Henri Bergson |
Lembro-me de quando iniciei minha reflexão filosófica sobre o direito, no primeiro ano da Faculdade. Tal foi o ímpeto do interesse que desenvolvi pela disciplina, naquela época, tal o encanto que ela despertou em mim que fui compelido a dar forma de livro aos meus pensamentos, durante a Graduação. Escrevi, naquela época, O drama do direito (Campinas: Julex, 1991) e, pouco mais tarde, Filosofia do direito positivo (Campinas: EV, 1993).
Outros livros seguiram-se a esses. Mas quero aqui retomar, com maior acento, a reflexão iniciada nos bancos da Faculdade, talvez inspirado pela descrição que Bergson certa vez forneceu do trabalho filosófico: “Nos problemas que o filósofo pôs, reconhecemos as questões que se agitavam à sua volta. Nas soluções que lhes forneceu, acreditamos reencontrar, arranjados ou desarranjados, mas quase sempre não modificados, os elementos das filosofias anteriores ou contemporâneas [...] Mas, à medida que procuramos nos instalar no pensamento do filósofo ao invés de dar-lhe a volta, vemos sua doutrina transfigurar-se. Primeiro, a complicação [das ideias] diminui. Depois, as partes entram umas nas outras. Por fim, tudo se contrai num único ponto [...] Nesse ponto, encontra-se algo simples, infinitamente simples, tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-lo. E é por isso que falou por toda a sua vida. Não podia formular o que tinha no espírito sem se sentir obrigado a corrigir sua formulação e, depois, a corrigir sua correção; assim, de teoria em teoria [...] o que ele fez [...] por meio de desenvolvimentos justapostos a [outros] desenvolvimentos, foi apenas restituir com uma aproximação crescente a simplicidade de sua intuição original” (BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. pp. 124-125).
Bergson encarece o fato de o trabalho reflexivo sempre se orientar por uma intuição original. Não importa o quanto dure essa reflexão: a intuição primordial que a inspira permanece a mesma. Podemos afirmar que essa intuição é o combustível que faz arder a paixão pelo pensamento.
Nada mais verdadeiro. O pensador pode mudar em maior ou menor medida o que pensa ao longo dos anos: a intuição fundamental de que parte não só não se altera como parece ostentar todas as características de um objeto verdadeiramente imutável.
Se pensar é uma tarefa infinita, por outro lado é pensar sempre a partir de um mesmo ponto e descrever ou tornar a descrever a mesma trajetória básica, com a única diferença de que, conforme avançamos, nos entregamos a incursões cada vez mais longas e variadas em direções não percorridas antes. As incursões, porém, se prestam a explorações limitadas, após as quais retornamos à senda principal.
Por isso, em qualquer reflexão vigorosa e altamente desenvolvida, deve ser possível identificar com clareza o ponto de partida, o ponto no qual, na linguagem de Bergson, a reflexão do filósofo se contrai. Cada qual tem o seu ponto de partida. Por isso também, cada qual desenvolve uma trajetória própria. O que não se pode, sob pena de nulidade do trabalho de pensamento, é não ter ponto de partida e não ter trajetória básica.
No meu caso, penso que o ponto de partida foi a intuição de que a reflexão jurídica precisa reconciliar-se com Deus. Ruy Barbosa concluiu uma famosa oração, cujo original ainda se conserva, com a afirmação: De quanto no mundo tenho visto, a suma se abrange nestas cinco palavras: não há justiça sem Deus” (BARBOSA, Ruy. Oração aos moços). Foi essa a intuição original de Ruy? Provavelmente sim, mas não ousaria afirmá-lo com certeza. No meu caso, porém, o foi certamente. Escrevi O drama do direito e Filosofia do direito positivo para afirmar que não há direito, nem há justiça sem Deus.
Porém, se o ponto de partida do trabalho dos filósofos do direito pode ser fixado de modo claro, nem sempre a trajetória básica de sua reflexão é tão nítida. Bergson continua a discorrer sobre o que antes denominara intuição original: “A primeira manobra do filósofo, quando seu pensamento ainda está pouco seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, consiste em rejeitar certas coisas definitivamente. Mais tarde, poderá variar naquilo que afirma; não variará muito naquilo que nega. E, se varia naquilo que afirma, é porque [...] tendo deixado a curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente, tornou-se exterior a si mesmo. Volta para dentro de si quando volta à intuição [original]” (idem. pp. 126-127).
Como indiquei há pouco, podem-se encontrar, na obra de qualquer pensador, incursões em diferentes direções. Isso é próprio do pensamento e ainda mais da Filosofia. Algumas incursões, como a que Bergson menciona, resultam em extravios. Nesses casos, a solução para o filósofo é retornar à trajetória básica que descrevia, pois ela existe, e ele existe para ela.
Quando esses retornos não ocorrem ou demoram demais para ocorrer, trechos inteiros da reflexão corrompem-se. Tornam-se simplesmente equívocos que é preciso desfazer. O equívoco pode não estar, inclusive, numa pequena parte da incursão, mas em toda ela, o que não é pouco frequente. Num como no outro caso, é preciso desfazê-lo, corrigindo a rota.
