sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Filosofia e Direito (3): O papagaio Alex e a Liberdade

Bergson considerava o ser vivo consciente. Pensava, porém, que ele se torna inconsciente “ali onde a consciência adormece” e que, “mesmo nas regiões nas quais a consciência dormita, no vegetal, por exemplo, há evolução regrada, progresso definido, envelhecimento, enfim, todos os signos exteriores da duração que caracteriza a consciência” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 105).
Não hauri essa lição de Goffredo Telles Júnior, que foi meu primeiro mestre de Filosofia, tanto quanto a retive de Bergson. Não que Goffredo a negasse, mas ele nunca generalizou a intuição da presença da consciência nos seres vivos, como fez o filósofo francês.
Na verdade, tanto um como outro desenvolveram a Filosofia por um método único e raro. Bergson e Goffredo foram filósofos empíricos, pensadores que realizaram incursões significativas em segmentos das ciências naturais do seu tempo. Penso que, quando um filósofo escolhe o método empírico de trabalho, ele o faz com finalidades heurísticas. Quer descobrir algo novo e significativo, senão em absoluto, ao menos para a maioria dos filósofos do seu tempo. Quer, enfim, com tal descoberta, banhar uma antiga questão filosófica em luz nova.
A questão é, portanto, indagar o que cada filósofo empírico, no sentido de alguém versado tanto em Filosofia quanto em ciência natural, efetivamente descobriu na sua trajetória reflexiva. No caso de Bergson, a descoberta está encerrada em Matéria e memória, para muitos a sua obra central. Foi a descoberta do espírito como realidade distinta da matéria. Pelo estudo do cérebro e, em particular, da disfunção conhecida como afasia, Bergson entendeu ter descoberto e provado a existência do espírito.
Embora bergsoniano a ponto de ter aplaudido com entusiasmo a descoberta do autor de Matéria e memória, Goffredo avançou desse resultado para outro, que apresentou em Direito quântico e na Ética:
“É óbvio que a ordem reina no Universo.
Ora, a ordem, no Universo material, há de ser, também, uma disposição conveniente de seres. E essa conveniência (como sucede na ordem ética) há de ser estabelecida em razão de fins prefixados. De fato, se tais fins não existissem, nenhuma referência haveria para estabelecer a conveniência dos meios” (TELLES JÚNIOR, Goffredo. Ética – do mundo da célula ao mundo da cultura. Rio de Janeiro: Forense, 1988. pp. 256-257).
O resultado novo a que Goffredo chegou, na Ética e em Direito quântico, foi o de que a ordem geral do Universo impõe-se por estruturas e comportamentos básicos bem definidos, que se repetem nos mais diferentes níveis da realidade. Se essas estruturas e comportamentos não existissem, os subsistemas do Universo não se comunicariam, seriam estanques, e o cosmos seria um caos.
Em Liberdade e direito, escrevi:
“As estruturas estereotipadas [pelas quais os subsistemas cósmicos se comunicam] são, por exemplo, as disposições de seres ao redor de outros seres, que se verificam tanto no nível infra-atômico, com [nuvens de] elétrons movimentando-se em torno do núcleo dos átomos, quanto no nível sidéreo, com os planetas gravitando ao redor das estrelas e as galáxias ao redor de outras galáxias. São também estereotipadas as ordenações de elementos químicos em função do carbono e a ocorrência do mesmo maquinário geral nas células dos mais diferentes seres vivos.
[...] A própria liberdade é vista por Goffredo sob este prisma. Interessante é que, embora diga que a liberdade se manifesta em níveis tão diferentes quanto o infra-atômico e o humano, nosso pensador se refere a uma única e só liberdade” (MORAIS, Luís Fernando Lobão. Liberdade e direito – uma reflexão a partir da obra de Goffredo Telles Júnior. Campinas: Copola, 2000. pp. 101-102)
Contudo, ao debruçar-me sobre a obra de Goffredo, no livro citado, concluí que ele afirmou que a finalidade está presente em tudo, porém a consciência e a liberdade não:
“Goffredo chega, pela utilização do método empírico, a uma conclusão nova, exposta no Direito quântico e na Ética e afirmada com ainda maior ênfase n’A folha dobrada. O próprio Goffredo escreve:
‘Vejo a mesma lei de finalidade regendo, indiscriminadamente, o movimento dos elétrons nos átomos, e o curso dos sois nos espaços siderais; as reações de afinidade e de repulsa na matéria bruta e o curso da seiva no vegetal; as contrações da ameba numa primeira manifestação da vida e a inspiração do poeta como canto do próprio espírito. É sempre a mesma lei decretando a ordem em todos os domínios. Por que não havemos de acreditar que essa é a lei da ordem universal?’” (idem. p. 126).
