QUE O EVANGELHO PERMITE? QUE ELE PROÍBE?
Após ter apresentado o evangelho de Cristo, nos capítulos 1 a 11,
Paulo se volta repentinamente, mas não de modo surpreendente, ao tema das
virtudes. Tão claro e vigoroso é esse giro que somos levados a entender que as
virtudes constituem o espelho em que a obra de Cristo se reflete. Cristo morreu
por causa das nossas transgressões e ressuscitou para a nossa justificação
(4:25): o resultado prático dessa obra eterna e extraordinária é, para
Paulo, o reflexo da graça de Cristo no comportamento humano.
Ao tratar da condenação universal, da imputação da justiça por
meio da fé e da situação de judeus e gentios, após a obra redentora de Cristo,
nos capítulos anteriores, Paulo segue uma ordem e um método de exposição. Fala
primeiro do negativo, depois do positivo. Ao final de cada seção, apresenta um
balanço ou conclusão do tema tratado. E, em cada um desses passos, prova as
suas afirmações por citações abundantes das Escrituras. Esse é o modo de
proceder do apóstolo. Porém, Paulo estende a tal ponto o tratamento de cada
assunto, por meio de exemplos (como os de Abraão e Adão) e séries de citações
do Antigo Testamento que chega a dificultar a compreensão do leitor.
Essas características do texto paulino se tornam ainda mais
saliente, quando ele passa a considerar as virtudes. Vai tão longe, nesse
ponto, que escreve quatro capítulos, nos quais mistura o tratamento de virtudes
diversas, como o amor (12:9-10), o bem, o zelo, o fervor (12:11), a alegria, a
paciência, a perseverança (12:12), a generosidade, a hospitalidade (12:13), a
bênção aos inimigos (12:14), a assistência devida a eles (12:20), a
solidariedade com os que se alegram e com os que choram (12:15), a unanimidade,
a humildade (12:16), a não retribuição do mal, a honestidade (12:17) e a paz
(12:18). Trata, ao mesmo tempo, do oposto dessas virtudes, que compendia no mal
(12:10,21). Tudo isso é desenvolvido, em poucos capítulos, o que causa a
impressão de mistura de temas e cria a necessidade de esclarecimento das linhas
principais do pensamento do apóstolo.
Um dos pontos a serem esclarecidos é o da hierarquia das virtudes,
que o Papa Francisco reafirmou na Exortação Evangelii
gaudium publicada
recentemente. Hierarquia significa que as virtudes cristãs têm diferentes graus
de importância. No entanto, ao lado da hierarquia, devemos reconhecer que as
virtudes se dispõem também numa ordem de urgência. Isso porque, sem serem
maiores ou mais importantes, certas virtudes podem ser mais urgentes que
outras.
A hierarquia das virtudes é absoluta. Aplica-se a todos os casos,
sem modificação. A urgência delas é relativa. Decorre das circunstâncias que as
tornam mais ou menos necessárias, em determinado momento histórico ou em
determinada situação de vida. De acordo com tais circunstâncias, é que as
virtudes são menos ou mais urgentes.
Tanto a hierarquia como a ordem de urgência se evidenciam no
tratamento que Paulo dispensa às virtudes. Por exemplo, em 1ª aos Coríntios
13:13, ele afirma que o amor é maior do que a fé e a esperança. Isso indica que
há uma hierarquia entre as três virtudes. Do mesmo modo, em Romanos 12 e 13,
embora trate de tantas virtudes, Paulo retorna com maior frequência ao amor
(12:9-10; 13:8-10), em atenção à sua prioridade hierárquica.
Porém, outras vezes, Paulo enfatiza uma virtude, não por causa da
sua superioridade em relação a outras, mas devido à situação histórica peculiar
em que os romanos se encontravam. É o caso da submissão às autoridades civis
(13:1-7). Paulo a encarece de modo peculiar, não porque fosse superior a outras
virtudes, mas porque Roma era a sede do Império. Semelhantemente, a tolerância
e a receptividade para com pessoas de diferentes convicções também são
enfatizadas, nos capítulos 14 e 15, devido à igreja de Roma ser composta por
judeus e gentios, pessoas cultas e bárbaras, enfim por indivíduos
dessemelhantes no concernente à religião e à cultura.
Quando compreendemos que Paulo apresenta as virtudes cristãs, sob
a ótica da hierarquia absoluta e da urgência relativa delas, o tratamento aparentemente
confuso que ele lhes dispensa se desfaz, ao menos em parte. Paulo não é
confuso. Pelo contrário, ele trata de várias virtudes ao mesmo tempo, sem
definir e sem dizer de que modo cada uma deve ser posta em prática, porque
entende que isso só é possível nas circunstâncias concretas de vida.
É temerário pensar que, na mente de Paulo, as virtudes estivessem
dispostas de maneira caótica. Um homem com formação farisaica, como ele, era um
fenômeno do pensamento ético, não um ignorante dessa disciplina da conduta
humana. Por isso, o fato de Paulo tratar das virtudes ao mesmo tempo, sem as
definir e sem esclarecer como as pôr em prática, nas diferentes situações de
vida, não é um sinal de confusão ou vagueza, mas de uma orientação bem
determinada em matéria de comportamento.
Coloquemo-nos na pele de Paulo, por um instante. Ele escrevia a
cristãos da capital do Império. Portanto, a pessoas mergulhadas numa atmosfera
política densa e em costumes pagãos. Poderia exigir que elas praticassem a
humildade ou o amor de determinada maneira, enfim que adotassem comportamentos
muito bem definidos, mas se contenta com recomendar a prática dos valores
morais. Poderíamos dizer: a recomendá-la em abstrato.
Como já disse, a decisão de recomendar as virtudes em abstrato e
não em concreto, assim como a opção por não as definir de maneira exata, não é
casual. É um sinal fortíssimo de que as virtudes cristãs não se definem
absolutamente em abstrato, mas em concreto. E se não podem ser definidas em
abstrato, menos ainda podem ser praticadas. Portanto, para usar a linguagem dos
jogos, Paulo deposita todas as suas fichas na abordagem abstrata dos valores.
Afirma que o amor, o bem, o zelo, o fervor, a alegria, a
paciência, a perseverança, a generosidade, a hospitalidade etc. devem ser buscados.
Negá-los é um grave erro. Por outro lado, os vícios que se opõem àquelas
virtudes devem ser evitados. Notemos, porém, que, ao ensinar o que é
propriamente o amor, em 1ª aos Coríntios 13, Paulo não tenta expressá-lo numa
fórmula sintética. Não procura capturar a virtude do amor e prendê-la numa
definição aristotélica. Pelo contrário, ele mostra o que o amor é, por meio do
que ele faz. Devemos pensar o mesmo, em relação a todas as outras virtudes.
As virtudes só se definem em situações concretas. Fora delas, não
sabemos o que elas são, nem o que é seu oposto: o pecado. Em abstrato, as
virtudes são símbolos do coração de Deus. O amor, o bem etc. são sentimentos de
Deus. Representam, portanto, Deus. Deus é amor, Deus é o bem. No entanto, em
termos de atitudes humanas, só podemos definir o amor, o bem e todos as outros
valores cristãos em situações específicas.
Claro que esse modo de ver as virtudes tem muitas consequências. A
primeira delas é ampliar, extraordinariamente, o papel da dúvida no interior da
Ética. Que é certo? Que é errado? Que Deus ordenou fazer? Que ordenou não
fazer? Não podemos responder tais perguntas, no plano abstrato em que estão
formuladas. Mais do que isso: as perguntas não têm respostas possíveis. E
sabemos bem que perguntas sem respostas possíveis são absurdos.
A Ética como disciplina abstrata do comportamento comporta amplo
espaço para a dúvida. É o que a história do patriarca Jó exprime. Depois que os
sete filhos e as sete filhas dele se reuniam para banquetear, Jó “levantava-se
de madrugada e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles”. Não o
fazia, porém, baseado em certeza, mas na dúvida: “Dizia: Talvez tenham pecado
os meus filhos, e blasfemado contra Deus em seu coração” (Jó 1:5).
A palavra “talvez” indica que o patriarca tinha dúvida de que seus
filhos houvessem pecado. E, como os intermináveis debates do Livro de Jó
sugerem, suas dúvidas não se deviam à ignorância do que os filhos haviam feito,
mas do que aquilo que eles tinham praticado significava para Deus. Jó sabia
muito bem o que era o pecado cometido na adoração, mas não sabia com certeza o
que era pecado moral. Por isso, disse: “Se olhei para o sol, quando
resplandecia, ou para a lua, que caminhava esplendente, e o meu coração se
deixou enganar em oculto, e beijos lhes atirei com a mão, também isto seria
delito à punição de juízes” (Jó 26:10). A idolatria, o culto prestado ao sol ou
à lua, eram pecados para Jó. Eram até mesmo pecados sujeitos à punição de
juízes. Mas Jó não disse outro tanto dos pecados morais.
Não nos enganemos com a ideia de que as coisas se tornaram mais
definidas depois. Não se tornaram. Jó se situa num tempo anterior a Moisés.
Porém, as permissões e proibições que esse legislador entregou a Israel estão,
em grande parte, envoltas na cláusula pela qual Jesus explicou o direito ao
divórcio: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu
repudiar vossas mulheres”. E não nos esqueçamos do que ele afirmou em seguida:
“Entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8). Se não só o divórcio,
mas outras permissões cabem nessa interpretação de Jesus, a lei não define,
muito menos define com exatidão o que seja o pecado moral. O que a lei define,
como Jó também faz, é o pecado de adoração.
Jó está mais perto do “princípio” do que Moisés. Veio antes dele.
Será que não podemos estender a dúvida que Jó manifestou à Lei de Moisés? Será
que não devemos projetá-la no Novo Testamento? Que significa “Não julgueis,
para que não sejais julgados” (Mt 7:1)? Que significa Jesus ter perdoado a
pecadora que Moisés mandara apedrejar (Jo 8:11)?
Vejamos o caso do amor ao inimigo. Em Romanos 12, Paulo cita
apenas dois versos do Antigo Testamento. Esses versos afirmam: “A mim pertence
a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor” (12:19; Dt 32:35) e “Se o teu inimigo
tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque, fazendo
isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça” (12:20; Pv 25:21-22).
As citações escolhidas por Paulo indicam que o foco da
argumentação do apóstolo está posto no amor ao inimigo. O amor é uma virtude
suprema. Porém, dos amores, o que é dedicado ao inimigo é o maior, o que mais
envolve a renúncia de si. Notemos que os versos citados atribuem conteúdo
concreto a esse amor. Amar o inimigo é dar-lhe de comer e de beber. Não que a
virtude esteja posta em atos mecânicos. Ela tem o seu lar no coração. Virtude
não é o dispêndio de energia que realizamos ao agir. É o sentir humano e um
modo especial de sentir. Mas Paulo define o amor ao inimigo e as outras
virtudes sempre em circunstâncias concretas.
Devemos extrair disso que, em todas as circunstâncias, é nosso
dever dar de comer e beber aos inimigos? Absolutamente não. Afirmá-lo seria
subverter a ideia bíblica de que o virtuoso define-se e se ajusta a
circunstâncias variáveis. Não podemos supor que as circunstâncias sempre nos
permitirão dar de comer e beber aos inimigos. Pode ser que, em alguns casos,
fazê-lo signifique provocá-los à ira. Então, não o devemos fazer. De sorte que
o mandamento do amor ao inimigo significa que devemos dar-lhe de comer e de
beber tanto quanto as circunstâncias permitam.
No capítulo 1, Paulo associou a rejeição de Deus pelos gregos à
perversão sexual. Vivemos num tempo em que quase metade do mundo pensa que não
há perversão sexual, e a outra quase metade acha que todo ato sexual é
pervertido. O pensamento de Paulo distancia-se desses dois extremos. E, ao
mesmo tempo, é mais profundo que eles, pois trata a perversão como manifestação
da ira de Deus pelo pecado, não como o próprio pecado.
Isso exige que separemos bem as coisas. O pecado é um fato da
vontade. É a resolução de abandonar a Deus ou, numa palavra: a idolatria. O que
Paulo descreve como perversão, em Romanos 1, por outro lado, parece um fato da
natureza e não da vontade, já que não é o próprio pecado, mas o juízo de Deus
sobre ele. Com efeito, se o pecado reside na vontade, a perversão a que Paulo
alude parece ser um dado da natureza, como uma doença ou imperfeição.
Mas isso contradiz a passagem em que Jesus afirmou que o cego de
nascença não veio ao mundo sem ver, porque seus pais haviam pecado (Jo 9:1-3).
A passagem impede considerar a cegueira o resultado físico de um julgamento de
Deus. Por que a perversão que Paulo apresenta como consequência do pecado seria
diferente? Se Deus não julga, usualmente, por meio de castigos físicos, é mais
provável que Paulo se referisse ao juízo de Deus sobre os gentios
como uma perversão da vontade. Voltaremos mais tarde a esse tema.
QUE
É VIRTUDE?
Podemos tomar a Carta aos Romanos como uma
mensagem que desceu à Terra do modo como uma folha desprende-se e cai de uma
árvore, sem qualquer mediação da cultura humana. Durante milhões de anos,
tantas folhas que se soltaram e caíram de árvores o fizeram pela mesma e única
causa: a ação da força gravitacional. No entanto, não é assim com objetos
culturais como palavras. A utilização de um verbo não é como a queda de uma
folha. Dependendo da época e do contexto cultural em que é empregado, o mesmo
verbo pode assumir significados bastante distintos.
A inspiração divina da Bíblia não existe para tratarmos as
palavras como se fossem folhas. Deus ter inspirado a Epístola aos Romanos não
significa que as suas palavras sejam independentes das convenções
linguísticas e teológicas da época em que foram escritas. Pelo contrário, a
inspiração supõe a diferença bem demarcada entre natureza e cultura, o que
significa que não podemos desconsiderar o significado específico do texto para
os leitores do primeiro século.
Para exemplificar, quando fala de Jesus de Nazaré e sua morte,
Paulo se refere ao que as pessoas daquela época sabiam a respeito deles. E,
quando trata da virtude, nos capítulos 12 a 15, da mesma forma, ele pressupõe o
que essa ideia significava no contexto cultural do primeiro século.