Alguns exemplos de erros cometidos na História da Filosofia se tornaram famosos. Em 1426, Jean Gerson lançou uma obra de denúncia da “confusão geral das ordens de conhecimentos” que se estabelecera. “Cada uma [dessas ordens] servia-se do modo de significação próprio de certa disciplina, feito para determinado objeto, a fim de resolver os problemas colocados por outra disciplina e outro objeto. Ele [Gerson] via os mestres de gramática, cujo objeto é a congruidade do discurso, resolverem seus problemas pelos métodos próprios da lógica, cujo objeto é a verdade ou a falsidade das proposições, enquanto os mestres de lógica pretendiam resolver por esses mesmos métodos os problemas da metafísica, ciência que não concerne às proposições mas às coisas, e que gramáticos, lógicos e metafísicos acreditavam poder resolver por todos esses métodos ao mesmo tempo os problemas da teologia, como se essa ciência não tivesse seus métodos próprios e seu objeto próprio, que é a palavra de Deus” (GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 887).
Desses equívocos resultaram contendas e confusões, em muitas áreas. A própria Reforma constituiu uma reação à tentativa viciosa de produzir Teologia a partir da Filosofia, com esquecimento da fonte própria daquela: as Sagradas Escrituras. Coisas semelhantes ocorreram, ao mesmo tempo, em outros ramos do saber. Reflexões inteiras se equivocaram, ao se desgarrarem da senda em que se desenvolviam. Foi o caso das reflexões, a que Gerson se refere, que se realizavam no caminho da Gramática e se perderam ao ingressar no da Lógica e o do pensamento que se desenvolvia como Lógica até embrenhar-se pela Metafísica ou ainda o da reflexão metafísica que ingressou indevidamente no campo da Teologia. Tão generalizados equívocos não incidiram neste ou naquele passo da reflexão de uma ou de outra pessoa, mas em todo e qualquer passo dado por elas, uma vez escolhido o caminho errado.
De tempos em tempos, essa espécie de equívoco relacionado à natureza da reflexão se torna comum. Penso ser esse o caso da nossa época, na qual se tornou frequente desenvolver reflexões sociológicas como se fossem filosóficas ou adotar uma teoria particular para criar filosofias inteiras. Essas empreitadas, embora comuns, estão fadadas ao fracasso. Não podem terminar em contribuições relevantes para a Filosofia, já que resultam de erros na escolha do caminho reflexivo a ser trilhado.
Quantos pretendem, à força de evocações, transformar Sociologia em Filosofia! Como no tempo de Gerson era urgente separar nitidamente as tarefas da Gramática, da Lógica, da Metafísica e da Teologia, estamos numa época em que é preciso debelar o caos das misturas e das reduções indevidas para voltar a fazer Filosofia como Filosofia.
Incursões na Sociologia ou em outra ciência social podem ser realizadas, com proveito, por filósofos do direito, mas é preciso limitá-las. Não é possível permitir que se desenvolvam de maneira tal que pareça, ao cabo, que a Filosofia do Direito se tornou uma epistemologia ou uma sociologia. O que significa que é preciso retornar sempre à Filosofia e à Filosofia do Direito, como a pureza metodológica requer.
Nesta série, pretendo manter a maior fidelidade possível aos princípios enunciados acima, a fim de retornar com frequência à trajetória reflexiva que tenho empreendido ao longo dos anos, especialmente à de meus primeiros livros, escritos nos anos 1980 e 1990. Para isso, devo ater-me à intuição de que parti, há 30 anos: não há direito, nem justiça onde não haja Deus; portanto, há direito com Deus. Devo ater-me, outrossim, às questões metodológicas precípuas, cuja desconsideração induz a mistura indevida de temas e inviabiliza qualquer reflexão ordenada: de onde partir? e como proceder a partir desse ponto?
Nos artigos seguintes, ocupar-me-ei dessas questões metodológicas. O que, por si, já indica que a Metodologia terá um lugar de honra na sequência de textos que pretendo publicar. A questão sobre o ponto de partida responderei por meio da filosofia perene. À outra darei a resposta da ciência moderna, convicto que estou de que a melhor maneira de atualizar uma antiga filosofia é a adição não de mera especulação sobre aquilo que pode ser, mas de descobertas sobre o que é.
Bergson auxiliar-me-á na jornada que as duas questões colocam. Ele, com quem me encontrei, perplexo, ao ouvir as exposições de Goffredo Telles Júnior, há mais de 30 anos. Claro que, daquele tempo até hoje, bebi de fontes diversas, mas não me apartei de Bergson. Ao contrário, ainda ouço intrigado as palavras: “Considero que o ser vivo seja de direito consciente; torna-se inconsciente de fato ali onde a consciência adormece” (BERGSON, Henri. Ob. cit. p. 105).
Inspiradoras palavras, santa paixão.