Porém, “embora reconheça a universalidade do princípio da finalidade, Goffredo não chega a afirmar a universalidade da liberdade, nem no Direito quântico, nem na Ética, nem n’A folha dobrada. Pelo contrário, a liberdade é restrita pelo nosso escritor a determinados níveis ou movimentos específicos na natureza, assim como o movimento dos corpúsculos quânticos e os processos fisiológicos no interior da célula viva. Somente estes movimentos seriam livres” (idem. p. 127).
Assim, Liberdade e direito procura mostrar que a generalização a que a obra de Goffredo convida, mas que ele próprio não realizou, pode ser feita com segurança. A liberdade pode, realmente, ser pensada como uma faculdade de autodeterminação teleológica, que se desenvolve onde haja teleologia. “A liberdade sempre foi considerada uma exceção no concerto cósmico [...] Porém, ela deve ser considerada a regra. Todos os seres moventes são livres, porque todos se comportam teleologicamente. Não há movimento, senão teleológico. Do mesmo modo, não há movimento, a não ser livre” (idem. p. 237).
Que quis sustentar com essa afirmativa? Como defender minha tese contra o argumento de que a pedra se move, ao ser arremessada, e nem por isso é livre? Quis afirmar, exatamente, a distinção entre mover-se e ser movido. Não afirmei e jamais pensei que o que é movido, como a pedra, é livre, mas que tudo o que move-se a si mesmo é livre. E, como adotei o método reflexivo de Goffredo e Bergson, esforcei-me para citar dados científicos que demonstrassem, por meio de exemplos, que o que se move o faz teleologicamente, portanto com consciência dos fins a alcançar. Reuni, assim, a conclusão de Goffredo sobre a finalidade à de Bergson sobre a consciência, a fim de extrair a minha própria noção de liberdade.
Não retornarei, aqui, às evidências coligidas naquela obra. Citarei somente pesquisas posteriores a ela que confirmaram, em parte, o alcance da tese que vê a liberdade espargir-se por toda a natureza. O cientista Daniel Chamovitz publicou, recentemente, um artigo sobre pesquisas que mostram que os vegetais são capazes de cheirar e ter outras sensações típicas do que chamamos conhecimento. De acordo com ele, “se colocarmos uma fruta madura e outra verde no mesmo saco, a verde amadurecerá mais rápido [do que o faria fora do saco]. Isso se dá porque a madura libera um feromônio responsável pelo amadurecimento. A fruta verde cheira-o e então amadurece. Esse fenômeno acontece tanto nas nossas cozinhas quanto na natureza. Outro exemplo de planta que cheira é o dos parasitas que não realizam fotossíntese e dependem de outras plantas. Esses parasitas encontram seus hospedeiros pelo cheiro” (COOK, Gareth. In Scientific American. June, 5th, 2012).
A consciência dos animais também tem sido demonstrada. As pesquisas de Irene Pepperberg com seu papagaio Alex tornaram-se célebres. Alex aprendeu não só a repetir palavras, como os papagaios em geral fazem, mas a usá-las criativamente, ou seja, a construir frases com mais de 100 palavras em inglês. Os resultados da pesquisa de Pepperberg, que é professora de cognição animal em Harvard, estão condensados no livro Alex & me (New York: Harper, 2009), que é dedicado a ninguém menos que o próprio Alex.
Em 2013, o neurocientista americano Christoph Koch também publicou um artigo que expande a nossa compreensão da consciência. Koch relata uma experiência que teve ao conviver com o Dalai Lama e as pesquisas que realizou sobre algo que aquela autoridade religiosa lhe disse:
“Ao passar uma semana com Sua Santidade, o Dalai Lama, este ano, notei como ele falava frequentemente da necessidade de reduzirmos o sofrimento de todos os seres vivos e não apenas de todas as pessoas. Minhas leituras de filosofia levaram-me ao panpsiquismo, visão segundo a qual a mente (psyche) está presente em tudo (pan). O panpsiquismo é uma das mais antigas doutrinas filosóficas. Foi lançado pelos gregos, na época clássica, em particular por Tales de Mileto e Platão. O filósofo Baruc Spinoza e o gênio matemático e universal Gottfried Wilhelm Leibniz, que lançou as bases do Iluminismo, defenderam o panpsiquismo tanto quanto Arthur Schopenhauer, o pai da Psicologia Americana William James e o paleontólogo jesuíta Teilhard de Chardin” (KOCH, Christoph.“Is conscience universal?” Scientific American. 19/12/2013).
