terça-feira, 16 de setembro de 2014

Livre Exame de Romanos (capítulos 12 a 16)

QUE O EVANGELHO PERMITE? QUE ELE PROÍBE?

Após ter apresentado o evangelho de Cristo, nos capítulos 1 a 11, Paulo se volta repentinamente, mas não de modo surpreendente, ao tema das virtudes. Tão claro e vigoroso é esse giro que somos levados a entender que as virtudes constituem o espelho em que a obra de Cristo se reflete. Cristo morreu por causa das nossas transgressões e ressuscitou para a nossa justificação (4:25): o resultado prático dessa obra eterna e extraordinária é, para Paulo, o reflexo da graça de Cristo no comportamento humano.
Ao tratar da condenação universal, da imputação da justiça por meio da fé e da situação de judeus e gentios, após a obra redentora de Cristo, nos capítulos anteriores, Paulo segue uma ordem e um método de exposição. Fala primeiro do negativo, depois do positivo. Ao final de cada seção, apresenta um balanço ou conclusão do tema tratado. E, em cada um desses passos, prova as suas afirmações por citações abundantes das Escrituras. Esse é o modo de proceder do apóstolo. Porém, Paulo estende a tal ponto o tratamento de cada assunto, por meio de exemplos (como os de Abraão e Adão) e séries de citações do Antigo Testamento que chega a dificultar a compreensão do leitor.
Essas características do texto paulino se tornam ainda mais saliente, quando ele passa a considerar as virtudes. Vai tão longe, nesse ponto, que escreve quatro capítulos, nos quais mistura o tratamento de virtudes diversas, como o amor (12:9-10), o bem, o zelo, o fervor (12:11), a alegria, a paciência, a perseverança (12:12), a generosidade, a hospitalidade (12:13), a bênção aos inimigos (12:14), a assistência devida a eles (12:20), a solidariedade com os que se alegram e com os que choram (12:15), a unanimidade, a humildade (12:16), a não retribuição do mal, a honestidade (12:17) e a paz (12:18). Trata, ao mesmo tempo, do oposto dessas virtudes, que compendia no mal (12:10,21). Tudo isso é desenvolvido, em poucos capítulos, o que causa a impressão de mistura de temas e cria a necessidade de esclarecimento das linhas principais do pensamento do apóstolo.
Um dos pontos a serem esclarecidos é o da hierarquia das virtudes, que o Papa Francisco reafirmou na Exortação Evangelii gaudium publicada recentemente. Hierarquia significa que as virtudes cristãs têm diferentes graus de importância. No entanto, ao lado da hierarquia, devemos reconhecer que as virtudes se dispõem também numa ordem de urgência. Isso porque, sem serem maiores ou mais importantes, certas virtudes podem ser mais urgentes que outras.
A hierarquia das virtudes é absoluta. Aplica-se a todos os casos, sem modificação. A urgência delas é relativa. Decorre das circunstâncias que as tornam mais ou menos necessárias, em determinado momento histórico ou em determinada situação de vida. De acordo com tais circunstâncias, é que as virtudes são menos ou mais urgentes.
Tanto a hierarquia como a ordem de urgência se evidenciam no tratamento que Paulo dispensa às virtudes. Por exemplo, em 1ª aos Coríntios 13:13, ele afirma que o amor é maior do que a fé e a esperança. Isso indica que há uma hierarquia entre as três virtudes. Do mesmo modo, em Romanos 12 e 13, embora trate de tantas virtudes, Paulo retorna com maior frequência ao amor (12:9-10; 13:8-10), em atenção à sua prioridade hierárquica.
Porém, outras vezes, Paulo enfatiza uma virtude, não por causa da sua superioridade em relação a outras, mas devido à situação histórica peculiar em que os romanos se encontravam. É o caso da submissão às autoridades civis (13:1-7). Paulo a encarece de modo peculiar, não porque fosse superior a outras virtudes, mas porque Roma era a sede do Império. Semelhantemente, a tolerância e a receptividade para com pessoas de diferentes convicções também são enfatizadas, nos capítulos 14 e 15, devido à igreja de Roma ser composta por judeus e gentios, pessoas cultas e bárbaras, enfim por indivíduos dessemelhantes no concernente à religião e à cultura.
Quando compreendemos que Paulo apresenta as virtudes cristãs, sob a ótica da hierarquia absoluta e da urgência relativa delas, o tratamento aparentemente confuso que ele lhes dispensa se desfaz, ao menos em parte. Paulo não é confuso. Pelo contrário, ele trata de várias virtudes ao mesmo tempo, sem definir e sem dizer de que modo cada uma deve ser posta em prática, porque entende que isso só é possível nas circunstâncias concretas de vida.
É temerário pensar que, na mente de Paulo, as virtudes estivessem dispostas de maneira caótica. Um homem com formação farisaica, como ele, era um fenômeno do pensamento ético, não um ignorante dessa disciplina da conduta humana. Por isso, o fato de Paulo tratar das virtudes ao mesmo tempo, sem as definir e sem esclarecer como as pôr em prática, nas diferentes situações de vida, não é um sinal de confusão ou vagueza, mas de uma orientação bem determinada em matéria de comportamento.
Coloquemo-nos na pele de Paulo, por um instante. Ele escrevia a cristãos da capital do Império. Portanto, a pessoas mergulhadas numa atmosfera política densa e em costumes pagãos. Poderia exigir que elas praticassem a humildade ou o amor de determinada maneira, enfim que adotassem comportamentos muito bem definidos, mas se contenta com recomendar a prática dos valores morais. Poderíamos dizer: a recomendá-la em abstrato.
Como já disse, a decisão de recomendar as virtudes em abstrato e não em concreto, assim como a opção por não as definir de maneira exata, não é casual. É um sinal fortíssimo de que as virtudes cristãs não se definem absolutamente em abstrato, mas em concreto. E se não podem ser definidas em abstrato, menos ainda podem ser praticadas. Portanto, para usar a linguagem dos jogos, Paulo deposita todas as suas fichas na abordagem abstrata dos valores.
Afirma que o amor, o bem, o zelo, o fervor, a alegria, a paciência, a perseverança, a generosidade, a hospitalidade etc. devem ser buscados. Negá-los é um grave erro. Por outro lado, os vícios que se opõem àquelas virtudes devem ser evitados. Notemos, porém, que, ao ensinar o que é propriamente o amor, em 1ª aos Coríntios 13, Paulo não tenta expressá-lo numa fórmula sintética. Não procura capturar a virtude do amor e prendê-la numa definição aristotélica. Pelo contrário, ele mostra o que o amor é, por meio do que ele faz. Devemos pensar o mesmo, em relação a todas as outras virtudes.
As virtudes só se definem em situações concretas. Fora delas, não sabemos o que elas são, nem o que é seu oposto: o pecado. Em abstrato, as virtudes são símbolos do coração de Deus. O amor, o bem etc. são sentimentos de Deus. Representam, portanto, Deus. Deus é amor, Deus é o bem. No entanto, em termos de atitudes humanas, só podemos definir o amor, o bem e todos as outros valores cristãos em situações específicas.
Claro que esse modo de ver as virtudes tem muitas consequências. A primeira delas é ampliar, extraordinariamente, o papel da dúvida no interior da Ética. Que é certo? Que é errado? Que Deus ordenou fazer? Que ordenou não fazer? Não podemos responder tais perguntas, no plano abstrato em que estão formuladas. Mais do que isso: as perguntas não têm respostas possíveis. E sabemos bem que perguntas sem respostas possíveis são absurdos.
A Ética como disciplina abstrata do comportamento comporta amplo espaço para a dúvida. É o que a história do patriarca Jó exprime. Depois que os sete filhos e as sete filhas dele se reuniam para banquetear, Jó “levantava-se de madrugada e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles”. Não o fazia, porém, baseado em certeza, mas na dúvida: “Dizia: Talvez tenham pecado os meus filhos, e blasfemado contra Deus em seu coração” (Jó 1:5).
A palavra “talvez” indica que o patriarca tinha dúvida de que seus filhos houvessem pecado. E, como os intermináveis debates do Livro de Jó sugerem, suas dúvidas não se deviam à ignorância do que os filhos haviam feito, mas do que aquilo que eles tinham praticado significava para Deus. Jó sabia muito bem o que era o pecado cometido na adoração, mas não sabia com certeza o que era pecado moral. Por isso, disse: “Se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, que caminhava esplendente, e o meu coração se deixou enganar em oculto, e beijos lhes atirei com a mão, também isto seria delito à punição de juízes” (Jó 26:10). A idolatria, o culto prestado ao sol ou à lua, eram pecados para Jó. Eram até mesmo pecados sujeitos à punição de juízes. Mas Jó não disse outro tanto dos pecados morais.
Não nos enganemos com a ideia de que as coisas se tornaram mais definidas depois. Não se tornaram. Jó se situa num tempo anterior a Moisés. Porém, as permissões e proibições que esse legislador entregou a Israel estão, em grande parte, envoltas na cláusula pela qual Jesus explicou o direito ao divórcio: “Por causa da dureza do vosso coração é que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres”. E não nos esqueçamos do que ele afirmou em seguida: “Entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8). Se não só o divórcio, mas outras permissões cabem nessa interpretação de Jesus, a lei não define, muito menos define com exatidão o que seja o pecado moral. O que a lei define, como Jó também faz, é o pecado de adoração.
Jó está mais perto do “princípio” do que Moisés. Veio antes dele. Será que não podemos estender a dúvida que Jó manifestou à Lei de Moisés? Será que não devemos projetá-la no Novo Testamento? Que significa “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mt 7:1)? Que significa Jesus ter perdoado a pecadora que Moisés mandara apedrejar (Jo 8:11)?
Vejamos o caso do amor ao inimigo. Em Romanos 12, Paulo cita apenas dois versos do Antigo Testamento. Esses versos afirmam: “A mim pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor” (12:19; Dt 32:35) e “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça” (12:20; Pv 25:21-22).
As citações escolhidas por Paulo indicam que o foco da argumentação do apóstolo está posto no amor ao inimigo. O amor é uma virtude suprema. Porém, dos amores, o que é dedicado ao inimigo é o maior, o que mais envolve a renúncia de si. Notemos que os versos citados atribuem conteúdo concreto a esse amor. Amar o inimigo é dar-lhe de comer e de beber. Não que a virtude esteja posta em atos mecânicos. Ela tem o seu lar no coração. Virtude não é o dispêndio de energia que realizamos ao agir. É o sentir humano e um modo especial de sentir. Mas Paulo define o amor ao inimigo e as outras virtudes sempre em circunstâncias concretas.
Devemos extrair disso que, em todas as circunstâncias, é nosso dever dar de comer e beber aos inimigos? Absolutamente não. Afirmá-lo seria subverter a ideia bíblica de que o virtuoso define-se e se ajusta a circunstâncias variáveis. Não podemos supor que as circunstâncias sempre nos permitirão dar de comer e beber aos inimigos. Pode ser que, em alguns casos, fazê-lo signifique provocá-los à ira. Então, não o devemos fazer. De sorte que o mandamento do amor ao inimigo significa que devemos dar-lhe de comer e de beber tanto quanto as circunstâncias permitam.
No capítulo 1, Paulo associou a rejeição de Deus pelos gregos à perversão sexual. Vivemos num tempo em que quase metade do mundo pensa que não há perversão sexual, e a outra quase metade acha que todo ato sexual é pervertido. O pensamento de Paulo distancia-se desses dois extremos. E, ao mesmo tempo, é mais profundo que eles, pois trata a perversão como manifestação da ira de Deus pelo pecado, não como o próprio pecado.
Isso exige que separemos bem as coisas. O pecado é um fato da vontade. É a resolução de abandonar a Deus ou, numa palavra: a idolatria. O que Paulo descreve como perversão, em Romanos 1, por outro lado, parece um fato da natureza e não da vontade, já que não é o próprio pecado, mas o juízo de Deus sobre ele. Com efeito, se o pecado reside na vontade, a perversão a que Paulo alude parece ser um dado da natureza, como uma doença ou imperfeição.
Mas isso contradiz a passagem em que Jesus afirmou que o cego de nascença não veio ao mundo sem ver, porque seus pais haviam pecado (Jo 9:1-3). A passagem impede considerar a cegueira o resultado físico de um julgamento de Deus. Por que a perversão que Paulo apresenta como consequência do pecado seria diferente? Se Deus não julga, usualmente, por meio de castigos físicos, é mais provável que Paulo se referisse ao juízo de Deus sobre os gentios como uma perversão da vontade. Voltaremos mais tarde a esse tema.

QUE É VIRTUDE?