Porém, diferenças culturais podem ser tão grandes que grupos
distintos de pessoas podem ter concepções opostas sobre a virtude, na mesma
época. Por isso, para entender o que era virtude para Paulo, devemos
estabelecer primeiro a que contexto cultural ele pertenceu. Sabemos que Paulo
foi judeu e cidadão romano, que residiu em Tarso, na Cilícia, e estudou aos pés
de Gamaliel, em Jerusalém. Está, pois, claro que ele recebeu duas formações e
pertenceu, de certa maneira, a dois mundos: o judeu e o romano.
No entanto, se olharmos para a figura de Saulo de Tarso, nos
capítulos 8 e 9 de Atos dos Apóstolos, perceberemos que a dupla formação que
recebeu resultou numa orientação de vida única e bastante clara. Saulo
foi, antes de tudo, alguém devotado à religião judaica. Tudo o que ele sabia
moldava-se à relação privilegiada que tinha com a fé dos judeus, especialmente
como afirmada pela seita dos fariseus. Por isso, o contexto cultural em que
Paulo deve ser situado preponderantemente é o da cidade de Jerusalém e do
Templo da sua época.
Nas obras que publicou sobre Jesus, Bento XVI utilizou-se dos
resultados da pesquisa sobre o judaísmo do primeiro século apresentados por
Martin Hengel, em 1993, em A
questão joanina. De acordo com o Papa, “no tempo de Herodes se formou
em Jerusalém uma autêntica classe alta judaica mais ou menos helenizada com uma
cultura especial” (BENTO XVI. Jesus
de Nazaré. São Paulo: Planetas, 2007. p. 195).
Essa informação de suma importância permite entender que não
apenas Tarso da Cilícia, onde Paulo morou, mas a própria Jerusalém, onde
estudou, haviam sido permeadas pela cultura grega. Nesses lugares, muitas
pessoas falavam grego e usavam palavras e ideias carregadas de
significados gregos.
Com toda probabilidade, esse era o caso da ideia particular de
virtude que Paulo utilizou em Romanos 12 a 15. Não devemos supor que essa ideia
fosse impermeável à maneira grega de pensar. O conteúdo dela
era estabelecido, sem dúvida, pela Lei de Moisés. Porém, o significado
mosaico da virtude não colidia com as mais prestigiadas ideias gregas sobre
ela. É improvável que Paulo tivesse divergências fundamentais com o modo de
conceber a virtude de Platão, Aristóteles e os filósofos da Estoá (estoicos).
Aliás, essas concepções estavam entretecidas umas às outras e, às vezes,
entretecidas também com o Antigo Testamento, no ambiente amplo de Jerusalém.
Um exame detido de Romanos 12 a 15 mostrará, por exemplo, que
Paulo evita conceber as virtudes como extremos morais. Ao tecer o elogio da
moderação, em 12:3, ele mostra não situar a virtude nos extremos: “Digo a cada
um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com
moderação segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”. Moderação, nesse
ponto, indica a virtude moderada por uma medida.
A moderação não é um esforço individual, mas um limite que a
situação no corpo de Cristo impõe a cada um. E, se identificarmos a virtude, em
geral, com uma medida de moderação, teremos de concluir que ninguém, enquanto
indivíduo, pode estabelecer o que é certo e errado, já que a moderação como tal
se exerce no âmbito do corpo de Cristo: “Porque, assim como num só corpo temos
muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função; assim também nós,
conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo,
porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja
segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que
ensina, esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta, faça-o com dedicação; o que
contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce
misericórdia com alegria” (12:4-8).
No final desses versos, as virtudes cristãs tomam forma clara.
Paulo refere-se à liberalidade, à diligência, à misericórdia como se tudo o que
foi dito antes devesse conduzir a elas. Para ele, a função de um membro do
corpo não é apenas um exercício ou trabalho, mas a manifestação de uma virtude
particular. A cada função está ligada uma virtude: à contribuição para o
sustento de outras pessoas está associada a liberalidade; à liderança, a
diligência; ao exercício da misericórdia, a alegria. Assim, a afirmação de que
cada um deve exercer a sua função conforme a medida da fé equivale a propor que
a virtude correspondente deve ser exercida com medida.
Assim, a concepção extremada da virtude parece estranha ao
pensamento de Paulo em Romanos. Para ele, agir bem é o resultado de um hábito
exercido moderadamente, o que nos conduz à noção de mesótes desenvolvida
por Aristóteles. Mesótes é o ponto médio entre extremos que são
dois vícios. Para exemplificar, a generosidade (virtude) é o ponto médio entre
a avareza e a prodigalidade, que são dois vícios. E a coragem (virtude) é o
meio-termo entre os vícios da covardia e da temeridade.
Para o filósofo grego, um dos extremos se caracteriza pela simples
carência da virtude. A avareza, por exemplo, é a falta de generosidade, e a
covardia, a falta de coragem. O outro extremo corresponde ao excesso da virtude
ou de algo semelhante a ela: a prodigalidade é o hábito de gastar demais, e a
temeridade, a coragem excessiva.
Não estou a afirmar que Paulo concebe as virtudes exatamente como
Aristóteles, mas que, por uma espécie de infusão cultural, o seu pensamento
reflete certas nuanças e concorda em vários pontos com o daquele filósofo.
Estou a afirmar que as palavras de Paulo, em Romanos, não são folhas de
árvores, mas objetos culturais. Se Deus inspirou aquelas palavras, ele as usou
como o que são, não como outra coisa. Por isso, a referência às virtudes como
hábitos moderados, como medidas ou proporções do agir humano pode bem estar em
paralelo com o pensamento de Aristóteles como tinha sido incorporado,
particularmente, ao judaísmo de Jerusalém.
Nas suas epístolas, Paulo quase sempre se refere às virtudes como
conceitos abstratos. Ele quase nunca se preocupa em mostrar em que consiste a
virtude numa situação concreta. Deixa a determinação desse ponto para os
destinatários das suas epístolas. Mas, em Romanos 12, ao abrir a seção sobre os
valores cristãos com alusões à moderação, à medida e à proporção da fé, ele
emite sinais claros de uma concepção geral da virtude como hábito equidistante
de extremos viciosos.
Esse modo de pensar de Paulo não fica sem consequências. Se a
virtude é o ponto médio entre a carência e o excesso, o pecado da sodomia deve
ser caracterizado não como orientação sexual divergente da média da população,
mas como um excesso disso. Como um homossexualismo levado ao ponto da
monstruosidade. Admitamos que Paulo considerasse a heterossexualidade o
paradigma do comportamento sexual virtuoso. É muito provável que ele, de fato,
o fizesse. O problema é que, para tratá-lo como paradigma, ele tinha de situar
toda uma gama de comportamentos entre dois vícios, um correspondente à falta de
impulso sexual (assexualismo), e o outro, ao impulso sexual monstruoso
(sodomia). Sob essa concepção, nem a castidade forçada é virtuosa, já que
coincide com o assexualismo, nem as variedades de comportamento sexual do
mundo grecorromano são pecaminosas, na medida em que permanecem afastadas da
sodomia.
Em 1ª aos Coríntios 6:9, Paulo condena quatro comportamentos
sexuais: a devassidão (impureza), o adultério, o homossexualismo e a sodomia.
Se Romanos e 1ª aos Coríntios estiverem suficientemente de acordo um com o
outro, teremos de concluir que a cada um desses vícios corresponde outro
oposto. Portanto, se a devassidão é o descontrole do ímpeto sexual, seu oposto
há de ser o controle demasiado, a castração, o voto de castidade sem qualquer
sentido. Se o adultério é o desrespeito pelo vínculo matrimonial, seu contrário
deve ser a proibição total do divórcio. Se o homossexualismo é a inclinação
contrária ao aparelho sexual provido pela natureza, o oposto é a proibição da
orientação divergente da natureza. E se a sodomia é o homossexualismo que se
prevalece da força contra a opção sexual alheia, como vemos em Gênesis 19, o
contrário há de ser o homossexualismo inerte, passivo e infenso a toda prática
sexual.
Esse modo de entender as virtudes e os vícios ultrapassa o sentido
literal de Romanos 12, mas não o conjunto de ideias que circulava em Jerusalém
(e tanto mais em Tarso), naquele tempo. Interpretar o texto de Paulo à letra
pode implicar e frequentemente implica considerar as suas palavras objetos
naturais. Mas elas não o são. Há em Romanos e nas Epístolas de Paulo, em geral,
um conceito subjacente de virtude colhido não só a Moisés, mas também ao
pensamento grego. O fato de Romanos ter sido escrita em grego é, por si, o
primeiro indício disso.
E, se os vícios hão de ser entendidos como extremos relacionados
ao excesso e à privação de certas práticas, a virtude terá de ser interpretada
não como uma única prática, mas como uma gama situada entre aqueles extremos.
Isso não significa que o pensamento moral de Paulo reproduza Aristóteles, mas
que há uma inspiração aristotélica nele. Essa inspiração parece ter levado
Paulo a conceber a virtude como meio-termo entre vícios opostos. Não podemos, é
claro, tecer essas afirmativas de modo peremptório, mas elas parecem
condizentes com a orientação geral dos textos do apóstolo e com o ambiente
cultural em que ele vivia.
Em 1ª aos Coríntios 7:10,12, Paulo escreveu: “Aos casados ordeno,
não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido [...] Aos mais, digo
eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula e esta consente em morar
com ele, não a abandone”. Notem que Paulo se referiu a duas classes de pessoas
unidas sexualmente a outras: os casados e “os mais”. A estes não ordenou que se
separassem de seus pares, por considerar ilícito o relacionamento sexual que
mantinham. Pelo contrário, ordenou que permanecessem com seus companheiros ou
companheiras, embora não fossem casados com eles. Isso mostra, com toda
clareza, que o pensamento moral do apóstolo, em questões sexuais, não tinha a
estreiteza que se tornou comum no meio evangélico.
Infelizmente, a história da interpretação protestante da Bíblia é
tão rica em estreitamentos! Apenas recentemente, a consciência desse mal se
disseminou o bastante para que o início de uma abertura passasse a ser buscado.
Mas a que preço! Se não são como folhas, ideias tampouco são como obras de
arte. Estas se sucedem sem se refutarem umas às outras. Portanto, sem
cancelarem cada qual o valor da outra. A arte é pura soma. Mas não é possível
adotar uma ideia nova sem negar outra antiga. O avanço na verdade não se faz só
por somas, mas também por subtrações. E não há fim no somar e no subtrair. Não
há ideia nova e revolucionária que não envelheça e se faça conservadora. Não há
verdade humana que não prescreva, nem teoria que não se transforme em erro. Por
isso, buscar a verdade é somar e subtrair ideias incessantemente. E o que torna
essa atividade dramática não é o seu nunca acabar, mas o fato de, como seres
humanos, termos muito mais deficiências na arte de subtrair que na de
somar.
A
VIRTUDE PRIMEIRA
Se Romanos 12:1 não tivesse sido escrito, jamais um cristão atual
faria as declarações que ali se encontram, pois a mentalidade que levou Paulo a
escrever aquele verso não existe mais. Quando queremos falar de consagração,
referimo-nos à entrega da alma, não do corpo, como Paulo escreveu. E temos
enorme dificuldade para entender o que pode significar um culto prestado com a
razão.
Paulo, porém, referiu-se à consagração do corpo e ao culto mais
racional. Essas declarações dizem algo muito importante sobre a antropologia da
época. Para Paulo, o homem era uma alma, que possuía um corpo. Cabia,
portanto, à alma governar o corpo e não o contrário. Por isso, era ela que
apresentava o corpo como sacrifício a Deus.
As afirmações do apóstolo confirmam o que temos visto diversas
vezes neste comentário: que a alma ou a mente, se preferirem, é a parte
principal do homem e o centro da salvação de Deus. Por ser a parte principal e
o centro, a mente é simbolizada pela mulher do capítulo 7, cujo primeiro marido
morre, o que lhe permite casar-se com outro (Cristo).
A superioridade da mente ao corpo é uma lição tão simples quanto
esquecida. Porém, é o que permite à alma consagrar o corpo a Deus. Encontramos
essa lição repetida por toda parte no Novo Testamento. Às vezes, ela é afirmada
de modo implícito, como em João 1:12, que estabelece que a regeneração não
consiste em nascer do sangue, nem da vontade da carne ou da vontade do homem. O
sangue, como elemento corpóreo, opõe-se à vontade, que é o elemento psíquico,
porque o corpo é distinto da alma. Do mesmo modo, em Romanos, por meio do culto
racional, a alma deixa de ser guiada pela carne e passa a guiá-la. Apresenta-a
como sacrifício vivo e agradável a Deus.
Essas são as ideias com as quais Paulo abre a longa seção a respeito
da conduta dos que creem em Cristo. Ele as utiliza, pois pensa que o
cumprimento da lei se obtém pela liderança da mente sobre o corpo. Fazer a
coisa certa é agir racionalmente. E agir racionalmente é o mesmo que a mente
governar o corpo.
As palavras de Paulo supõem o dualismo mente-corpo? Sem dúvida. E
a cultura atual: nega esse dualismo? Nega-o, mas em parte. A alma continua a
ser uma categoria do pensamento contemporâneo e, como tal, continua a se opor
ao corpo. Não há como concebê-la, a não ser nessa oposição.
Romanos 12:1 reafirma, sinteticamente, o lugar reservado à
razão em tudo o que é humano. Tanto o ser como o dever-ser do homem são
racionais. O homem é guiado pela razão, queira-o ou não. Esse é o seu ser, a
sua natureza. Mas ele também deve ser guiado por ela: esse é o seu dever-ser. A
racionalidade é, portanto, um fato e um mandamento para o homem. Como fato, ela
tem sua origem na criação; como mandamento, sua fonte é a lei.
