quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Filosofia e direito (39): Conhecimento e exatidão

Ao longo da História, pensadores, cientistas e inventores realizaram uma longa série de descobertas que revolucionaram a vida na face da Terra. Não muitos deles foram filósofos, e os que o foram não realizaram as suas descobertas com base na Filosofia. É o caso de Aristóteles, que referiu as regras do pensamento lógico ao conhecimento comum, e de Kant, cuja hipótese sobre a origem do sistema solar deve tanto ao saber filosófico quanto as descobertas genéticas do frade Mendel à Teologia.
Essa constatação não retira o brilho da Filosofia, nem anula o fato de tantos filósofos serem arrolados, com justiça, entre os maiores pensadores da História. Sugere, porém, uma mudança no enfoque que damos à Filosofia, na medida em que exige que não a concebamos como fonte de descobertas e avanços do conhecimento.
Em tudo o que diz respeito à produção de conhecimentos novos, a Filosofia é um saber pouco relevante. Não que os filósofos não tenham proposto concepções geniais e revolucionárias sobre o Universo e o homem. Eles provavelmente o fizeram mais que os representantes de todas as outras disciplinas do saber humano. Porém, quase nunca, as concepções revolucionárias dos filósofos foram provadas e, assim, convertidas em descobertas. Enfim, é como se os mundos que os filósofos descobriram fossem mundos possíveis, imaginados e imaginários, não partes do mundo real.
Não é possível afirmar o mesmo da Filosofia enquanto crítica de outros saberes. Nesse sentido, a Filosofia tem sido mais bem-sucedida. Ela sempre foi usada, com considerável sucesso, para desintegrar outros conhecimentos. Mas é preciso reconhecer que, ao fazê-lo, ela nunca nos legou descobertas, nem forneceu provas ou confirmações de teorias rivais das que desintegrou.
Essa constatação leva-nos a indagar se a Filosofia não é um saber instrumental, que não produz resultados sozinho, mas aliado a outros saberes. Se o for, será preciso mostrar de que modo esse saber funciona: quais os métodos que permitem desenvolver todo o seu potencial e colocá-lo em relação fecunda com outros saberes.
Para buscarmos conclusões como essas, é fundamental darmos um passo atrás e lembrarmos o que, em essência, constitui o conhecimento humano. Quase todos os pensadores admitem que o conhecimento é uma relação sujeito-objeto. De fato o é, embora o objeto de certos conhecimentos seja extremamente tênue. Porém, o conhecimento é mais do que isso. Para ser funcional, ele tem de ser também preciso ou, pelo menos, regular.
No âmbito dos conceitos fundamentais, a precisão do conhecimento manifesta-se como simples regularidade. É o que acontece com as categorias da experiência, que se distinguem por desempenhar sempre as funções idênticas ou semelhantes em diversos campos do conhecimento, nas mais heterogêneas sociedades. Porém, conforme passamos das operações básicas a níveis cada vez mais complexos de cognição, o critério da regularidade se especializa, assumindo feições cada vez mais sofisticadas: identidade, não contradição, terceiro excluído e uma miríade de regras materiais em que nos pautamos ao pensar objetos das mais variadas áreas do conhecimento.
Não me parece que os filósofos tenham conseguido demonstrar que, nesse imenso processo de particularização e especialização das regras lógicas, o critério da regularidade tenha sido jamais revogado ou substituído por outros critérios. A falta dessa demonstração constitui o enigma nuclear de toda a Gnoseologia. Indica que o primado da regularidade não foi refutado. E a não refutação dele implica a sua confirmação, se a falseabilidade aplicar-se à Teoria do Conhecimento.
Chego, assim, ao resultado fundamental da reflexão aqui realizada: se as categorias são verdadeiras na medida em que regulares, é inevitável concluirmos que a verdade de qualquer conhecimento identifica-se com a regularidade categorial. E, se esta assume a feição de uma série de critérios secundários, como a não contradição e as regras lógicas materiais, é possível concluir que a regularidade mantém o seu jugo sobre o conhecimento sob as formas da precisão e da exatidão do conhecimento.