Podemos tomar a Carta aos Romanos como uma mensagem que desceu à Terra do modo como uma folha desprende-se e cai de uma árvore, sem qualquer mediação da cultura humana. Durante milhões de anos, tantas folhas que se soltaram e caíram de árvores o fizeram pela mesma e única causa: a ação da força gravitacional. No entanto, não é assim com objetos culturais como palavras. A utilização de um verbo não é como a queda de uma folha. Dependendo da época e do contexto cultural em que é empregado, o mesmo verbo pode assumir significados bastante distintos.
A inspiração divina da Bíblia não existe para tratarmos as palavras como se fossem folhas. Deus ter inspirado a Epístola aos Romanos não significa que as suas palavras sejam independentes das convenções linguísticas e teológicas da época em que foram escritas. Pelo contrário, a inspiração supõe a diferença bem demarcada entre natureza e cultura, o que significa que não podemos desconsiderar o significado específico do texto para os leitores do primeiro século.
Para exemplificar, quando fala de Jesus de Nazaré e sua morte, Paulo se refere ao que as pessoas daquela época sabiam a respeito deles. E, quando trata da virtude, nos capítulos 12 a 15, da mesma forma, ele pressupõe o que essa ideia significava no contexto cultural do primeiro século.
Porém, diferenças culturais podem ser tão grandes que grupos distintos de pessoas podem ter concepções opostas sobre a virtude, na mesma época. Por isso, para entender o que era virtude para Paulo, devemos estabelecer primeiro a que contexto cultural ele pertenceu. Sabemos que Paulo foi judeu e cidadão romano, que residiu em Tarso, na Cilícia, e estudou aos pés de Gamaliel, em Jerusalém. Está, pois, claro que ele recebeu duas formações e pertenceu, de certa maneira, a dois mundos: o judeu e o romano.
No entanto, se olharmos para a figura de Saulo de Tarso, nos capítulos 8 e 9 de Atos dos Apóstolos, perceberemos que a dupla formação que recebeu resultou numa orientação de vida única e bastante clara. Saulo foi, antes de tudo, alguém devotado à religião judaica. Tudo o que ele sabia moldava-se à relação privilegiada que tinha com a fé dos judeus, especialmente como afirmada pela seita dos fariseus. Por isso, o contexto cultural em que Paulo deve ser situado preponderantemente é o da cidade de Jerusalém e do Templo da sua época.
Nas obras que publicou sobre Jesus, Bento XVI utilizou-se dos resultados da pesquisa sobre o judaísmo do primeiro século apresentados por Martin Hengel, em 1993, em A questão joanina. De acordo com o Papa, “no tempo de Herodes se formou em Jerusalém uma autêntica classe alta judaica mais ou menos helenizada com uma cultura especial” (BENTO XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planetas, 2007. p. 195).
Essa informação de suma importância permite entender que não apenas Tarso da Cilícia, onde Paulo morou, mas a própria Jerusalém, onde estudou, haviam sido permeadas pela cultura grega. Nesses lugares, muitas pessoas falavam grego e usavam palavras e ideias carregadas de significados gregos.
Com toda probabilidade, esse era o caso da ideia particular de virtude que Paulo utilizou em Romanos 12 a 15. Não devemos supor que essa ideia fosse impermeável à maneira grega de pensar. O conteúdo dela era estabelecido, sem dúvida, pela Lei de Moisés. Porém, o significado mosaico da virtude não colidia com as mais prestigiadas ideias gregas sobre ela. É improvável que Paulo tivesse divergências fundamentais com o modo de conceber a virtude de Platão, Aristóteles e os filósofos da Estoá (estoicos). Aliás, essas concepções estavam entretecidas umas às outras e, às vezes, entretecidas também com o Antigo Testamento, no ambiente amplo de Jerusalém.
Um exame detido de Romanos 12 a 15 mostrará, por exemplo, que Paulo evita conceber as virtudes como extremos morais. Ao tecer o elogio da moderação, em 12:3, ele mostra não situar a virtude nos extremos: “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes, pense com moderação segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”. Moderação, nesse ponto, indica a virtude moderada por uma medida.
A moderação não é um esforço individual, mas um limite que a situação no corpo de Cristo impõe a cada um. E, se identificarmos a virtude, em geral, com uma medida de moderação, teremos de concluir que ninguém, enquanto indivíduo, pode estabelecer o que é certo e errado, já que a moderação como tal se exerce no âmbito do corpo de Cristo: “Porque, assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função; assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros, tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé; se ministério, dediquemo-nos ao ministério; ou o que ensina, esmere-se no fazê-lo; ou o que exorta, faça-o com dedicação; o que contribui, com liberalidade; o que preside, com diligência; quem exerce misericórdia com alegria” (12:4-8).
No final desses versos, as virtudes cristãs tomam forma clara. Paulo refere-se à liberalidade, à diligência, à misericórdia como se tudo o que foi dito antes devesse conduzir a elas. Para ele, a função de um membro do corpo não é apenas um exercício ou trabalho, mas a manifestação de uma virtude particular. A cada função está ligada uma virtude: à contribuição para o sustento de outras pessoas está associada a liberalidade; à liderança, a diligência; ao exercício da misericórdia, a alegria. Assim, a afirmação de que cada um deve exercer a sua função conforme a medida da fé equivale a propor que a virtude correspondente deve ser exercida com medida.
Assim, a concepção extremada da virtude parece estranha ao pensamento de Paulo em Romanos. Para ele, agir bem é o resultado de um hábito exercido moderadamente, o que nos conduz à noção de mesótes desenvolvida por Aristóteles. Mesótes é o ponto médio entre extremos que são dois vícios. Para exemplificar, a generosidade (virtude) é o ponto médio entre a avareza e a prodigalidade, que são dois vícios. E a coragem (virtude) é o meio-termo entre os vícios da covardia e da temeridade.
Para o filósofo grego, um dos extremos se caracteriza pela simples carência da virtude. A avareza, por exemplo, é a falta de generosidade, e a covardia, a falta de coragem. O outro extremo corresponde ao excesso da virtude ou de algo semelhante a ela: a prodigalidade é o hábito de gastar demais, e a temeridade, a coragem excessiva.
Não estou a afirmar que Paulo concebe as virtudes exatamente como Aristóteles, mas que, por uma espécie de infusão cultural, o seu pensamento reflete certas nuanças e concorda em vários pontos com o daquele filósofo. Estou a afirmar que as palavras de Paulo, em Romanos, não são folhas de árvores, mas objetos culturais. Se Deus inspirou aquelas palavras, ele as usou como o que são, não como outra coisa. Por isso, a referência às virtudes como hábitos moderados, como medidas ou proporções do agir humano pode bem estar em paralelo com o pensamento de Aristóteles como tinha sido incorporado, particularmente, ao judaísmo de Jerusalém.
Nas suas epístolas, Paulo quase sempre se refere às virtudes como conceitos abstratos. Ele quase nunca se preocupa em mostrar em que consiste a virtude numa situação concreta. Deixa a determinação desse ponto para os destinatários das suas epístolas. Mas, em Romanos 12, ao abrir a seção sobre os valores cristãos com alusões à moderação, à medida e à proporção da fé, ele emite sinais claros de uma concepção geral da virtude como hábito equidistante de extremos viciosos.
Esse modo de pensar de Paulo não fica sem consequências. Se a virtude é o ponto médio entre a carência e o excesso, o pecado da sodomia deve ser caracterizado não como orientação sexual divergente da média da população, mas como um excesso disso. Como um homossexualismo levado ao ponto da monstruosidade. Admitamos que Paulo considerasse a heterossexualidade o paradigma do comportamento sexual virtuoso. É muito provável que ele, de fato, o fizesse. O problema é que, para tratá-lo como paradigma, ele tinha de situar toda uma gama de comportamentos entre dois vícios, um correspondente à falta de impulso sexual (assexualismo), e o outro, ao impulso sexual monstruoso (sodomia). Sob essa concepção, nem a castidade forçada é virtuosa, já que coincide com o assexualismo, nem as variedades de comportamento sexual do mundo grecorromano são pecaminosas, na medida em que permanecem afastadas da sodomia.
Em 1ª aos Coríntios 6:9, Paulo condena quatro comportamentos sexuais: a devassidão (impureza), o adultério, o homossexualismo e a sodomia. Se Romanos e 1ª aos Coríntios estiverem suficientemente de acordo um com o outro, teremos de concluir que a cada um desses vícios corresponde outro oposto. Portanto, se a devassidão é o descontrole do ímpeto sexual, seu oposto há de ser o controle demasiado, a castração, o voto de castidade sem qualquer sentido. Se o adultério é o desrespeito pelo vínculo matrimonial, seu contrário deve ser a proibição total do divórcio. Se o homossexualismo é a inclinação contrária ao aparelho sexual provido pela natureza, o oposto é a proibição da orientação divergente da natureza. E se a sodomia é o homossexualismo que se prevalece da força contra a opção sexual alheia, como vemos em Gênesis 19, o contrário há de ser o homossexualismo inerte, passivo e infenso a toda prática sexual.
Esse modo de entender as virtudes e os vícios ultrapassa o sentido literal de Romanos 12, mas não o conjunto de ideias que circulava em Jerusalém (e tanto mais em Tarso), naquele tempo. Interpretar o texto de Paulo à letra pode implicar e frequentemente implica considerar as suas palavras objetos naturais. Mas elas não o são. Há em Romanos e nas Epístolas de Paulo, em geral, um conceito subjacente de virtude colhido não só a Moisés, mas também ao pensamento grego. O fato de Romanos ter sido escrita em grego é, por si, o primeiro indício disso.
E, se os vícios hão de ser entendidos como extremos relacionados ao excesso e à privação de certas práticas, a virtude terá de ser interpretada não como uma única prática, mas como uma gama situada entre aqueles extremos. Isso não significa que o pensamento moral de Paulo reproduza Aristóteles, mas que há uma inspiração aristotélica nele. Essa inspiração parece ter levado Paulo a conceber a virtude como meio-termo entre vícios opostos. Não podemos, é claro, tecer essas afirmativas de modo peremptório, mas elas parecem condizentes com a orientação geral dos textos do apóstolo e com o ambiente cultural em que ele vivia.
Em 1ª aos Coríntios 7:10,12, Paulo escreveu: “Aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido [...] Aos mais, digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher incrédula e esta consente em morar com ele, não a abandone”. Notem que Paulo se referiu a duas classes de pessoas unidas sexualmente a outras: os casados e “os mais”. A estes não ordenou que se separassem de seus pares, por considerar ilícito o relacionamento sexual que mantinham. Pelo contrário, ordenou que permanecessem com seus companheiros ou companheiras, embora não fossem casados com eles. Isso mostra, com toda clareza, que o pensamento moral do apóstolo, em questões sexuais, não tinha a estreiteza que se tornou comum no meio evangélico.
Infelizmente, a história da interpretação protestante da Bíblia é tão rica em estreitamentos! Apenas recentemente, a consciência desse mal se disseminou o bastante para que o início de uma abertura passasse a ser buscado. Mas a que preço! Se não são como folhas, ideias tampouco são como obras de arte. Estas se sucedem sem se refutarem umas às outras. Portanto, sem cancelarem cada qual o valor da outra. A arte é pura soma. Mas não é possível adotar uma ideia nova sem negar outra antiga. O avanço na verdade não se faz só por somas, mas também por subtrações. E não há fim no somar e no subtrair. Não há ideia nova e revolucionária que não envelheça e se faça conservadora. Não há verdade humana que não prescreva, nem teoria que não se transforme em erro. Por isso, buscar a verdade é somar e subtrair ideias incessantemente. E o que torna essa atividade dramática não é o seu nunca acabar, mas o fato de, como seres humanos, termos muito mais deficiências na arte de subtrair que na de somar.

