Na seção iniciada no capítulo 12, Paulo trata de várias virtudes, entre as quais a humildade, a submissão, o amor, a tolerância e a abstinência. A seção parece encerrar-se no versículo 7 do décimo-quinto capítulo, com a exortação final: “Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de Deus” (15:7).
No entanto, os capítulos 15 e 16 continuam a tratar das virtudes de outra maneira. Cessam as exortações e começam os exemplos de condutas virtuosas. Por essa razão, devemos entender esses capítulos como uma continuação da abordagem ética da epístola. Por exemplo, no capítulo 15, Paulo mostra em que consiste a despretensão, ao se referir ao texto da sua epístola nos seguintes termos: “Certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bondade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros. Entretanto vos escrevi em parte mais ousadamente, como para vos trazer isto de novo à memória” (15:14-15).
Paulo afirma que a sua epístola era desnecessária, pois os romanos estavam cheios de conhecimento e bondade. Portanto, se o texto da carta tinha uma utilidade, era a de recordar aos leitores o que já sabiam. Mas será que os romanos realmente sabiam as coisas de que a carta trata? É improvável que o soubessem tão bem, já que as doutrinas de Romanos não tinham sido escritas antes, e Paulo nunca havia estado em Roma. Portanto, os versos 14 e 15 mostram a funda despretensão de Paulo ao brindar-nos com a mais completa apresentação dos efeitos da morte e ressurreição de Cristo e, ainda assim, considerá-la desnecessária.
O objetivo geral do capítulo 15 é justificar o ministério de Paulo. Os romanos talvez estranhassem o fato de Paulo voltar-se tanto aos gentios, se o próprio Cristo tinha pregado aos judeus. Para eliminar esse aparente descompasso, Paulo explicou “que Cristo Jesus foi ministro da circuncisão, por causa da verdade de Deus, para que confirmasse as promessas feitas aos pais” (15:8). Em outras palavras, Cristo veio para os judeus não porque o evangelho devesse ser pregado somente a eles, mas porque precisava confirmar as promessas feitas aos pais para que pudessem ser recebidas tanto pelos judeus quanto pelos gentios. Como as promessas tinham sido feitas “aos pais”, isto é, aos judeus, era necessário que Cristo as confirmasse também aos judeus. Por isso ele veio para os judeus e ministrou diretamente a eles.
A Trindade é um dado incontornável do Novo Testamento. Embora Deus tivesse dado as promessas, era necessário que o Filho as confirmasse. É o que 15:8 nos ensina. Porém, uma vez confirmadas as promessas divinas, o evangelho revela a sua universalidade: “Como está escrito: Por isso eu te glorificarei entre os gentios, e cantarei louvores ao teu nome. E também diz: Alegrai-vos, ó gentios, com o seu povo. E ainda: Louvai ao Senhor, vós todos os gentios, e todos os povos o louvem. Também Isaías diz: Haverá a raiz de Jessé, aquele que se levanta para governar os gentios, nele os gentios esperarão” (15:9-12).
Deuteronômio conclama: “Jubilai, ó nações, com o seu povo” (Dt 32:43). O evangelho não é só para as nações, nem só para “o seu povo”, mas para ambos. “Haverá um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará” (Is 11:1). Que é o tronco de Jessé, a não ser um ramo do povo judeu? Porém, “acontecerá naquele dia que as nações perguntarão pela raiz de Jessé, posta por pendão dos povos” (Is 11:10).
Romanos é um memorial desse fato grandioso. Deus salva as nações. Por isso, uma epístola é dirigida a pessoas situadas na capital do Império. Todavia, embora cumpra um propósito tão grandioso, Paulo não o faz num tom grandioso, mas em perfeita humildade e em consonância com as limitações da sua situação individual. Não diz que o conteúdo da epístola era indispensável aos romanos, mas que eles estavam cheios de bondade e de todo o conhecimento. Sugere, portanto, que, em certo sentido, a carta era desnecessária.
