de toque da questão do direito, para mim, não é ser pequeno ou grandioso. É funcionar. Esse é o ponto de honra, o alvo a ser atingido em toda discussão jurídica. A missão do direito é pacificar as relações sociais e resolver os conflitos entre as pessoas, não ser grandioso.
Por tudo isso, o fato de sermos capazes de construir um conceito funcional de natureza humana é significativo, pois dele podemos passar a uma concepção de direito natural que nada tem de sonhada. É tal concepção utópica? Talvez, se por utopia entendermos algo que não existe (total ou parcialmente), mas pode vir a existir e até dirigir a construção do que não existe. Nesse sentido, a utopia distingue-se da ideologia, que se orienta pelo que não existe, nem pode vir a existir.
Constituímos, assim, uma concepção universal da justiça: aquela segundo a qual é justo e conveniente, para o homem, satisfazer as suas emoções básicas. Essa concepção nos fornece o sentido geral do direito. Todo o direito, não só parte dele, tem tal sentido. Todo o direito visa a favorecer e a otimizar a satisfação das necessidades instintivas do ser humano, em situações dotadas de diversidade tal que chegam a encobrir o sentido geral das normas que as regulam.
Claro que a multiplicidade das situações e dos desafios que a vida coloca faz surgirem outras ideias e ideais axiológicos ao lado daquele posto pela natureza humana. Ideias e ideais que constituem sentidos novos e particulares de justiça. Porém, nem as ideias, nem os ideais ou os sentidos de justiça que eles engendram revogam a noção universal que queremos apresentar.
Os sentidos da justiça podem ser acomodados em duas grandes categorias. De um lado, ficam os sentidos utópicos e ideológicos; de outro, os sentidos concretos dela. As constelações de valores incapazes de satisfazer, de maneira estável, as emoções básicas do ser humano chamam-se utópicas ou ideológicas. Os valores capazes de satisfazê-las são, ao contrário, concretos.
Em toda sociedade, existem tanto concepções abstratas (utópicas e ideológicas) quanto concretas da justiça. Arriscaria afirmar, até mesmo, que as concepções ideológicas podem tornar-se concretas ao se transformarem e evoluírem. Nenhuma doutrina está vaticinada a ser, para sempre, ideológica, assim como nenhuma está livre do risco de perder a condição concreta após tê-la adquirido. É que essas condições são essencialmente cambiáveis. É que elas são tão provisórias quanto todas as outras coisas humanas.
Houve um tempo em que a religião chegou a ser considerada quase sinônimo de ideologia, e a política, de atividade libertária. Não nos podemos furtar a declarar quanto essa apresentação é indigna dos fatos, quanto a História da Religião é pródiga em exemplos de doutrinas ideológicas que geraram concepções concretas e quanto a História Política fornece casos de concepções concretas que se fizeram utópicas ou se perderam em indecifrável ideologia!
Um dos porta-vozes mais antigos da identificação dos direitos natural e positivo foi Thomas Hobbes, que escreveu, numa obra clássica: “Toda lei pode ser dividida, primeiramente, em função da diversidade de seus autores, em divina e humana. A divina, por sua vez, se bifurca em natural (ou moral) e positiva, segundo os modos pelos quais Deus deu a conhecer sua vontade aos homens” (HOBBES, Thomas. De cive. Cap. 14, 4). Essa é a divisão clássica do direito. Porém, após tê-la estabelecido, Hobbes fez a lei natural coincidir parcialmente com a positiva ao afirmar que “a lei da natureza nos ordena observar todas as leis civis, pois nos obriga a obedecer-lhes antes mesmo de conhecermos o que nos será ordenado [...] Disso se segue que nenhuma lei civil [...] pode ser contrária à lei da natureza” (idem. Cap. 14, 10).
Em Liberdade e direito, publicado em 2000, citei esse texto de Hobbes como um dos primeiros casos de limitação posta pelo direito positivo ao conteúdo da lei natural na História (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 374-375). Mas, se o pioneirismo de Hobbes nesse sentido é inegável, é necessário que nos detenhamos no modo como ele pensou que o direito positivo é capaz de limitar o conteúdo possível do direito natural.
