O argumento mais contundente já apresentado contra o direito natural é o da falácia naturalista, formulado pela primeira vez por David Hume, nos seguintes termos:
“Em todo sistema moral que encontrei até o dia de hoje, sempre percebi que o autor utiliza o método comum de arrazoamento, de modo a estabelecer a existência de um Deus ou a tecer observações sobre assuntos humanos, durante algum tempo e, então, repentinamente, surpreende-me pela substituição da cópula habitual de proposições ‘é’ ou ‘não é’ por ‘deve’ ou ‘não deve’. Essa mudança imperceptível tem drásticas consequências, posto que 'deve' ou 'não deve' expressa uma relação ou afirmação nova, que deveria ser observada e explicada, assim como uma razão deveria ser fornecida para o que parece inconcebível, a saber: como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente distintas” (HUME, David. Treatise of human nature. Oxford: Oxford University Press, 2000. Livro III, 1, seção 1) .
A história desse argumento, de sua origem na obra de Hume até o dia de hoje, é tão espantosa quanto a das doutrinas do direito natural que o antecederam sem jamais terem aventado tal objeção. Espantosa porque, do ponto de vista do pensador hodierno que se debruça sobre o debate de ideias do passado, é difícil compreender como algo tão básico tenha sido omitido por tanto tempo. Mas não é menos difícil aquilatar como, após formulado, o argumento da falácia foi adotado ou rejeitado sempre de modo peremptório, como se destruísse totalmente ou sequer arranhasse a superfície de qualquer das concepções morais possíveis.
Só um pequeno número de pensadores analisou o argumento de Hume em profundidade, sem o rejeitar totalmente ou sustentar a sua aplicação a todas as doutrinas morais. Curiosamente, o próprio Hume parece ter sido um deles, na medida em que, em seguida à formulação do argumento, escreveu: “Estou persuadido de que a pequena atenção dispensada à transição de 'é' ou 'não é' para 'deve' ou 'não deve' bastaria para subverter todos os sistemas vulgares de moral e nos levar a reconhecer que a distinção entre vício e virtude não se funda meramente na relação entre objetos, nem é percebida pela razão” (idem).
Com essa última afirmação, Hume indicou que nem todos os sistemas morais incorrem na falácia naturalista, mas apenas aqueles que denominou “vulgares”, isto é, apenas os sistemas que seguem o "arrazoamento comum". Com base no contexto, portanto, a crítica dos sistemas morais falaciosos parece dirigir-se não a todos os sistemas possíveis ou em vigor nos povos e sim a ordenamentos concebidos com base no arrazoamento comum.
Embora, na época de Hume, a maioria dos sistemas com essas características se baseasse na lei natural,do modo como formulada, a falácia não foi atrelada ao direito natural, como mais tarde ela foi interpretada. Por exemplo, um positivista que concebe o dever a partir de uma norma fundamental quase sempre supõe que esta é imperativa, quando tal interpretação não é a única possível, o que torna a sua concepção vulnerável à falácia. Se a norma fundamental não for imperativa, nosso positivista não estará a explicar, de qualquer maneira, a origem das proposições do dever a partir da norma (ou dever) fundamental. Isso porque nem toda norma é, em si mesma ou gramaticalmente, imperativa. O que assegura imperatividade à norma é a interpretação que lhe atribuímos e não a sua formulação gramatical. Por exemplo, do ponto de vista gramatical, a norma “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” não está sequer formulada no modo imperativo. Não diz: “Deves amar”, mas “amarás”. Lícito é, pois, interpretá-la como uma espécie de previsão do futuro tanto quanto como a instituição do dever de amar. A escolha entre essas interpretações cabe obviamente ao intérprete. Mesmo quando uma norma contém palavras como deve, “obrigatório” ou “proibido”, não é incomum a imperatividade depender da admissão de um dado não claramente implícito em tais palavras. Tampouco é incomum esse dado ser identificado de diferentes maneiras por diferentes intérpretes.
Se considerarmos que a noção de dever está umbilicalmente ligada à imperatividade, teremos de concluir que essa característica central é muito mais implícita do que explícita. Depende mais da interpretação da norma, que varia de pessoa para pessoa, do que da norma formulada gramaticalmente, que é igual para todos. Por isso, ao partir da norma, o positivista fundamenta-se mais no que as pessoas pensam a respeito dela do que na norma em si mesma. E o mesmo faz o jusnaturalista ao partir de Deus ou da conduta humana: na verdade, ele extrai normas do que as pessoas pensam acerca de Deus ou do homem.
Nesse nível fundamental, não há diferença metodológica relevante entre as duas grandes escolas do pensamento jusfilosófico. O positivista concebe o dever a partir do que as pessoas pensam a respeito da norma, e o jusnaturalista, a partir do que elas pensam sobre a conduta humana. Em ambos os casos, partem de padrões de interpretação adotados em maior ou menor medida, os quais não podem ser descritos sem algum grau de imprecisão.
