sábado, 13 de setembro de 2014

Livre Exame de Romanos (34): A Pequena Epístola

A Bíblia apresenta duas dificuldades principais ao intérprete. A primeira está associada à compreensão do sentido das suas passagens; a outra se relaciona à formação do texto como tal. Não é incomum os intérpretes enfrentarem a primeira dificuldade e ignorarem completamente a última.
Em Romanos, deparamo-nos com dificuldades relativas à formação do texto ao analisarmos o capítulo 16. Vários manuscritos da carta terminam no capítulo 14. Outros anexam a doxologia de 16:25-27 diretamente a esse capítulo, e um terceiro grupo a apresenta tanto no fim do capítulo 14 como no 16, o que sugere a possibilidade de que a epístola original não contivesse o capítulo 15 e quase todo o 16.
Por outro lado, as características literárias do capítulo 15 sugerem que Paulo foi seu autor. As citações abundantes do Antigo Testamento para fundamentar assertivas, em 15:3-12, por exemplo, são típicas do apóstolo e, ainda mais, de Romanos. Portanto, é possível que o capítulo 15 tenha sido acrescentado por Paulo, após a redação original da carta.
A situação do capítulo 16 é diferente. Ele parece ter sido escrito em outro momento com o propósito de apresentar a cristã Febe a uma comunidade não situada em Roma. Tem a estrutura de uma carta de recomendação, como outras que circularam entre as igrejas, no século I. Os primeiros versículos cumprem o papel de abertura: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja de Cencreia, para que a recebais no Senhor como convém aos santos, e a ajudeis em tudo que de vós vier a precisar; porque tem sido protetora de muitos e de mim inclusive” (16:1-2). Os versos seguintes são o texto intermediário (16:3-23), e o último constitui o desfecho da pequena epístola: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém” (16:24).
John Knox já assinalara que o capítulo 16 "representa uma adição pseudônima à nossa epístola aos Romanos, que teve por intuito vincular o apóstolo Paulo mais de perto com Roma, fortalecendo as mãos dessa igreja em sua batalha contra os gnósticos" (apud CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado - versículo por versículo. 10ª reimpressão, São Paulo: Candeia, 1995. Vol. 3. p. 873). Com algumas diferenciações, essa opinião continua a ser sustentável ainda hoje.
Como Atos não registra uma ida de Paulo a Roma, antes do último capítulo, e o próprio apóstolo afirma ter sido impedido de visitar os romanos até o momento em que lhes escreveu sua carta (1:13; 15:22), é improvável que as pessoas da longa lista de conhecidos dele, no capítulo 16, residissem em Roma. Mais verossímil é que a lista fizesse parte de um texto (a carta de recomendação de Febe) que Paulo ou outro líder cristão enviou a uma comunidade da época. Essa comunidade pode ter sido a de Éfeso, já que Priscila e Áquila, mencionados em 16:3-4, residiram ali (At 18:24,26), e Epêneto (16:3) também era da região.
Mas, se o capítulo 16 foi originalmente uma epístola à parte, um texto de recomendação de Febe, seu autor pode ter sido ou não Paulo. O verso 22 presta uma informação importante a esse respeito: “Eu, Tércio, que escrevi esta epístola, vos saúdo no Senhor”. E o 23 continua: “Saúda-vos Gaio, meu hospedeiro e de toda a igreja. Saúda-vos Erasto, tesoureiro da cidade, e o irmão Quarto”. Teria Tércio registrado as palavras de outrem ou teria, ele próprio, sido o autor da epístola do capítulo 16?
Não era comum o autor de uma carta identificar-se no meio dela, como Tércio fez, e sim no começo. Esse é um indício de que Paulo pode ter sido o autor do texto registrado por Tércio, pois 1ª aos Coríntios 16:21 e 2ª aos Tessalonicenses 3:17 confirmam que se utilizava de amanuenses para compor suas epístolas. Além disso, se Gaio for a pessoa mencionada em Atos 19:29 e 1ª aos Coríntios 1:14, e Erasto, a que aparece em Atos 19:22 e 2ª a Timóteo 4:20, a autoria paulina ficará ainda mais esboçada. Por fim, a afirmação “Todas as igrejas de Cristo vos saúdam” (16:16) também sugere a autoria de um apóstolo que transitava entre as igrejas e que pode ter sido Paulo.
No entanto, se o capítulo 16 surgiu à parte do restante da epístola, que motivo pode ter conduzido à sua anexação a Romanos? Se Paulo não tinha estado em Roma (1:13; 15:22), as saudações a pessoas daquela cidade, em 16:3-16, podiam criar dúvida sobre a autenticidade da epístola. Por que induzir pessoas à dúvida, anexando a pequena carta de 16:1-24? Um motivo pode ter sido o fato de os capítulos 15 e 16 circularem conjuntamente, no primeiro século. Se isso tiver ocorrido, com o tempo, os textos podem ter-se fundido ou sido considerados inseparáveis. Assim, a anexação do primeiro a Romanos, como continuação natural da carta, pode ter levado à incorporação também do outro.