A VIRTUDE PRIMEIRA

Se Romanos 12:1 não tivesse sido escrito, jamais um cristão atual faria as declarações que ali se encontram, pois a mentalidade que levou Paulo a escrever aquele verso não existe mais. Quando queremos falar de consagração, referimo-nos à entrega da alma, não do corpo, como Paulo escreveu. E temos enorme dificuldade para entender o que pode significar um culto prestado com a razão.
Paulo, porém, referiu-se à consagração do corpo e ao culto mais racional. Essas declarações dizem algo muito importante sobre a antropologia da época. Para Paulo, o homem era uma alma, que possuía um corpo. Cabia, portanto, à alma governar o corpo e não o contrário. Por isso, era ela que apresentava o corpo como sacrifício a Deus.
As afirmações do apóstolo confirmam o que temos visto diversas vezes neste comentário: que a alma ou a mente, se preferirem, é a parte principal do homem e o centro da salvação de Deus. Por ser a parte principal e o centro, a mente é simbolizada pela mulher do capítulo 7, cujo primeiro marido morre, o que lhe permite casar-se com outro (Cristo).
A superioridade da mente ao corpo é uma lição tão simples quanto esquecida. Porém, é o que permite à alma consagrar o corpo a Deus. Encontramos essa lição repetida por toda parte no Novo Testamento. Às vezes, ela é afirmada de modo implícito, como em João 1:12, que estabelece que a regeneração não consiste em nascer do sangue, nem da vontade da carne ou da vontade do homem. O sangue, como elemento corpóreo, opõe-se à vontade, que é o elemento psíquico, porque o corpo é distinto da alma. Do mesmo modo, em Romanos, por meio do culto racional, a alma deixa de ser guiada pela carne e passa a guiá-la. Apresenta-a como sacrifício vivo e agradável a Deus.
Essas são as ideias com as quais Paulo abre a longa seção a respeito da conduta dos que creem em Cristo. Ele as utiliza, pois pensa que o cumprimento da lei se obtém pela liderança da mente sobre o corpo. Fazer a coisa certa é agir racionalmente. E agir racionalmente é o mesmo que a mente governar o corpo.
As palavras de Paulo supõem o dualismo mente-corpo? Sem dúvida. E a cultura atual: nega esse dualismo? Nega-o, mas em parte. A alma continua a ser uma categoria do pensamento contemporâneo e, como tal, continua a se opor ao corpo. Não há como concebê-la, a não ser nessa oposição.
Romanos 12:1 reafirma, sinteticamente, o lugar reservado à razão em tudo o que é humano. Tanto o ser como o dever-ser do homem são racionais. O homem é guiado pela razão, queira-o ou não. Esse é o seu ser, a sua natureza. Mas ele também deve ser guiado por ela: esse é o seu dever-ser. A racionalidade é, portanto, um fato e um mandamento para o homem. Como fato, ela tem sua origem na criação; como mandamento, sua fonte é a lei.
Poderiam indagar se a fé não é uma experiência da afetividade. Se Deus e a experiência de Deus não se situam no sentimento. Situam-se. É o que significa a declaração “Com o coração se crê para justiça” (10:10). O coração significa, aí, o mesmo que em Deuteronômio 6:5: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”. Quem duvida de que o coração, nesse último verso, se distingue da razão fria? O coração é, portanto, a razão enquanto sente. Por isso, ao citar Deuteronômio 6:5, Jesus acrescentou a cláusula: “e de todo o teu entendimento” (Mc 12: 30; Lc 10:27).
A cláusula não pode ter sido inserida por um copista descuidado. “Shema, Israel [Ouve, Israel], o Senhor teu Deus é o único Deus. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” é um verso fundamental demais para ter sido citado de maneira errada por simples falta de cuidado. Errar ao citá-lo é como errar ao santificar outro nome em vez do nome de Deus. Portanto, ao inserir a cláusula “de todo o teu entendimento”, em vez de deturpar o versículo, Jesus entregou-nos a chave interpretativa dele. Tanto o coração como a alma e as forças têm no entendimento sua fonte primordial, porque o ser e o dever-se do homem são a sua razão.
O coração é o entendimento aquecido pela palavra de Deus. Está, pois, longe do pensamento bíblico ele excluir a mente. Se o coração excluísse a mente, a afetividade do ser humano seria idêntica à do animal, o que é absurdo. Mas ele não a exclui, antes tem nela o seu ponto culminante, a sua máxima realização.
Paulo nos lembra que o fato de a fé pertencer à esfera da afetividade e do sentimento não significa que ela seja irracional. Como o Antigo e o Novo Testamentos o apresentam, o sentimento não litiga com a razão. O mandamento não diz só “de todo o teu coração”. Nem diz apenas “de todo o teu entendimento”, como se devêssemos optar por um ou por outro. Diz “de todo o teu coração e de todo o teu entendimento”, a fim de que conciliássemos os dois.
A primeira de todas as virtudes, no Novo Testamento, é a fé. Mas não a fé irracional, a fé dirigida a qualquer coisa, mas a fé dirigida à verdade. Agostinho ensinou que "crer é aceitar como verdadeiro o que se diz e a aceitação é certamente um ato da vontade" (HIPONA, Agostinho de. O espírito e a letra. 3ª ed., São Paulo: Paulus, 2009. p. 81). A fé que Paulo nos apresenta não é a fé num erro. É a fé na verdade, e a verdade, a menos que queiramos alterar o seu DNA, permanece uma categoria racional.
Se a fé fosse um sentimento irracional, toda fé seria igualmente justificável, pois o sentimento não é admitido ou rejeitado em função de outra coisa a não ser de si mesmo ou de outro sentimento. Não se pode afirmar que um sentimento irracional seja certo ou errado. Ele é apenas irracional. Portanto, não temos como o censurar nessa base. De modo que, se devemos criticar a crença em mulas sem cabeça ou coisas semelhantes, é porque devemos exigir que a fé se mantenha ligada à razão.
Credo quia absurdum (creio porque é absurdo)? Essa confissão resume a História da Religião, confunde-se com ela, porque nenhum ato lógico esteve sujeito a menor controle, até hoje, do que a fé. Mas o fato de a fé ter sido, historicamente, tão associada ao absurdo não exclui, por si só, que ela tenha estrutura racional. Assim como os pecados humanos, os absurdos da fé são redimidos no cristianismo, que não oferece somente o perdão dos pecados, mas a libertação de absurdos e superstições. A verdade não agrilhoa: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8:32).
Porque a fé no absurdo tem correção, porque há redenção para ela, é preciso não entregar o ato de crer ao descontrole da irracionalidade. Crer não pode ser crer em esquisitices, em irracionalidades consumadas, em coisas incompatíveis com a vida como ela se apresenta. É preciso examinar seriamente se a fé é incorrigivelmente absurda, como hoje se alega, ou não. Se concluirmos que não o é, precisaremos erguer a voz e apontar, com coragem, a estrutura lógica do ato de crer. Precisaremos explicar que crer no absurdo é perder-se ao crer, porém crer no que não é absurdo equivale a encontrar-se.
Aristóteles divide as virtudes em intelectuais (a exemplo da verdade) e morais (assim como a bondade e a paciência). Paulo, por sua vez, declara que os gregos retêm a verdade na injustiça (1:18). Por se opor à verdade, essa não é uma injustiça comportamental, mas intelectual. Há, pois, justiça intelectual e comportamental, como Paulo reafirma em 1ª aos Coríntios 13:6, ao declarar que o amor não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. De novo nesse versículo, a injustiça que se opõe à verdade não é comportamental, mas intelectual.
Crer não é saber: quem discordará dessa proposição? Mas, se não o é, a fé implica a dúvida. Implica que aquilo em que se crê pode ser ou não ser. E não implica uma terceira possibilidade além dessas. Por isso, a fé é a manifestação do princípio lógico conhecido como tertium non datur (terceiro excluído) no território da transcendência. Crer é crer que Deus é ou não é. Não há terceira possibilidade. Mas há um problema nisso: nunca se propôs que o terceiro excluído fosse qualquer outra coisa, além de um princípio lógico. E, se ele o é, então a fé é lógica, na exata medida em que Deus é ou não é.
Crer é aceitar algo tão tremendo quanto “Deus ser ou não ser”. Infelizmente, alguns nada veem de tremendo nesse dado. Para eles, Deus ser ou não ser é o óbvio, em toda a sua extensão. Mas como é difícil viver em conformidade com o óbvio! Se Deus é ou não é, por que vivemos tão despreocupados com a eternidade, nas nossas sociedades complexas e abastadas? Pascal afirmou: a alma é mortal ou imortal. E recriminou os que vivem como se só existisse a primeira possibilidade. Se os mortos não ressuscitam, disse-nos Paulo, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1 Co 15:32). Mas, se eles ressuscitam, prestemos bastante atenção, porque amanhã viveremos.
Essa é a primeira virtude: a fé na verdade transcendente, que não conhecemos a não ser minimamente. Dela nasce outra fé, dirigida à verdade imanente, que conhecemos muito melhor. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, Deus, que só pode ser conhecido pela fé, exorta as pessoas a falarem a verdade umas às outras. Daí a instituição do juramento. Ao se pronunciar, em momentos decisivos, o homem devia fazê-lo sob juramento. Devia jurar, a fim de que a verdade fosse estabelecida. E, para que não se pense que a natureza humana é suficientemente descrita pela propensão à mentira, sem referência às meias verdades que são tão humanas quanto comuns, naquele tempo eram necessárias duas testemunhas juramentadas para que uma só verdade se constituísse.
Em Neemias, encontramos um exemplo notável da extensão do valor da verdade, no Antigo Testamento. Confrontado por uma súcia de opositores inescrupulosos, ardilosos, mentirosos e fraudulentos, enfim com a pior de todas as raças, formada por Sambalá, Tobias, Gesém e outros, Neemias não agiu de modo inescrupuloso, ardiloso, mentiroso ou fraudulento, a fim de se defender. Recebeu uma carta de dois de  seus arquirrivais para que comparecesse a um encontro em Cefirim, no vale de Ono. A carta omitia a verdadeira intenção dos opositores, que era fazer mal a Neemias (Nm 6:2).
Quatro vezes os inimigos de Neemias mandaram-lhe cartas com esse falso convite. Quatro mentiras, uma a mais que as tentações do deserto. A todas, Neemias opôs uma só verdade. Disse que não ia ao encontro, por estar ocupado com uma grande obra (a reconstrução dos muros). 
Na quinta vez, Sambalá escreveu-lhe que os judeus tramavam rebelar-se e constituir Neemias seu rei. Não era possível acusação mais grave, nem mais inverídica. Que replicou-lhe o líder judeu? Mentiu, para enganar seu adversário? Não, mas usou de sinceridade. Disse-lhe simplesmente: “Não aconteceu nada de semelhante ao que afirmas”. E levou a sinceridade ao ponto da acusação: “Tudo não passa de uma invenção do teu coração” (Nm 6:8).
A atitude de Neemias faz lembrar o conselho “Não vos canseis de fazer o bem” (2 Ts 3:13). Cansar-se do bem, desfalecer na adesão aos valores é, para alguns, um problema maior que o gosto pelo desvalor. Os judeus que tinham voltado para Jerusalém viviam em grande pobreza. Tinham de realizar uma obra inversamente proporcional aos seus parcos recursos. E, como se não bastassem essas dificuldades, os homens mais poderosos da província se uniram para se opor a eles e ainda usaram de falsidade para com Neemias. Que o líder dos judeus opôs a esse prodígio de orquestração e falsidade? Simplesmente a realidade. É até onde deve ir a adesão de um homem à verdade.
Este é, porém, um tempo frívolo, uma era de indiferença quanto à verdade suprema. Que dizer das demais... Quem não respeita a maior de todas as verdades, por que motivo, no céu ou na terra, respeitaria as menores? Quem foi Jesus?, pergunta uma vasta literatura. A resposta que oferecem é: “Que importa, se eu não preciso dele?” “Deus criou o Universo ou tudo se fez sem ele?”, indagam os livros. Os que ouvem replicam: “Que importância tem isso?” Claro: a verdade já não importa. Há muito deixou de importar. É o que se diz e se ouve, em boa parte do Ocidente.
Dá calafrio pensar no que significam as palavras, as demonstrações e as juras que essas pessoas fazem sobre fatos mais corriqueiros. Gela pensar no que significam os seus convites para um simples encontro....

