Uma característica do neoateísmo radical dos nossos dias é atribuir-se
tarefas irrealizáveis, ocultando o seu desconhecimento do sentido histórico das
transformações que engendraram a cultura cristã sob a denúncia das contradições
produzidas em dois mil anos de Cristianismo.
Penso
que as críticas do neoaiteísmo só podem ser bem sopesadas se as olharmos do
ponto de vista histórico e que, para isso, é indispensável entendermos como a
civilização cristã substituiu a triunfante cultura gestada na Grécia e em
Roma.
Não
foi pequeno o fascínio exercido por essa cultura em todas as épocas, mas
especialmente nos séculos XIV a XVI, quando as obras artísticas e literárias da
Grécia e de Roma foram maciçamente reestudadas, reproduzidas e disseminadas,
durante o Renascimento e o Humanismo. E os homens daqueles séculos não foram
os únicos a atribuírem valor elevado à Antiguidade: ainda hoje, temos a cultura
clássica em tal estima que é comum associarmos os ramos recentes do
conhecimento a descobertas e intuições da Grécia e de Roma Antigas.
Todavia,
se os méritos da cultura clássica justificam a veneração que lhe devotamos,
que dizer da civilização constituída pelo contato dela com o Cristianismo, que
fez recuar a religião grecorromana e quase extinguir-se o colosso de crenças,
costumes, literatura, Filosofia, História e ciência da Antiguidade Clássica? Nenhum
reconhecimento histórico é tão verdadeiro quanto o de que a força vital do
Cristianismo penetrou a tal ponto no Império Romano e entrecoseu-se com as
culturas ali existentes de tal maneira que o fim da religião pagã e o recuo da
cultura clássica fizeram-se inevitáveis.
Precisamos
acrescentar, aqui, uma distinção: se as tradições mais confiáveis de que
dispomos estiverem corretas, Roma era uma irmã cultural da Grécia. O parentesco
associou aqueles povos estreitamente, muito antes de Roma abraçar a cultura grega.
O mesmo não se passou no caso da cristianização do mundo grecorromano. A
religião judaico-cristã, de origem semítica, vinha de outra cepa. Como tudo o
que emergia de Israel, naquele tempo, ela foi, a princípio, considerada bárbara
pelos romanos. Mesmo assim, virou o altar pagão e derrubou a pirâmide
grecorromana.
Não
é incorreto considerar que o processo que conduziu à substituição da cultura clássica
pela cristã constituiu a maior revolução do conhecimento humano em todos os
tempos. A revolução daquela época só encontrou um termo de comparação à altura muito
tempo depois, com o advento da Revolução Científica. Ainda assim, a transformação
cultural produzida pelo Cristianismo suplanta a científica, senão pelo mérito
intrínseco das façanhas que a constituíram, pelo papel muito mais fundamental reservado
à religião na cultura humana.
Nenhuma
das revoluções do conhecimento até hoje propostas parece à altura dessas duas.
Por isso, é em função do Cristianismo e da ciência que devemos medir os demais avanços
do conhecimento. Consideremos a primeira dessas revoluções. No início da
Modernidade, após mais de um milênio de cultura cristã medieval, a Europa
fervia com aspirações opostas. Primeiro o Renascimento, depois o Humanismo propuseram
o retorno à Antiguidade Clássica. A eles opuseram-se, em parte, os nominalistas
e o luteranos que tinham maiores reservas em relação à herança clássica e pareciam
almejar a superação simultânea da cultura clássica e de suas versões cristianizadas.
A
oposição entre essas correntes de pensamento envolveu a Europa num vórtice que
terminou numa série de guerras. A resolução dos impasses culturais pelo derramamento
de sangue tornou-se então inevitável, o que demonstrou o despreparo de ambos
os lados para resolvê-los por meios pacíficos.