Os positivistas alegarão que a sua doutrina é superior ao jusnaturalismo, porque a norma, da qual eles partem, é imperativa, ao passo que a conduta humana não o é. Dirão que, com isso, eles derivam as normas jurídicas do que já é uma norma (fundamental), enquanto os jusnaturalistas derivam normas do que não o é. Duas objeções podem ser postas a esse argumento. Primeiramente, os positivistas não partem de toda ou de qualquer norma, mas do que Kelsen e Hart denominam norma fundamental ou de reconhecimento. Só assim eles são capazes de resolver a petição de princípio implícita na concepção de que o ordenamento jurídico é válido por ser produzido da maneira prescrita por ele próprio. A norma fundamental é invocada, exatamente, para superar essa dificuldade. Ela é entendida como situada fora do ordenamento. Assim, para os positivistas, o ordenamento passa a ser produzido do modo previsto na norma fundamental e não do modo previsto por ele próprio.
O problema é que esse modo de ver as coisas afasta uma petição de princípio e cria uma contradição: afasta a justificação do ordenamento a partir dele próprio, mas introduz uma ideia metafísica (a norma fundamental exterior ao ordenamento real) a fim de eliminar outra ideia metafísica (o direito natural). Pensamos que isso é não resolver o problema da fundamentação racional do direito.
A outra objeção que pode ser oposta ao argumento positivista é a de que o direito natural não tem como foco toda e qualquer conduta humana, mas apenas aquela que se reveste de caráter obrigatório. Alguém pode sentir-se surpreso com a afirmação da existência de condutas que, por si sós, se revistam de obrigatoriedade. Existe de fato uma espécie de comportamento obrigatório? Devemos reconhecer, desde logo, que nem toda conduta humana é obrigatória. A maior parte delas não o é. Porém algumas condutas revestem-se de obrigatoriedade. É o caso do costume e das praxes institucionais, que sempre foram reconhecidos explícita ou implicitamente como fontes do direito. Tanto o costume como a praxe são práticas reiteradas, por isso mesmo concebidas como obrigatórias. Assim, embora constituam práticas, o costume e a praxe não são menos imperativos do que a norma. É nessas condutas dotadas de imperatividade que o jusnaturalismo de boa estirpe fundamenta o dever e o direito. Claro que, com isso, ele faz o dever descansar no mundo do ser (em práticas sociais empíricas), porém não de modo falacioso.
Vemos, por isso, que o argumento da falácia não pode ser aplicado apenas ao jusnaturalismo ou, de modo indiscriminado, a todas as correntes do direito natural e do positivismo. O argumento só é bem utilizado com consideração dos detalhes de cada caso e de cada teoria ao qual se pretende aplicá-lo. Por exemplo, o argumento é corretamente aplicado às doutrinas que estendem o direito natural a toda a realidade, como se fosse um constituinte do mundo humano e não humano, como é o caso da clássica definição de Ulpiano, segundo a qual jus naturale é aquele que o homem compartilha com os animais.
Não há direito algum extensivo a toda a natureza. Mesmo assim, existe um direito natural que concebe corretamente a conduta humana como normativa. A ideia que defenderei, nesta série, é de que esse direito pode ser formulado de modo particularmente adequado ao tempo atual a partir das instituições sociais. A meu ver, a enunciação mais consistente do direito natural é a que o surpreende no funcionamento concreto das instituições, como exporei em outros textos.
Por ora, devo demonstrar com a maior precisão possível a estrutura lógica da noção de direito natural a que me refiro, isto é, do direito natural das instituições. Para isso, partirei do que ficou assentado no texto anterior, vale dizer, de que existe uma natureza humana, embora ela constitua um conceito problemático. Esta particular conclusão é, a meu ver, a mais relevante para a decisão da pendência a respeito do direito natural, embora não seja suficiente para estabelecer todos os contornos desse direito.
Não retornarei à demonstração da natureza humana desenvolvida no texto anterior. Tê-la-ei por assentada ou, ao menos, por admissível, a fim de passar ao ponto seguinte do meu arrazoado, a saber: à orientação de todo direito ao correto. Esse ponto foi estabelecido, de modo bastante aceitável, por Robert Alexy no trecho de sua obra O argumento a partir da injustiça, em que lemos:
“O argumento a partir da correção [...] afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individualmente consideradas quanto o sistema legal como um todo pressupõem a ideia de correção. Um sistema de normas que não pressupõe tal ideia, de maneira explícita ou implícita, não é simplesmente jurídico. Sob esse ponto de vista, a exigência de correção funciona como um critério de classificação. Sistemas jurídicos que formulam tal exigência, mas não a satisfazem são defeituosos [...] Por outro lado, a exigência funciona como critério de qualificação no tocante às normas e decisões jurídicas individualmente consideradas, que se tornam defeituosas quando não formulam ou não satisfazem a exigência de correção” (ALEXY, Robert. The argument from injustice – a reply to legal positivism. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 35-36).