A HUMILDADE

Os 20 séculos que nos separam da época de Paulo impedem-nos de compreender certas partes dos seus escritos. Dificilmente entendemos por que Paulo passa do culto (latréia) a Deus, em 12:1-2, à distribuição de dons e à exortação dos membros do corpo de Cristo à humildade, nos versos 3 a 8. Que relação pode haver entre o culto, os dons e a humildade, como Paulo os aborda?
Porém, quando olhamos a carta de perto, a relação aparece-nos bastante estreita. Qual é a síntese do pecado do homem grego, a não ser o abandono do culto a Deus, seguido do culto aos ídolos? E em que se resume a sua salvação, a não ser na adesão àquele primeiro culto? A igreja romana cultua Deus, em grave contraste com os gentios, que perseveram no abandono dessa adoração.
Mas o culto a Deus não é algo que o homem consiga realizar por si mesmo. Como a própria salvação, o culto é também uma dádiva. Isso significa que, para cultuar a Deus, não basta querer cultuá-lo. A vontade humana não é capaz, por si mesma, de adorar a Deus em espírito e verdade (Jo 4:24). Deve passar por um processo que a habilite para o culto, que Paulo chama transformação (metamorphósis) da mente por um novo tipo de pensar “com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).
Esse pensar não é ocasional, mas um hábito. Poderíamos descrevê-lo como um pensar com humildade. Embora Paulo não use a palavra humildade, mas moderação e medida, a descrição que nos dá do pensar cristão corresponde ao conteúdo daquela virtude. Muitos pensam na humildade como algo exterior: um modo de trajar-se, de gesticular e, principalmente, de falar. Paulo a concebe como o hábito de pensamento a que a primeira bem-aventurança se refere: “Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5:3).
A humildade do espírito é, pois, o cerne do culto prestado a Deus no Novo Testamento. “Digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém, antes pense com moderação [sothroneín] segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3). Nesse versículo, a preocupação do apóstolo e, poderíamos dizer, a de Deus por meio dele não recai em qualquer pensamento. Deus vela sobre todos os pensamentos do homem, mas não sobre todos da mesma maneira. O que mais lhe importa é o que pensamos sobre nós mesmos.
A palavra sothroneín, em 12:3, é a chave para entendermos o que torna pecaminoso o pensamento do homem sobre si. O homem perde a humildade, quando pensa imoderadamente nas suas qualidades. A ênfase da exortação de Paulo está posta na intensidade, não na verdade ou no erro do pensamento. Uma pessoa feia pode achar-se bonita e inchar-se de orgulho, mas o caso comum é os belos caírem na vacuidade do orgulho. O mesmo pode ser dito dos inteligentes e dos portadores de todas as outras virtudes.
O princípio do pecado não é, pois, o equívoco sobre si, mas o pensamento imoderado a respeito das próprias qualidades. Não é errado alguém entender-se belo ou inteligente. Porém, é pecaminoso entender-se assim além da conta. E qual é a conta? Qual a medida que Deus fixou para o pensamento a respeito das próprias qualidades? Paulo aponta dois limites: o reconhecimento da medida das nossas qualidades e da sua origem.
Todos temos carismas, mas carismas limitados: assim profecia como ministério, ensino, exortação, contribuição, liderança, misericórdia (12:6-8). Ninguém recebeu toda a palavra de Deus ou palavras de Deus sobre tudo. Muito longe disso. Ninguém é capaz de ensinar tudo, exortar em toda situação ou contribuir sempre. Embora divinos, os dons que nos foram repartidos são limitados.
Pensemos em Salomão. Ele podia discorrer sobre as plantas, desde o cedro que está no Líbano até o hissopo que brota no muro, e também sobre os animais, as aves, os répteis e os peixes (1 Rs 4:33). Era-lhe, portanto, lícito crer na extensão da sua sabedoria. Mas não lhe era lícito pensar que sabia mais do que realmente sabia ou ignorar o quanto não sabia. Conheça quanto conhecer, o homem ignora infinitamente mais do que conhece. Por isso, a diferença entre a verdadeira sabedoria e a sabedoria aos próprios olhos reside na profundidade desse último conhecer.
Mas Paulo não se contenta com traçar à arrogância o limite da extensão dos dons. Além de reconhecer que os dons têm medida, que alguém tem de Deus profecia, ministério, ensino, exortação e todas as outras capacidades em determinadas medidas, ele situa em Deus e não no homem a origem dessas medidas. Esse reconhecimento implica que as qualidades que possuímos são dádivas, não artefatos. Foram dadas por Deus, não construídas por nós. Nós cooperamos para que as qualidades se desenvolvam, mas essa cooperação não anula a presença no dom de tudo o que ele se torna, assim como a árvore está na semente.
No átimo em que reconhece a procedência divina das suas qualidades, o homem esvazia-se de toda exaltação. Coloca-se, por assim dizer, no seu verdadeiro lugar. E qual é esse lugar? É o lugar do barro de que ele é feito. Pois “temos este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (2 Co 4:7).
Esta é a lição primeira de toda a Escritura. A lição sem a qual não há lição segunda a aprender. É também o passo sem o qual não há segundo passo. Só reprovação e incapacitação. Na Bíblia, uma lição antecede o que ela ensina a respeito de Deus. É a lição sobre o homem. Sem aprendê-la, o homem não pode saber quem é Deus, já que este o criou à sua imagem, o que significa que fixou o espelho em que se mostrará.
“Que é o homem, que dele te lembres?” (Sl 8:4), é a pergunta primeira da Bíblia. E, como só Deus é capaz de responder o que pergunta, devemos buscar na própria Escritura a resposta dela. Encontramo-la, é certo, espalhada por toda parte, mas também concentrada em algumas passagens. Em sua máxima concentração, só a vemos, talvez, em Gênesis 2: “Formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2:7). E também: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2:15).
O homem feito da terra foi dado à terra. Tem, pois, na terra a sua natureza física e, pelo trabalho, a sua natureza moral. Humus, em latim, é terra. A natureza terrena do trabalho que o homem realiza, ao arar o chão, ensina-lhe quanto ele é vil e humilde. Não há nisso rebaixamento algum. É antes a natureza e o ser do homem.
Porém, a história da natureza humana, em sua totalidade, é muito pior do que isso. Por ter, desde o início, uma essência física e outra moral, ao cair no pecado, o homem sofreu a corrupção de ambas as suas naturezas. É o que Gênesis 3 ensina e Paulo reafirma em Romanos. Que significa essa degeneração? Significa, em síntese, que a natureza moral do homem corrompeu-se totalmente, e a sua natureza física, parcialmente.
Como a natureza moral está associada ao trabalho e depende dele, Deus disse a Adão, quando este pecou: “Visto que atendeste a voz de tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3:17-19).
Tenho dificuldade em aceitar a doutrina da corrupção física e moral do homem, nos termos em que é geralmente afirmada. Não por causa da degeneração moral, que aceito inteiramente, mas da corrupção física como a apresentam. Defendi os motivos históricos disso, no post “Criação: o que é, o que não é”. Do ponto de vista teológico, o problema é que a alma e o corpo são incomensuráveis. Portanto, a corrupção de um não se compara à do outro, nem pode ser a paga dela. O que ocorre é, para mim, mais simplesmente, que a degeneração moral leva o homem a praticar atos tais que afetam o seu corpo.
A corrupção de que a Bíblia nos fala é, portanto, integral apenas no âmbito moral. E não o é em razão das palavras pronunciadas por Deus após a queda, que se limitam a afirmar que Adão passou a viver num novo contexto, mas em razão do que o próprio homem fez desde então. De fato, a confrontação com a natureza hostil, inexistente no Jardim do Éden, gerou para Adão a escassez, e a escassez fez multiplicar-se o pecado, principalmente em forma de violência e opressão. Nisso consistiu a corrupção da natureza moral do homem. Fisicamente, somos matéria; moralmente, somos o que pensamos e fazemos. A matéria é a nossa primeira natureza, dada; o que somos e fazemos é a natureza segunda, construída.
A degeneração moral gerou toda sorte de injustiça, mas teve por fastígio a violência e a opressão do homem pelo próprio homem. É o que vemos, não como outra lição, mas como a mesma, em Gênesis 4, quando Abel é morto por seu irmão. Reencontramos o princípio desse pecado no dito de Caim, que transborda sangue (Gn 4:14-15), e na sua descendência, que desenvolve ainda mais a violência: ”Disse Lameque às suas esposas: Ada e Zilá, ouvi-me: vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos: Matei um homem porque ele me feriu; e um rapaz porque me pisou. Sete vezes se tomará vingança de Caim, de Lameque, porém, setenta vezes sete” (Gn 4:23-24). A violência é ainda o motivo sintético e consumado do Dilúvio (Gn 6:11-13). Só não pensemos que pode ser descontextualizada ou desarraigada de sua relação com o trabalho: não pode, sob pena de a palavra de Deus a Adão nada valer.
A doutrina das duas naturezas, a anterior e a posterior à queda, é importante demais para ser saltada ou relegada ao museu como coisa conspícua, mas superada. Para dizer como Billy Graham, ela é tão atual quanto o jornal de amanhã. Enquanto houver céus e terra e natureza humana, aquela doutrina continuará atual. O pecado mudou totalmente a natureza moral do homem. De sua condição original inculpável, ele passou a outra degenerada. E é preciso fincar que a degeneração se dá no contexto do seu trabalho, não de uma tábua de leis que ele tenha transgredido, pois ela simplesmente não existia.
Encontramos, assim, o pecado por toda parte. Não foi Paulo quem o criou com a sua pregação, em Romanos. Foram os atos humanos. O corpo tampouco o criou, só sofreu as consequências dele. E a origem de todo esse mal, Gênesis a apresenta como a perda da natureza segunda do homem, da sua natureza moral. Essa natureza era originalmente humilde, por ser terrena: “Deus colocou [Adão] no jardim do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 3:15). Mas se corrompeu ao se tornar violenta e opressiva.
Num ponto, porém, Romanos parece desencaixar-se da história da origem da depravação adâmica: a epístola diz que o pecado tem como núcleo a idolatria, não a violência ou a opressão do homem. Apresenta, assim, o pecado como ofensa a Deus, não ao homem, como questão do culto (latréia) a ídolos e não a Deus. E relega a violência, a opressão e todos os outros males à condição de consequências do pecado. Mas por que é assim?
A resposta só pode ser que o culto aos ídolos está ligado à perda da humildade por parte do homem. Essa perda é o extravio humano. Os atos que se seguem são sua consequência. E, como o Novo Testamento coloca as coisas, nada exprime tanto aquela perda quanto a idolatria. Isso é bastante claro. Mas, se o é, o ídolo não pode ser apenas madeira, bronze, ferro ou ouro. Tem de ser também a projeção do eu humano. Tem de ser o eu alienado, o eu em forma de coisa. Quando o ferreiro forja o ídolo, forja a si mesmo, atribui àquele ser a sua condição, as suas qualidades. O ferreiro pensa, logo o ídolo pensa; sente, portanto sua obra sente. Ele exagera os seus atributos ao projetá-los no ser que plasmou e supô-lo mais poderoso que ele próprio. Pede, portanto, que o ídolo o livre. Mas o exagero não impede que o ídolo continue a ser o próprio homem, fortalecido e tornado imortal. Nesse ponto, Feuerbach está certo. Nesse ponto, sua tese se aplica. Pena que se trate do ponto em que a idolatria rouba o troféu do pecado à violência e leva a degeneração humana ao clímax da audácia.
Por isso, Paulo se preocupa tanto com o culto. Em todas as eras, o pecado é uma coisa só. Como o arcanjo orgulhou-se e atentou contra o culto a Deus, os descendentes de Adão procederam da mesma forma e chegaram ao mesmo resultado. Projetar-se no ídolo foi, para eles, um modo de passar de adorador a adorado, de crente ou devoto a deus. Foi e continua a ser a forma suprema da perda da humildade.
Mas a história da idolatria tem duas fases e não uma só. Elas se sucedem, ao mesmo tempo em que se interpenetram. A primeira coincide com o período bíblico, mas o ultrapassa. Declina à proporção em que o cristianismo faz seu avanço. Seu princípio regulador é a idolatria ou a adoração do homem em forma de ídolo. A segunda etapa, por sua vez, coincide com a História do Império Romano, mas também a ultrapassa. O princípio regulador dela é a antropolatria ou a adoração consciente do homem como deus. Embora a adoração de seres humanos após a morte tenha sido praticada em tempos remotas, a apoteose (divinização post mortem dos Imperadores) é que a tornou regular e até mesmo um direito. Por outro lado, se os primeiros a serem adorados em vida foram os soberanos selêucidas (Bíblia de Jerusalém. 5ª impr., São Paulo: Paulus, 2008. Jd 3:8, nota c), os Césares parecem ter sido os primeiros a contar com um culto regular. Com eles, portanto, a idolatria ingressou numa nova fase. 
A cena central do filme “Noé” talvez seja aquela em que sua mulher o acusa de injustiça. Ao ouvirmos as acusações, temos a impressão de que não se referem só a Noé, mas a Deus como autor do Dilúvio. Nada no filme tem uma só natureza: nem os gigantes, nem os homens, talvez nem as coisas. Tudo tem duas: o bem e o mal, o amor e a violência. O filme depende tanto dessa oposição que beira o maniqueísmo, mas um maniqueísmo cujos polos se decidiram a coabitar. Deus não é exceção alguma. É só o maior exemplo. Ele é culpado da violências suprema, a do Dilúvio, e só ao se regenerar se transforma em amante. Quem o leva a regenerar-se é, porém, o homem, ou melhor, as mulheres. Que outra força, afinal, poderia mudar o Criador, se o homem o formou à sua própria imagem sanguinária?
É bem uma mensagem, mas uma de que o homem pode todas as coisas, pois pode dispor de Deus. Só não pode recuperar a humildade perdida. Só não pode reconciliar-se com a terra e evitar que sua história termine no culto a si mesmo. Só Deus o pode.