Esse modo está claramente exposto na sua obra: “Embora a lei da natureza proíba o roubo, o adultério etc., se a lei civil nos ordenar invadir algo, a invasão não constituirá roubo, adultério etc.” (HOBBES, Thomas. Ob. cit. Cap. 14, 10). Nosso autor fornece um exemplo histórico claro do que afirma: “Quando as leis dos antigos lacedemônios permitiam que os seus jovens tomassem os bens de outras pessoas, elas na verdade ordenavam que aqueles bens não fossem considerados de outras pessoas, mas dos jovens que os deviam tomar” (idem).
Hobbes não esvazia, nem retira autoridade ao direito natural, apenas fixa, de maneira nova, a autoridade do direito positivo em relação à dele. Nada a admirar, se o objetivo geral de Hobbes era afirmar o poder absoluto do rei. Na doutrina tradicional da Igreja, o conteúdo do direito positivo era fixado (e restringido) em função do direito natural. Hobbes propôs uma modificação. Propôs que as disposições do direito positivo fossem utilizadas não para restringir, mas para esclarecer o sentido do direito natural em situações específicas.
Notem que, em momento nenhum, o consagrado filósofo afirmou que o direito dos lacedemônios ou qualquer outro povo impõe mudanças no direito natural. Este continua a ser o que sempre foi, independentemente de as leis positivas dos povos afirmarem isto ou aquilo. Porém, segundo Hobbes, devemos excluir a possibilidade de conflito entre as condutas impostas por lei e o direito natural.
Em poucas palavras, Hobbes quis sustentar que “o direito civil inteiro é natural”. Foi a conclusão que extraí do De cive em meu livro publicado em 2000 (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Ob. cit. p. 375) e que continuo a extrair ainda hoje, pois não me parece que o teórico do absolutismo tenha pretendido outra coisa. Porém, naquela ocasião, citei Hobbes como ponto de partida para a reflexão que pretendia realizar sobre o conceito de natureza humana. Parecia-me, então, como ainda me parece, que a noção de natureza humana, tantas vezes citada como indeterminável, podia ser estabelecida com base nas emoções. Por isso afirmei que “todos os atos humanos são movidos por emoções. A criação do direito não é exceção. Também ela é causada por emoções. Como as emoções são fenômenos naturais, todo direito é inegavelmente natural” (idem).
A intenção dessas considerações era dupla: por um lado, era admitir que a tendência da filosofia recente a negar a determinação necessária do direito positivo pelo natural podia ser aceita; por outro lado, desejava indicar que a natureza humana (e o direito natural) podia(m) ser concebida(os) com base nas emoções instintivas. Porém, a associação dos atos humanos aos instintos não fornece mais que um acesso parcial ao conteúdo da natureza humana. Se assentasse apenas nas emoções básicas, a natureza do homem seria assimilada à do animal, o que não é obviamente apropriado. O homem não é só instinto. Sua natureza é também racional. Quando afirmamos que o direito positivo deriva do natural, não estamos a propor que ambos emanam do instinto, mas da razão. A pedra de toque do direito não é a irracionalidade, mas o modo racional de dar voz às demandas da natureza humana. O que quis enfatizar, em 2000, e me parece devido reafirmar hoje, é apenas que o conteúdo da nossa natureza, que a razão reivindica, é instintivo.
Essa concepção de natureza humana simultaneamente racional e instintiva, a que cheguei em Liberdade e direito, permite não alargar a identificação do direito positivo com o natural proposta por Hobbes, a ponto de eliminar a dicotomia entre eles. Se a nossa natureza fosse só instintiva, a identificação entre os direitos natural e humano seria, de fato, total, e a dicotomia restaria eliminada. Porém, ao mesmo tempo em que é instintiva, a natureza do homem é também racional, com a única ressalva de que, no homem, em regra, a razão serve o impulso e não o contrário.