Poderiam indagar se a fé não é uma experiência da afetividade. Se
Deus e a experiência de Deus não se situam no sentimento. Situam-se. É o que
significa a declaração “Com o coração se crê para justiça” (10:10). O coração
significa, aí, o mesmo que em Deuteronômio 6:5: “Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”. Quem duvida
de que o coração, nesse último verso, se distingue da razão fria? O coração é,
portanto, a razão enquanto sente. Por isso, ao citar Deuteronômio 6:5, Jesus
acrescentou a cláusula: “e de todo o teu entendimento” (Mc 12: 30; Lc 10:27).
A cláusula não pode ter sido inserida por um copista descuidado. “Shema,
Israel [Ouve, Israel], o Senhor teu Deus é o único Deus. Amarás o Senhor, teu
Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” é um
verso fundamental demais para ter sido citado de maneira errada por simples
falta de cuidado. Errar ao citá-lo é como errar ao santificar outro nome em vez
do nome de Deus. Portanto, ao inserir a cláusula “de todo o teu entendimento”,
em vez de deturpar o versículo, Jesus entregou-nos a chave interpretativa dele.
Tanto o coração como a alma e as forças têm no entendimento sua fonte
primordial, porque o ser e o dever-se do homem são a sua razão.
O coração é o entendimento aquecido pela palavra de Deus. Está,
pois, longe do pensamento bíblico ele excluir a mente. Se o coração excluísse a
mente, a afetividade do ser humano seria idêntica à do animal, o que é absurdo.
Mas ele não a exclui, antes tem nela o seu ponto culminante, a sua máxima
realização.
Paulo nos lembra que o fato de a fé pertencer à esfera da
afetividade e do sentimento não significa que ela seja irracional. Como o
Antigo e o Novo Testamentos o apresentam, o sentimento não litiga com a razão.
O mandamento não diz só “de todo o teu coração”. Nem diz apenas “de todo o
teu entendimento”, como se devêssemos optar por um ou por outro. Diz “de todo o
teu coração e de todo o teu entendimento”, a fim de que conciliássemos os
dois.
A primeira de todas as virtudes, no Novo Testamento, é a fé. Mas
não a fé irracional, a fé dirigida a qualquer coisa, mas a fé dirigida à
verdade. Agostinho ensinou que "crer é aceitar como verdadeiro o que
se diz e a aceitação é certamente um ato da vontade" (HIPONA, Agostinho
de. O espírito e a letra.
3ª ed., São Paulo: Paulus, 2009. p. 81). A fé que Paulo nos apresenta não
é a fé num erro. É a fé na verdade, e a verdade, a menos que queiramos alterar
o seu DNA, permanece uma categoria racional.
Se a fé fosse um sentimento irracional, toda fé seria igualmente
justificável, pois o sentimento não é admitido ou rejeitado em função de outra
coisa a não ser de si mesmo ou de outro sentimento. Não se pode afirmar que um
sentimento irracional seja certo ou errado. Ele é apenas irracional. Portanto,
não temos como o censurar nessa base. De modo que, se devemos criticar a
crença em mulas sem cabeça ou coisas semelhantes, é porque devemos exigir que a
fé se mantenha ligada à razão.
Credo quia absurdum (creio porque é absurdo)? Essa confissão
resume a História da Religião, confunde-se com ela, porque nenhum ato lógico
esteve sujeito a menor controle, até hoje, do que a fé. Mas o fato de a fé
ter sido, historicamente, tão associada ao absurdo não exclui,
por si só, que ela tenha estrutura racional. Assim como os pecados humanos, os
absurdos da fé são redimidos no cristianismo, que não oferece somente
o perdão dos pecados, mas a libertação de absurdos e superstições. A
verdade não agrilhoa: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará" (Jo 8:32).
Porque a fé no absurdo tem correção, porque há redenção
para ela, é preciso não entregar o ato de crer ao descontrole da
irracionalidade. Crer não pode ser crer em esquisitices, em irracionalidades
consumadas, em coisas incompatíveis com a vida como ela se apresenta. É preciso
examinar seriamente se a fé é incorrigivelmente absurda, como hoje se alega, ou
não. Se concluirmos que não o é, precisaremos erguer a voz e apontar, com
coragem, a estrutura lógica do ato de crer. Precisaremos explicar que crer
no absurdo é perder-se ao crer, porém crer no que não é absurdo equivale
a encontrar-se.
Aristóteles divide as virtudes em intelectuais (a exemplo da
verdade) e morais (assim como a bondade e a paciência). Paulo, por sua vez,
declara que os gregos retêm a verdade na injustiça (1:18). Por se opor à verdade,
essa não é uma injustiça comportamental, mas intelectual. Há, pois, justiça
intelectual e comportamental, como Paulo reafirma em 1ª aos Coríntios 13:6, ao
declarar que o amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a
verdade. De novo nesse versículo, a injustiça que se opõe à verdade não é
comportamental, mas intelectual.
Crer não é saber: quem discordará dessa proposição? Mas, se não o
é, a fé implica a dúvida. Implica que aquilo em que se crê pode ser ou não ser.
E não implica uma terceira possibilidade além dessas. Por isso, a fé é a
manifestação do princípio lógico conhecido como tertium non datur (terceiro excluído) no território da
transcendência. Crer é crer que Deus é ou não é. Não há terceira possibilidade.
Mas há um problema nisso: nunca se propôs que o terceiro excluído fosse
qualquer outra coisa, além de um princípio lógico. E, se ele o é, então a fé é
lógica, na exata medida em que Deus é ou não é.
Crer é aceitar algo tão tremendo quanto “Deus ser ou não ser”.
Infelizmente, alguns nada veem de tremendo nesse dado. Para eles, Deus ser ou
não ser é o óbvio, em toda a sua extensão. Mas como é difícil viver em
conformidade com o óbvio! Se Deus é ou não é, por que vivemos tão
despreocupados com a eternidade, nas nossas sociedades complexas e abastadas?
Pascal afirmou: a alma é mortal ou imortal. E recriminou os que vivem como se
só existisse a primeira possibilidade. Se os mortos não ressuscitam, disse-nos
Paulo, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1 Co 15:32). Mas, se eles
ressuscitam, prestemos bastante atenção, porque amanhã viveremos.
Essa é a primeira virtude: a fé na verdade transcendente, que não
conhecemos a não ser minimamente. Dela nasce outra fé, dirigida à verdade
imanente, que conhecemos muito melhor. Tanto no Antigo Testamento quanto no
Novo, Deus, que só pode ser conhecido pela fé, exorta as pessoas a falarem a
verdade umas às outras. Daí a instituição do juramento. Ao se pronunciar, em
momentos decisivos, o homem devia fazê-lo sob juramento. Devia jurar, a fim de
que a verdade fosse estabelecida. E, para que não se pense que a natureza
humana é suficientemente descrita pela propensão à mentira, sem referência às
meias verdades que são tão humanas quanto comuns, naquele tempo eram
necessárias duas testemunhas juramentadas para que uma só verdade se
constituísse.
Em Neemias, encontramos um exemplo notável da extensão do valor da
verdade, no Antigo Testamento. Confrontado por uma súcia de opositores
inescrupulosos, ardilosos, mentirosos e fraudulentos, enfim com a pior de todas
as raças, formada por Sambalá, Tobias, Gesém e outros, Neemias não agiu de modo
inescrupuloso, ardiloso, mentiroso ou fraudulento, a fim de se defender.
Recebeu uma carta de dois de seus arquirrivais para que comparecesse a um
encontro em Cefirim, no vale de Ono. A carta omitia a verdadeira intenção dos
opositores, que era fazer mal a Neemias (Nm 6:2).
Quatro vezes os inimigos de Neemias mandaram-lhe cartas com esse
falso convite. Quatro mentiras, uma a mais que as tentações do deserto. A
todas, Neemias opôs uma só verdade. Disse que não ia ao encontro, por
estar ocupado com uma grande obra (a reconstrução dos muros).
Na quinta vez, Sambalá escreveu-lhe que os judeus tramavam
rebelar-se e constituir Neemias seu rei. Não era possível acusação mais grave,
nem mais inverídica. Que replicou-lhe o líder judeu? Mentiu, para enganar seu
adversário? Não, mas usou de sinceridade. Disse-lhe simplesmente: “Não
aconteceu nada de semelhante ao que afirmas”. E levou a sinceridade ao ponto da
acusação: “Tudo não passa de uma invenção do teu coração” (Nm 6:8).
A atitude de Neemias faz lembrar o conselho “Não vos canseis de
fazer o bem” (2 Ts 3:13). Cansar-se do bem, desfalecer na adesão aos valores é,
para alguns, um problema maior que o gosto pelo desvalor. Os judeus que tinham
voltado para Jerusalém viviam em grande pobreza. Tinham de realizar uma obra
inversamente proporcional aos seus parcos recursos. E, como se não bastassem essas
dificuldades, os homens mais poderosos da província se uniram para se opor a
eles e ainda usaram de falsidade para com Neemias. Que o líder dos judeus opôs
a esse prodígio de orquestração e falsidade? Simplesmente a
realidade. É até onde deve ir a adesão de um homem à verdade.
Este é, porém, um tempo frívolo, uma era de indiferença quanto à
verdade suprema. Que dizer das demais... Quem não respeita a maior de todas as
verdades, por que motivo, no céu ou na terra, respeitaria as menores? Quem foi
Jesus?, pergunta uma vasta literatura. A resposta que oferecem é: “Que
importa, se eu não preciso dele?” “Deus criou o Universo ou tudo se fez sem
ele?”, indagam os livros. Os que ouvem replicam: “Que importância tem isso?”
Claro: a verdade já não importa. Há muito deixou de importar. É o que se diz e
se ouve, em boa parte do Ocidente.
Dá calafrio pensar no que significam as palavras, as demonstrações
e as juras que essas pessoas fazem sobre fatos mais corriqueiros. Gela pensar
no que significam os seus convites para um simples encontro....
A
HUMILDADE
Os 20 séculos que nos separam da época de Paulo impedem-nos de
compreender certas partes dos seus escritos. Dificilmente entendemos por que
Paulo passa do culto (latréia) a Deus, em 12:1-2, à distribuição de dons
e à exortação dos membros do corpo de Cristo à humildade, nos versos 3 a 8. Que
relação pode haver entre o culto, os dons e a humildade, como Paulo os aborda?
Porém, quando olhamos a carta de perto, a relação aparece-nos
bastante estreita. Qual é a síntese do pecado do homem grego, a não ser o
abandono do culto a Deus, seguido do culto aos ídolos? E em que se resume a sua
salvação, a não ser na adesão àquele primeiro culto? A igreja romana cultua
Deus, em grave contraste com os gentios, que perseveram no abandono dessa
adoração.
Mas o culto a Deus não é algo que o homem consiga realizar por si
mesmo. Como a própria salvação, o culto é também uma dádiva. Isso significa
que, para cultuar a Deus, não basta querer cultuá-lo. A vontade humana não é
capaz, por si mesma, de adorar a Deus em espírito e verdade (Jo 4:24). Deve
passar por um processo que a habilite para o culto, que Paulo chama
transformação (metamorphósis) da mente por um novo tipo de pensar “com
moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).
Esse pensar não é ocasional, mas um hábito. Poderíamos descrevê-lo
como um pensar com humildade. Embora Paulo não use a palavra humildade, mas
moderação e medida, a descrição que nos dá do pensar cristão corresponde ao
conteúdo daquela virtude. Muitos pensam na humildade como algo exterior: um
modo de trajar-se, de gesticular e, principalmente, de falar. Paulo a concebe
como o hábito de pensamento a que a primeira bem-aventurança se refere:
“Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt
5:3).
A humildade do espírito é, pois, o cerne do culto prestado a Deus
no Novo Testamento. “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além
do que convém, antes pense com moderação [sothroneín] segundo a medida
da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3). Nesse versículo, a preocupação do
apóstolo e, poderíamos dizer, a de Deus por meio dele não recai em qualquer
pensamento. Deus vela sobre todos os pensamentos do homem, mas não sobre todos
da mesma maneira. O que mais lhe importa é o que pensamos sobre nós mesmos.
A palavra sothroneín,
em 12:3, é a chave para entendermos o que torna pecaminoso o pensamento do
homem sobre si. O homem perde a humildade, quando pensa imoderadamente nas suas
qualidades. A ênfase da exortação de Paulo está posta na intensidade, não na
verdade ou no erro do pensamento. Uma pessoa feia pode achar-se bonita e
inchar-se de orgulho, mas o caso comum é os belos caírem na vacuidade do
orgulho. O mesmo pode ser dito dos inteligentes e dos portadores de todas as
outras virtudes.
O princípio do pecado não é, pois, o equívoco sobre si, mas o
pensamento imoderado a respeito das próprias qualidades. Não é errado alguém
entender-se belo ou inteligente. Porém, é pecaminoso entender-se assim além da
conta. E qual é a conta? Qual a medida que Deus fixou para o pensamento a
respeito das próprias qualidades? Paulo aponta dois limites: o reconhecimento
da medida das nossas qualidades e da sua origem.
Todos temos carismas, mas carismas limitados: assim profecia como
ministério, ensino, exortação, contribuição, liderança, misericórdia (12:6-8).
Ninguém recebeu toda a palavra de Deus ou palavras de Deus sobre tudo. Muito
longe disso. Ninguém é capaz de ensinar tudo, exortar em toda situação ou
contribuir sempre. Embora divinos, os dons que nos foram repartidos são
limitados.
Pensemos em Salomão. Ele podia discorrer sobre as plantas, desde o
cedro que está no Líbano até o hissopo que brota no muro, e também sobre os
animais, as aves, os répteis e os peixes (1 Rs 4:33). Era-lhe, portanto, lícito
crer na extensão da sua sabedoria. Mas não lhe era lícito pensar que sabia mais
do que realmente sabia ou ignorar o quanto não sabia. Conheça quanto conhecer,
o homem ignora infinitamente mais do que conhece. Por isso, a diferença entre a
verdadeira sabedoria e a sabedoria aos próprios olhos reside na profundidade
desse último conhecer.
Mas Paulo não se contenta com traçar à arrogância o limite da
extensão dos dons. Além de reconhecer que os dons têm medida, que alguém tem de
Deus profecia, ministério, ensino, exortação e todas as outras capacidades em
determinadas medidas, ele situa em Deus e não no homem a origem dessas medidas.