É usual considerarmos nossos conhecimentos tão mais verdadeiros quanto mais rigorosamente se moldam às regras das diversas ciências. Essa obediência é o que permite determinar o grau de precisão ou de exatidão dos saberes. Mas, se todo conhecimento se funda em categorias como em critérios supremos de verdade, segue-se que a precisão do conhecimento nada mais é que a regularidade categorial sob outra roupagem.
Seja o caso do conhecimento dos sentidos. Vimos que a sua conexão com o que os antigos filósofos chamavam eflúvios dos objetos e dos órgãos sensoriais não pode ser rompida. E, se assim é, a regularidade que define as categorias da experiência deve ser determinada por algo proveniente dos objetos (seus eflúvios). Não somos capazes de definir exatamente como essa determinação acontece, nem de a refutar, uma vez que as evidências a seu favor são maciças.
Temos, pois, de considerar que, até prova em contrário, as categorias da experiência são substancial-mente determinadas pelo sujeito e também pelos objetos. E temos de concluir, também, que a regularidade das categorias particulariza-se numa série de regras que governam as diversas áreas do conhecimento.
Essas regras não são isentas de contrariedades e contradições. É que a vida está repleta de relações em que os objetos colocam-se em oposição maior ou menor uns com os outros. Posto que as regras das lógicas setoriais moldam-se ao modo como as relações se travam nos seus respectivos setores, não é possível evitar que contrariedades e contradições pululem no conhecimento.
Assim, um conhecimento é verdadeiro na medida em que consoante com a regularidade categorial, que se manifesta, nos diversos ramos do conhecimento, como obediência mais ou menos exata às regras que os regem, as quais não excluem contrariedades e contradições. Trata-se de deter-minar como cada ramo do conhecimento realiza isso. Neste texto, interessa-me, particularmente o modo como a Filosofia e as ciências sociais o fazem.
Penso que ambas derivam sua precisão do uso que fazem dos signos linguísticos. Da crença mais primitiva à mais adiantada ciência, todo conhecimento se desenvolve num universo simbólico complexo e dotado de considerável precisão intrínseca. O mesmo vale para os saberes instrumentais, que se dividem em ciências formais (Gramática, Lógica e Matemática), técnicas (Cirurgia, Retórica etc.) e saberes especulativos (Filosofia e Teologia).
Dentre os saberes instrumentais, o mais alto grau de precisão cabe às disciplinas formais, as técnicas vêm a seguir, e os saberes especulativos por último. Mas, por constituírem conhecimentos, todas as categorias do saber instrumental são dotadas de precisão. Nenhuma é imprecisa. Se o fosse, não seria conhecimento, posto que este não é só uma relação sujeito-objeto, mas uma relação precisa, isto é, referida à regularidade categorial. Não é diferente com a Filosofia e a Teologia.
A questão é entender de que parte essas disciplinas abstratas e problemáticas extraem sua precisão. Certa-mente elas não a derivam dos objetos a que se dedicam (o ser, o conhecer, Deus, os valores etc.), que estão entre os mais problemáticos de todo o conhecimento. Penso que a Filosofia e a Teologia haurem a sua precisão não do objeto, mas da linguagem. Na medida em que elucidam o significado das palavras e apenas nessa medida, é que aquelas disciplinas cumprem a alta missão de viabilizar o conhecimento dos objetos a que se aplicam.
Sejam-nos permitidos alguns exemplos. As ciências naturais foram erguidas sobre os escombros de conceitos como os de éter, flogisto e dos quatro elementos (terra, água, fogo e ar). A Filosofia desempenhou um papel relevante tanto na afirmação quanto na dissolução desses conceitos, ao realizar a crítica deles e de outras ideias concorrentes.