E
a agravar a falta de análise metódica das divergências militava o baixíssimo
teor empírico das filosofias e teologias que se digladiavam. A ideias com
conteúdo empírico tão reduzido quanto o tomismo e o calvinismo faltava o
potencial heurístico necessário para propor soluções alternativas para os
conflitos. Não pode haver descobertas, onde não há observação do que realmente
acontece. Por isso, na Europa embriagada com o vinho da oposição de papistas e
luteranos, tomistas, occkhamistas e calvinistas, não foi possível encontrar
soluções racionais e pacíficas para os antagonismos, de sorte que a
brutalidade acabou invocada como juiz supremo deles.
Claro
que papistas, luteranos e calvinistas, em seus arraiais, cogitavam soluções
científicas para os embates da época. Porém, sacavam-nas do fundo de suas
metafísicas, o que nunca permitiu que qualquer dos lados convencesse os espíritos
lúcidos. Fato é que a História incumbiu-se de sacrificar todas aquelas
soluções, descobertas e provas com a mesma facilidade com que o carrasco põe
termo ao drama do condenado.
Restou-nos
o saldo em lições do triste derramamento de sangue dos séculos XVI e XVII. E, entre
as lições que o passado nos legou a esse respeito, destaca-se uma de cunho eminentemente
epistemológico cujo aprendizado é urgente ainda hoje: não é possível transformar
uma filosofia em ciência ou erigir uma visão teológica em desco-berta empírica
sem produzir desastres. A Filosofia e a Teologia não são disciplinas
heurísticas. Por isso, se por ciência entendermos um saber capaz de realizar
descobertas e fazer avançar o conhecimento, concluiremos que nem a Filosofia,
nem a Teologia são ciências.
Infelizmente,
a lição epistemológica não foi bem assimilada pelos filósofos que, ainda hoje,
tentam extrair descobertas revolucionárias da sua disciplina. Não me refiro aos
filósofos tomistas ou nominalistas, mas aos existencialistas, aos filósofos da
linguagem e aos partidários de outras mil correntes em que o pensamento filosófico
contemporâneo se capilarizou. Refiro-me ao espírito da Filosofia atual como o
cultivamos. Um espírito que se inchou de soberba por causa de mil descobertas nulas
que realizou e propaga, às vezes de si para si e em linguagem ininteligível.
Esse mal sempre acompanhou a Filosofia. Sempre
a levou a perder-se no orgulho causado por descobertas ocas. Que pretenderam
os nominalistas, a não ser revolucionar o conhecimento antigo? Que explica as
extensas e laboriosas críticas deles a todas as partes daquele saber, sem
exceção alguma, a não ser a intenção de alterá-las profundamente? Por que os
nominalistas foram os primeiros em vários séculos a proporem alterações
substanciais na Física aristotélica? No entanto, apesar dos méritos de que se
cobriram e da justa admiração que conquistaram, os nominalistas fracassaram de
modo retumbante nessa missão, tanto quanto outros filósofos tinham fracassado
antes deles e ainda outros falharam, depois, ao tentar revolucionar o
conhecimento com descobertas altamente abstratas e metafísicas.
Ante
tais fatos, é justo perguntar se a Filosofia não tem maior relação com a
linguagem do que com o conteúdo do conhecimento. E se a sua relação mais
estreita com a linguagem do que com os fatos não constituiu um importante motivo
do fracasso das escolas que tentaram revolucionar o conhecimento humano.
Essas
perguntas levam-me a ainda outras: se quisermos encontrar o que de melhor foi
produzido sobre a linguagem, não o devemos buscar nas ciências que se dedicam
a ela e também na Filosofia? Por outro lado, se pretendermos achar o que de
mais relevante pode ser afirmado a respeito do mundo concreto, não devemos
realizar fechar confiadamente os livros de Filosofia e buscá-lo em outra parte?Mais
do que isso, se quisermos aprender sobre o mundo em todas as suas dimensões,
teremos de lançar mão não apenas dos livros de ciência, mas também (e ainda que
a contragosto) dos de Teologia. Pois, se esta não é capaz de produzir
descobertas empíricas, por outro lado, a História demonstra que a Teologia
sempre liderou o processo de adiantamento das culturas e, por meio disso,
influenciou a História. O triunfo da civilização cristã não constitui
demonstração desprezível disso.