Esse reconhecimento implica que as qualidades que possuímos são dádivas, não
artefatos. Foram dadas por Deus, não construídas por nós. Nós cooperamos para
que as qualidades se desenvolvam, mas essa cooperação não anula a presença no
dom de tudo o que ele se torna, assim como a árvore está na semente.
No átimo em que reconhece a procedência divina das suas qualidades,
o homem esvazia-se de toda exaltação. Coloca-se, por assim dizer, no seu
verdadeiro lugar. E qual é esse lugar? É o lugar do barro de que ele é feito.
Pois “temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja
de Deus, e não de nós” (2 Co 4:7).
Esta é a lição primeira de toda a Escritura. A lição sem a qual
não há lição segunda a aprender. É também o passo sem o qual não há segundo
passo. Só reprovação e incapacitação. Na Bíblia, uma lição antecede o que ela
ensina a respeito de Deus. É a lição sobre o homem. Sem aprendê-la, o homem não
pode saber quem é Deus, já que este o criou à sua imagem, o que significa que
fixou o espelho em que se mostrará.
“Que é o homem, que dele te lembres?” (Sl 8:4), é a pergunta
primeira da Bíblia. E, como só Deus é capaz de responder o que pergunta,
devemos buscar na própria Escritura a resposta dela. Encontramo-la, é certo,
espalhada por toda parte, mas também concentrada em algumas passagens. Em sua
máxima concentração, só a vemos, talvez, em Gênesis 2: “Formou o Senhor Deus ao
homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem
passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). E também: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao
homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2:15).
O homem feito da terra foi dado à terra. Tem, pois, na terra a sua
natureza física e, pelo trabalho, a sua natureza moral. Humus, em latim, é terra. A
natureza terrena do trabalho que o homem realiza, ao arar o chão, ensina-lhe
quanto ele é vil e humilde. Não há nisso rebaixamento algum. É antes a natureza
e o ser do homem.
Porém, a história da natureza humana, em sua totalidade, é muito
pior do que isso. Por ter, desde o início, uma essência física e outra moral,
ao cair no pecado, o homem sofreu a corrupção de ambas as suas naturezas. É o
que Gênesis 3 ensina e Paulo reafirma em Romanos. Que significa essa
degeneração? Significa, em síntese, que a natureza moral do homem corrompeu-se
totalmente, e a sua natureza física, parcialmente.
Como a natureza moral está associada ao trabalho e depende dele,
Deus disse a Adão, quando este pecou: “Visto que atendeste a voz de tua mulher,
e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua
causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela
produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do
rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado:
porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:17-19).
Tenho dificuldade em aceitar a doutrina da corrupção física e
moral do homem, nos termos em que é geralmente afirmada. Não por causa da
degeneração moral, que aceito inteiramente, mas da corrupção física como a
apresentam. Defendi os motivos históricos disso, no post “Criação: o que é, o
que não é”. Do ponto de vista teológico, o problema é que a alma e o corpo são
incomensuráveis. Portanto, a corrupção de um não se compara à do outro, nem
pode ser a paga dela. O que ocorre é, para mim, mais simplesmente, que a
degeneração moral leva o homem a praticar atos tais que afetam o seu corpo.
A corrupção de que a Bíblia nos fala é, portanto, integral apenas
no âmbito moral. E não o é em razão das palavras pronunciadas por Deus após a
queda, que se limitam a afirmar que Adão passou a viver num novo contexto, mas
em razão do que o próprio homem fez desde então. De fato, a confrontação com a
natureza hostil, inexistente no Jardim do Éden, gerou para Adão a escassez, e a
escassez fez multiplicar-se o pecado, principalmente em forma de violência e
opressão. Nisso consistiu a corrupção da natureza moral do homem. Fisicamente,
somos matéria; moralmente, somos o que pensamos e fazemos. A matéria é a nossa
primeira natureza, dada; o que somos e fazemos é a natureza segunda,
construída.
A degeneração moral gerou toda sorte de injustiça, mas teve por
fastígio a violência e a opressão do homem pelo próprio homem. É o que vemos,
não como outra lição, mas como a mesma, em Gênesis 4, quando Abel é morto por
seu irmão. Reencontramos o princípio desse pecado no dito de Caim, que
transborda sangue (Gn 4:14-15), e na sua descendência, que desenvolve ainda
mais a violência: ”Disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me: vós,
mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele
me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de
Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn 4:23-24). A violência é ainda o motivo
sintético e consumado do Dilúvio (Gn 6:11-13). Só não pensemos que pode ser
descontextualizada ou desarraigada de sua relação com o trabalho: não pode, sob
pena de a palavra de Deus a Adão nada valer.
A doutrina das duas naturezas, a anterior e a posterior à queda, é
importante demais para ser saltada ou relegada ao museu como coisa conspícua,
mas superada. Para dizer como Billy Graham, ela é tão atual quanto o jornal de
amanhã. Enquanto houver céus e terra e natureza humana, aquela doutrina
continuará atual. O pecado mudou totalmente a natureza moral do homem. De sua
condição original inculpável, ele passou a outra degenerada. E é preciso fincar
que a degeneração se dá no contexto do seu trabalho, não de uma tábua de leis
que ele tenha transgredido, pois ela simplesmente não existia.
Encontramos, assim, o pecado por toda parte. Não foi Paulo quem o
criou com a sua pregação, em Romanos. Foram os atos humanos. O corpo tampouco o
criou, só sofreu as consequências dele. E a origem de todo esse mal, Gênesis a
apresenta como a perda da natureza segunda do homem, da sua natureza moral.
Essa natureza era originalmente humilde, por ser terrena: “Deus colocou [Adão]
no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 3:15). Mas se corrompeu ao
se tornar violenta e opressiva.
Num ponto, porém, Romanos parece desencaixar-se da história da
origem da depravação adâmica: a epístola diz que o pecado tem como núcleo a
idolatria, não a violência ou a opressão do homem. Apresenta, assim, o pecado
como ofensa a Deus, não ao homem, como questão do culto (latréia) a
ídolos e não a Deus. E relega a violência, a opressão e todos os outros males à
condição de consequências do pecado. Mas por que é assim?
A resposta só pode ser que o culto aos ídolos está ligado à perda
da humildade por parte do homem. Essa perda é o extravio humano. Os atos que se
seguem são sua consequência. E, como o Novo Testamento coloca as coisas, nada
exprime tanto aquela perda quanto a idolatria. Isso é bastante claro. Mas, se o
é, o ídolo não pode ser apenas madeira, bronze, ferro ou ouro. Tem de ser
também a projeção do eu humano. Tem de ser o eu alienado, o eu em forma de
coisa. Quando o ferreiro forja o ídolo, forja a si mesmo, atribui àquele ser a
sua condição, as suas qualidades. O ferreiro pensa, logo o ídolo pensa; sente,
portanto sua obra sente. Ele exagera os seus atributos ao projetá-los no ser
que plasmou e supô-lo mais poderoso que ele próprio. Pede, portanto, que o
ídolo o livre. Mas o exagero não impede que o ídolo continue a ser o próprio
homem, fortalecido e tornado imortal. Nesse ponto, Feuerbach está certo. Nesse
ponto, sua tese se aplica. Pena que se trate do ponto em que a idolatria rouba
o troféu do pecado à violência e leva a degeneração humana ao clímax da
audácia.
Por isso, Paulo se preocupa tanto com o culto. Em todas as eras, o
pecado é uma coisa só. Como o arcanjo orgulhou-se e atentou contra o culto a
Deus, os descendentes de Adão procederam da mesma forma e chegaram ao mesmo
resultado. Projetar-se no ídolo foi, para eles, um modo de passar de adorador a
adorado, de crente ou devoto a deus. Foi e continua a ser a forma suprema da
perda da humildade.
Mas a história da idolatria tem duas fases e não uma só. Elas se
sucedem, ao mesmo tempo em que se interpenetram. A primeira coincide com o
período bíblico, mas o ultrapassa. Declina à proporção em que o cristianismo
faz seu avanço. Seu princípio regulador é a idolatria ou a adoração do homem em
forma de ídolo. A segunda etapa, por sua vez, coincide com a História do
Império Romano, mas também a ultrapassa. O princípio regulador dela é a
antropolatria ou a adoração consciente do homem como deus. Embora a adoração de
seres humanos após a morte tenha sido praticada em tempos remotas, a apoteose
(divinização post mortem dos Imperadores) é que a tornou
regular e até mesmo um direito. Por outro lado, se os primeiros a serem
adorados em vida foram os soberanos selêucidas (Bíblia de Jerusalém. 5ª impr.,
São Paulo: Paulus, 2008. Jd 3:8, nota c), os Césares parecem ter sido os
primeiros a contar com um culto regular. Com eles, portanto, a idolatria
ingressou numa nova fase.
A cena central do filme “Noé” talvez seja aquela em que sua mulher
o acusa de injustiça. Ao ouvirmos as acusações, temos a impressão de que não se
referem só a Noé, mas a Deus como autor do Dilúvio. Nada no filme tem uma só
natureza: nem os gigantes, nem os homens, talvez nem as coisas. Tudo tem duas:
o bem e o mal, o amor e a violência. O filme depende tanto dessa oposição que
beira o maniqueísmo, mas um maniqueísmo cujos polos se decidiram a coabitar.
Deus não é exceção alguma. É só o maior exemplo. Ele é culpado da violências
suprema, a do Dilúvio, e só ao se regenerar se transforma em amante. Quem o
leva a regenerar-se é, porém, o homem, ou melhor, as mulheres. Que outra força,
afinal, poderia mudar o Criador, se o homem o formou à sua própria imagem
sanguinária?
É bem uma mensagem, mas uma de que o homem pode todas as coisas,
pois pode dispor de Deus. Só não pode recuperar a humildade perdida. Só não
pode reconciliar-se com a terra e evitar que sua história termine no culto a si
mesmo. Só Deus o pode.
SUBMISSÃO
E AUTORIDADE
É natural que uma carta como Romanos, dirigida aos cristãos da capital
do Império durante o primeiro século, se referisse ao poder secular do Estado e
suas autoridades, em algum momento. É o que acontece nos versículos 1 a 7 do
capítulo 13, nos quais Paulo não recomenda a oposição dos cristãos àquele
poder, mas a sua submissão a ele.
A recomendação está permeada do sentimento não faccioso, nem
preconceituoso, mas de santidade e separação com o qual a fé cristã veio ao
mundo. Na iminência de ser preso, Jesus declarou: “O meu reino não é deste
mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por
mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é
daqui” (Jo 18:36).
Declaração fortíssima de uma separação radical! Mas mesmo nela, está
implícita a ausência de conflito entre o reino que é e o que não é deste mundo.
Haveria conflito entre esses reinos se ambos fossem deste mundo: então, os
cristãos teriam de pelejar com os que detêm o poder, no mundo, a fim de
arrebatá-lo à força. Mas não é esse o caso, portanto o conflito secular está
afastado.
A declaração de Jesus tampouco exprime uma espécie de conservadorismo
político, já que não se traduz em posição política alguma. O que não tem
relação com o poder terreno não pode ser conservador ou progressista. É
diferente da política mundana, sem lhe ser favorável ou contrário. Por outro
lado, a declaração de Jesus não implica que a fé cristã não possa inspirar
posições políticas. Sem dúvida pode, mas não como a sua finalidade principal e
sim como reflexo de seus princípios celestiais na ordem terrena.
Contudo, se a declaração de Jesus deixa claro que o seu reino é
atemporal, quais devem ser as suas relações com a ordem temporal? Essa a
pergunta que devia interessar sobremaneira aos cristãos romanos do
primeiro século. Paulo não se interessa por respondê-la de modo completo, já
que não era esse o objetivo da sua epístola. Mas propõe o que se pode
considerar o núcleo de uma resposta ao escrever: “Todo homem esteja sujeito às
autoridades superiores, porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as
autoridades que existem foram por ele instituídas”.
Se o reino de Cristo e o deste mundo constituem realidades diversas e inconfundíveis,
por outro lado, ambos têm relação com Deus, pois foram por ele instituídos. E a
origem da autoridade política em Deus, afirmada por Paulo, não implica que
apenas ela seja divina, mas também o reino que ela governa. Se a autoridade é
ministro do bem (13:4) e governa o mundo, segue-se que o mundo é bom.
O ensinamento cristão sobre o mundo não o apresenta como uma ordem
descarada, na qual o mal impera sem limites e explicitamente. Assim como ocorre
na igreja (embora em outra medida), as pessoas do mundo querem fazer o bem e
não conseguem. Seu fracasso testemunha a vitória do elemento maligno no
interior do mundo, mas demonstra ao mesmo tempo a operação de uma força oposta
a ele. Essa força é a da lei secular, que atua por meio da autoridade.
Por isso, o mundo jaz no maligno (1 Jo 5:19), na medida em que a lei é
sobrepujada pelo pecado. Ele não jaz no maligno sem que uma força benigna se
oponha em certa medida a isso. Pelo menos, essa não é a descrição bíblica do
mundo. É antes uma caricatura dela. O mundo, como a Bíblia o apresenta, foi
criado por Deus e é um terreno no qual se fere a luta mortal entre a lei e o
pecado. Enquanto a autoridade secular prevalece e consegue impor-lhe a sua
ordem, o mundo permanece bom, pois a autoridade é ministro de Deus para o bem:
“Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando
se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor
dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem” (13:3-4).
Contudo, ali onde a autoridade não chega ou onde ela chega, mas não prevalece,
o pecado tem a palma.
Paulo refere-se à autoridade que porta a espada. Apresenta-a com uma
face severa e até mesmo cruel. A autoridade com a espada é a própria expressão
da lei em transe, na sua luta contra o mal. Paulo não discute a justiça dos
mandamentos romanos. Toma-a como um dado. Entende o direito romano como algo
bom, assim como havia afirmado que a lei de Deus é santa, e o mandamento,
santo, justo e bom (7:12). Chega a se referir à luta pela aplicação desse
direito como o movimento febril do guerreiro que traz a espada, no campo de
combate. Assim como o guerreiro trava uma luta de vida ou morte, a autoridade
brande a sua espada, em transe contra as hostes do mal.
