quarta-feira, 24 de setembro de 2014

História Hipotética da Igreja (5):Os Gnósticos

Ireneu de Lião
Flávio Josefo informa que, na sua época, os judeus eram uma das etnias mais numerosas do Império Romano. Diz-nos também que era a mais instável e tendente a desenvolver revoltas dentre as que existiam. Por isso, quando o evangelho cristão foi pregado, o interesse por ideias judaicas produziu uma situação particularmente perigosa e explosiva.
Um dos elementos dessa situação foi o contato das ideias religiosas judaicas com a filosofia grega. Em torno de quase toda sinagoga da época, surgiram combinações variadas de ideias, que se ligaram tanto à teologia rabínica como às seitas filosóficas. Mas uma combinação particular destacou-se, por não concordar nem com a teologia judaica, nem com as escolas filosóficas. Refiro-me às seitas gnósticas, que combinavam elementos daquelas duas fontes com o misticismo oriental.
Característica dos gnósticos era a construção altamente imaginativa das suas doutrinas. É o que Ireneu nos revela, na maior e mais bem acabada obra de que dispomos sobre aquele grupo herético (LIÃO, Ireneu de. 2ª ed., Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995). Embora os adeptos das seitas judaicas e os filósofos das várias escolas discordassem entre si sobre quase todos os assuntos, os primeiros submetiam-se aos limites da revelação postos nas Sagradas Escrituras, e os últimos à razão. Suas doutrinas eram, portanto, variadas, mas não na mesma medida das dos gnósticos, que se pautavam sobretudo na imaginação.
Vejamos alguns exemplos desse uso da imaginação. Ireneu começa destacando o que chama sistema gnóstico fundamental: um corpo de doutrinas de que outras se originaram por negação, acréscimo e transformação. Entre esses pontos, estava a crença na existência de “um Éon perfeito, anterior a tudo, que chamam Protoprincípio, Protopai e Abismo. Incompreensível e invisível, eterno e ingênito que se manteve em profundo repouso e tranquilidade durante uma infinidade de séculos. Junto a ele estava Enoia, que chamam também Graça e Silêncio. Ora, um dia, este Abismo teve o pensamento de emitir, dele mesmo, um Princípio de todas as coisas; essa emissão, de que teve o pensamento, depositou-a como semente no seio de sua companheira, o Silêncio. Ao receber essa semente, ela engravidou e gerou o Nous, semelhante e igual ao que o tinha emitido e que é o único capaz de entender a grandeza do Pai. Este Nous é também chamado Unigênito, Pai e Princípio de todas as coisas. Juntamente com ele foi gerada a Verdade e esta seria a primitiva e fundamental Tétrada pitagórica que chamam também Raiz de todas as coisas. Ela seria composta pelo Abismo e o Silêncio, o Nous e a Verdade. O Unigênito, tendo aprendido o modo como foi gerado, procriou, por sua vez, o Logos e Zoé, Pai de todos os que viriam após ele, Princípio e formação de todo o Pleroma. Por sua vez, foram gerados pelo Logos e Zoé o Homem e a Igreja” (idem. pp. 31-32).
A Tétrada fundamental é, portanto, formada pelo Protopai e o Silêncio, que geraram Nous e a Verdade. Nous gerou o Logos e Zoé, que por sua vez produziram o Homem e a Igreja. Ao todo, oito entidades, que deram origem a duas séries de dez e doze outras chamadas Éões: “Logos e Zoé geraram, depois do Homem e da Igreja, outros dez Éões, cujos nomes dizem ser estes: Abissal e Confusão, Aguératos e União, Autoproduto e Satisfação, Imóvel e Mistura, Unigênito e Felicidade [...] Por sua vez, também o Homem com a Igreja produziu doze Éões, aos quais atribuem estes nomes: Consolador e Fé, Paterno e Esperança, Materno e Caridade, Eterno e Compreensão, Eclesiástico e Bem-aventurança, Desejado e Sofia” (idem. p. 32).
Somos levados a pensar que esses Éões são físicos, pois Ireneu menciona outros 30 impronunciáveis e não conhecíveis. Segundo eles [os gnósticos], este é o Pleroma invisível e espiritual, com a sua tríplice divisão em Ogdôada, Década e Doudécada” (idem. p. 33). Se estes são espirituais, podemos pensar que os outros, excluídos do seu número, não o são. Temos, pois, ao todo, 22 Éões físicos e 30 espirituais, invisíveis.
A questão é: de onde os gnósticos tiraram essas doutrinas? Por mais que busquemos fontes anteriores a eles, que as possam ter desenvolvido, somos obrigados a perguntar de onde elas próprias, por sua vez, as retiraram, se é que o fizeram? Não há como evitar a resposta a que se tem de chegar por essa espécie de regressão: as doutrinas foram extraídas da pura imaginação. A concepção gnóstica do mundo era, antes de tudo, imaginária, arbitrária.