Nos textos patrísticos, encontramos uma comparação meticulosa da cosmologia grega e materialista dos quatro elementos com a ideia de criação ex nihilo. Orígenes, Basílio, Gregório de Nissa, Ambrósio e Agostinho analisam, modificam e fundem meticulosamente a física dos quatro elementos à ideia bíblica da criação ex nihilo. Por outro lado, a doutrina da Trindade só adquiriu a forma estabilizada nos Credos quando pôde ser formulada, ao mesmo tempo, em termos dos universos simbólicos judeu e grego, o que equivale a dizer em termos teológicos e filosóficos.
Em todos esses casos, a Filosofia e a Teologia desenvolveram as suas realizações mediante a elucidação de termos. Para que a Astronomia Moderna se constituísse, a partir de Copérnico, foi preciso desconstruir a complicada trama de conceitos e termos de Ptolomeu e Aristóteles que proveu a explicação mais aceita do Universo físico durante séculos. E, para a Química erguer-se como ciência, a terminologia de Aristóteles e dos escolásticos sobre a matéria também teve de ser desconstruída.
A desconstrução filosófica dessas ideias foi essencialmente um trabalho realizado sobre palavras e seus significados. O mesmo se deu com a teologia da criação, assentada, tijolo a tijolo, por reflexões sobre vocábulos dos dois primeiros capítulos de Gênesis em hebraico, grego e latim, e com a doutrina da Trindade, delineada mediante a discussão de palavras como ousia, hyposthasis, e seus correspondentes em latim. Do exame desses termos a Teologia hauriu o que nela existe de precisão e que lhe permite constituir um ramo do conhecimento humano.
Quando transitamos das disciplinas instrumentais às ciências naturais e sociais, muita coisa muda. O conhecimento da natureza e dos mundos sociais são fins e não meios para a construção de outros saberes. Serve-se de instrumentos formais (gramaticais, lógicos e matemáticos), técnicos e especulativos (filosóficos e teológicos), para desenvolver descrições comparáveis ao referencial objetivo do mundo e não apenas usadas como instrumentos de outros saberes. Enfim, as ciências naturais e sociais alcançam objetivos cuja consecução as disciplinas instrumentais apenas preparam.
Essa arquitetura geral do conhecimento, funda-da na colocação das disciplinas instrumentais a serviço das ciências naturais e sociais, seria mais bem-sucedida, se curto-circuitos não se multiplicassem, principalmente no campo das ciências sociais, por vários motivos. Primeiro porque os objetos dessas ciências são, eles próprios, quase tão problemáticos quanto os da Filosofia e da Teologia. E, em segundo lugar, porque as disciplinas sociais valem-se de instrumentos filosóficos e teológicos (também problemáticos)em maior medida do que as ciências naturais.
Isso faz com que o estado das ciências sociais, quando analisado com a indispensável dose de realismo, pa-reça desanimador e que reflexos disso projetem-se no campo do Direito. Faz ainda com que, no centro geométrico do preocupante quadro, garbosamente instalado, encontre-se o dissenso sobre a justiça. Que é a justiça? Quais as suas espécies? Que concepções foram propostas sobre cada uma delas? São, tais concepções, realizáveis? Não há como negar que essas questões, em sua problematicidade, desafiem e ameacem o nosso saber sobre a sociedade.
Questões relacionadas à justiça não podem ser enfrentadas com sucesso, enquanto não nos damos conta da natureza problemática das ciências sociais e problemática ao quadrado das disciplinas instrumentais (Filosofia e Teologia) que elas utilizam. Por isso também, enquanto não reconhecermos que o desafio colocado por essa dupla complexidade (referente ao objeto e ao instrumental) é incontornável para as ciências sociais, não seremos capazes de desenvolvê-las com a precisão característica dos saberes bem-sucedidos.
O pressuposto para o desenvolvimento das disciplinas sociais é, portanto, a formação de uma consciência profunda sobre a natureza delas. Se as ciências sociais derivam sua essência não só da relação que mantêm com o seu objeto, mas também da precisão com que o tratam, cabe-lhes, antes de tudo, aprofundar essa precisão e eliminar os motivos de imprecisão no trato com o seu objeto.