Observada por certo ângulo, a luta da autoridade poderia ser descrita
como um esforço contra os que querem arrebatar-lhe o poder, o cetro, a
coroa.Poderia ser descrita como pura e simples luta pelo poder e de fato o é.
Mas Paulo vê nela algo mais. Vê na espada que se move por ordem do magistrado
um sentido moral transcendente, uma relação com a ordem divina do mundo. A
autoridade pune o mal, vinga a injustiça e, ao fazê-lo, se porta como ministro
de Deus. Portanto, Deus é quem pune e vinga no seu lugar: “Se fizeres o mal,
teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus,
vingador, para castigar o que pratica o mal” (13:4).
Alguém duvida de que os atos da longa lista que Paulo apresenta em 1:31
são maus? Alguém pensa que ele não considera tais atos passíveis de punição
pelas autoridades romanas? E não devemos extrair disso que ele vê o castigo
imposto pelas autoridades aos praticantes daqueles atos como manifestação da
ira de Deus? Se Deus vinga e castiga, não é isso, afinal, a sua ira?
Paulo parece pressupor algo assim, ao ordenar: “Todo homem esteja
sujeito às autoridades superiores” (13:1); e ao acrescentar: “É necessário que
lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também
por dever de consciência” (13:5). Se a consciência recomenda a submissão à
autoridade, é porque ela é boa, não má.
Já se propôs que, por ser ministro de Deus, a autoridade deve ser
obedecida em todas as situações: quando acerta e também quando erra. Essa
conclusão é fruto de uma leitura desastrada de textos como Romanos 13:1-7. Há
dois ensinamentos implícitos nesses versículos. O primeiro afirma que a
autoridade é constituída por Deus. O outro informa que a autoridade constituída
se faz ministro de Deus, quando pratica o bem e pune o mal. Não podemos operar
a confusão dessas duas coisas. O fato de a autoridade ser dada de cima não a
faz, imediatamente, ministro de Deus. É necessário algo mais que o poder para
que a autoridade se torne um representante de Deus na Terra. Esse algo é a
conformidade dela com a vontade divina: é o fato de praticar o bem e punir o
mal.
Os versículos 1 a 7 foram escritos muito mais para nos mostrar o que é
ser ministro de Deus do que para descrever a autoridade. A função de ministro
depende da prática do bem e do combate ao mal. Alguém imagina Paulo a afirmar
que a autoridade “é ministro de Deus, vingador, para castigar quem pratica o
bem”? De modo nenhum, pois isso se opõe à intenção manifesta do texto, que é
retratar a transformação da autoridade em ministro de Deus ao praticar o bem e
punir o mal.
À autoridade que pratica o mal não se aplica Romanos 13:1-7. Aplica-se
Oseias 8:4: “Estabeleceram reis, mas não da minha parte; constituíram
príncipes, mas eu não o soube”. Se a situação mencionada nesse versículo está
afirmada nas Escrituras, deve corresponder a uma real possibilidade. E notem
que ela não se refere a um caso raro ou isolado. Não se refere sequer a um
caso, mas a muitos, pois diz no plural: “estabeleceram reis”. E repete:
“Constituíram príncipes”. Em outras palavras, o versículo mostra que não se
levantaram um ou dois reis, nem um ou dois príncipes, mas toda uma sequência de
reis e príncipes, sem que Deus tivesse a menor relação com eles. Isso nos leva
a crer que a autoridade iníqua é, em princípio, tão possível quanto a boa
autoridade.
Por que Pedro afirmou aos líderes judeus, que lhe ordenaram não falar de
Jesus Cristo, “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5:29)? Não
foi porque eles não representavam Deus? E por que Paulo escreveu que “nada
podemos contra a verdade, senão a favor da própria verdade” (2 Co 13:8), a não
ser porque a autoridade não se baseia no poder que alguém enfeixa nas mãos, mas
na sujeição desse poder à vontade de Deus?
A autoridade ser ministro de Deus significa que Deus age por meio dela.
Mas, se ela continua a ser ministro quando faz o mal, temos de concluir que
Deus faz o mal por meio dela, já que o ministro é sempre um canal. Esse é,
porém, o absurdo elevado à suprema perfeição! Deus jamais faz o mal. E, por uma
razão tão simples quanto essa, o líder não representa Deus quando pratica o
mal. Uma coisa é ser autoridade, outra é a autoridade ser ministro de Deus.
É, a meu ver, duvidoso o ensino propagado por Watchman Nee de que a
submissão à autoridade é devida mesmo quando ela erra. Em Autoridade
espiritual, lemos: "E se a autoridade estiver errada? A resposta é: Se
Deus teve coragem de confiar sua autoridade aos homens, então precisamos de
coragem para obedecer. Se a pessoa com autoridade está certa ou errada, não nos
diz respeito, uma vez que é diretamente responsável para com Deus. Os
obedientes só precisam obedecer; o Senhor não nos considerará responsáveis por
qualquer erro devido à obediência" (NEE, Watchman. Autoridade
espiritual. 3ª impressão, São Paulo: Vida, 1987. p. 85).
Nesse trecho, Nee sustenta que a autoridade (espiritual e secular) deve
ser obedecida mesmo quando erra. Mas, em outros lugares, dá um passo atrás e
reconhece que, quando o erro avulta além de certa medida, a obediência pode ou
mesmo tem de ser dispensada. Porém, nesses casos extremos, a suspensão da
obediência não autoriza a da submissão. Mesmo sem obedecer, deve-se continuar a
ser submisso à autoridade. É o que Nee ensina.
Admito que a submissão possa ser concebida sem a obediência. Porém, o
fato de podermos concebê-las separadamente no pensamento não quer dizer que
seja fácil separá-las na vida prática, sem incorrer em incoerência. Qual é o
sentido prático de uma submissão que não resulta em obediência? Ela só manterá
a sua coerência, se a pessoa submissa não se furtar às consequências da
insubordinação, ou seja, se não tentar escapar ao castigo dos desobedientes.
Devemos, porém, perguntar se a Bíblia nos ensina tal espécie de
submissão. Se nos admoesta a aceitar as consequências da insubordinação à
autoridade, quando ela nos tortura ou nos faz outra espécie de mal. Não
encontro esse ensino nas Escrituras. Davi desobedeceu a Saul e passou a fugir
dele. Os cristãos de Jerusalém desobedeceram às autoridades, ao continuarem a
pregar o evangelho, e se dispersaram, quando perseguidos. Em nenhum desses
casos, a entrega seguiu-se à desobediência. E no caso de Jesus? Vimos que ele
se entregou, porém não desobedeceu às autoridades. Portanto, ou as Escrituras
mostram que a desobediência esvazia a submissão, ou que a submissão importa a
obediência.
Disso se conclui que a submissão às autoridades, ordenada em 13:1-7, não
deixa qualquer espaço para a desobediência. Paulo está a ordenar submissão e
obediência, não uma sem a outra, o que nos leva a concluir que, quando a
autoridade se faz injusta, e a desobediência se torna a única opção, a
submissão se esvazia. Quando se desalinha em relação à vontade de Deus, a
autoridade deixa de ser seu ministro. E, quando deixa de ser ministro, ela
perde o direito de reivindicar tanto obediência quanto submissão.
Por isso, o mandamento original e primeiro à autoridade é: “Quando se
assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num
livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá
todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus [...]
Isto fará para que o seu coração não se eleve contra os seus irmãos, e não se
aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda” (Dt 17:18-20).
Que deve fazer o rei? Deve ler o livro da lei, fonte de toda justiça. E
onde deve encontrar esse livro? Com os levitas sacerdotes. Portanto, a regra
consistente em governar com base no livro da lei se aplica não só ao rei, mas
também ao sacerdote. Enfim, a toda e qualquer autoridade. Esse é o princípio da
liderança. Esta, a verdade contra a qual não temos poder algum.
Por que a submissão é devida à autoridade? Ela é devida por causa da
verdade e na medida em que a verdade se faz presente. Quando a verdade ocorre,
quando ela se manifesta e se faz habitual, numa autoridade, então a submissão
se torna a mais doce de todas as experiências. Isso porque a verdade deixa de
estar num livro ou numa pregação e se encarna numa pessoa. Perde a consistência
de palavras e ganha a de atos. Torna-se, assim, exemplo e permite que “o reino
de Deus consista não em palavras, mas em poder” (1 Co 4:10).
Alguém perguntará: e se uma pessoa possuir a verdade, mas não a
autoridade? Pergunto se isso é realmente possível. Os que afirmam que o é
pensam no caso de alguém que obteve o depósito da palavra de Deus sem ter sido
investido no seu ministério por um órgão ou poder central. Pensam nos casos de
Jesus Cristo e de Paulo: não na ausência da autoridade, mas apenas do seu
invólucro.
O
AMOR AO PRÓXIMO
A Bíblia apresenta-nos Deus como alguém dotado de virtudes. Mas uma
leitura minimamente atenta dela mostra que as virtudes divinas são
essencialmente diversificadas e até opostas. Deus é capaz de ira, como Romanos
afirma abertamente, mas também de amor. É capaz de perdão, mas também de
vingança, de liberalidade e de severidade. Essas são virtudes opostas que Deus
possui.
É possível, pois, dividir as virtudes divinas num grupo baseado na
força, a exemplo da ira, do ódio, da indignação e da vingança, e outro que
emana da compaixão. Nesse segundo grupo, estão o amor, a misericórdia, o
perdão, a graça, a bondade, a generosidade e a justiça. Se as virtudes baseadas
na força são imanentes, por pertencerem a Deus e ao homem, as que se
fundamentam na compaixão afiguram-se transcendentes, já que a sua natureza é
divina, embora possam ser comunicadas ao homem.
Ética é o cultivo dos dois grupos de virtudes. Porém, nenhuma ética
minimamente aplicável e funcional permite o cultivo de todas as virtudes ao
mesmo tempo. Devemos, por isso, entender toda ética filosófica e toda teologia
moral como propostas de cultivo de um dos dois grupos de virtudes. Os sistemas
éticos antigos, por exemplo, favoreciam o cultivo das virtudes da força; a
ética cristã privilegia as virtudes transcendentes, baseadas na compaixão.
Mas, se a ética cristã é transcendente, por basear-se na compaixão, que
só Deus possui originariamente, seus valores não se confundem com os que
reconhecemos sob os nomes de amor, perdão, misericórdia etc. Os valores
transcendentes se diferenciam das virtudes humanas correspondentes pela
grandeza de que se revestem. Todo homem é capaz de amar, mas o amor divino é o
amor revestido de grandeza. É o amor que levou o Logos a não se aferrar à
própria glória, mas a se esvaziar, encarnar-se e assumir a forma de servo (Fp
2:6-7). Esvaziar-se da igualdade com Deus e tornar-se servo não é somente amar:
é amar de modo tão grandioso que excede o próprio entendimento humano.
O mesmo se aplica a todas as outras virtudes transcendentes, que são as
que costumamos designar pelas palavras graça, misericórdia, perdão etc.
adicionadas a uma grandeza que não só as fortalece como as torna exclusivas da
deidade. Porém, embora exclusivas de Deus, pela origem, essas virtudes
comunicam-se ao homem por meio da fé.
Nas Escrituras, as virtudes transcendentes aparecem associadas à fé.
Abraão é um ótimo exemplo. Ele creu em Deus, e isso lhe foi imputado para
justiça (Gn 15:6). Porém, a sua experiência não parou aí. Se seguirmos os
passos do patriarca, em Gênesis, veremos que o amor que manifestou desde então
não foi comum. Foi o amor que o levou a oferecer o seu filho Isaque em sacrifício.
O próprio Deus declarou sobre esse ato de Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o
Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras
te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas
dos céus e como a areia na praia do mar” (Gn 22:16-17).
A lealdade que Abraão demonstrou aos seus contemporâneos tampouco foi de
um tipo comum. Quando Ló foi capturado, Abraão se envolveu numa guerra contra
vários reis para libertá-lo (Gn 14). Seu empenho é sinal não apenas de amor,
mas do compromisso que teve para com seu sobrinho, embora se tivessem separado
e não vivessem mais juntos.
Sempre que alguém propôs a Abraão um pacto, recebeu dele a mais decidida
e inflexível oferta de lealdade e amizade. Quando Sara faleceu, e os filhos de
Hete ofereceram a Abraão uma de suas melhores sepulturas, para que nela
depositasse o corpo de sua mulher, ele não foi só leal aos seus aliados. Diz a
Escritura que, ao ouvir a oferta daqueles homens, “se levantou Abraão e se
inclinou diante do povo da terra, diante dos filhos de Hete” (Gn 23:7). Esse
ato de profunda reverência indica algo mais que fidelidade comum.
Do mesmo modo, a generosidade de Abraão não foi uma manifestação
qualquer dessa virtude. Não vemos Abraão fazer a alguém uma oferta movido por
necessidade. Abraão doa quando não precisa absolutamente fazê-lo. E, em várias
ocasiões, se recusa a receber, quando outros lhe fazem uma dádiva. É o que
ocorre, na guerra para libertar Ló, quando ele não aceita que o rei de Sodoma
lhe faça uma doação. Diz o patriarca: “Levanto a mão ao Senhor, o Deus
Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o
que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas:
Eu enriqueci a Abraão; nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram e a
parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre [aliados de Abraão]” (Gn 14:
22-24). E, como se não bastasse essa liberalidade, a Melquisedeque, rei de
Salém, Abraão dá “o dízimo de tudo” (Gn 14:20).
Esses atos têm mais que generosidade. Têm generosidade dilatada pelo
livre oferecimento de si e do que é seu. Poderíamos dizer o mesmo das outras
virtudes que Abraão demonstra. Nenhuma delas é a virtude em suas manifestações
comuns, mas ela somada a uma grandeza que a transforma intimamente e a faz
reluzir com um brilho particular.