SUBMISSÃO E AUTORIDADE

É natural que uma carta como Romanos, dirigida aos cristãos da capital do Império durante o primeiro século, se referisse ao poder secular do Estado e suas autoridades, em algum momento. É o que acontece nos versículos 1 a 7 do capítulo 13, nos quais Paulo não recomenda a oposição dos cristãos àquele poder, mas a sua submissão a ele.
A recomendação está permeada do sentimento não faccioso, nem preconceituoso, mas de santidade e separação com o qual a fé cristã veio ao mundo. Na iminência de ser preso, Jesus declarou: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18:36).
Declaração fortíssima de uma separação radical! Mas mesmo nela, está implícita a ausência de conflito entre o reino que é e o que não é deste mundo. Haveria conflito entre esses reinos se ambos fossem deste mundo: então, os cristãos teriam de pelejar com os que detêm o poder, no mundo, a fim de arrebatá-lo à força. Mas não é esse o caso, portanto o conflito secular está afastado.
A declaração de Jesus tampouco exprime uma espécie de conservadorismo político, já que não se traduz em posição política alguma. O que não tem relação com o poder terreno não pode ser conservador ou progressista. É diferente da política mundana, sem lhe ser favorável ou contrário. Por outro lado, a declaração de Jesus não implica que a fé cristã não possa inspirar posições políticas. Sem dúvida pode, mas não como a sua finalidade principal e sim como reflexo de seus princípios celestiais na ordem terrena.
Contudo, se a declaração de Jesus deixa claro que o seu reino é atemporal, quais devem ser as suas relações com a ordem temporal? Essa a pergunta que devia interessar sobremaneira aos cristãos romanos do primeiro século. Paulo não se interessa por respondê-la de modo completo, já que não era esse o objetivo da sua epístola. Mas propõe o que se pode considerar o núcleo de uma resposta ao escrever: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores, porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”.
Se o reino de Cristo e o deste mundo constituem realidades diversas e inconfundíveis, por outro lado, ambos têm relação com Deus, pois foram por ele instituídos. E a origem da autoridade política em Deus, afirmada por Paulo, não implica que apenas ela seja divina, mas também o reino que ela governa. Se a autoridade é ministro do bem (13:4) e governa o mundo, segue-se que o mundo é bom.
O ensinamento cristão sobre o mundo não o apresenta como uma ordem descarada, na qual o mal impera sem limites e explicitamente. Assim como ocorre na igreja (embora em outra medida), as pessoas do mundo querem fazer o bem e não conseguem. Seu fracasso testemunha a vitória do elemento maligno no interior do mundo, mas demonstra ao mesmo tempo a operação de uma força oposta a ele. Essa força é a da lei secular, que atua por meio da autoridade.
Por isso, o mundo jaz no maligno (1 Jo 5:19), na medida em que a lei é sobrepujada pelo pecado. Ele não jaz no maligno sem que uma força benigna se oponha em certa medida a isso. Pelo menos, essa não é a descrição bíblica do mundo. É antes uma caricatura dela. O mundo, como a Bíblia o apresenta, foi criado por Deus e é um terreno no qual se fere a luta mortal entre a lei e o pecado. Enquanto a autoridade secular prevalece e consegue impor-lhe a sua ordem, o mundo permanece bom, pois a autoridade é ministro de Deus para o bem: “Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem” (13:3-4). Contudo, ali onde a autoridade não chega ou onde ela chega, mas não prevalece, o pecado tem a palma.
Paulo refere-se à autoridade que porta a espada. Apresenta-a com uma face severa e até mesmo cruel. A autoridade com a espada é a própria expressão da lei em transe, na sua luta contra o mal. Paulo não discute a justiça dos mandamentos romanos. Toma-a como um dado. Entende o direito romano como algo bom, assim como havia afirmado que a lei de Deus é santa, e o mandamento, santo, justo e bom (7:12). Chega a se referir à luta pela aplicação desse direito como o movimento febril do guerreiro que traz a espada, no campo de combate. Assim como o guerreiro trava uma luta de vida ou morte, a autoridade brande a sua espada, em transe contra as hostes do mal.
Observada por certo ângulo, a luta da autoridade poderia ser descrita como um esforço contra os que querem arrebatar-lhe o poder, o cetro, a coroa.Poderia ser descrita como pura e simples luta pelo poder e de fato o é. Mas Paulo vê nela algo mais. Vê na espada que se move por ordem do magistrado um sentido moral transcendente, uma relação com a ordem divina do mundo. A autoridade pune o mal, vinga a injustiça e, ao fazê-lo, se porta como ministro de Deus. Portanto, Deus é quem pune e vinga no seu lugar: “Se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal” (13:4).
Alguém duvida de que os atos da longa lista que Paulo apresenta em 1:31 são maus? Alguém pensa que ele não considera tais atos passíveis de punição pelas autoridades romanas? E não devemos extrair disso que ele vê o castigo imposto pelas autoridades aos praticantes daqueles atos como manifestação da ira de Deus? Se Deus vinga e castiga, não é isso, afinal, a sua ira?
Paulo parece pressupor algo assim, ao ordenar: “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores” (13:1); e ao acrescentar: “É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência” (13:5). Se a consciência recomenda a submissão à autoridade, é porque ela é boa, não má.
Já se propôs que, por ser ministro de Deus, a autoridade deve ser obedecida em todas as situações: quando acerta e também quando erra. Essa conclusão é fruto de uma leitura desastrada de textos como Romanos 13:1-7. Há dois ensinamentos implícitos nesses versículos. O primeiro afirma que a autoridade é constituída por Deus. O outro informa que a autoridade constituída se faz ministro de Deus, quando pratica o bem e pune o mal. Não podemos operar a confusão dessas duas coisas. O fato de a autoridade ser dada de cima não a faz, imediatamente, ministro de Deus. É necessário algo mais que o poder para que a autoridade se torne um representante de Deus na Terra. Esse algo é a conformidade dela com a vontade divina: é o fato de praticar o bem e punir o mal.
Os versículos 1 a 7 foram escritos muito mais para nos mostrar o que é ser ministro de Deus do que para descrever a autoridade. A função de ministro depende da prática do bem e do combate ao mal. Alguém imagina Paulo a afirmar que a autoridade “é ministro de Deus, vingador, para castigar quem pratica o bem”? De modo nenhum, pois isso se opõe à intenção manifesta do texto, que é retratar a transformação da autoridade em ministro de Deus ao praticar o bem e punir o mal. 
À autoridade que pratica o mal não se aplica Romanos 13:1-7. Aplica-se Oseias 8:4: “Estabeleceram reis, mas não da minha parte; constituíram príncipes, mas eu não o soube”. Se a situação mencionada nesse versículo está afirmada nas Escrituras, deve corresponder a uma real possibilidade. E notem que ela não se refere a um caso raro ou isolado. Não se refere sequer a um caso, mas a muitos, pois diz no plural: “estabeleceram reis”. E repete: “Constituíram príncipes”. Em outras palavras, o versículo mostra que não se levantaram um ou dois reis, nem um ou dois príncipes, mas toda uma sequência de reis e príncipes, sem que Deus tivesse a menor relação com eles. Isso nos leva a crer que a autoridade iníqua é, em princípio, tão possível quanto a boa autoridade.
Por que Pedro afirmou aos líderes judeus, que lhe ordenaram não falar de Jesus Cristo, “Antes importa obedecer a Deus do que aos homens” (At 5:29)? Não foi porque eles não representavam Deus? E por que Paulo escreveu que “nada podemos contra a verdade, senão a favor da própria verdade” (2 Co 13:8), a não ser porque a autoridade não se baseia no poder que alguém enfeixa nas mãos, mas na sujeição desse poder à vontade de Deus?
A autoridade ser ministro de Deus significa que Deus age por meio dela. Mas, se ela continua a ser ministro quando faz o mal, temos de concluir que Deus faz o mal por meio dela, já que o ministro é sempre um canal. Esse é, porém, o absurdo elevado à suprema perfeição! Deus jamais faz o mal. E, por uma razão tão simples quanto essa, o líder não representa Deus quando pratica o mal. Uma coisa é ser autoridade, outra é a autoridade ser ministro de Deus.
É, a meu ver, duvidoso o ensino propagado por Watchman Nee de que a submissão à autoridade é devida mesmo quando ela erra. Em Autoridade espiritual, lemos: "E se a autoridade estiver errada? A resposta é: Se Deus teve coragem de confiar sua autoridade aos homens, então precisamos de coragem para obedecer. Se a pessoa com autoridade está certa ou errada, não nos diz respeito, uma vez que é diretamente responsável para com Deus. Os obedientes só precisam obedecer; o Senhor não nos considerará responsáveis por qualquer erro devido à obediência" (NEE, Watchman. Autoridade espiritual. 3ª impressão, São Paulo: Vida, 1987. p. 85).
Nesse trecho, Nee sustenta que a autoridade (espiritual e secular) deve ser obedecida mesmo quando erra. Mas, em outros lugares, dá um passo atrás e reconhece que, quando o erro avulta além de certa medida, a obediência pode ou mesmo tem de ser dispensada. Porém, nesses casos extremos, a suspensão da obediência não autoriza a da submissão. Mesmo sem obedecer, deve-se continuar a ser submisso à autoridade. É o que Nee ensina.
Admito que a submissão possa ser concebida sem a obediência. Porém, o fato de podermos concebê-las separadamente no pensamento não quer dizer que seja fácil separá-las na vida prática, sem incorrer em incoerência. Qual é o sentido prático de uma submissão que não resulta em obediência? Ela só manterá a sua coerência, se a pessoa submissa não se furtar às consequências da insubordinação, ou seja, se não tentar escapar ao castigo dos desobedientes.
Devemos, porém, perguntar se a Bíblia nos ensina tal espécie de submissão. Se nos admoesta a aceitar as consequências da insubordinação à autoridade, quando ela nos tortura ou nos faz outra espécie de mal. Não encontro esse ensino nas Escrituras. Davi desobedeceu a Saul e passou a fugir dele. Os cristãos de Jerusalém desobedeceram às autoridades, ao continuarem a pregar o evangelho, e se dispersaram, quando perseguidos. Em nenhum desses casos, a entrega seguiu-se à desobediência. E no caso de Jesus? Vimos que ele se entregou, porém não desobedeceu às autoridades. Portanto, ou as Escrituras mostram que a desobediência esvazia a submissão, ou que a submissão importa a obediência.
Disso se conclui que a submissão às autoridades, ordenada em 13:1-7, não deixa qualquer espaço para a desobediência. Paulo está a ordenar submissão e obediência, não uma sem a outra, o que nos leva a concluir que, quando a autoridade se faz injusta, e a desobediência se torna a única opção, a submissão se esvazia. Quando se desalinha em relação à vontade de Deus, a autoridade deixa de ser seu ministro. E, quando deixa de ser ministro, ela perde o direito de reivindicar tanto obediência quanto submissão.
Por isso, o mandamento original e primeiro à autoridade é: “Quando se assentar no trono do seu reino, escreverá para si um traslado desta lei num livro, do que está diante dos levitas sacerdotes. E o terá consigo, e nele lerá todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer ao Senhor seu Deus [...] Isto fará para que o seu coração não se eleve contra os seus irmãos, e não se aparte do mandamento, nem para a direita nem para a esquerda” (Dt 17:18-20).
Que deve fazer o rei? Deve ler o livro da lei, fonte de toda justiça. E onde deve encontrar esse livro? Com os levitas sacerdotes. Portanto, a regra consistente em governar com base no livro da lei se aplica não só ao rei, mas também ao sacerdote. Enfim, a toda e qualquer autoridade. Esse é o princípio da liderança. Esta, a verdade contra a qual não temos poder algum.
Por que a submissão é devida à autoridade? Ela é devida por causa da verdade e na medida em que a verdade se faz presente. Quando a verdade ocorre, quando ela se manifesta e se faz habitual, numa autoridade, então a submissão se torna a mais doce de todas as experiências. Isso porque a verdade deixa de estar num livro ou numa pregação e se encarna numa pessoa. Perde a consistência de palavras e ganha a de atos. Torna-se, assim, exemplo e permite que “o reino de Deus consista não em palavras, mas em poder” (1 Co 4:10).
Alguém perguntará: e se uma pessoa possuir a verdade, mas não a autoridade? Pergunto se isso é realmente possível. Os que afirmam que o é pensam no caso de alguém que obteve o depósito da palavra de Deus sem ter sido investido no seu ministério por um órgão ou poder central. Pensam nos casos de Jesus Cristo e de Paulo: não na ausência da autoridade, mas apenas do seu invólucro.