E em outro lugar: “A exigência de correção implica a de justificação. Essa exigência não se limita à justificação de uma decisão em termos de qualquer moralidade que permita considerar certa a decisão. Implica a correção da decisão em termos de uma moralidade justificável e, por isso, correta. A conexão necessária entre direito e moral correta é estabelecida pelo fato de a demanda de correção incluir a de correção moral [...] Esse é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica [da norma ou do ordenamento]” (idem. p. 78-79).
Não existe direito onde não vigore o ideal de entender e aplicar suas normas corretamente. A concepção positivista de um sistema de normas que repousam num postulado jurídico fundamental (basic rule) funciona com base no modo de criação das normas (umas a partir das outras). Para ela, direito é o que é criado dessa maneira. O problema é que essa concepção repousa num conceito dogmático de correção. É como se o positivismo fosse correto (satisfizesse o critério da correção) pelo simples fato de o postulado da criação de umas normas em conformidade com outras ser observado. Porém, o próprio postulado pode ser aplicado de modo correto ou incorreto, o que o positivismo despreza, pois considera dogmaticamente correto o seu modo de conceber a nomogênese. Seria melhor afirmar e manter que o caráter jurídico de uma norma ou sistema é garantido pela soma de método de criação e correção. Assim como a aplicação do primeiro critério tem de ser constantemente aferida, o mesmo se passa com o último.
Quero afirmar, com isso, que o direito não é simplesmente a norma, mas a norma tomada de maneira tal que dela derivem interpretações e aplicações corretas. Reencontramos, aqui, a assertiva de Miguel Reale: “O direito é a sua interpretação” (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002. Parte II, Título X, Cap. XXXVIII, p. 597), porém a reformulamos para que afirme uma que a norma não é ela própria, nem simplesmente a sua interpretação, mas as suas interpretações corretas.
O pressuposto fundamental da interpretação correta não é a letra, mas a recta ratio da norma. Por isso, o direito é, sem dúvida, a norma e a sua interpretação, mas uma e outra entendidas à luz da recta ratio, do espírito ou núcleo doador de sentido às interpretações corretas.
Somemos esta conclusão à que deixáramos antes estabelecida, isto é, à conclusão de que existe uma natureza humana. Se isso for verdadeiro, a recta ratio do ordenamento há de ser consentânea com a natureza humana. E, se a correção houver de ser entendida ao mesmo tempo como conceito lógico e moral, como Alexy exige, podemos utilizar tal critério não só para negar a existência da norma extremamente injusta, mas também para negar perfeição às normas injustas em todos os outros graus. Não é isso que Alexy sugere ao escrever que a “correção moral é o motivo de, abaixo do limiar da injustiça extrema, uma violação da moralidade correta não conduzir à perda do caráter jurídico, mas à imperfeição jurídica” (idem. p. 79)?
O mesmo princípio que permite afirmar que a injustiça extrema é antijurídica fundamenta a proposição de que a injustiça em qualquer outro grau é causa de imperfeição jurídica. A última afirmação é um simples corolário da outra. Deve, portanto, segui-la. E, se as duas afirmativas são igualmente corretas, segue-se que o direito natural tende tanto à eliminação da injustiça extrema quanto à correção possível da injustiça em todos os outros graus. O desafio do jurista é encontrar o método que permite a melhor realização possível de uma e de outra tarefa.
Se adotarmos a concepção institucional do direito natural, as duas tarefas serão grandemente facilitadas. Perceberemos que existem instituições, como a ONU e seus organismos, cuja atuação universal não se limita à edição de normas contrárias à injustiça extrema, como as aplicadas ao genocídio e outros crimes contra a humanidade, mas também de normas tendentes a combater uma infinidade de injustiças muito menores. Essas normas são universalmente aceitas, embora sua aplicação se dê de modos muito diferentes nos diversos lugares do mundo. Dirão que tais normas não são universais por não serem aceitas por absolutamente todas as pessoas? Direi que o são por serem aceitas em toda parte. Uma espécie de universalidade não cancela a outra, exatamente como um sentido de uma palavra não impede outro. E será que normas universais tão abundantes não nos permitem falar de um direito natural institucional?
Em todos os séculos, o modo mais lógico e bem ordenado de pensar o direito natural consistiu em dividir as suas normas em primeiros princípios e consequências dos primeiros princípios. Se isso foi possível em relação às mais cerebrinas formulações do direito universal, por que não o seria no tocante à formulação institucional dele? A divisão nada mais é que um expediente lógico empregado para permitir uma concepção mais clara e, por ela, a realização das tarefas precípuas que cabem ao direito natural.