Como a fé implica uma ética, mas não toda a ética, o cultivo das
virtudes transcendentes tende a produzir a ausência das virtudes da força. A
prontidão de Abraão para fazer guerra aos reis não nos engana. É exceção e não
regra: um caso mais ou menos isolado. Em regra, Abraão nada tem de guerreiro. É
o mais pacífico dos homens, o mais pronto a fazer concessões, a dar em vez de
receber, a cumprir o seu dever do modo mais estrito possível. De um modo que
lembra, até mesmo, o amor ao dever a que Kant se refere. Portanto, em Abraão, o
crescimento das virtudes da compaixão leva ao fenecimento das virtudes
associadas à força.
Se a ética é, pois, um cultivo, e o homem não pode cultivar todas as
virtudes ao mesmo tempo, frequentemente acontece de a fé conduzir às virtudes
transcendentes, não às da força. A fé cristã já foi acusada de falta por esse
motivo. Nietzsche foi o mais implacável denunciante da sua propensão a produzir
a atrofia das virtudes da força. Se a acusação é ou não totalmente justa é
coisa a ser sopesada mais longamente. Que ela corresponde à bifurcação das
virtudes em imanentes e transcendentes parece-me fora de dúvida.
Isso não significa que as virtudes da compaixão sejam destituídas da sua
própria espécie de força. A compaixão é, no fundo, uma grande força. É, porém,
força humilde, não arrogante, nem altiva. É força que brota da humildade, mas
força de toda maneira. No capítulo 12, Paulo não nos exorta à fraqueza, mas à força
ao dizer “Não torneis a ninguém mal por mal” (12:17) e “Não vos vingueis a vós
mesmos [...] se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede,
dá-lhe de beber” (12:19-20). Para praticar essas coisas, não é preciso
fraqueza, mas força, ainda que força humilde e não arrogante.
O amor ao inimigo é uma força oposta à implacável vontade de poder. Isso
tem consequências. Se as virtudes associadas à força não estão proscritas, sob
o regime da fé, elas são deixadas à míngua até morrerem. É o que significa “Não
vos vingueis” (12:9) e também “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se
tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Consequência da aplicação dessas
máximas é a mortificação das virtudes da força.
O investimento das energias do sujeito no cultivo da compaixão leva ao
não investimento nas virtudes da força. E o não investimento nessas virtudes
tem como consequência “sermos fracos nele”, isto é, em Cristo (2 Co 13:4). A
relação da fé com a fraqueza é, pois, inegável e inevitável. Trata-se de determinar
o resultado prático dela. De acordo com Paulo, esse resultado é a lenta
mortificação das virtudes associadas à força.
Nietzsche riu-se da teoria da seleção natural, que conquistava as
consciências na sua época. Pareceu-lhe que a vida não pode ser uma luta por
coisa tão básica quanto a sobrevivência, como Darwin tinha proposto. Pensou que
o homem de fato luta, mas sua luta se fere por algo mais que a sobrevivência:
"O verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder
[...] sacrifica a autoconservação". Portanto, "a luta pela existência
é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida"
((NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. Livro V, nº 349, pp. 243-244). O homem luta pelo
poder sobre o outro homem: "A luta grande e pequena gira sempre em torno
da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de
poder, que é justamente a vontade de vida" (idem. p. 244). Só os fortes,
os resistentes, os violentos, os empapuçados de vontade de poder estão aptos a
vencer essa luta.
A doutrina de Nietzsche choca-se frontalmente com a ética cristã, não
porque esta seja contrária à força, mas porque pressupõe que a vida não é só ou
primordialmente luta pelo poder, embora também o seja. A vida está cheia de
luta, mas não é essencialmente luta. Talvez ela possa ser definida do modo
proposto por Vinícius de Moraes, ao afirmar que “a vida é a arte do encontro,
embora esteja tão cheia de desencontros”. Mais do que luta, a vida é
cooperação; mais do que desencontro, é encontro. Por isso, as virtudes
associadas à compaixão têm mais a oferecer que as da força. E, como os dois
grupos coexistem apenas enquanto o homem permanece contraditório, a ética
cristã importa o declínio gradual da ética da força.
Para Paulo, “quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro
mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”
(13:8-9). O amor é uma virtude transcendente de Deus. Só Deus é capaz de amar,
em princípio e originariamente. O homem torna-se capaz de amar, por meio da fé.
Quando ele crê, “o amor de Deus é derramado no seu coração pelo Espírito Santo”
(5:5). Por isso, o amor não é posse originária dele, mas lhe é comunicado pelo
próprio Deus.
A primeira tábua dos Dez Mandamentos enuncia o dever do homem para com
Deus; a segunda, seu dever para com o próximo. Os preceitos citados, em 13:9,
estão todos na segunda tábua. Tratam, pois, do dever do homem para com o
próximo. Esse dever não é apenas externo. Não é mais um dever de conduta que de
sentimento. Por isso, ao homem não basta fazer o que é certo. Deve fazer o que
é certo com o sentimento certo, com amor, com compaixão que edifica.
O amor é a virtude violenta, a virtude revolucionária, a virtude que põe
fim a um regime ético e introduz outro regime, que Jesus denominou reino de
Deus. A finalidade da lei é o amor (13:10). Mas, se o amor cumpre a lei e
exclui a força, a lei da força é ao mesmo tempo excluída. A ética da força é
condenada à abrogação. Ser cristão não é ser forte, no sentido terreno. É até
mesmo ser fraco. É deixar morrer as paixões da força. É não as alimentar, pois
não há lugar para os dois grupos de virtudes. Ou os mansos herdarão a terra, ou
os violentos. Não há, no canteiro do mundo, um palmo de espaço em que ambos
possam coexistir.
A
TOLERÂNCIA
Assim como contém a mais completa explanação da salvação de Deus,
Romanos fornece a mais minuciosa exortação à prática da virtude, em todo o Novo
Testamento. Os capítulos 12 a 16 da epístola têm por finalidade exortar à
humildade, ao amor, à tolerância, à amizade e às demais virtudes cristãs. É o
mais longo discurso ético do Novo Testamento, maior até que o Sermão do Monte, em
Mateus.
E, dentre as virtudes de que Paulo trata, no seu protraído discurso, a
que ele defende mais extensamente é a tolerância. Esse é um dado muito
importante, pois, do modo como a imputação da justiça se encontra no centro da
seção que trata da salvação, a prática da tolerância ocupa o lugar central na
seção relativa à ética.
No Novo Testamento, nenhuma virtude tem o sentido exterior que, na velha
aliança, era possível imaginar que possuísse. Paulo não diz, por exemplo, que
não é bom comer ou deixar de comer carne, beber ou deixar de beber vinho, mas
que não é bom fazer isso se levar nosso irmão a tropeçar. O foco já não está
posto na conduta em si, mas no sentido que tem para o outro. Está no reflexo da
conduta sobre o irmão.
Não é diferente com a tolerância. Paulo nos diz sobre ela que “é bom não
comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão
venha a tropeçar” (14:21). O sentido profundo desse mandamento provém da
relação com Deus. Tolerar é, para Paulo, estender ao próximo a tolerância que
recebemos de Deus. Assim, como na primeira parte da epístola Paulo relaciona a
salvação e a justiça ao que Cristo fez, na seção dedicada às virtudes não é
diferente. Nela, Paulo fundamenta o justo na prática da virtude por Cristo.
No tocante à salvação, Cristo morreu para que morrêssemos com ele:
“Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo” (6:4). Do mesmo modo,
ressuscitou para que ressuscitássemos com ele: “Como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de
vida” (6:4). “Se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o
seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5).
O paralelo ressurge, com modificações, no capítulo 14: ”Foi precisamente
para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos
como de vivos” (14:9). Não há, pois, dúvida de que o método de Paulo consiste
em estabelecer paralelos entre a obra de Cristo e seus efeitos nos que creem.
Desse paralelo, ele extrai a doutrina moral do evangelho. “Cristo morreu e
ressurgiu para ser Senhor de mortos e de vivos” significa que mortos e vivos
agem de acordo com o sentido transcendente daquela morte e ressurreição. Na
prática, pois, a humildade que adotamos é a que Cristo viveu, ao esvaziar-se e
assumir a forma de servo, e o amor que possuímos é aquele pelo qual ele se deu
ao mundo infestado de pecado. Não é diferente com a tolerância. Também ela é a
que Cristo teve para conosco. Portanto, nem a humildade cristã é de feitio humano,
nem o amor é terreno, nem a tolerância que devemos exercer é algo humano. Todas
essas virtudes são transcendentes. São divinas e não humanas. Elas se tornam
humanas, apenas quando comunicadas por Deus ao homem.
Essa é a razão de o pináculo da subseção de Romanos sobre a tolerância
localizar-se nos três primeiros versos do capítulo 15: “Nós que somos fortes
devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos.
Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque
também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias
dos que te ultrajavam caíram sobre mim“. O ponto culminante das considerações
de Paulo é a manifestação da tolerância de Cristo em nós. Por isso, ele
conclui: “Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo também nos acolheu para a
glória de Deus” (15:7).
Inutilmente, buscamos na conduta do homem o padrão da virtude. E ainda
mais inutilmente o procuramos na conduta humana exterior. A virtude não está no
homem, mas em Cristo, o que tem as mais sérias implicações. E as tem, em
primeiro lugar, no tocante à doutrina da salvação, já que Paulo está a afirmar
que a tolerância deve ser praticada, na igreja, porque Cristo a praticou no
Calvário. O paralelo de 15:2-3 guia-nos, com toda segurança, a essa conclusão:
“Cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também
Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que
te ultrajavam caíram sobre mim“.
Isso não implica apenas que a nossa tolerância deve ser perfeita, como é
perfeita a de Cristo, mas que ele salva a todos por meio da sua perfeita
tolerância. A multissecular discussão de calvinistas e arminianos sobre os
aspectos da salvação (seu alcance, sua duração etc.) perde o sentido, ante tal
observação. Cristo salva a todos ou apenas a alguns? Salva para sempre e
completamente ou apenas de modo provisório? Que dúvida pode existir sobre esses
pontos e os demais relativos à salvação, à luz da tolerância transcendente de
Deus? No máximo, subsistem dúvidas consequentes de o Novo Testamento não
desenvolver de modo completo o que, como princípio, apresenta com toda clareza.
A tolerância é um princípio não somente ético, não somente de sentimento
e conduta, mas também soteriológico. É um princípio que rege a salvação de
Deus. Cristo ter-se entregado por nós significa ter-nos tolerado à sua maneira,
ou seja, à maneira eterna. Por isso, Paulo pôde afirmar, no fim da subseção
sobre a tolerância: “Porque também Cristo não se agradou a si mesmo”. A palavra
porque, nesse verso, indica uma consequência. Indica que o que foi mencionado
antes se funda no que é mencionado em seguida. Em outras palavras: que a nossa
tolerância se funda na de Cristo. Não em qualquer tolerância demonstrada
por Cristo, mas na que ele praticou na cruz.
A cruz não é só um símbolo: é também o fundamento e a realidade da
tolerância. Significa que Cristo tolera perfeitamente. E, se o faz, está claro
que todos são perfeitamente perdoados nele. Não estou a extrair do perdão o que
não se pode extrair. Não estou a sugerir que a salvação ignore ou cancele o
livre arbítrio. Não é esse o caso. O livre arbítrio é uma força real, e isso
muda muita coisa. Muda ou pode mudar, inclusive, o destino daquele que crê em
Cristo, se pecar deliberadamente. Mas não pode, de modo algum, preponderar
sobre a obra de Cristo na cruz. Admiti-lo seria abraçar voluntariamente a
incompreensão do evangelho. De sorte que o livre arbítrio permanece real, tanto
quanto subalterno à tolerância de Deus em Cristo.
Há livre arbítrio e tolerância, mas aquele sujeita-se a esta, como a lei
à graça. Hagar é a lei. É escrava. Sara é a graça e é livre. Ambas têm
lugar central na história de Abraão. Mas uma é superior à outra. Como a lei não
funciona sem o pecado, e o pecado, sem o livre arbítrio, eles estão atrelados
uns aos outros. Mas o mesmo não ocorre com as virtudes que exprimem a graça,
entre as quais se encontra a tolerância.
Se as virtudes de Deus podem ser classificadas em imanentes e
transcendentes, se elas podem ser discriminadas como de feitio terreno, umas, e
de caráter celeste, outras, a palma cabe às últimas. Nisso consiste o cerne da
revelação das Escrituras. Há tantas coisas na Bíblia, porém umas revelam as
virtudes imanentes de Deus, outras, as suas virtudes transcendentes. O Dilúvio
encontra-se no primeiro grupo. Ele exprime a ira de Deus sobre o mundo. O juízo
final também. Não precisamos envergonhar-nos das virtudes terrenas de Deus. Mas
não há dúvida de que o evangelho tem por finalidade abolir os motivos que as
fazem necessárias e incrementar os que tornam prementes os valores celestiais.
Há, pois, uma hierarquia, uma ordem de antecedência entre as virtudes
transcendentes e as imanentes. Isaías o proclama: “Por breve momento te deixei,
mas com grandes misericórdias torno a acolher-te; num ímpeto de indignação,
escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericórdia eterna me
compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is 54:7-8).
Nesses versos, vê-se o reflexo da discriminação das virtudes imanentes e
transcendentes. O ímpeto de indignação de Deus e o abandono de Israel por ele
são consequências da ira, que é uma virtude imanente. As “grandes
misericórdias” e a “misericórdia eterna” de Deus são transcendentes. O
Redentor, em pessoa, garante que o abandono e a ira são temporários, que eles
passarão, assim como as profecias, as línguas e os outros carismas (1 Co 13:8).
Porém o amor jamais passará. Paulo não afirma outra coisa (1 Co 13:8).
Não estamos diante de qualquer garantia, mas da maior de todas as garantias:
“É para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais
inundariam a terra” (Is 54:9). Se a promessa à descendência de Noé permanece
segura e inabalável, a grandeza, o alcance, a duração, enfim as características
da libertação de Cristo não o fazem em menor medida. “Jurei que as águas de Noé
não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti,
nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão
removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha
paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti” (Is 54:9-10).