O AMOR AO PRÓXIMO

A Bíblia apresenta-nos Deus como alguém dotado de virtudes. Mas uma leitura minimamente atenta dela mostra que as virtudes divinas são essencialmente diversificadas e até opostas. Deus é capaz de ira, como Romanos afirma abertamente, mas também de amor. É capaz de perdão, mas também de vingança, de liberalidade e de severidade. Essas são virtudes opostas que Deus possui.
É possível, pois, dividir as virtudes divinas num grupo baseado na força, a exemplo da ira, do ódio, da indignação e da vingança, e outro que emana da compaixão. Nesse segundo grupo, estão o amor, a misericórdia, o perdão, a graça, a bondade, a generosidade e a justiça. Se as virtudes baseadas na força são imanentes, por pertencerem a Deus e ao homem, as que se fundamentam na compaixão afiguram-se transcendentes, já que a sua natureza é divina, embora possam ser comunicadas ao homem.
Ética é o cultivo dos dois grupos de virtudes. Porém, nenhuma ética minimamente aplicável e funcional permite o cultivo de todas as virtudes ao mesmo tempo. Devemos, por isso, entender toda ética filosófica e toda teologia moral como propostas de cultivo de um dos dois grupos de virtudes. Os sistemas éticos antigos, por exemplo, favoreciam o cultivo das virtudes da força; a ética cristã privilegia as virtudes transcendentes, baseadas na compaixão.
Mas, se a ética cristã é transcendente, por basear-se na compaixão, que só Deus possui originariamente, seus valores não se confundem com os que reconhecemos sob os nomes de amor, perdão, misericórdia etc. Os valores transcendentes se diferenciam das virtudes humanas correspondentes pela grandeza de que se revestem. Todo homem é capaz de amar, mas o amor divino é o amor revestido de grandeza. É o amor que levou o Logos a não se aferrar à própria glória, mas a se esvaziar, encarnar-se e assumir a forma de servo (Fp 2:6-7). Esvaziar-se da igualdade com Deus e tornar-se servo não é somente amar: é amar de modo tão grandioso que excede o próprio entendimento humano.
O mesmo se aplica a todas as outras virtudes transcendentes, que são as que costumamos designar pelas palavras graça, misericórdia, perdão etc. adicionadas a uma grandeza que não só as fortalece como as torna exclusivas da deidade. Porém, embora exclusivas de Deus, pela origem, essas virtudes comunicam-se ao homem por meio da fé.
Nas Escrituras, as virtudes transcendentes aparecem associadas à fé. Abraão é um ótimo exemplo. Ele creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça (Gn 15:6). Porém, a sua experiência não parou aí. Se seguirmos os passos do patriarca, em Gênesis, veremos que o amor que manifestou desde então não foi comum. Foi o amor que o levou a oferecer o seu filho Isaque em sacrifício. O próprio Deus declarou sobre esse ato de Abraão: “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar” (Gn 22:16-17).
A lealdade que Abraão demonstrou aos seus contemporâneos tampouco foi de um tipo comum. Quando Ló foi capturado, Abraão se envolveu numa guerra contra vários reis para libertá-lo (Gn 14). Seu empenho é sinal não apenas de amor, mas do compromisso que teve para com seu sobrinho, embora se tivessem separado e não vivessem mais juntos.
Sempre que alguém propôs a Abraão um pacto, recebeu dele a mais decidida e inflexível oferta de lealdade e amizade. Quando Sara faleceu, e os filhos de Hete ofereceram a Abraão uma de suas melhores sepulturas, para que nela depositasse o corpo de sua mulher, ele não foi só leal aos seus aliados. Diz a Escritura que, ao ouvir a oferta daqueles homens, “se levantou Abraão e se inclinou diante do povo da terra, diante dos filhos de Hete” (Gn 23:7). Esse ato de profunda reverência indica algo mais que fidelidade comum.
Do mesmo modo, a generosidade de Abraão não foi uma manifestação qualquer dessa virtude. Não vemos Abraão fazer a alguém uma oferta movido por necessidade. Abraão doa quando não precisa absolutamente fazê-lo. E, em várias ocasiões, se recusa a receber, quando outros lhe fazem uma dádiva. É o que ocorre, na guerra para libertar Ló, quando ele não aceita que o rei de Sodoma lhe faça uma doação. Diz o patriarca: “Levanto a mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o que possui os céus e a terra, e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: Eu enriqueci a Abraão; nada quero para mim, senão o que os rapazes comeram e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre [aliados de Abraão]” (Gn 14: 22-24). E, como se não bastasse essa liberalidade, a Melquisedeque, rei de Salém, Abraão dá “o dízimo de tudo” (Gn 14:20).
Esses atos têm mais que generosidade. Têm generosidade dilatada pelo livre oferecimento de si e do que é seu. Poderíamos dizer o mesmo das outras virtudes que Abraão demonstra. Nenhuma delas é a virtude em suas manifestações comuns, mas ela somada a uma grandeza que a transforma intimamente e a faz reluzir com um brilho particular.
Como a fé implica uma ética, mas não toda a ética, o cultivo das virtudes transcendentes tende a produzir a ausência das virtudes da força. A prontidão de Abraão para fazer guerra aos reis não nos engana. É exceção e não regra: um caso mais ou menos isolado. Em regra, Abraão nada tem de guerreiro. É o mais pacífico dos homens, o mais pronto a fazer concessões, a dar em vez de receber, a cumprir o seu dever do modo mais estrito possível. De um modo que lembra, até mesmo, o amor ao dever a que Kant se refere. Portanto, em Abraão, o crescimento das virtudes da compaixão leva ao fenecimento das virtudes associadas à força.
Se a ética é, pois, um cultivo, e o homem não pode cultivar todas as virtudes ao mesmo tempo, frequentemente acontece de a fé conduzir às virtudes transcendentes, não às da força. A fé cristã já foi acusada de falta por esse motivo. Nietzsche foi o mais implacável denunciante da sua propensão a produzir a atrofia das virtudes da força. Se a acusação é ou não totalmente justa é coisa a ser sopesada mais longamente. Que ela corresponde à bifurcação das virtudes em imanentes e transcendentes parece-me fora de dúvida.
Isso não significa que as virtudes da compaixão sejam destituídas da sua própria espécie de força. A compaixão é, no fundo, uma grande força. É, porém, força humilde, não arrogante, nem altiva. É força que brota da humildade, mas força de toda maneira. No capítulo 12, Paulo não nos exorta à fraqueza, mas à força ao dizer “Não torneis a ninguém mal por mal” (12:17) e “Não vos vingueis a vós mesmos [...] se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Para praticar essas coisas, não é preciso fraqueza, mas força, ainda que força humilde e não arrogante.
O amor ao inimigo é uma força oposta à implacável vontade de poder. Isso tem consequências. Se as virtudes associadas à força não estão proscritas, sob o regime da fé, elas são deixadas à míngua até morrerem. É o que significa “Não vos vingueis” (12:9) e também “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber” (12:19-20). Consequência da aplicação dessas máximas é a mortificação das virtudes da força.
O investimento das energias do sujeito no cultivo da compaixão leva ao não investimento nas virtudes da força. E o não investimento nessas virtudes tem como consequência “sermos fracos nele”, isto é, em Cristo (2 Co 13:4). A relação da fé com a fraqueza é, pois, inegável e inevitável. Trata-se de determinar o resultado prático dela. De acordo com Paulo, esse resultado é a lenta mortificação das virtudes associadas à força.
Nietzsche riu-se da teoria da seleção natural, que conquistava as consciências na sua época. Pareceu-lhe que a vida não pode ser uma luta por coisa tão básica quanto a sobrevivência, como Darwin tinha proposto. Pensou que o homem de fato luta, mas sua luta se fere por algo mais que a sobrevivência: "O verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder [...] sacrifica a autoconservação". Portanto, "a luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de vida" ((NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência. 3ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Livro V, nº 349, pp. 243-244). O homem luta pelo poder sobre o outro homem: "A luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente a vontade de vida" (idem. p. 244). Só os fortes, os resistentes, os violentos, os empapuçados de vontade de poder estão aptos a vencer essa luta.
A doutrina de Nietzsche choca-se frontalmente com a ética cristã, não porque esta seja contrária à força, mas porque pressupõe que a vida não é só ou primordialmente luta pelo poder, embora também o seja. A vida está cheia de luta, mas não é essencialmente luta. Talvez ela possa ser definida do modo proposto por Vinícius de Moraes, ao afirmar que “a vida é a arte do encontro, embora esteja tão cheia de desencontros”. Mais do que luta, a vida é cooperação; mais do que desencontro, é encontro. Por isso, as virtudes associadas à compaixão têm mais a oferecer que as da força. E, como os dois grupos coexistem apenas enquanto o homem permanece contraditório, a ética cristã importa o declínio gradual da ética da força.
Para Paulo, “quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (13:8-9). O amor é uma virtude transcendente de Deus. Só Deus é capaz de amar, em princípio e originariamente. O homem torna-se capaz de amar, por meio da fé. Quando ele crê, “o amor de Deus é derramado no seu coração pelo Espírito Santo” (5:5). Por isso, o amor não é posse originária dele, mas lhe é comunicado pelo próprio Deus.
A primeira tábua dos Dez Mandamentos enuncia o dever do homem para com Deus; a segunda, seu dever para com o próximo. Os preceitos citados, em 13:9, estão todos na segunda tábua. Tratam, pois, do dever do homem para com o próximo. Esse dever não é apenas externo. Não é mais um dever de conduta que de sentimento. Por isso, ao homem não basta fazer o que é certo. Deve fazer o que é certo com o sentimento certo, com amor, com compaixão que edifica.
O amor é a virtude violenta, a virtude revolucionária, a virtude que põe fim a um regime ético e introduz outro regime, que Jesus denominou reino de Deus. A finalidade da lei é o amor (13:10). Mas, se o amor cumpre a lei e exclui a força, a lei da força é ao mesmo tempo excluída. A ética da força é condenada à abrogação. Ser cristão não é ser forte, no sentido terreno. É até mesmo ser fraco. É deixar morrer as paixões da força. É não as alimentar, pois não há lugar para os dois grupos de virtudes. Ou os mansos herdarão a terra, ou os violentos. Não há, no canteiro do mundo, um palmo de espaço em que ambos possam coexistir.

A TOLERÂNCIA

Assim como contém a mais completa explanação da salvação de Deus, Romanos fornece a mais minuciosa exortação à prática da virtude, em todo o Novo Testamento. Os capítulos 12 a 16 da epístola têm por finalidade exortar à humildade, ao amor, à tolerância, à amizade e às demais virtudes cristãs. É o mais longo discurso ético do Novo Testamento, maior até que o Sermão do Monte, em Mateus.
E, dentre as virtudes de que Paulo trata, no seu protraído discurso, a que ele defende mais extensamente é a tolerância. Esse é um dado muito importante, pois, do modo como a imputação da justiça se encontra no centro da seção que trata da salvação, a prática da tolerância ocupa o lugar central na seção relativa à ética.
No Novo Testamento, nenhuma virtude tem o sentido exterior que, na velha aliança, era possível imaginar que possuísse. Paulo não diz, por exemplo, que não é bom comer ou deixar de comer carne, beber ou deixar de beber vinho, mas que não é bom fazer isso se levar nosso irmão a tropeçar. O foco já não está posto na conduta em si, mas no sentido que tem para o outro. Está no reflexo da conduta sobre o irmão.
Não é diferente com a tolerância. Paulo nos diz sobre ela que “é bom não comer carne, nem beber vinho, nem fazer qualquer outra coisa com que teu irmão venha a tropeçar” (14:21). O sentido profundo desse mandamento provém da relação com Deus. Tolerar é, para Paulo, estender ao próximo a tolerância que recebemos de Deus. Assim, como na primeira parte da epístola Paulo relaciona a salvação e a justiça ao que Cristo fez, na seção dedicada às virtudes não é diferente. Nela, Paulo fundamenta o justo na prática da virtude por Cristo.
No tocante à salvação, Cristo morreu para que morrêssemos com ele: “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo” (6:4). Do mesmo modo, ressuscitou para que ressuscitássemos com ele: “Como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (6:4). “Se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos também na semelhança da sua ressurreição” (6:5).
O paralelo ressurge, com modificações, no capítulo 14: ”Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser Senhor tanto de mortos como de vivos” (14:9). Não há, pois, dúvida de que o método de Paulo consiste em estabelecer paralelos entre a obra de Cristo e seus efeitos nos que creem. Desse paralelo, ele extrai a doutrina moral do evangelho. “Cristo morreu e ressurgiu para ser Senhor de mortos e de vivos” significa que mortos e vivos agem de acordo com o sentido transcendente daquela morte e ressurreição. Na prática, pois, a humildade que adotamos é a que Cristo viveu, ao esvaziar-se e assumir a forma de servo, e o amor que possuímos é aquele pelo qual ele se deu ao mundo infestado de pecado. Não é diferente com a tolerância. Também ela é a que Cristo teve para conosco. Portanto, nem a humildade cristã é de feitio humano, nem o amor é terreno, nem a tolerância que devemos exercer é algo humano. Todas essas virtudes são transcendentes. São divinas e não humanas. Elas se tornam humanas, apenas quando comunicadas por Deus ao homem.
Essa é a razão de o pináculo da subseção de Romanos sobre a tolerância localizar-se nos três primeiros versos do capítulo 15: “Nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos. Portanto, cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“. O ponto culminante das considerações de Paulo é a manifestação da tolerância de Cristo em nós. Por isso, ele conclui: “Acolhei-vos uns aos outros, como Cristo também nos acolheu para a glória de Deus” (15:7).
Inutilmente, buscamos na conduta do homem o padrão da virtude. E ainda mais inutilmente o procuramos na conduta humana exterior. A virtude não está no homem, mas em Cristo, o que tem as mais sérias implicações. E as tem, em primeiro lugar, no tocante à doutrina da salvação, já que Paulo está a afirmar que a tolerância deve ser praticada, na igreja, porque Cristo a praticou no Calvário. O paralelo de 15:2-3 guia-nos, com toda segurança, a essa conclusão: “Cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não se agradou a si mesmo; antes, como está escrito: As injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre mim“.
Isso não implica apenas que a nossa tolerância deve ser perfeita, como é perfeita a de Cristo, mas que ele salva a todos por meio da sua perfeita tolerância. A multissecular discussão de calvinistas e arminianos sobre os aspectos da salvação (seu alcance, sua duração etc.) perde o sentido, ante tal observação. Cristo salva a todos ou apenas a alguns? Salva para sempre e completamente ou apenas de modo provisório? Que dúvida pode existir sobre esses pontos e os demais relativos à salvação, à luz da tolerância transcendente de Deus? No máximo, subsistem dúvidas consequentes de o Novo Testamento não desenvolver de modo completo o que, como princípio, apresenta com toda clareza.
A tolerância é um princípio não somente ético, não somente de sentimento e conduta, mas também soteriológico. É um princípio que rege a salvação de Deus. Cristo ter-se entregado por nós significa ter-nos tolerado à sua maneira, ou seja, à maneira eterna. Por isso, Paulo pôde afirmar, no fim da subseção sobre a tolerância: “Porque também Cristo não se agradou a si mesmo”. A palavra porque, nesse verso, indica uma consequência. Indica que o que foi mencionado antes se funda no que é mencionado em seguida. Em outras palavras: que a nossa tolerância se funda na de Cristo. Não em qualquer tolerância demonstrada por Cristo, mas na que ele praticou na cruz.
A cruz não é só um símbolo: é também o fundamento e a realidade da tolerância. Significa que Cristo tolera perfeitamente. E, se o faz, está claro que todos são perfeitamente perdoados nele. Não estou a extrair do perdão o que não se pode extrair. Não estou a sugerir que a salvação ignore ou cancele o livre arbítrio. Não é esse o caso. O livre arbítrio é uma força real, e isso muda muita coisa. Muda ou pode mudar, inclusive, o destino daquele que crê em Cristo, se pecar deliberadamente. Mas não pode, de modo algum, preponderar sobre a obra de Cristo na cruz. Admiti-lo seria abraçar voluntariamente a incompreensão do evangelho. De sorte que o livre arbítrio permanece real, tanto quanto subalterno à tolerância de Deus em Cristo.
Há livre arbítrio e tolerância, mas aquele sujeita-se a esta, como a lei à graça. Hagar é a lei. É escrava. Sara é a graça e é livre. Ambas  têm lugar central na história de Abraão. Mas uma é superior à outra. Como a lei não funciona sem o pecado, e o pecado, sem o livre arbítrio, eles estão atrelados uns aos outros. Mas o mesmo não ocorre com as virtudes que exprimem a graça, entre as quais se encontra a tolerância.
Se as virtudes de Deus podem ser classificadas em imanentes e transcendentes, se elas podem ser discriminadas como de feitio terreno, umas, e de caráter celeste, outras, a palma cabe às últimas. Nisso consiste o cerne da revelação das Escrituras. Há tantas coisas na Bíblia, porém umas revelam as virtudes imanentes de Deus, outras, as suas virtudes transcendentes. O Dilúvio encontra-se no primeiro grupo. Ele exprime a ira de Deus sobre o mundo. O juízo final também. Não precisamos envergonhar-nos das virtudes terrenas de Deus. Mas não há dúvida de que o evangelho tem por finalidade abolir os motivos que as fazem necessárias e incrementar os que tornam prementes os valores celestiais.
Há, pois, uma hierarquia, uma ordem de antecedência entre as virtudes transcendentes e as imanentes. Isaías o proclama: “Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias torno a acolher-te; num ímpeto de indignação, escondi de ti a minha face por um momento; mas com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Is 54:7-8).
Nesses versos, vê-se o reflexo da discriminação das virtudes imanentes e transcendentes. O ímpeto de indignação de Deus e o abandono de Israel por ele são consequências da ira, que é uma virtude imanente. As “grandes misericórdias” e a “misericórdia eterna” de Deus são transcendentes. O Redentor, em pessoa, garante que o abandono e a ira são temporários, que eles passarão, assim como as profecias, as línguas e os outros carismas (1 Co 13:8). Porém o amor jamais passará. Paulo não afirma outra coisa (1 Co 13:8).
Não estamos diante de qualquer garantia, mas da maior de todas as garantias: “É para mim como as águas de Noé; pois jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra” (Is 54:9). Se a promessa à descendência de Noé permanece segura e inabalável, a grandeza, o alcance, a duração, enfim as características da libertação de Cristo não o fazem em menor medida. “Jurei que as águas de Noé não mais inundariam a terra, e assim jurei que não mais me iraria contra ti, nem te repreenderia. Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida, diz o Senhor, que se compadece de ti” (Is 54:9-10).
Na cruz, está a violência do amor. E ela está ali em plenitude, assim como a tolerância. Devemos acolher uns aos outros, porque Cristo nos acolheu no seu perfeito holocausto. A mensagem maior dessa afirmativa não é o acolhimento dos homens uns pelos outros, mas o de todos eles por Cristo. É a grandeza, o alcance e a duração eterna desse acolhimento.
“Não nos julguemos mais uns aos outros” (14:13). Eis o que prega Paulo. “Não julgueis para que não sejais julgados” (Mt 7:1). Isso prega Cristo. O primeiro mandamento está no cerne do discurso moral paulino; o outro é parte do maior de todos os discursos de Cristo. Nenhum dos dois deixa dúvida de que a tolerância de Deus é consequência absolutamente certa, porque jurada, da que temos uns para com os outros.