Infelizmente,
no hemisfério ocidental, perdemos a consciência que um dia possuímos do
potencial revolucionário da Teologia. Por isso, ao refletir sobre o conhecimento,
é importante nos pormos em busca da consciência perdida. Foi o que tentei
realizar, nos dois primeiros livros que publiquei, nos quais propus que o
Direito tem tanto a lucrar com a proximidade da Teologia quanto em relação à ciência.
Recordo-me
de não o ter proposto em duas ou três linhas, mas de ter transformado essa na
tese central de minhas primeiras obras. Implícita ou explícita nelas estava a
ideia de que a Teologia e a ciência, de modos muito distintos, dizem-nos,
ambas, coisas bastante relevantes sobre a realidade.
A atribuição de um papel como esse à Teologia, após o
advento das ciências naturais, costuma causar mal-estar em algumas pessoas
cultas. Mas, para que a atribuição se justifique, não precisamos reconhecer
àquela disciplina um papel distinto do que compete à Filosofia, ou seja, o
papel de uma reflexão sobre a linguagem.
Parte do mal-estar a respeito da
Teologia desvanece quando a pensamos não como verdade indesafiável, mas como
linguagem, portanto como uma disciplina passível de verdade e de erro, a qual
desempenha a sua função na medida em que serve a transmissão de um discurso. A
única diferença entre a Filosofia e a Teologia, nesse ponto, é que a linguagem teológica
é sobre Deus.
Na
condição que reivindica para si de linguagem acerca de Deus é que a Teologia deve
ser avaliada. Desse ponto de vista é que a contribuição que ela oferece ao
conhecimento há de ser julgada. Se não possuir valor linguístico, a Teologia será
tão incapaz de dizer algo sobre o real quanto uma filosofia desprovida de linguagem
precisa. Por isso, tanto uma como a outra dessas disciplinas deriva o seu valor
da linguagem.
Coube
à Filosofia Patrística fornecer a linguagem, por meio da qual a revolução cristã
se deu. Essa líinguagem foi o que permitiu a absorção da cultura clássica no
arcabouço do pensamento cristão. Não entendemos a Antiguidade Tardia sem dominar
essa linguagem e perceber que, que, por meio dela, o Cristianismo desafiou ao mesmo
tempo em que assimilou a cultura clássica.
A superação da cultura clássica não pode ser
compreendida mediante o estudo da Filosofia Grega ou do Direito Romano. Para
entendê-la é preciso penetrar no pensamento patrístico, no qual a grande superação
se tramou. E o que encontramos, em primeiro lugar, nesse pensamento, é a
linguagem não apenas bíblica, mas também filosófica que permitiu a superação.
O Cristianismo é, antes
de tudo, um discurso de Deus. É um longo encadeamento de palavras atribuídas a
Deus. Santo Agostinho lia a Bíblia como quem ouve Deus, uma vez que tomava o
Cristianismo como uma religião revelada. Uma religião da palavra e palavra
divina.
Se traduzirmos essas assertivas
simples em linguagem um pouco mais sofisticada, afirmaremos que o discurso das
Escrituras é proferido por Deus. E que, por isso, a Teologia Cristã vale o que
vale a Filosofia, lida com o que ela lida, transmite o que ela transmite, isto
é, uma linguagem, ainda que a linguagem transmitida por ela seja a de Deus.
O
luteranismo só se pôs como tentativa tão clara de superação da escolástica por
ter adquirido a mais elevada consciência de que a Teologia nada mais é que línguagem
de Deus sobre si e sobre o ser humano. A Teologia é um discurso de Deus sobre
ele mesmo e sobre nós.
Pouca dúvida há de que o colossal
trabalho de tradução do Antigo Testamento a partir do hebraico e do Novo
Testamento grego de Erasmo para o alemão favoreceu amplamente o aprofundamento da
compreensão de Lutero sobre o caráter da Teologia como discurso de Deus lhe permitiu
levar a efeito a sua proposta específica de superação da escolástica.