Na cruz, está a violência do amor. E ela está ali em plenitude, assim
como a tolerância. Devemos acolher uns aos outros, porque Cristo nos acolheu no
seu perfeito holocausto. A mensagem maior dessa afirmativa não é o acolhimento
dos homens uns pelos outros, mas o de todos eles por Cristo. É a grandeza, o
alcance e a duração eterna desse acolhimento.
“Não nos julguemos mais uns aos outros” (14:13). Eis o que prega Paulo.
“Não julgueis para que não sejais julgados” (Mt 7:1). Isso prega Cristo. O
primeiro mandamento está no cerne do discurso moral paulino; o outro é parte do
maior de todos os discursos de Cristo. Nenhum dos dois deixa dúvida de que a
tolerância de Deus é consequência absolutamente certa, porque jurada, da que
temos uns para com os outros.
A
ABSTINÊNCIA
A tolerância que Paulo recomenda, em Romanos 14, não é a que aparece nas
cartas de direitos humanos e nas Constituições dos países democráticos. Esta é
de cunho político e caracteriza-se pela aceitação da diversidade. A virtude que
Paulo recomenda é uma espécie distinta de tolerância, qualificada pela não
discussão: “Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões”
(14:1).
A tolerância política faz-se acompanhar pela discussão e até pelo
dissenso, que são fundamentais para a construção de uma sociedade livre. A que
Paulo recomenda volta-se à criação de uma comunidade de amor. Embora esses dois
projetos, o da sociedade livre e o da comunidade de amor, sejam harmonizáveis,
eles não se confundem. Tolerar e discutir é homenagear a diferença, não o amor.
Este só desenvolve todas as suas virtualidades e só atinge intensidade máxima,
quando nos tornamos capazes de conversar sobre as nossas diferenças, sem as
discutir. Conversar é trocar sentimentos e informações. Discutir é promover um
concurso de ideias. A recomendação de Paulo é para que conversemos sobre as
nossas opiniões, sem as colocarmos em choque.
Isso não significa que todas as opiniões devam ser consideradas de igual
valor. Paulo supõe o contrário, ao afirmar que o débil só come legumes (14:2).
A pessoa que só come legumes é débil, porque a restrição da liberdade por meio
de dietas constitui uma opinião inferior. Pelo mesmo motivo, ou seja, por
restringir a liberdade, a obrigação de não fazer certas coisas em determinados
dias (14:5) também deve ser considerada inferior à que envolve uma afirmação
maior da liberdade.
As opiniões não têm todas o mesmo valor. Por isso, é útil discuti-las.
Mas, numa esfera de amor, como a igreja, o choque de opiniões deve ser evitado,
pois as pessoas se sentem atingidas, quando as suas opiniões são atacadas. Como
a relação afetiva das pessoas cujas opiniões se chocam costuma ser afetada,
Paulo não recomenda aos romanos a prática de uma tolerância meramente política,
mas a da tolerância que se faz acompanhar pela abstinência de atos que possam
magoar quem tem opinião diversa.
Numa tábua democrática de valores, essa abstinência não é muito
valorizada, pois o objetivo maior da democracia é produzir liberdade ou, quando
muito, também igualdade, não afeto. Por isso, a democracia é politicamente
nobre, mas não coincide com a comunidade de amor pregada por Paulo.
A tolerância é ao mesmo tempo, uma virtude política e religiosa.
Enquanto virtude política, ela maximiza a liberdade, não o afeto. Já a
tolerância piedosa que Paulo prega promove o afeto e é promovida pela
abstinência, pelo não discutir diferenças e pelo hábito de as suportar em
silêncio. Por isso, Paulo nos diz que devemos renunciar a expor nossas
opiniões, sempre que levem o outro a tropeçar.
A renúncia à discussão pode envolver uma perda de liberdade, mas gera um
ganho de amor. Quem tolera, no sentido político, mantém a sua prática e admite
a do outro. Porém, conforme a discussão se exacerba, a pessoa acaba por irar-se
com a posição divergente. Ao contrário, quem se abstém de discutir e de
praticar certas coisas renuncia à sua maneira de viver para que o próximo
mantenha a sua sem perturbações. Isso só é possível no contexto superior em que
o amor governa a conduta humana mais que qualquer outro valor.
Vejamos como isso funciona na prática. “Tomai o propósito de não pordes
tropeço ou escândalo ao vosso irmão” (14:13). Este é o princípio da
abstinência. A prática concreta dele é: “Se por causa de comida o teu irmão se
entristece, já não andas segundo o amor fraternal”. Isso significa que o padrão
derradeiro de conduta, para o cristão, não é a liberdade, mas o afeto. Não é
“Todas as coisas são puras”, então comerei de tudo, mas “é mau para o homem
comer com escândalo” (14:20).
Mais que de comida ou bebida, a abstinência que Paulo recomenda é do
escândalo. O reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, paz e alegria
no Espírito Santo (14:17). Devemos abster-nos do que retira às pessoas a
justiça, a paz e a alegria. Estes são os maiores valores da vida cristã. Como
tais, estão muito acima da observância de dias ou de certa dieta. Afirmar que é
preciso guardar tal dia, comer ou deixar de comer tal alimento não é só tornar
o mandamento mosaico indispensável para a salvação, como faziam os judaizantes.
É também substituir a ética do coração pela da conduta. Esse é um erro fatal.
A ética do Novo Testamento não difere da dos escribas e fariseus no
tocante ao conteúdo, mas ao peso atribuído aos diferentes mandamentos. Jesus
pôs a justiça, a paz e a alegria à frente dos regulamentos miúdos da lei
mosaica, sem os desprestigiar. Além disso, atribuiu aos maiores preceitos um
caráter interior e não exterior. Para guardar tais preceitos, é preciso que o
homem se volte para dentro de si. É preciso, por assim dizer, que ele se dobre
sobre si mesmo. Paulo denomina essa prática servir a Deus no espírito (1:9) e
andar em novidade de espírito (7:6). Esse é o mandamento básico da nova
aliança. Como todo mandamento, ele se baseia num fato, a saber o de que o nosso
“corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por
causa da justiça” (8:10). E ainda o de que “o Espírito testifica com o nosso
espírito que somos filhos de Deus” (8:16).
Guardar a justiça, a paz e a alegria (14:17) é o preceito que o Espírito
ensina. A abstinência está diretamente conectada a esse estreito rol de
virtudes. Porém, todo mandamento, como a justiça, a paz, a alegria ou a
abstinência, tem o seu fundamento no ser, no real, naquilo que é. Os
mandamentos ensinados pelo Espírito se fundamentam em certos fatos espirituais.
O primeiro desses fatos é: “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele”
(1 Co 6:17). Romanos nos introduz na esfera de união com Deus mencionada nesse
versículo. Não se trata de uma união orgânica, pois Paulo a compara com a união
do homem com a mulher: "Não sabeis que o homem que se une à prostituta,
forma um só corpo com ela? porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas
aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele" (1 Co 6:16-17). A união
do homem com a mulher não é orgânica, mas relacional. O mesmo acontece com a
nossa união com Deus. Também ela é relacional.
Concordo com os que afirmam que o significado de Romanos 1:9, 7:6 e 8:16
e de 1ª aos Coríntios 6:17 é a união relacional do homem com Deus. Admito
também que essa união tenha natureza mística. Só não creio que a mística deva
ser cultivada com extravagância, verborragia, loquacidade ou qualquer excesso
de palavras. Ela é muito mais uma mística do silêncio que das palavras, do
quarto interior no qual devemos ingressar para orar do que de demonstrações de
espiritualidade.
A espiritualidade cristã sempre foi mais do silêncio que da excitação
exterior. Só recentemente, em termos históricos, tornou-se comum os grupos
cristãos enfatizarem demonstrações espetaculares de fé e de comunhão com Deus.
Isso difere muito da espiritualidade que atravessou os séculos, dos padres do
deserto aos místicos medievais, como Eckhart e Tauler, que sempre foi a do
silêncio.
Olhemos para os versos citados. Eles não promovem exibição alguma da
mística que afirmam. Pelo contrário, são tão breves que quase chegam a
omiti-la. Paulo diz que serve a Deus em seu espírito. Sabemos o que isso
significa, por causa dos outros versos em que ele se refere ao espírito humano.
Porém, não acrescenta uma só palavra. Declara servir a Deus no seu espírito e é
tudo. Não faz propaganda, estardalhaço, não se contorce, nem se exalta. Pelo
contrário, cala-se e nesse calar consiste a sua mística.
O fundamento da mística de Romanos é peculiar. É o fato de o nosso
espírito conhecer as coisas do homem do modo como o Espírito de Deus conhece as
de Deus (1 Co 2:11), ou seja, em profundidade, mas também em profundo silêncio:
o mesmo que havia no Santo dos Santos, inclusive quando o Sumo-Sacerdote lá
ingressava uma vez por ano. Tanto o conhecimento que o espírito humano tem das
coisas do homem como o que o Espírito de Deus possui das de Deus são implícitos
e silenciosos. Se não o fossem, encontraríamos nos versos de Paulo as
demonstrações de euforia e excitação que abundam nas místicas exibicionistas
dos últimos séculos.
Há uma mística em Romanos, que é o fundamento da ética, da conduta ou do
andar do homem, como Paulo gosta de denominá-la. Cumprir os mandamentos de
Deus, principalmente os maiores deles, como a justiça, a paz e a alegria,
requer que o homem se volte para dentro de si, onde Deus se encontra de maneira
especial, da maneira do Santo dos Santos, ou seja, em silêncio. Essa é a
mística a que Paulo nos introduz.
Para os descrentes, o silêncio divino, no interior do homem, prova a
inexistência de Deus e a falsidade da mística. Visto por outro ângulo, esse silêncio
é a própria presença de Deus e a verdadeira mística. Deus ser no homem
significa ser em silêncio. Por isso, a sua verdade no interior do ser humano
revela-se na quietude que não se confunde com o nada, na quietude que é
presença, até mesmo a maior de todas as presenças, sem deixar de ser profundo
silêncio.
A
DESPRETENSÃO
Na seção iniciada no capítulo 12, Paulo trata de várias virtudes, entre
as quais a humildade, a submissão, o amor, a tolerância e a abstinência. A
seção parece encerrar-se no versículo 7 do décimo-quinto capítulo, com a
exortação final: “Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu
para glória de Deus” (15:7).
No entanto, os capítulos 15 e 16 continuam a tratar das virtudes de
outra maneira. Cessam as exortações e começam os exemplos de condutas
virtuosas. Por essa razão, devemos entender esses capítulos como uma
continuação da abordagem ética da epístola. Por exemplo, no capítulo 15, Paulo
mostra em que consiste a despretensão, ao se referir ao texto da sua epístola
nos seguintes termos: “Certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso
respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento,
aptos para vos admoestardes uns aos outros. Entretanto vos escrevi em parte
mais ousadamente, como para vos trazer isto de novo à memória” (15:14-15).
Paulo afirma que a sua epístola era desnecessária, pois os romanos
estavam cheios de conhecimento e bondade. Portanto, se o texto da carta tinha
uma utilidade, era a de recordar aos leitores o que já sabiam. Mas será que os
romanos realmente sabiam as coisas de que a carta trata? É improvável que o
soubessem tão bem, já que as doutrinas de Romanos não tinham sido escritas
antes, e Paulo nunca havia estado em Roma. Portanto, os versos 14 e 15 mostram
a funda despretensão de Paulo ao brindar-nos com a mais completa apresentação
dos efeitos da morte e ressurreição de Cristo e, ainda assim, considerá-la
desnecessária.
O objetivo geral do capítulo 15 é justificar o ministério de Paulo. Os
romanos talvez estranhassem o fato de Paulo voltar-se tanto aos gentios, se o
próprio Cristo tinha pregado aos judeus. Para eliminar esse aparente
descompasso, Paulo explicou “que Cristo Jesus foi ministro da circuncisão, por
causa da verdade de Deus, para que confirmasse as promessas feitas aos pais” (15:8).
Em outras palavras, Cristo veio para os judeus não porque o evangelho devesse
ser pregado somente a eles, mas porque precisava confirmar as promessas feitas
aos pais para que pudessem ser recebidas tanto pelos judeus quanto pelos
gentios. Como as promessas tinham sido feitas “aos pais”, isto é, aos judeus,
era necessário que Cristo as confirmasse também aos judeus. Por isso ele veio
para os judeus e ministrou diretamente a eles.
A Trindade é um dado incontornável do Novo Testamento. Embora Deus tivesse
dado as promessas, era necessário que o Filho as confirmasse. É o que 15:8 nos
ensina. Porém, uma vez confirmadas as promessas divinas, o evangelho revela a
sua universalidade: “Como está escrito: Por isso eu te glorificarei entre os
gentios, e cantarei louvores ao teu nome. E também diz: Alegrai-vos, ó gentios,
com o seu povo. E ainda: Louvai ao Senhor, vós todos os gentios, e todos os
povos o louvem. Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se
levanta para governar os gentios, nele os gentios esperarão” (15:9-12).
Deuteronômio conclama: “Jubilai, ó nações, com o seu povo” (Dt 32:43). O
evangelho não é só para as nações, nem só para “o seu povo”, mas para ambos.
“Haverá um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará”
(Is 11:1). Que é o tronco de Jessé, a não ser um ramo do povo judeu? Porém,
“acontecerá naquele dia que as nações perguntarão pela raiz de Jessé, posta por
pendão dos povos” (Is 11:10).
Romanos é um memorial desse fato grandioso. Deus salva as nações. Por isso,
uma epístola é dirigida a pessoas situadas na capital do Império. Todavia,
embora cumpra um propósito tão grandioso, Paulo não o faz num tom grandioso,
mas em perfeita humildade e em consonância com as limitações da sua situação
individual. Não diz que o conteúdo da epístola era indispensável aos romanos,
mas que eles estavam cheios de bondade e de todo o conhecimento. Sugere,
portanto, que, em certo sentido, a carta era desnecessária.
Embora fosse o documento mais completo escrito por um apóstolo sobre o
sentido do evangelho de Deus, Paulo considerava a Carta aos Romanos dispensável
enquanto expressão individual das grandiosidades de Deus, já que os
destinatários não tinham falta do que nela podiam encontrar, vale dizer, do
conhecimento da obra de Cristo e da bondade que inspira aos que creem.