Dirão que derrubo o cânon cristão segundo o qual a razão inclina o homem às coisas espirituais e eternas, não às instintivas e terrenas. Mas só o nego aparentemente. No fundo, não há negação alguma. Apenas tomo a inclinação racional como uma segunda natureza (natura secunda), que coexiste ou pode coexistir com a natureza terrena do homem, a depender da orientação da sua vida. Creio ser esse o sentido do ensinamento cristão de que o homem animal e carnal pode "nascer de novo", o que não a implica a eliminação da sua natureza animal e terrena ou a redução dela a algo menos que uma natureza governante, mas a coexistência da natureza instintiva com a natureza segunda, pela qual o homem passa a distinguir-se ainda mais do animal.
Nem todas essas conclusões foram lançadas em Liberdade e direito, por não caberem numa tese doutoral. Mas, certamente, a investigação da natureza e da ordem ética que empreendi naquela obra permitiu-me concluir que o direito natural e o positivo não podem coincidir totalmente: se “pudéssemos estabelecer o conteúdo do sistema ético de referência de uma sociedade, identificando-o, por exemplo, com a hierarquia de valores adotada pela lei, ainda assim restariam grandes dificuldades teóricas para a doutrina do direito natural. Se o sistema de referência fosse a lei ou os valores da lei, então uma norma seria natural na exata medida em que fosse positiva. Sob este ponto de vista, direito natural e direito positivo coincidiriam completamente” (idem. pp. 379-380).
A linguagem condicional do parágrafo acima indica discordância com a tese da coincidência total dos direitos natural e positivo. Já por isso, a ideia a que cheguei sobre as reivindicações de autonomia radical do direito positivo frente ao natural foi semelhante, mas não idêntica à de Hobbes. Foi a ideia de que os dois coincidem em parte, sem que o direito natural determine necessariamente o conteúdo possível do direito humano.
Essa conclusão cria o problema consistente em estabelecer o sentido que pode ter um direito positivo coincidente, ainda que em parte, com o natural. Entendemos que o direito natural imponha limites à conduta humana. Compreendemos também as demandas que um direito positivo independente do natural coloca. Mas temos dificuldade em entender o porquê, o sentido final, de um direito positivo que coincide com o natural.
Este o dilema em que desemboca toda reflexão sazonada sobre o papel do direito natural num mundo que parece pertencer, cada vez mais completamente, à positividade, ao construído, vale dizer, ao que é posto pelo homem e encontra nas coisas humanas o seu sentido exclusivo. Talvez o melhor caminho para afirmar o papel do direito natural, num mundo reduzido a artefato do homem, seja associar e até derivar o direito natural das instituições. Mas como fazê-lo sem afastar totalmente a possibilidade de as instituições, na historicidade e diversidade que as tipificam, virem a aplicar um direito universal?
Vemos quanto a ideia de um direito universal e anterior ao homem rompe o esquema reducionista consistente em pensar, todo o tempo e de todas as maneiras, que o único sentido real de um mundo cujos sentidos possíveis são tantos é o sentido humano. Mas, para alcançar o direito incoercível de afirmar valores universais, em meio a tanto relativismo e positivismo quanto hoje vigora, é preciso encontrar uma justificação para o direito anterior ao homem e não apenas o professar.
Pareceu-me e ainda me parece que o melhor caminho para isso é partir de um conceito claro de natureza humana como conjunto de impulsos instintivos, cuja satisfação é buscada pela razão. Esse foi o conceito a que cheguei em Liberdade e direito ao reconhecer que “as características mais palpáveis da essência humana são físicas. O homem é um animal com duas pernas, um cérebro, um coração, dois pulmões. Há muito pouco conteúdo ético na essência do humano” (idem. p. 377).
Devo admitir que, ao escrever tais palavras, em 2000, eu tinha em vista uma concepção clara e distinta de natureza humana, mas não vislumbrava como ela podia regular a aplicação de normas tão numerosas e às vezes contraditórias quanto as que constituem os ordenamentos jurídicos do nosso tempo. Permanecia, ao contrário, cético quanto à possibilidade de uma regulação tão ampla da aplicação das normas com base no conceito de natureza humana. Parecia-me que tal pretensão era mais uma das ilusões com que nos divertimos ou assustamos.