A ABSTINÊNCIA

A tolerância que Paulo recomenda, em Romanos 14, não é a que aparece nas cartas de direitos humanos e nas Constituições dos países democráticos. Esta é de cunho político e caracteriza-se pela aceitação da diversidade. A virtude que Paulo recomenda é uma espécie distinta de tolerância, qualificada pela não discussão: “Acolhei ao que é débil na fé, não, porém, para discutir opiniões” (14:1).
A tolerância política faz-se acompanhar pela discussão e até pelo dissenso, que são fundamentais para a construção de uma sociedade livre. A que Paulo recomenda volta-se à criação de uma comunidade de amor. Embora esses dois projetos, o da sociedade livre e o da comunidade de amor, sejam harmonizáveis, eles não se confundem. Tolerar e discutir é homenagear a diferença, não o amor. Este só desenvolve todas as suas virtualidades e só atinge intensidade máxima, quando nos tornamos capazes de conversar sobre as nossas diferenças, sem as discutir. Conversar é trocar sentimentos e informações. Discutir é promover um concurso de ideias. A recomendação de Paulo é para que conversemos sobre as nossas opiniões, sem as colocarmos em choque.
Isso não significa que todas as opiniões devam ser consideradas de igual valor. Paulo supõe o contrário, ao afirmar que o débil só come legumes (14:2). A pessoa que só come legumes é débil, porque a restrição da liberdade por meio de dietas constitui uma opinião inferior. Pelo mesmo motivo, ou seja, por restringir a liberdade, a obrigação de não fazer certas coisas em determinados dias (14:5) também deve ser considerada inferior à que envolve uma afirmação maior da liberdade.
As opiniões não têm todas o mesmo valor. Por isso, é útil discuti-las. Mas, numa esfera de amor, como a igreja, o choque de opiniões deve ser evitado, pois as pessoas se sentem atingidas, quando as suas opiniões são atacadas. Como a relação afetiva das pessoas cujas opiniões se chocam costuma ser afetada, Paulo não recomenda aos romanos a prática de uma tolerância meramente política, mas a da tolerância que se faz acompanhar pela abstinência de atos que possam magoar quem tem opinião diversa.
Numa tábua democrática de valores, essa abstinência não é muito valorizada, pois o objetivo maior da democracia é produzir liberdade ou, quando muito, também igualdade, não afeto. Por isso, a democracia é politicamente nobre, mas não coincide com a comunidade de amor pregada por Paulo.
A tolerância é ao mesmo tempo, uma virtude política e religiosa. Enquanto virtude política, ela maximiza a liberdade, não o afeto. Já a tolerância piedosa que Paulo prega promove o afeto e é promovida pela abstinência, pelo não discutir diferenças e pelo hábito de as suportar em silêncio. Por isso, Paulo nos diz que devemos renunciar a expor nossas opiniões, sempre que levem o outro a tropeçar.
A renúncia à discussão pode envolver uma perda de liberdade, mas gera um ganho de amor. Quem tolera, no sentido político, mantém a sua prática e admite a do outro. Porém, conforme a discussão se exacerba, a pessoa acaba por irar-se com a posição divergente. Ao contrário, quem se abstém de discutir e de praticar certas coisas renuncia à sua maneira de viver para que o próximo mantenha a sua sem perturbações. Isso só é possível no contexto superior em que o amor governa a conduta humana mais que qualquer outro valor.
Vejamos como isso funciona na prática. “Tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão” (14:13). Este é o princípio da abstinência. A prática concreta dele é: “Se por causa de comida o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal”. Isso significa que o padrão derradeiro de conduta, para o cristão, não é a liberdade, mas o afeto. Não é “Todas as coisas são puras”, então comerei de tudo, mas “é mau para o homem comer com escândalo” (14:20).
Mais que de comida ou bebida, a abstinência que Paulo recomenda é do escândalo. O reino de Deus não é comida, nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo (14:17). Devemos abster-nos do que retira às pessoas a justiça, a paz e a alegria. Estes são os maiores valores da vida cristã. Como tais, estão muito acima da observância de dias ou de certa dieta. Afirmar que é preciso guardar tal dia, comer ou deixar de comer tal alimento não é só tornar o mandamento mosaico indispensável para a salvação, como faziam os judaizantes. É também substituir a ética do coração pela da conduta. Esse é um erro fatal.
A ética do Novo Testamento não difere da dos escribas e fariseus no tocante ao conteúdo, mas ao peso atribuído aos diferentes mandamentos. Jesus pôs a justiça, a paz e a alegria à frente dos regulamentos miúdos da lei mosaica, sem os desprestigiar. Além disso, atribuiu aos maiores preceitos um caráter interior e não exterior. Para guardar tais preceitos, é preciso que o homem se volte para dentro de si. É preciso, por assim dizer, que ele se dobre sobre si mesmo. Paulo denomina essa prática servir a Deus no espírito (1:9) e andar em novidade de espírito (7:6). Esse é o mandamento básico da nova aliança. Como todo mandamento, ele se baseia num fato, a saber o de que o nosso “corpo, na verdade, está morto, por causa do pecado, mas o espírito é vida por causa da justiça” (8:10). E ainda o de que “o Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (8:16).
Guardar a justiça, a paz e a alegria (14:17) é o preceito que o Espírito ensina. A abstinência está diretamente conectada a esse estreito rol de virtudes. Porém, todo mandamento, como a justiça, a paz, a alegria ou a abstinência, tem o seu fundamento no ser, no real, naquilo que é. Os mandamentos ensinados pelo Espírito se fundamentam em certos fatos espirituais. O primeiro desses fatos é: “aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele” (1 Co 6:17). Romanos nos introduz na esfera de união com Deus mencionada nesse versículo. Não se trata de uma união orgânica, pois Paulo a compara com a união do homem com a mulher: "Não sabeis que o homem que se une à prostituta, forma um só corpo com ela? porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele" (1 Co 6:16-17). A união do homem com a mulher não é orgânica, mas relacional. O mesmo acontece com a nossa união com Deus. Também ela é relacional.
Concordo com os que afirmam que o significado de Romanos 1:9, 7:6 e 8:16 e de 1ª aos Coríntios 6:17 é a união relacional do homem com Deus. Admito também que essa união tenha natureza mística. Só não creio que a mística deva ser cultivada com extravagância, verborragia, loquacidade ou qualquer excesso de palavras. Ela é muito mais uma mística do silêncio que das palavras, do quarto interior no qual devemos ingressar para orar do que de demonstrações de espiritualidade.
A espiritualidade cristã sempre foi mais do silêncio que da excitação exterior. Só recentemente, em termos históricos, tornou-se comum os grupos cristãos enfatizarem demonstrações espetaculares de fé e de comunhão com Deus. Isso difere muito da espiritualidade que atravessou os séculos, dos padres do deserto aos místicos medievais, como Eckhart e Tauler, que sempre foi a do silêncio.
Olhemos para os versos citados. Eles não promovem exibição alguma da mística que afirmam. Pelo contrário, são tão breves que quase chegam a omiti-la. Paulo diz que serve a Deus em seu espírito. Sabemos o que isso significa, por causa dos outros versos em que ele se refere ao espírito humano. Porém, não acrescenta uma só palavra. Declara servir a Deus no seu espírito e é tudo. Não faz propaganda, estardalhaço, não se contorce, nem se exalta. Pelo contrário, cala-se e nesse calar consiste a sua mística.
O fundamento da mística de Romanos é peculiar. É o fato de o nosso espírito conhecer as coisas do homem do modo como o Espírito de Deus conhece as de Deus (1 Co 2:11), ou seja, em profundidade, mas também em profundo silêncio: o mesmo que havia no Santo dos Santos, inclusive quando o Sumo-Sacerdote lá ingressava uma vez por ano. Tanto o conhecimento que o espírito humano tem das coisas do homem como o que o Espírito de Deus possui das de Deus são implícitos e silenciosos. Se não o fossem, encontraríamos nos versos de Paulo as demonstrações de euforia e excitação que abundam nas místicas exibicionistas dos últimos séculos.
Há uma mística em Romanos, que é o fundamento da ética, da conduta ou do andar do homem, como Paulo gosta de denominá-la. Cumprir os mandamentos de Deus, principalmente os maiores deles, como a justiça, a paz e a alegria, requer que o homem se volte para dentro de si, onde Deus se encontra de maneira especial, da maneira do Santo dos Santos, ou seja, em silêncio. Essa é a mística a que Paulo nos introduz.
Para os descrentes, o silêncio divino, no interior do homem, prova a inexistência de Deus e a falsidade da mística. Visto por outro ângulo, esse silêncio é a própria presença de Deus e a verdadeira mística. Deus ser no homem significa ser em silêncio. Por isso, a sua verdade no interior do ser humano revela-se na quietude que não se confunde com o nada, na quietude que é presença, até mesmo a maior de todas as presenças, sem deixar de ser profundo silêncio.