Essa atitude de Paulo revela a mais alta despretensão. Romanos é
inigualável. É o mais impressionante tratado sobre o significado teológico da
morte e ressurreição de Cristo escrito por um apóstolo e a mais nítida
explicação da salvação operada por ele. Mesmo assim, Paulo considera sua carta
dispensável. Isso é despretensão. Isso é demonstração da virtude por meio do
exemplo.
A despretensão de Paulo nos lembra que as bênçãos, a salvação e a vida
eterna comunicam-se pela fé, mas a grandiosidade de Deus é incomunicável.
Embora as promessas divinas sejam grandiosas, aqueles que as anunciam ao mundo
são humildes e miseráveis. Deus é grande; seus ministros, pequenos. É o que
Paulo nos ensina com a sua atitude.
Temos forte propensão à cegueira sobre essas coisas. Pensamos que o
evangelho é grandioso, o que está certo. Mas endeusamos os pregadores, o que
está errado. Como deveríamos tratar os pregadores? Do modo como Paulo se trata.
Ele fixa o exemplo a ser seguido. Não apenas considera dispensáveis os seus
escritos, mas apresenta o seu ministério, a seguir, exatamente no mesmo
espírito.
Paulo declara-se na posse de ofertas das igrejas da Macedônia e da Acaia
destinadas aos pobres de Jerusalém (15:25-27). Dá a entender que não seria
fácil realizar a entrega das ofertas, devido à contenciosidade dos judeus de
Jerusalém (15:31). Sugere, portanto, que se arriscaria para levar as ofertas a
Jerusalém. Mas não enaltece o seu ato. Pelo contrário, em vez de construir um clímax
heroico sobre esse ponto, Paulo cria um anticlímax.
As razões do anticlímax se encontram em 2ª aos Coríntios 11: “São
ministros de Cristo? (falo como fora de mim) eu ainda mais: em trabalhos, muito
mais; em açoites, mais do que eles; muito mais em prisões; em perigos de morte,
muitas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites
menos um;fui três vezes fustigado com varas, uma vez apedrejado, em
naufrágio, três vezes, uma noite e um dia passei na voragem do mar; em
jornadas muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em
perigos entre patrícios, em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em
perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em
trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas
vezes; em frio e nudez” (2 Co 11:23-27).
Que grandiosidade se pode achar nisso, a não ser a do sofrimento? Quando
declara que “Deus pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos
condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo" (1 Co 4:9),
Paulo afasta todas as dúvidas sobre o anticlímax do ministério apostólico.
"Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos,
e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. Até à presente hora sofremos
fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos
afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados,
bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos
conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória
de todos” (1 Co 4:10-13).
Embora levasse ao mundo a luz do Verbo de Deus, Paulo tinha do seu
ministério a avaliação que lemos nesses versos. Não o considerava nobre, mas
vil. Tampouco tinha dele a impressão de algo sério ou decisivo, pois afirma que
pretendia encontrar os romanos para recrear-se com eles (15:32). Isso é
despretensão e desapego.
Despretensão é escrever um texto sublime como Romanos e pensar tê-lo
escrito para recrear-se. É pregar o evangelho em toda parte e se considerar o
último de todos os homens, o lixo do mundo. O falso apostolado está ligado à
exaltação e à glória; o verdadeiro está associado à despretensão. Assim como a
condição humana não existe à parte da humildade, o apostolado não se constitui
sem a despretensão.
A ambição da glória faz o heroi; a desambição, o apóstolo. A presunção
constitui o sábio aos próprios olhos; a despretensão, o sábio aos olhos de
Deus. O heroi derrama sangue e é exaltado. O sábio enfatuado fala e é aplaudido.
O apóstolo ama, e o sábio verdadeiro sente que o seu papel é calar-se. Porém,
contra a lógica deste mundo, Deus não fala no heroi ou no sábio inchado de
orgulho, mas no apóstolo e naquele que se identifica com o silêncio.
A
PEQUENA EPÍSTOLA
A Bíblia apresenta duas dificuldades principais ao intérprete. A
primeira está associada à compreensão do sentido das suas passagens; a outra se
relaciona à formação do texto como tal. Não é incomum os intérpretes
enfrentarem a primeira dificuldade e ignorarem completamente a última.
Em Romanos, deparamo-nos com dificuldades relativas à formação do texto
ao analisarmos o capítulo 16. Vários manuscritos da carta terminam no capítulo
14. Outros anexam a doxologia de 16:25-27 diretamente a esse capítulo, e um
terceiro grupo a apresenta tanto no fim do capítulo 14 como no 16, o que sugere
a possibilidade de que a epístola original não contivesse o capítulo 15 e quase
todo o 16.
Por outro lado, as características literárias do capítulo 15 sugerem que
Paulo foi seu autor. As citações abundantes do Antigo Testamento para
fundamentar assertivas, em 15:3-12, por exemplo, são típicas do apóstolo e,
ainda mais, de Romanos. Portanto, é possível que o capítulo 15 tenha sido
acrescentado por Paulo, após a redação original da carta.
A situação do capítulo 16 é diferente. Ele parece ter sido escrito em
outro momento com o propósito de apresentar a cristã Febe a uma comunidade não
situada em Roma. Tem a estrutura de uma carta de recomendação, como outras que
circularam entre as igrejas, no século I. Os primeiros versículos cumprem o
papel de abertura: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja
de Cencreia, para que a recebais no Senhor como convém aos santos, e a ajudeis
em tudo que de vós vier a precisar; porque tem sido protetora de muitos e de
mim inclusive” (16:1-2). Os versos seguintes são o texto intermediário
(16:3-23), e o último constitui o desfecho da pequena epístola: “A graça de
nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém” (16:24).
John Knox já assinalara que o capítulo 16 "representa uma adição
pseudônima à nossa epístola aos Romanos, que teve por intuito vincular o
apóstolo Paulo mais de perto com Roma, fortalecendo as mãos dessa igreja em sua
batalha contra os gnósticos" (apud CHAMPLIN, Russell Norman. O
Novo Testamento interpretado - versículo por versículo. 10ª reimpressão,
São Paulo: Candeia, 1995. Vol. 3. p. 873). Com algumas diferenciações, essa
opinião continua a ser sustentável ainda hoje.
Como Atos não registra uma ida de Paulo a Roma, antes do último
capítulo, e o próprio apóstolo afirma ter sido impedido de visitar os romanos
até o momento em que lhes escreveu sua carta (1:13; 15:22), é improvável que as
pessoas da longa lista de conhecidos dele, no capítulo 16, residissem em Roma.
Mais verossímil é que a lista fizesse parte de um texto (a carta de
recomendação de Febe) que Paulo ou outro líder cristão enviou a uma comunidade
da época. Essa comunidade pode ter sido a de Éfeso, já que Priscila e Áquila,
mencionados em 16:3-4, residiram ali (At 18:24,26), e Epêneto (16:3) também era
da região.
Mas, se o capítulo 16 foi originalmente uma epístola à parte, um texto
de recomendação de Febe, seu autor pode ter sido ou não Paulo. O verso 22
presta uma informação importante a esse respeito: “Eu, Tércio, que escrevi esta
epístola, vos saúdo no Senhor”. E o 23 continua: “Saúda-vos Gaio, meu
hospedeiro e de toda a igreja. Saúda-vos Erasto, tesoureiro da cidade, e o
irmão Quarto”. Teria Tércio registrado as palavras de outrem ou teria, ele
próprio, sido o autor da epístola do capítulo 16?
Não era comum o autor de uma carta identificar-se no meio dela, como
Tércio fez, e sim no começo. Esse é um indício de que Paulo pode ter sido o
autor do texto registrado por Tércio, pois 1ª aos Coríntios 16:21 e 2ª aos
Tessalonicenses 3:17 confirmam que se utilizava de amanuenses para compor suas
epístolas. Além disso, se Gaio for a pessoa mencionada em Atos 19:29 e 1ª aos
Coríntios 1:14, e Erasto, a que aparece em Atos 19:22 e 2ª a Timóteo 4:20, a
autoria paulina ficará ainda mais esboçada. Por fim, a afirmação “Todas as
igrejas de Cristo vos saúdam” (16:16) também sugere a autoria de um apóstolo
que transitava entre as igrejas e que pode ter sido Paulo.
No entanto, se o capítulo 16 surgiu à parte do restante da epístola, que
motivo pode ter conduzido à sua anexação a Romanos? Se Paulo não tinha estado
em Roma (1:13; 15:22), as saudações a pessoas daquela cidade, em 16:3-16,
podiam criar dúvida sobre a autenticidade da epístola. Por que induzir pessoas à
dúvida, anexando a pequena carta de 16:1-24? Um motivo pode ter sido o fato de
os capítulos 15 e 16 circularem conjuntamente, no primeiro século. Se isso
tiver ocorrido, com o tempo, os textos podem ter-se fundido ou sido
considerados inseparáveis. Assim, a anexação do primeiro a Romanos, como
continuação natural da carta, pode ter levado à incorporação também do outro.
De qualquer maneira, é certo que o capítulo 16 tem características de
texto autônomo. Sua relação com os capítulos 1 a 14 é débil. Liga-se menos
artificialmente ao 15, talvez por ter sido escrito na mesma época e circulado
junto com ele. No entanto, a ligação é mais extrínseca do que intrínseca, mais
circunstancial do que orgânica. A origem e a relação com um contexto autônomo
recomendam que leiamos o capítulo como texto à parte, mais do que como
continuação de Romanos.
Se a epístola do capítulo 16 foi dirigida a Éfeso ou a outra igreja da
Ásia, como os adeptos da origem autônoma consideram, é justo pensar que “os que
provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes”
(16:17) eram pessoas dali e não de Roma. O autor sagrado continua: “Esses tais
não servem a Cristo nosso Senhor e, sim, a seu próprio ventre; e, com suaves
palavras e lisonjas enganam os corações dos incautos” (16:18).
Já se sugeriu que essas pessoas eram gnósticos. Porém, não temos o menor
indício seguro disso. A associação com os “lobos vorazes que penetrarão entre
vós e não pouparão o rebanho” ou com os “homens que falam coisas pervertidas”,
contra os quais Paulo advertiu os presbíteros de Éfeso em Atos 20:29-30, também
é improvável. A alusão a Gaio e Erasto (16:23) e à igreja em Cencreia (16:1)
sugere que o texto do capítulo 16 foi escrito, quando Paulo estava em Corinto.
Portanto, na ocasião descrita em Atos 18. Dali, Paulo viajou para Éfeso,
Cesareia, Jerusalém, Antioquia, Galácia e Frígia (At 18:21-23), antes de
retornar a Éfeso, onde permaneceu três anos (At 20:31). O tempo que essas
viagens duraram torna improvável que os lobos e os homens que falavam coisas
pervertidas, mencionados em Atos 20:29-30, fossem as pessoas que promoviam
divisões e escândalos e serviam o próprio ventre, a que Paulo se referiu quando
estava em Corinto.
Filipenses 3:19 traz alusão semelhante a pessoas cujo destino “é a perdição,
o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia; visto que só se
preocupam com as coisas terrenas”. Paulo lembra ter precavido os filipenses
“repetidas vezes” contra essas pessoas, quando esteve naquela cidade (Fp 3:18),
o que nos remete a Atos 16. A estada de Paulo em Filipos não foi muito anterior
à sua permanência em Corinto. Portanto, é possível que a referência aos que têm
como Deus o ventre, em Filipenses 3:19, equivalha à alusão aos que servem o
próprio ventre, em Romanos 16:18.
Se não é certa, essa é uma associação mais provável. No contexto de
Filipenses, os inimigos da cruz de Cristo, que têm como Deus o ventre, são os
cães, os maus obreiros, a falsa circuncisão (Fp 3:2). É provável que tenham
sido judeus com práticas hedonistas. Pessoas que, “com suaves palavras e
lisonjas” enganavam “os corações dos incautos” (16:18). Servir o próprio
ventre, em Romanos 16:18, portanto, não é só buscar o prazer, mas elevá-lo à
posição suprema, como fazem os que vivem exclusivamente para o prazer. Essas
pessoas divinizam as coisas terrenas não por lhes prestarem culto, mas por lhes
dedicarem um amor verdadeiramente religioso.
1ª a Timóteo 6:3-5 alude a pessoas que propagavam doutrina diferente da
"de nosso Senhor Jesus Cristo" e do "ensino segundo a
piedade". Essas pessoas "supunham que a piedade é fonte de
lucro". Em Tito 1:10, também lemos dos "insubordinados, palradores
frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão". Todos esses
textos têm em comum a referência a mestres, geralmente judeus, que ensinavam
doutrina distinta da de Jesus Cristo em troca de dinheiro. Esse grupo numeroso
de mercenários da fé era uma realidade, no primeiro século, e causou a repulsa
do apóstolo. A esse grupo é que Romanos 16:17-18 parece fazer referência.
Efésios 5:5 declara: “Nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é
idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus”. Avareza é amor ao
dinheiro, não em si mesmo, mas como símbolo e equivalente do que ele pode
comprar. O mistério da idolatria é o fato de o ídolo ser confeccionado pelo
homem. Ao adorar o ídolo, o homem adora o que fez. Num sentido profundo, porém
real, podemos dizer que ele adora a si mesmo. Semelhantemente, o avarento adora
os bens que o dinheiro compra, que foram feitos pelo homem e são o próprio
homem objetivado.
Curioso é que a Bíblia não
identifica qualquer outro pecado com a idolatria, só a avareza, que é o amor à
matéria enquanto objeto de consumo. Curvar-se perante uma pedra ou um pedaço de
madeira é idolatria no sentido extrínseco. Mas há uma idolatria intrínseca, que
consiste em amar desenfreadamente o alimento e a bebida. Quando Jesus proibiu
servir a Deus e a Mamom, referiu-se mais ao que o dinheiro compra do que a ele
próprio. Se o deus do homem é o seu ventre, Mamom é o dinheiro concreto,
aquilo que o homem forja e depois adora: a comida e a bebida de que se enche na
busca infrutífera de sentido para a sua vida.