De qualquer maneira, é certo que o capítulo 16 tem características de texto autônomo. Sua relação com os capítulos 1 a 14 é débil. Liga-se menos artificialmente ao 15, talvez por ter sido escrito na mesma época e circulado junto com ele. No entanto, a ligação é mais extrínseca do que intrínseca, mais circunstancial do que orgânica. A origem e a relação com um contexto autônomo recomendam que leiamos o capítulo como texto à parte, mais do que como continuação de Romanos.
Se a epístola do capítulo 16 foi dirigida a Éfeso ou a outra igreja da Ásia, como os adeptos da origem autônoma consideram, é justo pensar que “os que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes” (16:17) eram pessoas dali e não de Roma. O autor sagrado continua: “Esses tais não servem a Cristo nosso Senhor e, sim, a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos incautos” (16:18).
Já se sugeriu que essas pessoas eram gnósticos. Porém, não temos o menor indício seguro disso. A associação com os “lobos vorazes que penetrarão entre vós e não pouparão o rebanho” ou com os “homens que falam coisas pervertidas”, contra os quais Paulo advertiu os presbíteros de Éfeso em Atos 20:29-30, também é improvável. A alusão a Gaio e Erasto (16:23) e à igreja em Cencreia (16:1) sugere que o texto do capítulo 16 foi escrito, quando Paulo estava em Corinto. Portanto, na ocasião descrita em Atos 18. Dali, Paulo viajou para Éfeso, Cesareia, Jerusalém, Antioquia, Galácia e Frígia (At 18:21-23), antes de retornar a Éfeso, onde permaneceu três anos (At 20:31). O tempo que essas viagens duraram torna improvável que os lobos e os homens que falavam coisas pervertidas, mencionados em Atos 20:29-30, fossem as pessoas que promoviam divisões e escândalos e serviam o próprio ventre, a que Paulo se referiu quando estava em Corinto.
Filipenses 3:19 traz alusão semelhante a pessoas cujo destino “é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles está na sua infâmia; visto que só se preocupam com as coisas terrenas”. Paulo lembra ter precavido os filipenses “repetidas vezes” contra essas pessoas, quando esteve naquela cidade (Fp 3:18), o que nos remete a Atos 16. A estada de Paulo em Filipos não foi muito anterior à sua permanência em Corinto. Portanto, é possível que a referência aos que têm como Deus o ventre, em Filipenses 3:19, equivalha à alusão aos que servem o próprio ventre, em Romanos 16:18.
Se não é certa, essa é uma associação mais provável. No contexto de Filipenses, os inimigos da cruz de Cristo, que têm como Deus o ventre, são os cães, os maus obreiros, a falsa circuncisão (Fp 3:2). É provável que tenham sido judeus com práticas hedonistas. Pessoas que, “com suaves palavras e lisonjas” enganavam “os corações dos incautos” (16:18). Servir o próprio ventre, em Romanos 16:18, portanto, não é só buscar o prazer, mas elevá-lo à posição suprema, como fazem os que vivem exclusivamente para o prazer. Essas pessoas divinizam as coisas terrenas não por lhes prestarem culto, mas por lhes dedicarem um amor verdadeiramente religioso.
1ª a Timóteo 6:3-5 alude a pessoas que propagavam doutrina diferente da "de nosso Senhor Jesus Cristo" e do "ensino segundo a piedade". Essas pessoas "supunham que a piedade é fonte de lucro". Em Tito 1:10, também lemos dos "insubordinados, palradores frívolos e enganadores, especialmente os da circuncisão". Todos esses textos têm em comum a referência a mestres, geralmente judeus, que ensinavam doutrina distinta da de Jesus Cristo em troca de dinheiro. Esse grupo numeroso de mercenários da fé era uma realidade, no primeiro século, e causou a repulsa do apóstolo. A esse grupo é que Romanos 16:17-18 parece fazer referência.
Efésios 5:5 declara: “Nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus”. Avareza é amor ao dinheiro, não em si mesmo, mas como símbolo e equivalente do que ele pode comprar. O mistério da idolatria é o fato de o ídolo ser confeccionado pelo homem. Ao adorar o ídolo, o homem adora o que fez. Num sentido profundo, porém real, podemos dizer que ele adora a si mesmo. Semelhantemente, o avarento adora os bens que o dinheiro compra, que foram feitos pelo homem e são o próprio homem objetivado.
Curioso é que a Bíblia não identifica qualquer outro pecado com a idolatria, só a avareza, que é o amor à matéria enquanto objeto de consumo. Curvar-se perante uma pedra ou um pedaço de madeira é idolatria no sentido extrínseco. Mas há uma idolatria intrínseca, que consiste em amar desenfreadamente o alimento e a bebida. Quando Jesus proibiu servir a Deus e a Mamom, referiu-se mais ao que o dinheiro compra do que a ele próprio. Se o deus do homem é o seu ventre, Mamom é o dinheiro concreto, aquilo que o homem forja e depois adora: a comida e a bebida de que se enche na busca infrutífera de sentido para a sua vida.