Chegamos, assim, ao cerne da nossa questão. Qual é a causa da precisão das ciências sociais? Assim como no caso da Filosofia e da Teologia, também no das ciências sociais, essa causa é a linguagem. E que linguagens aquelas ciências usam, além da gramatical e da lógica? Elas utilizam a linguagem filosófica e a teológica. Isso mostra que o caminho para o desenvolvimento das ciências sociais passa pelo uso mais apurado não só da Gramática e da Lógica, mas também da Filosofia e da Teologia. Até porque a sociedade e a cultura, que aquelas ciências estudam, desconhecem os preconceitos acadêmicos, por isso fundam-se na transcendência. Gostemos ou não.
Avanços de linguagem é, pois, do que precisa-mos, a fim de que as ciências sociais se alcem a um patamar de precisão superior ao atual. Avanços que ajudem a exprimir, em linguagem filosófica e teológica, os dilemas sobre o social.
Voltemos ao problema da justiça. São Tomás a explicou com base no binômio constituído pelos primeiros princípios e as consequências dos primeiros princípios do direito natural. Dentre as consequências dos primeiros princípios, umas são próximas, outras, remotas. Mais que doutrinas, essas noções constituem elementos de uma linguagem, o que é fácil de ver.
Em que termos melhores que os de Tomás posso expressar a importância da justiça para a sistematização do direito? Em que termos posso tornar mais claro que a justiça não é só uma questão de valor, de princípio, mas também de sistematização normativa e, portanto, de viabilização do ordenamento jurídico? Não é, o direito das instituições, de alto a baixo, inseparável da ideia de justiça? Essa ideia não motiva os atos jurídicos e justifica as decisões jurisdicionais? Se assim é, de algum modo, as ideias mais amplas e elevadas de justiça que concebemos devem particularizar-se ao ponto de capilarizar e irrigar o direito todo. Ninguém disse isso melhor que Tomás. E, se a ciências problemáticas não convém assentar dogmas, sem ter como os comprovar, resta-lhes a alternativa de comunicar com precisão o pensamento sobre a justiça por meio de noções como as de primeiros princípios, suas consequências próximas e remotas.
Tantas vezes, numa ciência, o “como” é mais vital que o “quê”! Tantas vezes afirmar que algo é reduz-se a pedir que creiamos que é! Por isso, mais importante do que afirmá-lo é mostrar como vem a ser. A justiça se constitui a partir dos seus primeiros princípios, que são a liberdade e a igualdade. Estas têm por consequências próximas os subprincípios que, em cada povo, especificam diferentes regimes de liberdade e igualdade. E não é menos possível afirmar que os subprincípios dão origem a normas mais específicas que eles, conquanto ainda gerais, como a que fixa determinado tributo, e estas, a regras de todo específicas, a exemplo da que manda Fulano pagar tanto a título de tal tributo.
Princípios e consequências, princípios primeiros e derivados, consequências próximas e remotas são todos termos cuja elucidação é melhor conduzida com ajuda da Filosofia. Elucidá-los é imprimir precisão ao conhecimento filosófico e, por meio dele, às ciências sociais.
Não ousei, até aqui, empregar a palavra exatidão como sinônimo de precisão. É que ela foi tombada pela Matemática e outras ciências que a utilizam, com todo direito, em sentido particular. Mas faz diferença dizer exatidão, em sentido mais amplo, em lugar de precisão? Talvez, a exatidão seja mais que a precisão. Talvez ela caiba à Física e à Matemática, e a precisão fique bem às ciências sociais. Mas isso depende tanto do contexto! Em certos contextos, exatidão soa como precisão absoluta, e precisão, como exatidão aproximada. Seja. Mas discriminar a tal ponto entre os termos pode ser um cuidado que prescreveu no dia em que adotamos a palavra ciência, que evoca o exato, para designar o confuso e precário saber que temos das nossas sociedades. Para nós, que dizemos ciência com tanto exagero, que adotamos tão augusto nome para tão problemático saber, pode ser mais consistente chamar precisão o ideal do nosso conhecimento e conformar-nos com realizá-lo mais na linguagem do que nos fatos.