Nesse estado de consciência, publiquei A função social do lucro (MORAIS, Luís Fernando Lobão. São Paulo: Themis, 2008), em que expus minhas dúvidas sobre a eficácia não só do conceito de natureza humana, mas também dos princípios e regras que dele dimanam e com ele formam o conjunto amplíssimo de normas que denominamos ordenamento jurídico. Na verdade, eu levava tão longe a prerrogativa de duvidar que duvidava até mesmo da possibilidade de as normas do ordenamento formarem um sistema. E a razão principal do duvidar, que eu entretinha naquele tempo, não eram as oposições de princípios jurídicos, nem os conflitos, às vezes inconciliáveis, de regras com que nos deparamos ao trabalhar com o direito, mas a desconexão ainda mais fundamental que me parecia subsistir entre o conceito de natureza humana e a aplicação das normas do ordenamento.
A meditação contínua sobre a justiça levou-me, porém, a mudar de opinião. O objetivo destes textos sobre Filosofia e Direito é exatamente mostrar em que sentido se deu a mudança. É mostrar que a falta de “conteúdo ético na essência do humano” a que me referi, em 2000, é suprida pelas instituições (ou pelo costume, nas sociedades em que as instituições não se desenvolveram suficientemente), de acordo com as exigências cambiáveis de cada época, com vistas à satisfação da natureza física do ser humano. E o instrumento por excelência que permite suprir tal falta é a razão.
Sei que, a alguns, esse conceito de natureza humana ao mesmo tempo racional e instintiva parecerá pequeno e acanhado demais. Talvez realmente o seja, mas a pedra de toque da questão do direito, para mim, não é ser pequeno ou grandioso. É funcionar. Esse é o ponto de honra, o alvo a ser atingido em toda discussão jurídica. A missão do direito é pacificar as relações sociais e resolver os conflitos entre as pessoas, não ser grandioso.
Por tudo isso, o fato de sermos capazes de construir um conceito funcional de natureza humana é significativo, pois dele podemos passar a uma concepção de direito natural que nada tem de sonhada. É tal concepção utópica? Talvez, se por utopia entendermos algo que não existe (total ou parcialmente), mas pode vir a existir e até dirigir a construção do que não existe. Nesse sentido, a utopia distingue-se da ideologia, que se orienta pelo que não existe, nem pode vir a existir.
Constituímos, assim, uma concepção universal da justiça: aquela segundo a qual é justo e conveniente, para o homem, satisfazer as suas emoções básicas. Essa concepção nos fornece o sentido geral do direito. Todo o direito, não só parte dele, tem tal sentido. Todo o direito visa a favorecer e a otimizar a satisfação das necessidades instintivas do ser humano, em situações dotadas de diversidade tal que chegam a encobrir o sentido geral das normas que as regulam.
Claro que a multiplicidade das situações e dos desafios que a vida coloca faz surgirem outras ideias e ideais axiológicos ao lado daquele posto pela natureza humana. Ideias e ideais que constituem sentidos novos e particulares de justiça. Porém, nem as ideias, nem os ideais ou os sentidos de justiça que eles engendram revogam a noção universal que queremos apresentar.
Os sentidos da justiça podem ser acomodados em duas grandes categorias. De um lado, ficam os sentidos utópicos e ideológicos; de outro, os sentidos concretos dela. As constelações de valores incapazes de satisfazer, de maneira estável, as emoções básicas do ser humano chamam-se utópicas ou ideológicas. Os valores capazes de satisfazê-las são, ao contrário, concretos.
Em toda sociedade, existem tanto concepções abstratas (utópicas e ideológicas) quanto concretas da justiça. Arriscaria afirmar, até mesmo, que as concepções ideológicas podem tornar-se concretas ao se transformarem e evoluírem. Nenhuma doutrina está vaticinada a ser, para sempre, ideológica, assim como nenhuma está livre do risco de perder a condição concreta após tê-la adquirido. É que essas condições são essencialmente cambiáveis. É que elas são tão provisórias quanto todas as outras coisas humanas.
Houve um tempo em que a religião chegou a ser considerada quase sinônimo de ideologia, e a política, de atividade libertária. Não nos podemos furtar a declarar quanto essa apresentação é indigna dos fatos, quanto a História da Religião é pródiga em exemplos de doutrinas ideológicas que geraram concepções concretas e quanto a História Política fornece casos de concepções concretas que se fizeram utópicas ou se perderam em indecifrável ideologia!
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