Além do que chama sistema fundamental dos gnósticos, Ireneu trata ainda das quase infinitas nuanças de cada seita que eles originaram: “Saturnino, como Menandro, prega um único Pai, não conhecido por ninguém, que fez os Anjos, os Arcanjos, as Potências e as Potestades. Sete destes Anjos fizeram o mundo e tudo o que há nele” (idem. p. 101). Saturnino e Menandro, ensinavam que “o Deus dos judeus era um dos Anjos, e porque o Pai quis destruir todos os Arcontes o Cristo veio para destruir o Deus dos judeus e salvar os que acreditassem nele” (idem. p. 102).
Basílides, por sua vez, ensinou que “Nous nasceu do Pai ingênito; dele nasceu o Logos; de Logos, a Prudência; desta, Sofia e Potência. De Sofia e Potência, as Virtudes, os Principados e os Anjos que chama primeiros e que fizeram o primeiro céu. Em seguida, outros derivados destes fizeram outro céu semelhante ao primeiro. De forma semelhante, outros derivados dos precedentes [...] fizeram o terceiro céu. Desta terceira série deriva a quarta e assim a seguir e do mesmo modo, assegura, uma após outra toda a série de Anjos e Principados até formarem 365 céus".
Os gnósticos conhecidos como ofitas e setianos, por sua vez, ensinaram que “o Pai de todas as coisas se chama Primeiro Homem. A Enoia emitida por ele dizem que é seu filho, o Filho do Homem, o Segundo Homem. Abaixo deles há o Espírito Santo, e debaixo do Espírito do alto os elementos separados, como a água, as trevas, o abismo e o caos” (idem. p. 114). Enfim, cada grupo gnóstico modifica o sistema fundamental a seu gosto, com base na mais pura e livre imaginação.
Que estava por trás dessa pluralidade arbitrária de doutrinas? De onde ela se originou? Ireneu não hesita em afirmar que originou-se do orgulho e do propósito de cada líder gnóstico de ser seguido por outros. Em poucas palavras, da pura vaidade surgiu a pura arbitrariedade, por meio da pura imaginação.
Há uma grande diferença entre doutrinas desenvolvidas por esse método e os ensinamentos dos antigos filósofos. Estes baseavam-se na razão. Davam-se, pois, ao trabalho de provar as suas assertivas por argumentos racionais. Os teólogos e rabis, por seu turno, baseavam-se na revelação, o que significa que tinham de provar pelas Escrituras o que afirmavam. Mas os gnósticos não estavam limitados seja pela razão, seja pela revelação. Seu único mestre era a imaginação.
A adesão de um grande número de pessoas ao gnosticismo e a sua influência no meio cristão assinalam o primeiro e surpreendente fracasso em escala da História da Igreja. Inauguram a identificação visceral que observamos em todas as outras etapas históricas entre a igreja cristã e o revés, o fracasso espiritual. A História da Igreja não é mais gloriosa que a de Israel no Antigo Testamento. Como esta, ela também é marcada por fortes sinais de desobediência.
Claro: a interpretação dos gnósticos transmitida por Ireneu é uma entre outras possíveis. Sempre haverá quem sugira que é a palavra dos vencedores da luta contra a heresia. Seja. Mas ou as informações que Ireneu transmitiu estão erradas, ou o gnosticismo foi, de fato, em seu todo, o feixe de rematadas tolices que ele nos apresentou. É importante acrescentar que, após Ireneu, a outra avaliação dos gnósticos a que se reconhece ampla autoridade é a do filósofo Plotino que, no quarto livro da Enéada, não só refutou as doutrinas daqueles escritores como o fez de modo tão integral quanto Ireneu. Não menos significativo é que Plotino, ao que tudo indica, não conheceu Ireneu ou sua obra sobre os gnósticos.
Há obras gnósticas que revelam uma espécie de espiritualidade e um conjunto de ideias bem melhores que as que Ireneu citou. É o caso do Evangelho de Tomé. Mas, mesmo nelas, invenções absurdas estão escondidas por baixo das expressões de sabedoria e espiritualidade que encontramos. No texto pseudoepígrafo de Tomé, por exemplo, Jesus exclama: “Eu sou o Todo/ O Todo saiu de mim/ e o Todo voltou a mim/ Ao rachardes lenha, eu estou aí/ Ao levantardes uma pedra/ aí me encontrareis” (Evangelho de Tomé. Petrópolis: Vozes, 1997. nº 77, p. 33). Frases como essas não disfarçam, só encubrem, a presença da cosmologia fantástica dos gnósticos.