Koch cita os principais argumentos que os adversários do panpsiquismo costumam levantar contra ele: “Um é o problema dos agregados. O filósofo John Searle, da Universidade da Califórnia, Berkeley, o expressou da seguinte maneira recentemente: ‘A consciência não se pode espalhar no universo como uma fina camada de geleia. Tem de existir um ponto em que a minha consciência termina e a sua começa’. De fato, se a consciência está em toda parte, por que ela não anima o iPhone, a Internet ou os Estados Unidos da América? Além disso, o panpsiquismo não explica por que um cérebro, que é consciente, quando posto no liquidificador e reduzido a pasta, deixa de o ser” (idem).
Koch refuta as objeções com relativa facilidade, por meio de pesquisas de outro neurocientista, Giulio Tononi, da Universidade Wisconsin-Madison, o qual mostrou que “num cérebro em que alguns neurônios estão em atividade e outros inertes, é possível computar com precisão a extensão da rede formada por eles. Desse cálculo, a teoria [de Tononi] deriva um número, &PHgr; (pronunciado fi) [...]  Pense em fi como a sinergia do sistema. Quanto mais integrado um sistema, mais sinergia tem e mais consciente é” (idem).
Talvez, a abrangência da consciência e da liberdade seja menor do que sugeri em Liberdade e direito. É o que Koch propõe, com base em Tononi. Porém, o fundamental é que ele mostrou que ela é muito maior do que, por séculos, a ciência e a Filosofia nos levaram a admitir. Por ciência e Filosofia, entenda-se aqui o mainstream dessas disciplinas.
Se ancorarmos a liberdade no conceito de consciência baseado em fi, teremos um grau de extensão muito grande para os dois fenômenos, porém menor do que sugeri em meu livro. Por outro lado, se fizermos a liberdade depender mais da finalidade do que da consciência, o que também sugeri, os fenômenos terão alcance ainda maior. Vejamos como essa possibilidade pode ser analisada.
O óbice principal à concepção alargada de fim que Aristóteles e Goffredo defenderam é a filosofia neokantiana, que entende a finalidade como um conceito subjetivo, pelo qual o entendimento se refere ao mundo. Enquanto conceito, a finalidade é desprovida de realidade. Nada há, no mundo, que corresponda a ela, o que inviabiliza a conclusão de que os movimentos dos seres são, de fato, teleológicos.
Porém, filósofos com propensão matemática como Bertrand Russell e Alfred North Whitehead refutaram a concepção do conhecimento de Kant e dos neokantianos de modo significativo. Sua refutação pode ser ilustrada pela crítica de Russell ao conceito kantiano de espaço e tempo: “Muitas vezes se diz que espaço e tempo são subjetivos, mas eles têm correspondentes objetivos; ou que fenômenos são subjetivos, mas são causados pelas coisas em si mesmas, que devem ter diferenças inter se correspondentes às diferenças nos fenômenos a que dão origem. Quando tais hipóteses são feitas, supõe-se em geral que podemos saber muito pouco sobre os correspondentes objetivos. Na realidade, contudo, se as hipóteses tal como formuladas estivessem corretas, os correspondentes objetivos formariam um mundo dotado da mesma estrutura que o mundo fenomenal" (RUSSELL, Bertrand. Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 83). 
Russell desconfia profundamente da tese kantiana de que o espaço e o tempo são subjetivos. Para ele, essas formas da sensibilidade, como Kant as denominou, ou categorias, como as chamou Aristóteles, correspondem a estruturas reais do mundo. É fundamental sublinhar que a correspondência não se dá em pontos acessórios, mas precisamente na estrutura, que é a mesma no conceito e no mundo. Russell explicou essa correspondência em linguagem matemática: "Duas relações têm a mesma estrutura quando têm semelhança, isto é, quando têm o mesmo número de relação. Assim, o que definimos como número de relação é exatamente a mesma coisa que é obscuramente significada pela palavra estrutura" (idem).  
Se as teorias subjetivistas do conhecimento derivadas de Kant podem ser assim refutadas, a finalidade e todos os outros conceitos por meio dos quais pensamos o mundo devem corresponder a dados estruturais dele. A finalidade não é só um conceito criado pelo entendimento. É, ao mesmo tempo, um dado do mundo real. E, se é um dado real, ou negamos que os fins sejam determinados pelos seres que se movem ou devemos considerá-los livres.