Embora fosse o documento mais completo escrito por um apóstolo sobre o sentido do evangelho de Deus, Paulo considerava a Carta aos Romanos dispensável enquanto expressão individual das grandiosidades de Deus, já que os destinatários não tinham falta do que nela podiam encontrar, vale dizer, do conhecimento da obra de Cristo e da bondade que inspira aos que creem.
Essa atitude de Paulo revela a mais alta despretensão. Romanos é inigualável. É o mais impressionante tratado sobre o significado teológico da morte e ressurreição de Cristo escrito por um apóstolo e a mais nítida explicação da salvação operada por ele. Mesmo assim, Paulo considera sua carta dispensável. Isso é despretensão. Isso é demonstração da virtude por meio do exemplo.
A despretensão de Paulo nos lembra que as bênçãos, a salvação e a vida eterna comunicam-se pela fé, mas a grandiosidade de Deus é incomunicável. Embora as promessas divinas sejam grandiosas, aqueles que as anunciam ao mundo são humildes e miseráveis. Deus é grande; seus ministros, pequenos. É o que Paulo nos ensina com a sua atitude.
Temos forte propensão à cegueira sobre essas coisas. Pensamos que o evangelho é grandioso, o que está certo. Mas endeusamos os pregadores, o que está errado. Como deveríamos tratar os pregadores? Do modo como Paulo se trata. Ele fixa o exemplo a ser seguido. Não apenas considera dispensáveis os seus escritos, mas apresenta o seu ministério, a seguir, exatamente no mesmo espírito.
Paulo declara-se na posse de ofertas das igrejas da Macedônia e da Acaia destinadas aos pobres de Jerusalém (15:25-27). Dá a entender que não seria fácil realizar a entrega das ofertas, devido à contenciosidade dos judeus de Jerusalém (15:31). Sugere, portanto, que se arriscaria para levar as ofertas a Jerusalém. Mas não enaltece o seu ato. Pelo contrário, em vez de construir um clímax heroico sobre esse ponto, Paulo cria um anticlímax.
As razões do anticlímax se encontram em 2ª aos Coríntios 11: “São ministros de Cristo? (falo como fora de mim) eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; em açoites, mais do que eles; muito mais em prisões; em perigos de morte, muitas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um;fui três vezes fustigado com varas, uma vez apedrejado, em naufrágio, três vezes, uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas muitas vezes, em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes, em fome e sede, em jejum muitas vezes; em frio e nudez” (2 Co 11:23-27).
Que grandiosidade se pode achar nisso, a não ser a do sofrimento? Quando declara que “Deus pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo" (1 Co 4:9), Paulo afasta todas as dúvidas sobre o anticlímax do ministério apostólico. "Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. Até à presente hora sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos” (1 Co 4:10-13).
Embora levasse ao mundo a luz do Verbo de Deus, Paulo tinha do seu ministério a avaliação que lemos nesses versos. Não o considerava nobre, mas vil. Tampouco tinha dele a impressão de algo sério ou decisivo, pois afirma que pretendia encontrar os romanos para recrear-se com eles (15:32). Isso é despretensão e desapego.
Despretensão é escrever um texto sublime como Romanos e pensar tê-lo escrito para recrear-se. É pregar o evangelho em toda parte e se considerar o último de todos os homens, o lixo do mundo. O falso apostolado está ligado à exaltação e à glória; o verdadeiro está associado à despretensão. Assim como a condição humana não existe à parte da humildade, o apostolado não se constitui sem a despretensão.
A ambição da glória faz o heroi; a desambição, o apóstolo. A presunção constitui o sábio aos próprios olhos; a despretensão, o sábio aos olhos de Deus. O heroi derrama sangue e é exaltado. O sábio enfatuado fala e é aplaudido. O apóstolo ama, e o sábio verdadeiro sente que o seu papel é calar-se. Porém, contra a lógica deste mundo, Deus não fala no heroi ou no sábio inchado de orgulho, mas no apóstolo e naquele que se identifica com o silêncio.