Pode-se
perguntar se, reduzida à linguagem de Deus, a Teologia não se torna
transracional e desumana? Uma pista para a resposta foi dada pelo poeta John
Milton na explicação que transmitiu do Trivium (Lógica, Gramática e
Retórica) medieval: "De todas as artes [do Trivium], a pri-meira e
mais geral é a lógica, seguida da gramática e, por último, da retórica, uma
vez que pode haver muito uso da razão sem o falar, mas nenhum uso da palavra
sem a razão" (MILTON, John. Artis logicae. In The works of John Milton.
Nova York: Columbus University Press, 1935. Vol. 2. p. 17).
Para
Milton, a Gramática e a Retórica regiam-se pela Lógica. Esse é um modo muito
adequado de compreender o uso das três disciplinas. Como estudo da linguagem
de Deus, a Teologia não é transracional. Sujeita-se, antes, à Lógica e à
Gramática, pelo simples motivo de que pode existir razão sem falar, mas não
palavra de Deus sem razão. É pelos métodos da Lógica (Clássica, já que a
Transcendental e as outras não se firmaram ou possuem aplicação reduzida) e da
Gramática (Geral e Especial) que a Teologia deve ser estudada e exposta.Em A hipótese de Darwin, escrevi:"Se alguma mudança radical ocorreu na maneira de os homens verem o mundo e construírem o seu destino nos últimos séculos, portanto, ela se localizou na passagem à modernidade, não no advento de uma pós-modernidade. A modernidade é uma tentativa de construção de sociedades voltadas à afirmação do indivíduo, em relativa harmonia com forças externas ao mundo dos homens (forças divinas), não um projeto antirreligioso ou uma experiência de desencantamento. [...] A atualidade não é feita pela superação total do passado. Pelo contrário, o desafio específico de cada época é inserir os fios das novidades históricas no tecido que a sua geração recebe dos antepassados. Não é diferente na época em que vivemos (MORAIS, Luís Fernando Lobão. A hipótese de Darwin - a compatibilidade entre Deus e a evolução. São Paulo: Themis, 2008. p. 11, 13)."
Em que parte do quadro da
Modernidade o Direito há de inserir-se? A resposta, expressa ou tácita, é
dada com grande desenvoltura no nosso tempo. Quase todos pensam que o Direito
deve acercar-se da ciência e distanciar-se da Teologia. Falta, porém, a prova
de que essa concepção cultural se justifica. Falta a demonstração de que a
proximidade em relação à ciência impede ou desrecomenda o intercâmbio
frutífero do Direito com teologias bem concebidas.
Os
preconceitos típicos do nosso tempo nos induzem a aceitar a Revolução Científica
e a esquecer o que permanece da outra grande revolução da História, a saber: da
Revolução Cristã. Mais difícil ainda se faz entender que uma transformação não
anula a outra, por incidirem em campos distintos do conhecimento: a revolução
antiga na linguagem de Deus, e a recente, no conhecimento da natureza. Aquela
decretou o fim da cultura clássica e a absorveu; a revolução atual, a julgar
pelos seus mais exaltados defensores, não sabemos a que parte irá levar-nos.
Claro
que há tantas teologias (e teologias cristãs) quantos gostos. Não ocorre o
mesmo com a ciência, cujas variações sobre os mesmos temas são muito menos
numerosas do que o leque infinito dos gostos e idiossincrasias. Não estou a
propor a igual aceitação de todas as teologias, até porque, se o fizesse,
teria de conceder lugar igual a todas as outras formas de crença. Não se
trata, aqui, de afirmar a liberdade de consciência e de credo, mas de
reconhecer, ao mesmo tempo, o valor específico do pensamento judaicocristão e
a miserável consciência que as pessoas têm dele, nos nossos dias. Se, no
passado, a fé foi tomada como sinônimo de alienação, hoje, a falta dela é o
que produz tal efeito. E em que medida o produz!