Um experimento físico ajuda a entender que o comportamento de partículas como os elétrons observa esse padrão. Uma fonte emite um feixe de luz, que se divide ao incidir num espelho semiprateado M1. Da divisão resultam dois feixes que são, a seguir, refletidos por espelhos comuns A e B e se reencontram num ponto P, em que se acha posicionado um segundo espelho semiprateado M2. O experimento mostra que o cruzamento dos raios luminosos em P, após a reflexão nos espelhos comuns, produz um fenômeno de interferência. Amit Goswami o explica: 
"As duas ondas criadas pelo feixe que se divide em M1 são [...] forçadas por M2 a interferir construtivamente em um dos lados de P (onde, se colocarmos um contador de fótons, o contador produz uma série de cliques) e, destrutivamente, no outro lado (onde o contador nenhum clique produz). Note que [...] temos que concordar que cada fóton se divide em M2 e viaja pelas rotas A e B. Não fosse assim, de que maneira poderia haver interferência?" (GOSWAMI, Amit. O universo autoconsciente – como a consciência cria o mundo material. 3ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2003. p. 100). 
Esses fatos indicam que os fótons que já ultrapassaram P, quando o espelho M2 é posicionado, passam a se comportar coordenadamente com as partículas situadas no espelho. Assim, o conjunto de fótons situados no espelho e além dele adotam um único e mesmo padrão de comportamento, independentemente da posição em que estão. 
O ponto do experimento que importa à nossa discussão é que a coordenação entre os fótons situados no espelho e além dele é instantânea. Tão-logo M2 é posicionado, os fótons próximos e distantes dele entram em coordenação. Não há necessidade de intervenção de tempo para que isso aconteça, o que indica que os fótons não trocam qualquer sinal convencional. 
A não ocorrência de troca de sinais baseia-se na premissa estabelecida por Einstein de que sinais levam tempo para viajar no espaço. Como qualquer interação envolve emissão de sinais, que levam tempo para se deslocar, temos de concluir que as interações dos elétrons se dão instantaneamente. Em suma, o experimento mostra que o comportamento de micropartículas como os elétrons não é determinado por qualquer espécie de interação com objetos externos, mas apenas por elas próprias. Exatamente o que o princípio da finalidade afirma.

A evidência fornecida por esse experimento não tem o apelo imediato de fatos como os que se referem à consciência das plantas e às proezas do papagaio Alex, mas é a mais significativa devido à abrangência. Se tudo é feito de micropartículas como os fótons, e a causa do movimento delas é tão radicalmente interna, proveniente delas e de nenhuma outra parte, não é razoável considerá-lo um indício de que o alcance do pansiquismo é maior, muito maior do que os próprios reinos animal e vegetal?
O resultado do experimento dos fótons converge, de maneira significativa, com antigas especulações da Metafísica Cristã. Ao longo da História, não poucos cultores destacados dessa Filosofia saíram das fileiras católicas. E a própria Igreja, como instituição, tem incorporado à sua doutrina substanciais reflexões metafísicas, entre as quais as relativas à finalidade ocupam lugar de destaque. Na encíclica Laudato si, publicada recentemente, o Papa Francisco referiu-se à conservação do Universo por Deus com palavras que não deixam de causar espanto. De acordo com ele, "o Criador [...] está presente no íntimo de cada coisa sem condicionar a autonomia da sua criatura, e isto dá lugar à legítima autonomia das realidades terrenas". Essa declaração espantosa está inserida no capítulo que o texto papal dedica à teologia da criação, o que torna claro o alcance verdadeiramente universal da "autonomia das realidades terrenas" a que ele se refere. O que tenho tentado sustentar, ao longo dos anos, não se afasta, pelo contrário converge com esse ponto particular da visão católica do mundo.
O perguntar e responder sobre a liberdade não nos remete só à questão sobre a natureza. Mais do que a ela, ele nos introduz no problema da estrutura fundamental do mundo. O conhecimento de tal estrutura não nos permite apenas saciar uma curiosidade. Torna, ao mesmo tempo, possível o discurso e a linguagem, cujas categorias fundamentais fazem alusão àquela estrutura. No fundo, a indagação da estrutura da natureza é a pergunta sobre a possibilidade da linguagem e, por ela, da convivência humana. Sem o patrimônio comum das categorias e outros conceitos fundamentais, não somos capazes de nos comunicar e conviver. Seremos ainda humanos?