A DESPRETENSÃO

 Na seção iniciada no capítulo 12, Paulo trata de várias virtudes, entre as quais a humildade, a submissão, o amor, a tolerância e a abstinência. A seção parece encerrar-se no versículo 7 do décimo-quinto capítulo, com a exortação final: “Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de Deus” (15:7).
No entanto, os capítulos 15 e 16 continuam a tratar das virtudes de outra maneira. Cessam as exortações e começam os exemplos de condutas virtuosas. Por essa razão, devemos entender esses capítulos como uma continuação da abordagem ética da epístola. Por exemplo, no capítulo 15, Paulo mostra em que consiste a despretensão, ao se referir ao texto da sua epístola nos seguintes termos: “Certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros. Entretanto vos escrevi em parte mais ousadamente, como para vos trazer isto de novo à memória” (15:14-15).
Paulo afirma que a sua epístola era desnecessária, pois os romanos estavam cheios de conhecimento e bondade. Portanto, se o texto da carta tinha uma utilidade, era a de recordar aos leitores o que já sabiam. Mas será que os romanos realmente sabiam as coisas de que a carta trata? É improvável que o soubessem tão bem, já que as doutrinas de Romanos não tinham sido escritas antes, e Paulo nunca havia estado em Roma. Portanto, os versos 14 e 15 mostram a funda despretensão de Paulo ao brindar-nos com a mais completa apresentação dos efeitos da morte e ressurreição de Cristo e, ainda assim, considerá-la desnecessária.
O objetivo geral do capítulo 15 é justificar o ministério de Paulo. Os romanos talvez estranhassem o fato de Paulo voltar-se tanto aos gentios, se o próprio Cristo tinha pregado aos judeus. Para eliminar esse aparente descompasso, Paulo explicou “que Cristo Jesus foi ministro da circuncisão, por causa da verdade de Deus, para que confirmasse as promessas feitas aos pais” (15:8). Em outras palavras, Cristo veio para os judeus não porque o evangelho devesse ser pregado somente a eles, mas porque precisava confirmar as promessas feitas aos pais para que pudessem ser recebidas tanto pelos judeus quanto pelos gentios. Como as promessas tinham sido feitas “aos pais”, isto é, aos judeus, era necessário que Cristo as confirmasse também aos judeus. Por isso ele veio para os judeus e ministrou diretamente a eles.
A Trindade é um dado incontornável do Novo Testamento. Embora Deus tivesse dado as promessas, era necessário que o Filho as confirmasse. É o que 15:8 nos ensina. Porém, uma vez confirmadas as promessas divinas, o evangelho revela a sua universalidade: “Como está escrito: Por isso eu te glorificarei entre os gentios, e cantarei louvores ao teu nome. E também diz: Alegrai-vos, ó gentios, com o seu povo. E ainda: Louvai ao Senhor, vós todos os gentios, e todos os povos o louvem. Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os gentios, nele os gentios esperarão” (15:9-12).
Deuteronômio conclama: “Jubilai, ó nações, com o seu povo” (Dt 32:43). O evangelho não é só para as nações, nem só para “o seu povo”, mas para ambos. “Haverá um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará” (Is 11:1). Que é o tronco de Jessé, a não ser um ramo do povo judeu? Porém, “acontecerá naquele dia que as nações perguntarão pela raiz de Jessé, posta por pendão dos povos” (Is 11:10).
Romanos é um memorial desse fato grandioso. Deus salva as nações. Por isso, uma epístola é dirigida a pessoas situadas na capital do Império. Todavia, embora cumpra um propósito tão grandioso, Paulo não o faz num tom grandioso, mas em perfeita humildade e em consonância com as limitações da sua situação individual. Não diz que o conteúdo da epístola era indispensável aos romanos, mas que eles estavam cheios de bondade e de todo o conhecimento. Sugere, portanto, que, em certo sentido, a carta era desnecessária.
Embora fosse o documento mais completo escrito por um apóstolo sobre o sentido do evangelho de Deus, Paulo considerava a Carta aos Romanos dispensável enquanto expressão individual das grandiosidades de Deus, já que os destinatários não tinham falta do que nela podiam encontrar, vale dizer, do conhecimento da obra de Cristo e da bondade que inspira aos que creem.
Essa atitude de Paulo revela a mais alta despretensão. Romanos é inigualável. É o mais impressionante tratado sobre o significado teológico da morte e ressurreição de Cristo escrito por um apóstolo e a mais nítida explicação da salvação operada por ele. Mesmo assim, Paulo considera sua carta dispensável. Isso é despretensão. Isso é demonstração da virtude por meio do exemplo.
A despretensão de Paulo nos lembra que as bênçãos, a salvação e a vida eterna comunicam-se pela fé, mas a grandiosidade de Deus é incomunicável. Embora as promessas divinas sejam grandiosas, aqueles que as anunciam ao mundo são humildes e miseráveis. Deus é grande; seus ministros, pequenos. É o que Paulo nos ensina com a sua atitude.
Temos forte propensão à cegueira sobre essas coisas. Pensamos que o evangelho é grandioso, o que está certo. Mas endeusamos os pregadores, o que está errado. Como deveríamos tratar os pregadores? Do modo como Paulo se trata. Ele fixa o exemplo a ser seguido. Não apenas considera dispensáveis os seus escritos, mas apresenta o seu ministério, a seguir, exatamente no mesmo espírito.
Paulo declara-se na posse de ofertas das igrejas da Macedônia e da Acaia destinadas aos pobres de Jerusalém (15:25-27). Dá a entender que não seria fácil realizar a entrega das ofertas, devido à contenciosidade dos judeus de Jerusalém (15:31). Sugere, portanto, que se arriscaria para levar as ofertas a Jerusalém. Mas não enaltece o seu ato. Pelo contrário, em vez de construir um clímax heroico sobre esse ponto, Paulo cria um anticlímax.
As razões do anticlímax se encontram em 2ª aos Coríntios 11: “São ministros de Cristo? (falo como fora de mim) eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; em açoites, mais do que eles; muito mais em prisões; em perigos de morte, muitas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um;fui três vezes fustigado com varas, uma vez apedrejado, em naufrágio, três vezes, uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes; em frio e nudez” (2 Co 11:23-27).
Que grandiosidade se pode achar nisso, a não ser a do sofrimento? Quando declara que “Deus pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo" (1 Co 4:9), Paulo afasta todas as dúvidas sobre o anticlímax do ministério apostólico. "Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. Até à presente hora sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos” (1 Co 4:10-13).
Embora levasse ao mundo a luz do Verbo de Deus, Paulo tinha do seu ministério a avaliação que lemos nesses versos. Não o considerava nobre, mas vil. Tampouco tinha dele a impressão de algo sério ou decisivo, pois afirma que pretendia encontrar os romanos para recrear-se com eles (15:32). Isso é despretensão e desapego.
Despretensão é escrever um texto sublime como Romanos e pensar tê-lo escrito para recrear-se. É pregar o evangelho em toda parte e se considerar o último de todos os homens, o lixo do mundo. O falso apostolado está ligado à exaltação e à glória; o verdadeiro está associado à despretensão. Assim como a condição humana não existe à parte da humildade, o apostolado não se constitui sem a despretensão.
A ambição da glória faz o heroi; a desambição, o apóstolo. A presunção constitui o sábio aos próprios olhos; a despretensão, o sábio aos olhos de Deus. O heroi derrama sangue e é exaltado. O sábio enfatuado fala e é aplaudido. O apóstolo ama, e o sábio verdadeiro sente que o seu papel é calar-se. Porém, contra a lógica deste mundo, Deus não fala no heroi ou no sábio inchado de orgulho, mas no apóstolo e naquele que se identifica com o silêncio.

A PEQUENA EPÍSTOLA

A Bíblia apresenta duas dificuldades principais ao intérprete. A primeira está associada à compreensão do sentido das suas passagens; a outra se relaciona à formação do texto como tal. Não é incomum os intérpretes enfrentarem a primeira dificuldade e ignorarem completamente a última.
Em Romanos, deparamo-nos com dificuldades relativas à formação do texto ao analisarmos o capítulo 16. Vários manuscritos da carta terminam no capítulo 14. Outros anexam a doxologia de 16:25-27 diretamente a esse capítulo, e um terceiro grupo a apresenta tanto no fim do capítulo 14 como no 16, o que sugere a possibilidade de que a epístola original não contivesse o capítulo 15 e quase todo o 16.
Por outro lado, as características literárias do capítulo 15 sugerem que Paulo foi seu autor. As citações abundantes do Antigo Testamento para fundamentar assertivas, em 15:3-12, por exemplo, são típicas do apóstolo e, ainda mais, de Romanos. Portanto, é possível que o capítulo 15 tenha sido acrescentado por Paulo, após a redação original da carta.
A situação do capítulo 16 é diferente. Ele parece ter sido escrito em outro momento com o propósito de apresentar a cristã Febe a uma comunidade não situada em Roma. Tem a estrutura de uma carta de recomendação, como outras que circularam entre as igrejas, no século I. Os primeiros versículos cumprem o papel de abertura: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja de Cencreia, para que a recebais no Senhor como convém aos santos, e a ajudeis em tudo que de vós vier a precisar; porque tem sido protetora de muitos e de mim inclusive” (16:1-2). Os versos seguintes são o texto intermediário (16:3-23), e o último constitui o desfecho da pequena epístola: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém” (16:24).
John Knox já assinalara que o capítulo 16 "representa uma adição pseudônima à nossa epístola aos Romanos, que teve por intuito vincular o apóstolo Paulo mais de perto com Roma, fortalecendo as mãos dessa igreja em sua batalha contra os gnósticos" (apud CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado - versículo por versículo. 10ª reimpressão, São Paulo: Candeia, 1995. Vol. 3. p. 873). Com algumas diferenciações, essa opinião continua a ser sustentável ainda hoje.
Como Atos não registra uma ida de Paulo a Roma, antes do último capítulo, e o próprio apóstolo afirma ter sido impedido de visitar os romanos até o momento em que lhes escreveu sua carta (1:13; 15:22), é improvável que as pessoas da longa lista de conhecidos dele, no capítulo 16, residissem em Roma. Mais verossímil é que a lista fizesse parte de um texto (a carta de recomendação de Febe) que Paulo ou outro líder cristão enviou a uma comunidade da época. Essa comunidade pode ter sido a de Éfeso, já que Priscila e Áquila, mencionados em 16:3-4, residiram ali (At 18:24,26), e Epêneto (16:3) também era da região.
Mas, se o capítulo 16 foi originalmente uma epístola à parte, um texto de recomendação de Febe, seu autor pode ter sido ou não Paulo. O verso 22 presta uma informação importante a esse respeito: “Eu, Tércio, que escrevi esta epístola, vos saúdo no Senhor”. E o 23 continua: “Saúda-vos Gaio, meu hospedeiro e de toda a igreja. Saúda-vos Erasto, tesoureiro da cidade, e o irmão Quarto”. Teria Tércio registrado as palavras de outrem ou teria, ele próprio, sido o autor da epístola do capítulo 16?
Não era comum o autor de uma carta identificar-se no meio dela, como Tércio fez, e sim no começo. Esse é um indício de que Paulo pode ter sido o autor do texto registrado por Tércio, pois 1ª aos Coríntios 16:21 e 2ª aos Tessalonicenses 3:17 confirmam que se utilizava de amanuenses para compor suas epístolas. Além disso, se Gaio for a pessoa mencionada em Atos 19:29 e 1ª aos Coríntios 1:14, e Erasto, a que aparece em Atos 19:22 e 2ª a Timóteo 4:20, a autoria paulina ficará ainda mais esboçada. Por fim, a afirmação “Todas as igrejas de Cristo vos saúdam” (16:16) também sugere a autoria de um apóstolo que transitava entre as igrejas e que pode ter sido Paulo.
No entanto, se o capítulo 16 surgiu à parte do restante da epístola, que motivo pode ter conduzido à sua anexação a Romanos? Se Paulo não tinha estado em Roma (1:13; 15:22), as saudações a pessoas daquela cidade, em 16:3-16, podiam criar dúvida sobre a autenticidade da epístola. Por que induzir pessoas à dúvida, anexando a pequena carta de 16:1-24? Um motivo pode ter sido o fato de os capítulos 15 e 16 circularem conjuntamente, no primeiro século. Se isso tiver ocorrido, com o tempo, os textos podem ter-se fundido ou sido considerados inseparáveis. Assim, a anexação do primeiro a Romanos, como continuação natural da carta, pode ter levado à incorporação também do outro.
De qualquer maneira, é certo que o capítulo 16 tem características de texto autônomo. Sua relação com os capítulos 1 a 14 é débil. Liga-se menos artificialmente ao 15, talvez por ter sido escrito na mesma época e circulado junto com ele. No entanto, a ligação é mais extrínseca do que intrínseca, mais circunstancial do que orgânica. A origem e a relação com um contexto autônomo recomendam que leiamos o capítulo como texto à parte, mais do que como continuação de Romanos.
Se a epístola do capítulo 16 foi dirigida a Éfeso ou a outra igreja da Ásia, como os adeptos da origem autônoma consideram, é justo pensar que “os que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes” (16:17) eram pessoas dali e não de Roma. O autor sagrado continua: “Esses tais não servem a Cristo nosso Senhor e, sim, a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos incautos” (16:18).
Já se sugeriu que essas pessoas eram gnósticos. Porém, não temos o menor indício seguro disso. A associação com os “lobos vorazes que penetrarão entre vós e não pouparão o rebanho” ou com os “homens que falam coisas pervertidas”, contra os quais Paulo advertiu os presbíteros de Éfeso em Atos 20:29-30, também é improvável. A alusão a Gaio e Erasto (16:23) e à igreja em Cencreia (16:1) sugere que o texto do capítulo 16 foi escrito, quando Paulo estava em Corinto. Portanto, na ocasião descrita em Atos 18. Dali, Paulo viajou para Éfeso, Cesareia, Jerusalém, Antioquia, Galácia e Frígia (At 18:21-23), antes de retornar a Éfeso, onde permaneceu três anos (At 20:31). O tempo que essas viagens duraram torna improvável que os lobos e os homens que falavam coisas pervertidas, mencionados em Atos 20:29-30, fossem as pessoas que promoviam divisões e escândalos e serviam o próprio ventre, a que Paulo se referiu quando estava em Corinto.
Filipenses 3:19 traz alusão semelhante a pessoas cujo destino “é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia; visto que só se preocupam com as coisas terrenas”. Paulo lembra ter precavido os filipenses “repetidas vezes” contra essas pessoas, quando esteve naquela cidade (Fp 3:18), o que nos remete a Atos 16. A estada de Paulo em Filipos não foi muito anterior à sua permanência em Corinto. Portanto, é possível que a referência aos que têm como Deus o ventre, em Filipenses 3:19, equivalha à alusão aos que servem o próprio ventre, em Romanos 16:18.
Se não é certa, essa é uma associação mais provável. No contexto de Filipenses, os inimigos da cruz de Cristo, que têm como Deus o ventre, são os cães, os maus obreiros, a falsa circuncisão (Fp 3:2). É provável que tenham sido judeus com práticas hedonistas. Pessoas que, “com suaves palavras e lisonjas” enganavam “os corações dos incautos” (16:18). Servir o próprio ventre, em Romanos 16:18, portanto, não é só buscar o prazer, mas elevá-lo à posição suprema, como fazem os que vivem exclusivamente para o prazer. Essas pessoas divinizam as coisas terrenas não por lhes prestarem culto, mas por lhes dedicarem um amor verdadeiramente religioso.
1ª a Timóteo 6:3-5 alude a pessoas que propagavam doutrina diferente da "de nosso Senhor Jesus Cristo" e do "ensino segundo a piedade". Essas pessoas "supunham que a piedade é fonte de lucro". Em Tito 1:10, também lemos dos "insubordinados, palradores frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão". Todos esses textos têm em comum a referência a mestres, geralmente judeus, que ensinavam doutrina distinta da de Jesus Cristo em troca de dinheiro. Esse grupo numeroso de mercenários da fé era uma realidade, no primeiro século, e causou a repulsa do apóstolo. A esse grupo é que Romanos 16:17-18 parece fazer referência.
Efésios 5:5 declara: “Nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus”. Avareza é amor ao dinheiro, não em si mesmo, mas como símbolo e equivalente do que ele pode comprar. O mistério da idolatria é o fato de o ídolo ser confeccionado pelo homem. Ao adorar o ídolo, o homem adora o que fez. Num sentido profundo, porém real, podemos dizer que ele adora a si mesmo. Semelhantemente, o avarento adora os bens que o dinheiro compra, que foram feitos pelo homem e são o próprio homem objetivado.
Curioso é que a Bíblia não identifica qualquer outro pecado com a idolatria, só a avareza, que é o amor à matéria enquanto objeto de consumo. Curvar-se perante uma pedra ou um pedaço de madeira é idolatria no sentido extrínseco. Mas há uma idolatria intrínseca, que consiste em amar desenfreadamente o alimento e a bebida. Quando Jesus proibiu servir a Deus e a Mamom, referiu-se mais ao que o dinheiro compra do que a ele próprio. Se o deus do homem é o seu ventre, Mamom é o dinheiro concreto, aquilo que o homem forja e depois adora: a comida e a bebida de que se enche na busca infrutífera de sentido para a sua vida.